Resumo:
Este artigo retoma achados publicados no Relatório de Área: Educação Física (licenciatura) do Enade de 2014, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), e discute a qualidade da formação, com foco nos resultados do desempenho dos alunos nos itens do componente específico. O texto foi estruturado em três eixos: o primeiro diz respeito à contextualização da formação docente na perspectiva das diretrizes curriculares que a norteiam. Este favorece as análises das questões objetivas no segundo eixo e das questões discursivas no terceiro. Os resultados indicaram que, de forma geral, os estudantes apresentaram baixo desempenho no componente de formação específica, sobretudo nas questões discursivas, o que foi semelhante nas cinco grandes regiões brasileiras. Tais resultados suscitam inquietações sobre o valor dessa formação inicial e a atuação do profissional docente.
Palavras-chave: avaliação de desempenho discente; Educação Física; relatório de pesquisa
Abstract:
This article incorporates findings of the Relatório de Área: Educação Física (licenciatura) of the Enade 2014, conducted by the National Institute of Educational Studies Anísio Teixeira (or Inep, as acronymed in Portuguese), and discusses the quality of the formation, focusing on students’ performance in specific component items. Text is structured in three axes: the first concerns the contextualization of teacher education in the perspective of the curricular guidelines that guide them. This one enables the analysis of objective questions in the second axis and discursive questions in the third axis. Results indicate that, overall, students performed poorly in the specific formation component, especially in the discursive questions, with similar results through the five major Brazilian regions. These results raise concerns regarding the value of this initial training and the performance of the teaching professional.
Keywords: Physical Education; research report; teacher evaluation
Resumen:
Este artículo retoma hallazgos publicados en el Relatório de Área: Educação Física (licenciatura) del Enade de 2014, realizado por el Instituto Nacional de Estudios e Investigaciones Educativas Anísio Teixeira - Inep, y discute la calidad de la formación, con foco en los resultados del desempeño de los estudiantes en los ítems del componente específico. El texto se estructura en tres ejes: el primero se refiere a la contextualización de la formación del profesorado desde la perspectiva de las pautas curriculares que los guían, lo que, a su vez, favorece el análisis de preguntas objetivas en un segundo eje y preguntas discursivas en el tercer eje. Los resultados indicaron que, en general, los estudiantes presentaron bajo rendimiento en el componente de formación específica, especialmente en las preguntas discursivas, lo que fue similar en cinco grandes regiones brasileñas. Dichos resultados generan inquietud sobre el valor de esta formación inicial y la actuación del profesional docente.
Palabras clave: Educación Física; evaluación del desempeño de estudiantes; informe de investigación
Introdução
Com a oportunidade de vivenciar o processo avaliativo (construção da prova e análise dos resultados) dos estudantes dos cursos de licenciatura em Educação Física no Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) de 2014, a comissão assessora da área foi convidada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) para elaborar um artigo acerca dos resultados obtidos pelos discentes, baseado nas informações publicadas no Relatório de Área: Educação Física (licenciatura) do Enade de 2014. Entre as opções apresentadas, a comissão elegeu o eixo temático sobre a qualidade da formação na área tendo como foco os resultados de desempenho nos itens do componente específico que demandam visão da prática profissional.
A escolha desse eixo se pautou, sobretudo, na necessidade de suscitar discussões a respeito dessa temática, trazendo à tona reflexões sobre a formação dos professores de Educação Física que atuarão na educação básica e sua profissionalidade. Entendemos que este artigo, mesmo considerando as limitações desse processo avaliativo, pode auxiliar as instituições de educação superior e os estudos na área, pois apresenta os pontos fortes e os frágeis da formação do licenciado em Educação Física no que tange aos conhecimentos adquiridos, às lacunas no processo de ensino-aprendizagem e às possíveis necessidades de reestruturação curricular a fim de qualificar a formação inicial. Esse exercício, que envolve o diagnóstico, a análise e a reflexão, pode contribuir para melhorias no universo do ensino superior brasileiro e de todo o sistema educacional. Nesse sentido, Gimeno Sacristán e Pérez Gómes (1998, p. 298) ressaltam que
Avaliar se refere a qualquer processo por meio do qual alguma ou várias características de um aluno/a, de um grupo de estudantes, de um ambiente educativo, de objetivos educativos, de materiais, professores/as, programas, etc., recebem atenção de quem avalia, analisam-se e valorizam-se suas características e condições em função de alguns critérios ou pontos de referência para emitir um julgamento que seja relevante para a educação.
Mediante os pressupostos apresentados, este artigo tem como objetivo analisar os resultados de desempenho no Enade/2014 dos alunos dos cursos de licenciatura em Educação Física no Brasil, em relação aos conhecimentos de formação específica, sob o referencial legal das diretrizes curriculares nacionais e teórico da formação inicial do professor, refletindo sobre a visão da prática docente.
Métodos
Os resultados demonstrados neste artigo foram extraídos das informações do Relatório de Área: Educação Física (licenciatura) do Enade de 2014, no que tange aos conhecimentos de formação específica da área. Tal relatório mostra a capacidade de discriminação das questões, indicando o nível de conhecimento em relação aos conteúdos abordados na prova. Este estudo foi discutido à luz de documentos oficiais que estabelecem a formação do licenciado em Educação Física e de autores que são referência na área. Os resultados e as discussões do artigo estão estruturados em três eixos:
Eixo 1 - Contextualização da formação inicial do licenciado em Educação Física: referencial teórico e legal que respalda a análise e a discussão dos resultados das questões objetivas (Eixo 2) e discursivas (Eixo 3) do componente de formação específica.
Eixo 2 - Resultados das questões objetivas: desempenho dos estudantes nas questões objetivas nos componentes de conhecimento de formação específica.
Eixo 3 - Resultados das questões discursivas: desempenho dos estudantes nos componentes de conhecimento de formação específica, mediante a análise individual das três questões discursivas da prova. A capacidade de síntese e de relacionar ideias e a escrita também são analisadas.
Resultados e discussão
Seguindo a proposta metodológica adotada, os resultados e as discussões do presente artigo, no que tange ao desempenho relativo aos componentes de formação específica da prova Enade/2014, Educação Física - licenciatura, tanto das questões objetivas apresentadas no Eixo 2 como das questões discursivas no Eixo 3, foram desenvolvidos em um percurso analítico subsidiado pela fundamentação teórica constante do Eixo 1, que se refere à contextualização da formação inicial do licenciado em Educação Física e suas bases legais.
Eixo 1 - Contextualização da formação inicial do licenciado em Educação Física
Novas exigências sociais redefiniram as atuais políticas educacionais no século 21, e a problemática do enfrentamento de um novo contexto reflete a necessidade de pensarmos configurações para a formação do professor. Consequentemente, sobre a organização dos processos de formação e do perfil profissional, apresentamos uma questão básica: Quais seriam as demandas e as expectativas quanto ao desempenho do professor em face das mudanças e incertezas postas pela sociedade contemporânea?
Muitos autores, entre eles Gimeno Sacristán e Pérez Gómez (1998), Tardif (2002) e Perrenoud, Altet e Paquay (2003), vêm colaborando com estudos sobre as novas formas de pensar a docência visando à profissionalização e à prática crítica e reflexiva com referência a uma nova epistemologia no universo da formação docente. Levando em conta esses estudos, questionamos: Será que os cursos de formação de professores em Educação Física se preocupam com a questão da profissionalização docente? No Brasil, muitos estudos e pesquisadores abordam a temática da formação inicial, em especial sobre a licenciatura de Educação Física. O estudo de Betti e Rangel-Betti (1996) é uma referência que critica no currículo brasileiro o foco da racionalidade técnica e científica dos cursos e defende a prática reflexiva aqui abordada. Não obstante, na contemporaneidade desse estudo, novas perspectivas para o currículo são pensadas; pode-se destacar os estudos dos membros do Grupo de Pesquisa em Educação Física Escolar (GPEF)1, coordenado por Marcos Garcia Neira.
Há uma crítica aos cursos de formação de professor enfatizada por Mizukami et al. (2002) quanto ao predomínio da racionalidade técnica no processo pedagógico e metodológico. Esta é concebida como um paradigma da ciência moderna, em que a teoria aparece como chave de abertura e domínio da realidade do ser no mundo.
[...] Por esse paradigma a realidade é vista como existindo em si mesma, por meio de leis e agir sobre ela por meio de técnicas. Essas concepções dão suporte à formação de professores vista pelo modelo da racionalidade técnica, como aplicação de regras advindas da teoria e da técnica à prática pedagógica. (Mizukami et al., 2002, p. 11).
Tardif (2002), corroborando as ideias de Mizukami et al. (2002), analisa o que considera um modelo aplicacionista de conhecimento. Ambos os autores criticam o modo de ensino nos cursos de formação docente, em que a aquisição de saberes pretende prescrever a futura prática por meio de técnicas ou conhecimento científico que devem ser apropriados e reproduzidos pelo professor na sua atuação. Como se técnicas e conhecimento científico pudessem prever e resolver todos os problemas e as situações advindos da prática docente - incerta e muitas vezes imprevisível -, segundo Perrenoud (1999).
Ainda em relação às críticas ao modelo aplicacionista de conhecimento na formação inicial em Educação Física, Betti e Rangel-Betti (1996) ressaltam o viés técnico-esportivo que muitas vezes se sobrepõe ao técnico-científico na organização curricular desse curso. Os autores nos levam a refletir sobre a necessidade de mudanças na formação de professores dessa área e propõem um olhar para além dos modelos pautados na racionalidade técnica prescritiva. Nessa linha de pensamento, defendemos a necessidade de uma posição distinta para a profissão docente e, portanto, de um entendimento bem delineado sobretudo para construção de um processo de profissionalização que envolva uma maior qualificação e desconsidere essa concepção prescritiva e técnica da formação do professor.
Rompendo com essa visão, diversos autores discutem e analisam novas formas de ensino e aprendizagem nos cursos de formação inicial e continuada. Mizukami et al. (2002) destacam a questão da racionalidade prática e Tardif (2002) se refere a uma nova epistemologia da prática a ser adotada. Esses autores consideram que o sujeito deve ser construtor dos saberes profissionais, em que a prática docente passa a ser foco de ensino-aprendizagem nos cursos, não apenas os conhecimentos técnicos/científicos. Nesse sentido, Tardif (2002) destaca que os saberes docentes (que abrangem o conhecimento, a competência, as habilidades e as atitudes do professor) devem ser considerados e merecem destaque no processo de formação profissional. Para desenvolver esses saberes, a prática docente na escola é o lócus privilegiado e deve ser explorado, representado, investigado e analisado a partir da formação inicial do professor no curso de licenciatura. Pretende-se pensar o professor como ator, que representa papéis que deverão ser interpretados de forma crítica e comprometida, refletindo sobre essa realidade, a fim de que ela seja contextualizada e apreendida significativamente.
A formação docente é, então, vista segundo o modelo reflexivo e artístico, tendo por base a concepção construtivista da realidade com a qual o professor se defronta, entendendo que ele constrói seu conhecimento profissional de forma idiossincrática e processual, incorporando e transcendendo o conhecimento advindo da racionalidade técnica. (Mizukami et al., 2002, p. 15).
Diante desse pressuposto, Tardif (2002) afirma que a formação docente deve ter como foco o desenvolvimento do pensamento crítico e reflexivo que contribua para a autonomia do professor no processo de ensino-aprendizagem, o que caracteriza sua identidade profissional. Tomar consciência da própria ação docente - procurando modificá-la de maneira contextualizada e tácita - e das interpretações significativas no processo educativo, configurando uma práxis, implicará certa autonomia do desenvolvimento profissional.
O professor se depara com programas escolares focados em políticas públicas e diretrizes curriculares que não devem ser encaradas como condicionantes institucionais, com risco de limitar sua autonomia. Ao interagir no cotidiano da escola ele deve articular ideias com seus pares e, especificamente, decidir sua ação em razão das necessidades formativas dos seus alunos. Dessa forma, poderá encarar as reais condições de trabalho e enfrentar os desafios de uma prática comprometida. Essa ação lhe dará condições de decidir com autonomia e consciência sobre o exercício de uma prática reflexiva e crítica acerca da realidade cotidiana do professor. A autonomia em sua atuação lhe trará subsídios para ler e interpretar o processo escolar e educacional com responsabilidade para desenvolver os saberes docentes.
De modo geral, queremos eleger critérios que desencadeiem uma prática contextualizada na formação inicial em Educação Física, a qual considere a própria escola como ponto estruturante de formação e promoção da aprendizagem, sobretudo da reflexão teórica e metodológica sobre a ação docente na realização do movimento corporal. Nesse sentido, Contreras (2002, p. 79) defende a prática profissional dos professores a partir da moralidade, considerando como “um fenômeno social, produto de nossa vida em comunidade na qual é preciso resolver problemas que afetam a vida das pessoas e seu desenvolvimento e que precisam elucidar o que é moralmente adequado para cada caso”. É fundamental salientar que o trabalho do professor de Educação Física necessita ser compreendido não de forma simplista, mas como obrigação moral, ou seja, como um processo que está acima de qualquer obrigação contratual, pois, além das conquistas acadêmicas, o professor encontra-se comprometido com o desenvolvimento dos alunos como pessoas.
Desse ponto de vista, Schön (2000) nos ensina que a prática reflexiva docente parte do conhecimento tácito deste para refletir, constantemente durante sua experiência profissional, na e sobre a ação - o que favorece a construção e a reconstrução sucessiva desse conhecimento durante toda a formação e atuação do professor. Esse exercício de prática reflexiva favorece o desenvolvimento de saberes imprescindíveis à atividade profissional e deve ser experimentado desde o momento que o docente assume a opção por esse campo e busca ampliar seus conhecimentos no curso de formação inicial.
Os saberes da prática desse professor se desenvolvem no decorrer de sua experiência como discente na escola, no curso de formação inicial e continuada e quando, consequentemente, retorna à escola como profissional. Dá-se ao desenvolver um cabedal de conhecimentos para e pela prática que dependem das habilidades exercitadas tanto nesse curso inicial como nos que virão depois e, sobretudo, pelo exercício da prática propriamente dita no cotidiano escolar. Espera-se que a formação inicial e continuada desse profissional tenha a experiência pedagógica como partida, ofertando de forma diversificada, contextualizada e interdisciplinar o desenvolvimento do pensamento crítico, criativo e reflexivo em resposta à problemática e aos desafios da prática docente.
Com base nas ideias apresentadas, abrimos um diálogo denso e consubstanciado das experiências pedagógicas e educacionais que vivemos na formação inicial de professores em Educação Física, o que possibilita reflexões sobre a prática e os saberes docentes na atualidade. A educação está deixando de ser discutida como um bem de uso e passa pelo processo de mercantilização, transformando-se num bem de troca no mercado de trabalho. Essa situação acaba conduzindo a formação de professores para um mercado competitivo, no qual os interesses econômicos reduzem o papel das universidades apenas à transmissão de um conhecimento neutro, descontextualizado, com conteúdos padronizados, direcionando o aluno a um conhecimento necessário somente para competir no mundo de hoje, marginalizando a real política do saber. Esse contexto é discutido por Nunes e Neira (2018a, 2018b) que, ao pesquisarem a formação inicial em Educação Física em uma universidade privada, constataram que algumas práticas no curso refletem a subjetividade dos alunos moldada sob a ótica das leis do mercado (fabricação do Eu/SA e do sujeito-cliente). Nesse sentido, os autores criticam o neoliberalismo exacerbado que essas instituições abarcam e o currículo que as representa.
As novas perspectivas para os cursos de formação inicial dos professores da educação básica surgiram por meio da concepção de currículo e educação que vem sendo reforçada a partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, das diretrizes curriculares específicas, mediante as Resoluções CNE/CP nº 1/2002 e nº 2/2002, e mais atualmente da Resolução CNE/CP nº 2/2015. Na maioria, essas diretrizes ratificam a ideia da emergência de um currículo forjado em um curso que se estrutura para promover os saberes docentes perante práticas indispensáveis ao exercício crítico e reflexivo do futuro professor.
Essa ação docente crítica e reflexiva é consciente e autônoma, promovida pela construção de saberes pedagógicos e metodológicos da docência e específicos da área de conhecimento, como é o caso da Educação Física, foco deste artigo. Saberes que devem ser apreendidos e apropriados de forma significativa, tendo como base o oferecimento de um currículo contextualizado, aberto e interdisciplinar no curso de formação inicial.
Parece-nos, portanto, que há a necessidade de um foco na docência, procurando romper uma concepção imperante e equivocada de que para ser um professor qualificado basta dominar os conhecimentos específicos. Essa é uma visão simplista de educação, de uma racionalidade técnica das disciplinas alicerçada numa orientação pragmática sobre o que se deve ensinar. Mais do que isso, podemos dizer que a profissão docente exige ir além de uma visão lógico-formal, com outras possibilidades interpretativas que considerem o tempo e o espaço de formação na integração de conhecimentos acadêmicos e pedagógicos desenvolvidos no exercício da profissão. Por muitas vezes, isso é realizado a despeito de políticas oficiais e documentos normativos que subsidiam a construção da formação profissional, porque respaldam objetivos outros, como o do mercantilismo do ensino.
O curso de formação inicial em Educação Física deve seguir normatizações que indicam e reforçam a (re)construção de um projeto pedagógico em consonância com as novas proposições curriculares que concorrem para formação significativa de seus alunos em função, entre outros fatores, do paradigma de racionalidade prática. Essas considerações sobre a revalorização da dimensão prática no curso, por lei, surgem inicialmente e em especial nas Diretrizes Curriculares Nacionais das Licenciaturas, nas Resoluções CNE/CP nº 1/2002 e nº 2/2002, as quais são reconduzidas na atual Resolução CNE/CP nº 2/2015, que reforça essa necessidade.
Em acordo com essas diretrizes gerais da formação do professor para atuar na educação básica, há que se considerar especificamente as Diretrizes Curriculares da Educação Física, em âmbito nacional, com a nova Resolução CNE/CES nº 6/2018. Tanto esta última como a Resolução CNE/CES nº 7/2004, revogada, ratificam a necessidade de se forjar um currículo que favoreça a formação com base em competências para a profissionalização do futuro professor, o que passa pela questão do valor social dessa prática na formação desse sujeito.
O projeto político-pedagógico do curso, fundamentado nas referências curriculares, deve nortear um currículo que reflete o que de fato se promove empiricamente no decorrer dos anos de integralização do curso. Deve ainda propiciar a aprendizagem ativa em razão da e para a futura atuação docente baseada em resultados (mas quais resultados?), em que a dimensão da prática não seja mais preterida pela teoria, tampouco a prática de ensino, como forma de estágio, seja o único modo de reconhecer e se aproximar da ação docente no final do curso (condição aplicacionista de conhecimento).
Sendo assim, há de se esperar que os resultados de uma avaliação como o Enade, quanto a conhecimentos específicos, no curso de licenciatura em Educação Física, retratem o desenvolvimento de seres críticos e reflexivos sobre a dimensão teórica e prática do curso, que demonstra a construção de saberes para e sobre a ação docente que será exercitada e desenvolvida no decorrer da futura atuação numa dinâmica de formação permanente. Trata-se, antes, de se pensar a formação do professor em Educação Física nos cursos regulares de licenciaturas como práticas partilhadas, e não isoladas, num adensamento das reais necessidades formativas dos que estão dispostos a se tornarem professores no interior das universidades. O pressuposto é que a profissão/professor está em contínua transformação, sobretudo com a prática de uma ética com a qual se deparará no processo de ensinar e aprender mediante sua consciência sobre o sentido do que é desejável educativamente para o ser e, por conseguinte, para a sociedade.
Eixo 2 - Resultados das questões objetivas
Em relação ao desempenho dos estudantes nas questões objetivas no componente de conhecimento específico, os resultados indicaram uma média para o Brasil de 46,2 pontos, um aproveitamento que pode ser considerado insatisfatório, já que ficou abaixo
dos 50% da pontuação máxima. Ao analisar a Tabela 1, que ilustra os resultados descritivos dos desempenhos dos estudantes estratificados por regiões do País, observa-se que as médias se diferenciaram pouco. A menor média foi verificada na região Norte (44,4) e a maior, na região Nordeste (47,5). Entre essas médias ficaram as regiões Sul (47,4), Centro-Oeste (45,9) e Sudeste (45,7). Os desvios padrões giraram em torno de 15,9 a 17, o que aponta heterogeneidade nos desempenhos dos estudantes em uma mesma região. As medianas indicaram valores bem próximos da média (50 para a região Nordeste e 45,5 para as demais regiões). Em todas as regiões, a nota mínima foi zero. A nota máxima de 100 pontos foi obtida por pelo menos um aluno nas regiões Nordeste e Sudeste; nas demais regiões (Norte, Sul e Centro-Oeste), a nota máxima alcançada foi 95,5.
Os resultados que indicaram o desempenho médio dos estudantes brasileiros nas questões objetivas do componente específico mostram que, em um contexto geral, há déficit na formação específica dos alunos dos cursos de licenciatura no País. Essa realidade aponta para uma homogeneidade na formação, demonstrando que em todas as regiões brasileiras houve alunos com bons desempenhos e abaixo do esperado. Aponta, ainda, para a existência de discrepâncias nos níveis de formação dos estudantes dentro da mesma região e no Brasil. Tais diferenças podem ser atribuídas às realidades distintas que envolvem o contexto da formação dos alunos, como as características e a qualidade das instituições de ensino superior que os graduam, o contexto socioeconômico, a formação básica anterior e as diferentes estruturas curriculares de formação.
É importante destacar nesse contexto que, segundo o Relatório, que apresenta a análise das questões objetivas no que se refere ao seu índice de discriminação, a prova Enade/2014 obteve boa capacidade de discriminar entre aqueles que dominam ou não o conteúdo, o que nos dá segurança para afirmar que, no contexto geral, muitos estudantes de licenciatura no País saem dos seus cursos superiores sem dominar conhecimentos importantes e específicos necessários para sua atuação (Brasil. Inep, [2015]). Esse fato nos leva a refletir sobre uma possível falta de orientação ou melhor normatização quanto aos componentes primordiais da formação específica na área de licenciatura em todas as instituições de nível superior brasileiras que possam balizar ou homogeneizar os currículos em uma mesma área, o que se configura como um problema também na Educação Física. Não obstante, as transformações constantes de políticas curriculares, sobretudo as que dividiram a Educação Física em licenciatura e bacharelado e polarizaram a atuação, não poderiam deixar de permear nossas reflexões sobre a necessidade de organizar distintamente os saberes dessa área.
Poderia ser um ponto positivo para o curso de Educação Física - licenciatura, devido ao tempo e à tradição que possui como prática pedagógica na educação básica, já que a modalidade vem sendo repensada segundo novas políticas públicas educacionais há mais tempo que o bacharelado, por exemplo. Mas como as instituições estão desenvolvendo seus currículos com base nessas mudanças?
Alviano Junior e Neira (2019), ao discutirem sobre o universo das instituições privadas, apresentam dados que constatam que esse espaço representa o maior contingente de profissionais de Educação Física em formação ou formados e no mercado. Elas são o lócus responsável pelas mazelas da formação inicial na área, o que poderíamos, nesse sentido, associar aos resultados negativos encontrados nessa mostra de desempenho de avaliação dos cursos. Entre outros motivos para tais constatações, os autores abordam características dessas instituições e de seus currículos que refletem a precarização e a intensificação da função docente para atender as demandas do mercado em uma estrutura de empresa educacional voltada aos lucros, na qual a produtividade atinge o fazer docente, provocando poucas chances de estudo, autonomia e tomada de decisão coletiva desses profissionais para se engajar além de suas horas-aulas diárias.
Nunes e Neira (2018a, 2018b), ao analisarem o currículo na licenciatura, auxiliam-nos a ajustar o olhar sob o cerne da mercantilização do ensino abordado por Alviano Junior e Neira (2019). Eles discutem a problemática que pode ser associada ao tema de qualidade em educação proclamada pelas políticas públicas e que, vinculada à política neoliberal, a justifica e pode ser conduzida pelo princípio de competência (diretrizes curriculares), baseado em eficiência e resultados imediatos para atuar no mercado de trabalho. Disso não se poderia negar a prioridade de um currículo prescrito que refletisse essa política e que mantivesse o ensino como instrução na cultura acadêmica, em uma rotina produtiva de dinâmica propedêutica.
Os conteúdos são apresentados no curso, de formação comum ou específica, além de atividades obrigatórias previstas nas diretrizes curriculares, mas muitas vezes a escolha do que fazer e como fazer parte de decisões pessoais ou da burocracia exigida nas instituições, cedendo a modismos e a outras influências “nada pedagógicas” (Neira, 2009, p. 122). Não há clara intenção de que os conteúdos ensinados nos bancos do ensino superior sejam significativos ao sujeito além da expectativa de buscar no diploma, ou seja, com fins ao produto, a chance de um trabalho (e ascensão econômica). O foco dos alunos, nessa proposição, é de apropriar-se do mínimo exigido na universidade e realizar as atividades para ser aprovado e integralizar o curso.
Como os conteúdos realmente podem fazer sentido ao aluno, futuro professor, e ser mobilizados na situação de ação docente? Se o currículo forja pessoas e identidades docentes, como afirma Neira (2009, p. 124), “os saberes e situações que constituem o currículo da formação para a docência refletem, em última análise, o sujeito-professor que se quer formar”.
Pelo que se constatou dos dados evidenciados no Relatório, há uma lacuna na aprendizagem conceitual dos alunos, futuros professores. Os estudantes demonstraram pouca habilidade em interpretar e analisar os enunciados, o que é crucial para as respostas das questões de múltipla escolha (Brasil. Inep, [2015]). De um lado, não podemos descartar uma possível displicência e falta de compromisso dos estudantes com a prova e, de outro, o déficit de conhecimento de conceitos específicos da área, que depõe contra o currículo e as metodologias empregadas nos cursos de formação. Essa lacuna nos leva a refletir sobre os percursos adotados atualmente pelos cursos de licenciatura em Educação Física no Brasil em relação à apropriação de conceitos específicos. Diante desse cenário, questionamos como a prática pedagógica nesses cursos tem oportunizado a apropriação de conhecimentos conceituais na formação desse futuro professor.
Para Betti e Rangel-Betti (1996), os conteúdos tratados pela lógica do currículo aplicacionista de técnicas ou de conhecimento científico, abordados nos cursos em disciplinas estanques, não são utilizados pelos professores. De modo geral, a apropriação e o sentido desses conhecimentos técnicos ou científicos se validam na prática profissional. Os dados dos resultados de desempenho aqui focalizados podem estar sinalizando para o descaso dos currículos em revalidar na prática o que se aprende na teoria, para que esse conhecimento faça sentido ao aluno e ele possa usá-lo para resolução de questões futuras na prática profissional ou ao fazer um concurso ou o Enade.
Eixo 3 - Resultados das questões discursivas
As questões discursivas são apresentadas neste artigo na mesma ordem e com a mesma numeração da prova Enade/2014, ou seja, questões 3, 4 e 5. As questões 1 e 2 dizem respeito aos componentes de formação geral e as análises destas fogem do escopo deste artigo.
A questão de número 3, cujo conteúdo era referente às relações estabelecidas entre os desenvolvimentos motor, afetivo e cognitivo e os processos de aprendizagem, foi a que os estudantes obtiveram melhor desempenho (média de 30,5). Mesmo assim, o desempenho geral pode ser considerado fraco. Ademais, 30% dos discentes deixaram em branco essa questão. Segundo o Relatório, além da inabilidade de interpretação e expressão dos estudantes, foi observada grande dificuldade em abordar de forma clara a temática do desenvolvimento motor relacionado a variáveis afetivas e cognitivas, sendo esse tema inerente ao conhecimento da área de Educação Física (Brasil. Inep, [2015]).
Todavia, para os que responderam a questão, muita incoerência foi encontrada em relação à discussão na linha de conhecimento do autor citado (Gallahue). Tal fato se torna evidente ao verificar que foram mencionados outros autores na área desenvolvimentista (por exemplo, Piaget e Vygotsky). O uso de forma confusa dos diferentes autores pode ser indicativo de dificuldades enfrentadas por muitos alunos de licenciatura em Educação Física em lidar com questões que abordam conteúdos mais voltados aos aspectos biológicos - por exemplo, essa questão que se referiu a Gallahue, um autor com uma abordagem biológica em relação a outros citados pelos alunos.
O mesmo problema de falta de clareza conceitual e de fundamentação teórica tem sido encontrado em questões que tratam de assuntos relacionados à fisiologia e à biomecânica, em especial do conhecimento do corpo biológico e da saúde. Isso demonstra que as instituições de ensino superior podem estar se furtando a dar o devido valor a tais temáticas em cursos de licenciatura, destacando que há uma lacuna de aprendizagem conceitual de temas que tradicionalmente são abordados no curso de Educação Física. Mais do que abordar o tema como conceito, é preciso dar sentido ao que o aluno aprende e, em especial, quando o futuro professor pode relacionar a teoria com a prática, como bem discutem Betti e Rangel-Betti (1996).
Esses resultados levam à reflexão sobre a formação do licenciado nesse curso e os diferentes enfoques curriculares dados nas distintas instituições de ensino superior. Apesar da grande dificuldade de interpretação de texto nas questões, os resultados destacados evidenciam uma lacuna no processo formativo em relação aos conhecimentos específicos da área ante os conhecimentos gerais, sendo a média de conhecimento específico no Brasil quase 1/3 da média observada nas questões de formação geral. Outro ponto de destaque e que fortalece essa hipótese é o fato de os resultados das respostas de conhecimento específico se mostrarem menos dispersos ou com maior coesão naquelas com pouco conteúdo, fato esse verificado ao se observar o desvio padrão nas respostas para conhecimento específico.
Na questão 4, os alunos obtiveram a média das notas mais baixas quando comparada à de outras questões discursivas de conhecimento específico; “[...] 50% dos estudantes inscritos e presentes deixaram em branco ou anularam a questão” (Brasil. Inep, [2015], p. 77).
No Relatório, esse dado foi apresentado com certa surpresa pelos relatores que constataram a dificuldade dos alunos desse curso em redigir um plano de aula. Sendo esses sujeitos concluintes, preocupa em especial essa lacuna que aponta a falta de conhecimento específico pedagógico para a competência instrumental didática imprescindível à prática deles como futuros docentes.
Das dificuldades na redação do plano, destacou-se a má formulação do objetivo de ensino que expôs a:
a) Confusão entre plano de aula e plano de ensino
Muitos alunos redigiram como objetivo do plano a ação de ensino do docente, ao invés da aprendizagem esperada do estudante, o que mostra a não discriminação entre plano de ensino e de aula. A didática diferencia esses planos pela abrangência deles em tempo e finalidades do planejamento de ensino na escola. Espera-se do aluno concluinte do curso o domínio desse conhecimento, pois planejar fará parte de sua rotina na prática docente.
É fundamental saber que há um desdobramento das ações planejadas pelo professor em diferentes planos de ensino, porque há toda uma coerência nessa planificação “racionalista” da didática para alcançar finalidades educacionais como as previstas na LDB, Lei nº 9.394/96. Haydt (2006), por exemplo, indica que o processo de ensino deve partir da elaboração de decisões planificadas em diferentes níveis: plano de escola, plano de currículo, plano de ensino, plano de unidade e finalmente plano de aula. As Diretrizes Curriculares Nacionais das Licenciaturas afirmam a necessidade de se promover a competência instrumental do saber fazer um plano, que vai desde identificar as diferenças entre eles a redigi-lo de acordo com as normas específicas da didática, ante a função pedagógica do processo ensino-aprendizagem.
b) Confusão entre objetivo, conteúdo de ensino e ação docente
Didaticamente se espera que os elementos que são reunidos na tomada de decisão, a qual compreende o planejamento de ensino, e que aparecem no plano sejam diferenciados em uma ordem de apresentação e identidade de função - consideradas como suas etapas: objetivo, conteúdo, metodologia/procedimento de ensino e avaliação. Notou-se uma confusão quanto às etapas do plano de ensino, que foram apresentadas de forma indiscriminada, muitas vezes, mostrando falta de domínio do que é cada fase.
Mais uma vez podemos notar que toda “racionalização” didática das etapas que compõem um plano pode até ter sido trabalhada e identificada no curso, mas não houve apropriação adequada pelos alunos.
A elaboração dos objetivos de ensino do plano de aula - como a intenção e a primeira etapa - uma vez redigida inadequadamente levou a zerar a nota da questão, já que em um planejamento esse elemento é o principal dado entre as decisões que precedem a escolha das outras etapas. Dessa forma, mesmo quando os conteúdos foram apresentados em acordo com as categorias indicadas na questão, esse resultado não foi considerado, já que é o objetivo que norteia as demais etapas, e não o contrário.
Entendemos que essa “racionalização” do conhecimento da didática ante a diferenciação dos níveis de plano (dificuldade a) e suas etapas (dificuldade b) deve ser desenvolvida para além de uma função aplicacionista de conhecimento (racionalidade técnica), em que é só seguir e memorizar as técnicas didáticas para aplicar adequadamente ao plano. O aluno precisa, como se estabelece hoje na didática moderna, conhecer os níveis e as etapas de plano existentes na escola a partir da identificação, reflexão e discussão sobre a prática de ensino, a fim de se apropriar do significado deles para dominar o que a didática prevê.
Queremos crer que há necessidade de se ressaltar no curso de formação inicial o conhecimento da prática reflexiva sobre o que é, como fazer e em função de que se estabelece algo na ação docente, como o plano de ensino, o que sugere uma “racionalidade” prática.
c) Falta de relação da redação do objetivo com a categorização dos conteúdos procedimentais, conceituais e atitudinais, além da falta de distinção entre eles
Como consta no Relatório, nota-se maior confusão na diferenciação entre conteúdo conceitual e procedimental, sendo a dimensão atitudinal poucas vezes abordada (Brasil. Inep, [2015]). Isso indica que há uma familiarização com os termos, no entanto, as confusões e a omissão do exemplo da categoria atitudinal e a dificuldade de associar os conteúdos ao objetivo podem revelar que há uma lacuna no ensino-aprendizagem desses conteúdos, que deveriam ser apreendidos e apropriados pelos alunos quando da elaboração do plano. Essa lacuna pode indicar a própria defasagem desses três níveis de aprendizagem no curso.
Nesse caso, em especial, compreender e discriminar o que são os conteúdos e associá-los adequadamente aos objetivos de ensino, a fim de utilizá-los, são habilidades e conhecimentos que devem ser exercitados no curso e remetem à aprendizagem conceitual (saber um conceito, um princípio etc.) associada à procedimental (saber fazer algo) e à categoria atitudinal (saber o valor ao adotar atitudes), conforme Zabala (1998).
Como podemos inferir dos resultados e das problemáticas apontadas na questão 4, nota-se uma incapacidade dos alunos concluintes de mobilizar os conhecimentos em ação e evidencia-se igualmente a dificuldade de transpor na prática o que se “aprende” na teoria.
Isso remete à discussão que há de se superar, na formação docente, a ênfase em uma “racionalidade” em que a teoria aparece em detrimento da prática e vice-versa. Corroborando Tardif (2002), há que se equacionar nos cursos de formação de professor a aprendizagem de saberes de referência da prática docente (os da ciência da educação, pedagógicos e da disciplina específica) e a de saberes da experiência (prática), o que provém da ação docente propriamente dita. Espera-se um novo sentido e valor das práticas curriculares no curso como oportunidade de aproximar mais o futuro professor da real situação de ensino, que não pode ser prescrita ou idealizada por uma teoria, tampouco prescindir dela.
Não se apropriar dos saberes que favorecem a competência instrumental de redigir um plano de ensino nos seus diferentes níveis e etapas pode sugerir a limitação do exercício de uma prática como componente curricular no curso de formação inicial, conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais das Licenciaturas (Brasil. CNE, CP, 2002a, 2002b, 2002c, 2015), e de sua contribuição para a prática docente futura.
Além dessa dificuldade quanto ao conhecimento específico didático pedagógico e metodológico, o Relatório apontou que os alunos confundiram os conceitos de fisiologia, anatomia, biomecânica e bioquímica, considerando-os como equivalentes na redação de objetivos e associação aos conteúdos (Brasil. Inep, [2015]). Problemática abordada na discussão da questão 3.
Sobre a análise da questão 5, podemos afirmar que grande parte do desempenho dos estudantes de todo o Brasil também não foi satisfatória. Pelo menos 50% dos inscritos e presentes obtiveram zero e grande número deixou a questão em branco. Além disso, esta foi considerada a mais difícil das três questões discursivas específicas da área de Educação Física.
Visto assim, em linhas gerais, os estudantes na questão 5 necessitavam estabelecer uma relação correta entre a visão dicotômica de corpo (corpo meio versus corpo fim), citada por Rubem Alves, e a abordagem da saúde renovada para as aulas de Educação Física no ensino médio. Para isso, era preciso um conhecimento teórico das duas possibilidades de entendimento do corpo em movimento, procurando relacioná-las de forma coerente e integrada na totalidade humana.
Nessa questão, segundo o Relatório, os estudantes tiveram, de fato, muitas dificuldades de interpretação do enunciado quanto à construção da resposta, baseando-se tão somente no discurso do senso comum sobre a saúde, sobretudo desconhecendo o que é a concepção pedagógica de saúde renovada (Brasil. Inep, [2015]).
A partir do século 21, ampliaram-se as críticas e as discussões em relação à Educação Física escolar, considerando diferentes tendências pedagógicas que visaram sua ressignificação nesse contexto. A LDB, em seu artigo 26, define a Educação Física na escola como componente curricular e atribui a ela a condição de prática corporal de cunho pedagógico (Brasil, 1996). Revoga a concepção anterior de atividade com foco na aptidão física (ou esportivização). É necessário não só conhecer o sentido e o significado de corpo em movimento no campo de ênfase biológica da antiga concepção, mas incluir novos saberes na formação inicial, na perspectiva de contribuir para a formação integral do ser humano (ratificada nas diretrizes curriculares). Assim, espera-se que os alunos no curso de formação inicial sejam estimulados a refletir sobre o contexto educacional e a prática pedagógica do professor na escola e se apropriar de conhecimentos e habilidades que os auxiliem a prever a nova concepção dessa área para o alcance das finalidades educacionais atuais (Campos, 2017).
Queremos refletir sobre a questão e mostrar que é preciso caminhar na direção do olhar/conhecer/pesquisar a Educação Física além de uma visão reducionista de conhecimento aplicacionista na modalidade da licenciatura.
É urgente possibilitar fundamentalmente a criação de condições para experiências de aprendizagens significativas do futuro profissional por meio da prática no curso de formação do professor licenciado, ressignificando o valor da prática corporal em Educação Física escolar. Conceitos devem extrapolar o binômio saúde-doença, com o objetivo de buscar uma reflexão sobre o corpo-próprio, corpo-sujeito, corpo-mercadoria etc., pela autossuperação desse corpo-ser social pelo movimento. Nesse sentido, é possível estabelecer um ponto de partida para um posicionamento reflexivo sobre as concepções pedagógicas e curriculares estereotipadas na própria área de conhecimento. Essas reflexões indicam que é preemente repensar a perspectiva de formação multicultural, para uma prática pedagógica além da racionalidade técnica, científica e prescritiva. Nunes e Neira (2018b) sinalizam essa necessidade, desvelando questões no seio do curso de Educação Física para esse fim.
Análise geral do desempenho dos estudantes nas questões discursivas
Sumarizando os resultados referentes às questões discursivas, é possível observar na Tabela 2 o fraco desempenho dos estudantes dos cursos de licenciatura em Educação Física no que diz respeito aos conhecimentos do componente específico e à capacidade de se expressar por meio da escrita. Quando se observam os resultados nas diferentes regiões brasileiras, a exemplo das questões objetivas, não se percebem grandes diferenças entre os alunos, indicando um déficit generalizado na formação desses futuros profissionais que atuarão no ensino básico. As médias extremamente baixas, sobretudo nas questões 4 e 5, chamam atenção e sinalizam que os objetivos e as estratégias precisam urgentemente ser repensados e criados visando a uma melhor formação dos futuros profissionais.
Considerações finais
O Brasil é um país multicultural de dimensões continentais e bastante heterogêneas. A avaliação do processo Enade pode contribuir para a definição de diretrizes e políticas públicas eficientes, que respeitem as peculiaridades e os movimentos regionais, atendendo as demandas educacionais básicas ainda tão carentes nos setores público e privado. Os resultados - apresentados por estudantes do curso de licenciatura em Educação Física - refletem a necessidade de maior atenção e maiores investimentos para garantir a qualidade da educação nacional, porque indicam mais do que lacunas na formação inicial de um futuro professor, apontam fragilidades no processo que começa na educação básica e se perpetua na educação superior.
A leitura, a interpretação, a reflexão, a crítica e a formação comum com base na autonomia para o estudo são pilares “clássicos” educacionais para que o ser humano progrida e se diferencie na sociedade, o que hoje está referendado pelas diretrizes curriculares que apontam para competências fundadas no desenvolvimento de habilidades e conhecimentos. Aspectos de qualidade na educação por meio de aprendizagem ativa, crítica e reflexiva que priorize a consciência e as atitudes do ser para viver melhor na sociedade atual devem ser privilegiados na área, na escola, para além de modismos e em detrimento de valores monetários impressos pelo mercantilismo.
O Enade, a exemplo de avaliações dessa natureza, pode demonstrar as limitações do processo e, mais do que sugerir números, os órgãos responsáveis e as instituições de ensino devem tomar medidas e engendrar verdadeiros esforços na consecução de melhorias que possam vislumbrar a valorização da formação docente no ensino superior. O projeto pedagógico deve prever o desenvolvimento do curso em acordo com as diretrizes curriculares, mas deve ir além de responder às normas como prescrição descontextualizada. É preciso buscar o sentido coletivo no centro das decisões e a construção do currículo da formação inicial em razão das necessidades de formação do ser no contexto social.
Cabe aqui atentar aos desafios encontrados por esses sujeitos egressos dos cursos de licenciatura (com novas e duvidosas políticas de “valorização” do magistério) para que seja possível enfrentar as lacunas perpetuadas/ignoradas nas instituições de educação superior, consideradas “formadoras” desses docentes brasileiros. Professores, como os de Educação Física, serão responsáveis por contribuir para o alcance das finalidades educacionais de desenvolvimento integral do educando como cidadão que frequenta o ambiente escolar e que pode melhorar sua condição de estar como corpo no mundo.
Não restam dúvidas de que a formação do professor, no caso o licenciado em Educação Física, não é só um problema acadêmico ou científico, de responsabilidade de um sistema educacional, é também social, político e, consequentemente, cultural, em que se deve abordar o sujeito como aquele para o qual se justificam as políticas públicas que podem reverter resultados positivos para toda a sociedade.
A atualidade traz à tona boas perspectivas sociais e culturais para a área da Educação Física, como um fenômeno das diferentes manifestações corporais que se ampliam e se revestem de significados que devem ser apreendidos e apropriados na escola pela prática de ensino, o que corrobora a necessidade de rever o currículo da formação inicial em razão dessa realidade.
O ambiente universitário deve ser de fato, concordando com as diretrizes curriculares no tocante à formação inicial em Educação Física - licenciatura, mais exigente e comprometido com a formação crítica e reflexiva do estudante, futuro professor, aliando a construção de uma bagagem cultural e científica aos saberes da experiência já na graduação, como no decorrer da formação contínua desse profissional.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Jun 2020 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2020
Histórico
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Recebido
14 Mar 2019 -
Aceito
25 Out 2019