Open-access Políticas educacionais e os impactos sobre processos educativos nos cursos de Pedagogia: uma análise*

Educational policies and impacts on educational processes in Pedagogy courses: an analysis

Políticas educativas y los impactos sobre procesos educativos en los cursos de Pedagogía: un análisis

Resumo:

Neste artigo de revisão, consideram-se as políticas públicas educacionais atinentes ao processo educativo dos pedagogos, antes e depois de seu ingresso como professores da infância na escola, e as relações com os cursos de Pedagogia em sua historicidade. Os aspectos metodológicos foram orientados por princípios de sistematização, o que implicou: a) investigação sincrética com base em pesquisa bibliográfica; b) análise dos dados produzidos com elaboração de categorias; c) síntese dialógica acerca do estudo. Desse percurso de pesquisa, resultaram duas sequências argumentativas que se complementam e expressam a questão central: a primeira aborda a Pedagogia no contexto das políticas educacionais brasileiras; e a segunda sustenta que os pedagogos são trabalhadores cuja característica da atividade advém da Pedagogia, entendida como ciência da educação, e esse deve ser o elemento principal no curso.

Palavras-chave: curso e currículo; Pedagogia; políticas públicas em educação

Abstract:

In this review article, educational public policies related to the pedagogues’ educative process are taken into consideration, before and after their debut as teachers of childhood education in school. It is also approached the relations with Pedagogy courses in its historicity. The methodological aspects employed to elaborate the text were guided by principles related to systematization, which involved: a) a syncretic research based on bibliographical research; b) analysis of the data produced with an elaboration of categories; c) dialogic synthesis about the study. From this research trajectory, it has emerged two argumentative sequences that complement each other and, together, express the central argument: the first addresses Pedagogy in the context of Brazilian educational policies; the second argues that the pedagogues are workers whose characteristic of work comes from Pedagogy, in turn understood as a science of education, which must be the central element in the course.

Keywords: course and curriculum; Pedagogy; public policies for education

Resumen:

En este artículo de revisión, se consideran las políticas públicas educativas referentes al proceso educativo de los pedagogos, antes y después de su ingreso como profesores de la infancia en la escuela, y las relaciones con los cursos de Pedagogía en su historicidad. Los aspectos metodológicos para la elaboración del texto fueron orientados por principios de sistematización, lo que implicó: a) una investigación sincrética con base en investigación bibliográfica; b) análisis de los datos producidos con elaboración de categorías; c) síntesis dialógica sobre el estudio. De ese recorrido de investigación, resultaron dos secuencias argumentativas que se complementan y, juntas, expresan el argumento central: la primera aborda la Pedagogía en el contexto de las políticas educativas brasileñas; la segunda sostiene que los pedagogos son trabajadores cuya característica de trabajo proviene de la Pedagogía, entendida como Ciencia de la Educación y ese debe ser el elemento principal en la carrera.

Palabras clave: carrera y currículo; Pedagogía; políticas públicas en educación

Introdução

Este artigo destaca a necessidade de análise de políticas públicas atinentes à educação de pedagogos, antes e após iniciarem o trabalho como professores da infância na escola, bem como das relações com os cursos de Pedagogia. Assim sendo, o tema é tratado da perspectiva dos processos de educação dos pedagogos para o trabalho, em alternativa ao que tem sido denominado genericamente como “formação de professores”. Tal escolha ocorre porque, no caso brasileiro, a expressão “formação de professores” parece abarcar situações muito diferentes quanto à forma, ao tempo e ao nível de aprofundamento. Tanto no sistema público quanto no particular de ensino, os responsáveis por garantir emprego, nas últimas décadas, exigem dos aspirantes a professores da infância, como processos acadêmicos iniciais, cursos de licenciatura em Pedagogia. Porém, mesmo depois da graduação, são exigidos outros cursos de curta duração ao longo da vida profissional deles, como forma de comprovar que seu processo educativo está em continuidade com o trabalho que realiza. Denomina-se o conjunto desses cursos de “formação continuada” e o curso de graduação, de “formação inicial”. Comumente, as “formações continuadas” ocorrem pela frequência a cursos, simpósios, seminários etc. Concluindo ou não o curso de Pedagogia, cotidianamente, os professores se comprometem com vários processos educativos formais para cumprimento das exigências necessárias de planos de cargos, carreiras e salários que regem a profissão. Entretanto, além desses processos, propõe-se que se pense naqueles que incluam a produção cotidiana do conhecimento dos professores dentro das escolas e a partir do trabalho realizado nelas como geradora de problematizações que demandam estudos.

Considerando esses pressupostos, o artigo tem como campo empírico investigado, nos últimos anos, as escolas da Região Central do estado do Rio Grande do Sul. Nessa região, foram entrevistados professores de escolas públicas acerca de seu trabalho. As entrevistas e a pesquisa realizadas naquela ocasião não serão abordadas neste texto, mas compõem o acervo que orienta os argumentos ora apresentados, como historicidade da questão abordada neste momento. Tais entrevistas, nesse sentido, contribuem para que se pense sobre como os professores da infância - pedagogos - elaboram os conhecimentos necessários ao seu trabalho. Em decorrência, questiona-se a imprecisão do que se entende por Pedagogia e por pedagógico.

Os aspectos metodológicos para a elaboração do texto foram orientados por princípios relativos à sistematização, o que implicou: a) uma investigação sincrética dos processos educativos da Pedagogia para pedagogos e os impactos no trabalho desses profissionais, com base em levantamento bibliográfico e leitura dos relatórios das pesquisas com professores; b) análise dos dados produzidos na fase anterior, organizando-os em tabelas com elaboração de categorias que passaram a ser estudadas; c) síntese dialógica do estudo, produzindo-se os argumentos com os quais se escreveu o artigo. Todo esse processo tem se denominado Análise de Movimentos de Sentidos, uma técnica elaborada pelo grupo de pesquisa no qual atuamos, cuja centralidade é o trabalho rigoroso com os sentidos, entendidos como produção humana localizada e capaz de evidenciar aspectos contextuais, materiais e humanos.

O artigo, então, apresenta duas sequências argumentativas inter-relacionadas, as quais abordam a Pedagogia e as políticas educacionais brasileiras e sustentam que os pedagogos são trabalhadores pedagógicos, considerando a Pedagogia como ciência da educação.

“Formação” de pedagogos e políticas educacionais no curso de Pedagogia

A “formação” de pedagogos no Brasil tem uma história recente. O primeiro curso de graduação em Pedagogia no País foi implantado em 1939, autorizado por meio do Decreto-Lei nº 1.190, de 4 de abril de 1939, que “dá organização à Faculdade Nacional de Filosofia”. As finalidades dessa Faculdade estavam expressas da seguinte forma:

Art. 1º [...] a) preparar trabalhadores intelectuais para o exercício das altas atividades de ordem desinteressada ou técnica; b) preparar candidatos ao magistério do ensino secundário e normal; c) realizar pesquisas nos vários domínios da cultura, que constituam objeto de ensino. (Brasil, 1939).

Para atender a essas finalidades, a Faculdade era dividida em seções, entre elas, a de Pedagogia, que abrigava um curso na área, e, é importante destacar, uma especial de didática. O artigo 19 do Decreto-Lei arrola os 15 componentes curriculares do curso de Pedagogia e, no artigo seguinte, estão os 6 componentes do curso de Didática. Observa-se que esses 21 componentes integram o currículo dos cursos atuais de Pedagogia. Concluído o curso de Pedagogia, havia um pedagogo-bacharel, preparado para trabalhar no Ensino Secundário e Normal. Se esse pedagogo realizasse também o curso de Didática, obtinha a titulação de licenciado (Brasil, 1939).

Essa foi uma grande reviravolta no modo como os professores estudavam para a profissão. Até então, as políticas educacionais estabeleciam o curso Normal, no nível de ensino médio, como titulação ou apenas o ensino fundamental. Os professores brasileiros tiveram acesso ao curso Normal no início do Império, quando foi criado o primeiro, em Niterói, em 1835, um século antes da criação do curso de graduação em Pedagogia, também no Estado do Rio de Janeiro. O objetivo desse curso era a “formação” de professores primários e de outros docentes em exercício, os quais não conheciam o método de ensino mútuo - ou método Lancaster e Bell:

Proposto e difundido pelos ingleses Andrew Bell, pastor da Igreja Anglicana, e Joseph Lancaster, da seita dos Quakers, o método mútuo, também chamado de monitorial ou lancasteriano, se baseava no aproveitamento dos alunos mais adiantados como auxiliares do professor no ensino de classes numerosas. Embora esses alunos tivessem papel central na efetivação desse método pedagógico, o foco não era posto na atividade do aluno. Na verdade, os alunos guindados à posição de monitores eram investidos de função docente. O método supunha regras predeterminadas, rigorosa disciplina e a distribuição hierarquizada dos alunos sentados em bancos dispostos num salão único e bem amplo. De uma das extremidades do salão, o mestre, sentado numa cadeira alta, supervisionava toda a escola, em especial os monitores. Avaliando continuamente o aproveitamento e o comportamento dos alunos, esse método erigia a competição em princípio ativo do funcionamento da escola. Os procedimentos didáticos tradicionais permanecem intocados. Busca-se, pois, no ensino mútuo proposto por Lancaster o equacionamento do método de ensino e de disciplinamento, correlacionados um ao outro. (Saviani, [2006]).

Tanuri (2000) destaca que, desde o início da década de 1820, foram implantadas no Brasil as escolas de ensino mútuo, as quais, além de realizarem alfabetização, funcionavam como as primeiras escolas de “formação de professores” no País. Nesses espaços e tempo, os estudantes eram divididos em pequenos grupos, orientados por alunos mais avançados ou por aqueles elevados à categoria de monitores pelo professor. Depois da criação da Escola Normal na província do Rio de Janeiro, outras províncias também criaram estabelecimentos com o mesmo objetivo, motivadas pelo texto constitucional de 1834, o qual descentralizou a oferta de educação primária, incentivando as províncias a se responsabilizarem e financiarem esse nível de ensino. Ou seja, as Escolas Normais se propagaram pelo território brasileiro (Tanuri, 2000).

Naquele século, não houve outras iniciativas fundamentais para a Escola Normal por parte do governo central. No século seguinte, em decorrência de pressões dos educadores e intelectuais, defensores do movimento escolanovista, é criado, então, o curso de Pedagogia, na Faculdade Nacional de Filosofia. Destaca-se que, embora importante para o reconhecimento da ciência da educação, a Pedagogia, e para os processos educativos de professores no nível do ensino superior, a criação do curso em 1939 não respondeu às necessidades educativas dos docentes. O curso apresentava projeto fragilizado, assim descrito:

Essa faculdade visava à dupla função de formar bacharéis e licenciados para várias áreas, entre elas, a área pedagógica, seguindo a fórmula conhecida como “3+1”, em que as disciplinas de natureza pedagógica, cuja duração prevista era de um ano, estavam justapostas às disciplinas de conteúdo com duração de três anos. Formava-se então o bacharel nos primeiros três anos do curso e, posteriormente, após concluído o curso de didática, conferia-se-lhe o diploma de licenciado no grupo de disciplinas que compunham o curso de bacharelado. (Scheibe; Aguiar, 1999, p. 223).

Desde essa época, um aspecto perpassa a oferta do curso de Pedagogia, especialmente a licenciatura: os licenciados podiam trabalhar como professores no curso Normal, visando à educação de futuros docentes para as escolas primárias, porém não poderiam trabalhar nessas escolas. Somente em 1962, com o Parecer CFE nº 251/62, cujo relator foi Valnir Chagas, foram propostas alterações curriculares no curso de Pedagogia. O relator destacou a necessidade de os professores primários serem graduados. Todavia, ao dispor sobre essas alterações, acabando com a lógica “3+1”, o parecer promoveu a “redução das matérias pedagógicas, não só em número de disciplinas como também em tempo de estudo: a parte pedagógica, que antes significava 1/4 do curso, passou para 1/8” (Scheibe, 1983, p. 39).

Na mesma década, em 1968, como ajuste ao previsto na Lei da Reforma Universitária (Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968), mediante o Parecer CFE nº 252/69, o curso de Pedagogia passou a contar com habilitações para Magistério das Disciplinas Pedagógicas do Segundo Grau, Orientação Educacional, Administração Escolar, Inspeção Escolar e Supervisão Escolar. Tal decisão contribuiu para a fragmentação do trabalho dos pedagogos e privilegiou o modelo tecnicista de “formação de professores”, diferenciando-os de especialistas. Nesse sentido, a tensão que se instalou quando da criação do curso na década de 1930 ainda era candente e crescia a ideia de que, se os pedagogos são os profissionais preparados para a “formação de professores” do primeiro grau (nomenclatura atribuída pela LDB 1961), poderiam também ser professores nessa etapa de ensino.

Denotando indefinição sobre os sentidos dos processos educativos dos pedagogos, a política pública voltada à educação dos profissionais que trabalhariam com os primeiros anos escolares, até o final da década de 1960, não lograra chegar necessariamente ao cerne da questão. A licenciatura em Pedagogia, a despeito de educar diferentes profissionais que trabalhariam inclusive nas escolas de primeiro grau, não preparava diretamente seus professores, mas o fazia de modo indireto, educando os professores dos futuros professores, enquanto eles mesmos, os professores do primeiro grau, continuavam frequentando o segundo grau nas escolas normais e/ou institutos de educação. Sobre o Parecer nº 252/69, em sua importância para o curso de Pedagogia, Tanuri (2000, p. 79) argumenta:

[...] modifica o referido currículo mínimo [do curso de Pedagogia], retoma essa posição e vai mais além, procurando garantir a possibilidade de exercício do magistério primário pelos formandos em Pedagogia, mesmo em cursos de menor duração, que realizarem estudos de Metodologia e Prática do Ensino Primário. Tal medida acabou por embasar legalmente o movimento de remodelação curricular dos cursos de Pedagogia que viria a ocorrer nos anos 80 e 90, no sentido de ajustá-los à tarefa de preparar o professor para os anos iniciais da escolaridade.

Dessa maneira, como parte de processo crescente, ensejado pelo Parecer nº 252/69, a partir da segunda metade da década de 1970 e na década de 1980, com as lutas pela redemocratização do País, outro movimento se instalou entre os professores no sentido de evidenciar as características do curso de Pedagogia, sobretudo com relação ao trabalho dos pedagogos, já indicando a tendência de esses profissionais se constituírem professores da infância.

Resultante das muitas articulações realizadas no período, foi fundada, em 1992, a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais em Educação (Anfope), dedicada à luta pela definição do processo educativo dos pedagogos.

No final da década de 1990, com a promulgação da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases - LDB 1996), e a prevalente vigência do Parecer nº 252/69, o curso de Pedagogia se defronta com mais uma tensão: educar pesquisadores (bacharéis) ou professores (licenciados). A LDB (1996), no artigo 63, inciso I, do mesmo modo, passou a se referir ao “curso normal superior, destinado à formação de docentes para a educação infantil e para as primeiras séries do ensino fundamental”, o qual seria ofertado pelos “institutos superiores de educação” (Brasil, 1996). Em meio a muitos debates e incertezas, a regulamentação desse artigo somente ocorreu pelo Decreto nº 3.276, de 5 de novembro de 1999, que determinou a exclusividade da “formação dos docentes” para a educação infantil e para as primeiras séries do ensino fundamental pelos cursos chamados de Normal Superior. Tal regulamentação causou confusão e, por isso, foi alterada pelo Decreto nº 3.554, de 7 de agosto de 2000:

Art. 1o O § 2o do art. 3o do Decreto no 3.276, de 6 de dezembro de 1999, passa a vigorar com a seguinte redação: “§ 2º A formação em nível superior de professores para a atuação multidisciplinar, destinada ao magistério na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, far-se-á, preferencialmente, em cursos normais superiores”. (Brasil, 2000).

Em decorrência, o curso de Pedagogia passou a ser locus para a educação de professores do ensino infantil, dos anos iniciais do ensino fundamental e da educação de jovens e adultos. Nesse sentido, a LDB (1996) determinou que o curso de Pedagogia se dedicasse aos dois últimos segmentos ou procurasse amalgamá-los, além de o profissional egresso tratar de questões pedagógicas, as quais são descritas assim mesmo, genericamente, nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia no Brasil, aprovadas no ano de 2006, como política pública educacional decorrente da LDB (1996):

Art. 4o O curso de Licenciatura em Pedagogia destina-se à formação de professores para exercer funções de magistério na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade Normal, de Educação Profissional, na área de serviços e apoio escolar e em outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos. Parágrafo único. As atividades docentes também compreendem participação na organização e gestão de sistemas e instituições de ensino, englobando: I - planejamento, execução, coordenação, acompanhamento e avaliação de tarefas próprias do setor da Educação; II - planejamento, execução, coordenação, acompanhamento e avaliação de projetos e experiências educativas não escolares; III - produção e difusão do conhecimento científico-tecnológico do campo educacional, em contextos escolares e não escolares. (Brasil. MEC. CNE, 2006b, p. 11).

Nesse sentido, há um destaque para a “docência” da infância e/ou da juventude e maturidade, explicitado no Parecer CNE/CP nº 05/2005 e na Resolução CNE/CP nº 01/2006. Assim, estão estabelecidas as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia.

No Parecer CNE/CP nº 05/2005:

Entende-se que a formação do licenciado em pedagogia fundamenta-se no trabalho pedagógico realizado em espaços escolares e não escolares, que tem a docência como base. Nesta perspectiva, a docência é compreendida como ação educativa e processo pedagógico, metódico e intencional, construído em relações sociais, étnico-raciais e produtivas, as quais influenciam conceitos, princípios e objetivos da pedagogia. Dessa forma, a docência, tanto em processos educativos escolares como não escolares, não se confunde com a utilização de métodos e técnicas pretensamente pedagógicos, descolados de realidades históricas específicas. Constitui-se na confluência de conhecimentos oriundos de diferentes tradições culturais e das ciências, bem como de valores, posturas e atitudes éticas, de manifestações estéticas, lúdicas, laborais. (Brasil. MEC. CNE, 2005, p. 7).

E na Resolução CNE/CP nº 01/2006:

Compreende-se a docência como ação educativa e processo pedagógico metódico e intencional, construído em relações sociais, étnico-raciais e produtivas, as quais influenciam conceitos, princípios e objetivos da Pedagogia, desenvolvendo-se na articulação entre conhecimentos científicos e culturais, valores éticos e estéticos inerentes a processos de aprendizagem, de socialização e de construção do conhecimento, no âmbito do diálogo entre diferentes visões de mundo. (Brasil. MEC. CNE, 2006b, p. 11).

Está lançada a base para o trabalho dos pedagogos a partir da docência. Não se trata de prática educativa, nem trabalho pedagógico, é docência. E as duas políticas públicas a conceituam para que se entenda o campo de abrangência da atuação profissional dos egressos do curso de Pedagogia (Fiorin, 2012).

Mesmo depois das Diretrizes Curriculares Nacionais estarem instituídas, as dificuldades com relação às características básicas do curso de Pedagogia ainda se refletem nas diversas instituições de educação superior (IES). Entretanto, o fenômeno denominado “falta de identidade do curso”, que implica problemas na “formação dos pedagogos”, não impediu sua expansão, tendo em vista a necessidade de graduação dos professores das redes municipais e estaduais para o trabalho com educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental, apontada em outras políticas educacionais, quais sejam: Plano Nacional de Educação (PNE), alterações na LDB (1996), planos de carreira dos professores etc. A expansão na oferta desse curso também se justifica, entre outros aspectos, por haver demanda na modalidade de ensino a distância (EaD) e por ter baixo custo de manutenção. No Gráfico 1, apresenta-se a natureza das instituições que ofertam o curso de Pedagogia. Os dados são referentes ao Censo da Educação Superior, ano de 2017, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão vinculado ao Ministério da Educação. No Gráfico 1, observa-se a predominância de oferta de cursos de Pedagogia pelas instituições privadas de ensino superior.

Gráfico 1
Natureza das instituições que ofertaram o curso de Pedagogia em 2017

Uma das justificativas para essa distribuição maior do curso nas instituições privadas diz respeito ao fato de que estas - dos tipos comunitárias ou particulares - se expandiram largamente no início da década. Pequenas faculdades, até hoje encontráveis nos municípios, instalavam cursos de Pedagogia por demandarem menor investimento e pela procura das prefeituras municipais por esses cursos para titularem seus professores em conformidade com a exigência da LDB (1996). O Gráfico 2 mostra, no mesmo período, que a quantidade de universidades, privadas e públicas, é predominante, mas, em segundo lugar, aparecem as faculdades, instituições que se expandiram sem a autonomia que os centros universitários e universidades têm para propor cursos.

Gráfico 2
Curso de Pedagogia presencial nas diferentes instituições no Brasil

A Tabela 1 exibe os cursos de graduação com maior quantidade de matrículas no País. Nela, é possível constatar que o curso de Pedagogia, efetivamente, é um dos mais procurados.

Tabela 1
Cursos de graduação com maior número de matrículas no Brasil

Algumas evidências explicam o fato de o curso de Pedagogia estar entre os três mais procurados: a) o custo de instalação e manutenção, para a IES, e a mensalidade, para o estudante, em caso de ser uma instituição privada, serem menores; b) é recorrente o subsídio das prefeituras para a realização do curso; c) é considerado fácil, entre as licenciaturas disponíveis, devido à proposta curricular se ater, principalmente, às Ciências Humanas; d) há o incentivo do governo federal aos governos subnacionais, nos últimos anos, para os professores realizarem o curso; e) na modalidade EaD, é muito difundido no Brasil.

Quanto ao número de matrículas, o curso de Pedagogia ocupa a terceira posição entre as graduações no País (Tabela 1) e a primeira posição entre as licenciaturas (Tabela 2).

Tabela 2
Cursos de graduação em licenciaturas com maior quantidade de matrículas no Brasil em 2017

Esse resultado revela não apenas que o curso de Pedagogia está em primeiro lugar quando comparado às licenciaturas com maior número de matrículas, como também a enorme distância em quantidade com relação aos cursos situados nas segunda e terceira posições nesse ranking. Além disso, o curso de Pedagogia tem o maior número de acadêmicos ingressantes e concluintes em 2016, conforme se observa na Tabela 3. Cada um desses resultados reforça a importância do estudo e do aprofundamento de uma concepção de Pedagogia para (re)orientar o curso.

Tabela 3
Cursos de graduação com maior quantidade de acadêmicos ingressantes e concluintes em 2016

Em decorrência do processo de expansão, sobretudo nos primeiros dez anos deste século, no Brasil, há 1.103 instituições que ofertam curso de Pedagogia. Entre essas instituições, há uma oferta total de 1.798 cursos de Pedagogia: 1.614 na modalidade presencial e 184 na modalidade EaD, conforme pode ser visualizado na Tabela 4.

Tabela 4
Relação entre instituições e cursos que ofertam a graduação em Pedagogia nas modalidades presencial e a distância, em 2017, no Brasil e no Rio Grande do Sul

Outro fator importante a ser destacado diz respeito à quantidade de professores da educação básica matriculados na educação superior. Entre os três primeiros cursos, estão Pedagogia, com 72.522 professores matriculados; licenciatura em Matemática, com 10.488; e licenciatura em Letras, com 9.086 (Brasil. Inep, 2018).

Em relação à escolha por uma graduação, considerando-se o sexo, o curso de Pedagogia aparece em primeiro lugar na escolha das mulheres, com uma média de 660.917 matrículas, e o curso de Direito prevalece entre os homens, com uma média de 392.812 matrículas (Brasil. Inep, 2018).

Assim, o curso de Pedagogia vem se constituindo, ao mesmo tempo, como uma graduação com altos índices de procura e matrícula e, paradoxalmente, como um curso em que o objeto de estudo e, consequentemente, o trabalho do egresso são imprecisos. A seção seguinte aborda as imprecisões que cercam o curso de Pedagogia (Ferreira, 2010, 2017a, 2017b).

Pedagogia nos cursos de Pedagogia e na “formação” dos pedagogos

Qual é efetivamente o objeto de estudo da Pedagogia? É a educação? É o conhecimento? É a infância? É a gestão da educação? São todos esses? Respostas a essa questão implicam aderir a uma perspectiva teórica, posicionar-se diante de tantas possibilidades de respostas. Mediante essa escolha, acredita-se, a matriz curricular de um curso na área refletirá uma tendência que, sem desconsiderar as determinações das políticas educacionais brasileiras, irá além, tornando mais evidente por que existe, como se caracteriza um curso de Pedagogia e o que o difere e aproxima das demais licenciaturas. Enfim, minimizar-se-iam as incongruências e as imprecisões sobre esse campo do conhecimento e sobre o curso em si.

Cabe, então, perguntar: o que é Pedagogia?

Responder a essa questão necessita considerar os estudos realizados sobre o tema, em especial aqueles que defendem ser a Pedagogia ciência da prática, ciência prática e práxis. Lendo-os, são encontradas três correspondentes respostas:

a) é ciência da prática. Libâneo vincula a Pedagogia e a prática, de tal sorte que aquela é a ciência que estuda a prática:

A pedagogia é vista como área de conhecimento que tem por objeto as práticas educativas em suas várias modalidades incidentes na prática social, investigando a natureza do fenômeno educativo, os conteúdos e os métodos da educação, os procedimentos investigativos. (Libâneo, 2012, p. 36).

Assim entendida, é a ciência da educação, mas esta também é a prática.

A educação é uma prática social, materializada numa atuação efetiva na formação e desenvolvimento de seres humanos, em condições socioculturais e institucionais concretas, implicando práticas e procedimentos peculiares, visando mudanças qualitativas na aprendizagem escolar e na personalidade dos alunos. (Libâneo, 2008, p. 111).

b) é ciência prática. Freitas (1987) afirma que, por sua simbiótica relação com outras áreas do conhecimento, a Pedagogia é uma ciência prática.

c) é práxis:

[...] propõe-se caminhar para a proposição de uma práxis, uma teoria articulada à prática, dando maior mobilidade à(ao) pedagoga(o) para produzir conhecimento para e no trabalho que realizará. Para tanto, faz-se necessário superar as concepções de teoria e prática, como categorias isoladas. Estas aparecem em destaque nos dados produzidos e observou-se uma preocupação acentuada com uma associação entre elas, e a denúncia de a prática estar isolada nos processos didático/metodológicos. (Ferreira, 2017a, p. 185).

Evidentemente, a opção é entender a Pedagogia como práxis, como o amálgama entre teoria e prática destacado no trabalho dos pedagogos. Esse trabalho está antes, durante e além da aula e visa à produção do conhecimento.

Decorrente dessas imprecisões e da necessidade, como foi mostrado, de explicitar a compreensão de Pedagogia, observam-se confusões quanto ao entendimento também de curso de Pedagogia. De modo geral, no Brasil, esses cursos

Trata-se de cursos de Educação, e não de cursos de Pedagogia, na medida em que as propostas pedagógicas, as matrizes curriculares, os aspectos metodológicos descritos objetivam descrever a educação como processo amplo e como processo escolar, influenciada por políticas públicas educacionais e organizada com o objetivo de produzir trabalhadores que, minimamente, leiam, escrevam e calculem. Um curso de Pedagogia iria além. Proporia modos de compreensão da educação, modos de proposição educacional e de crítica e avaliação. (Ferreira, 2017a, p. 187).

De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais, Resolução CNE/CP nº 01/2006, o curso de Pedagogia caracteriza-se por se organizar para garantir:

Art. 4º [...] formação de professores para exercer funções de magistério na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade Normal, de Educação Profissional na área de serviços e apoio escolar e em outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos. (Brasil. MEC. CNE, 2006b, p. 11).

Nesse sentido, pode-se dizer que os cursos criados sob a égide da Resolução CNE/CP nº 01/2006 compõem um conjunto de licenciaturas que se dedicam à “formação de professores”, relacionando a Pedagogia à sala de aula (Fiorin, 2012). Não se desconhece que as DCN preveem também “conhecimentos pedagógicos”, porém, de modo amplo e pouco descrito, tal expressão está subsumida em meio ao espectro daquilo que é bastante divulgado na educação brasileira: a necessidade de “formação de professores”. Corrobora ainda esse quadro da Pedagogia atenta ao espaço e ao tempo de constituição de professores da educação infantil e dos anos iniciais o fato de os currículos do curso no País centrarem-se, com raras exceções de propostas genuinamente pensadas pela comunidade, em acordo com as características sociais do entorno, na “docência”. Se for entendido: a) que o discurso da “formação de professores”, tão largamente divulgado, em seu interior, pode convocar a se pensar que professores realizam práticas e, estas, por sua efemeridade, podem ser “contínua e permanentemente” treinadas e qualificadas, em uma retórica que reproduz de modo bastante simplificado o que Ramos (2002) denomina “pedagogia das competências”; e b) que os discursos oficiais apelam para que se pense que a formação docente é o processo sine qua non para haver professores, ou seja, se não houver um investimento contínuo, estes deixam de ser professores, em uma retórica que alimenta a fragilidade do ideário da profissão e obstaculiza apostar-se totalmente nos sujeitos, na sua autonomia em relação ao trabalho que realizam, ainda que seja uma autonomia produzida socialmente, mas com condição de o trabalho ser representativo do sujeito e de este se representar no trabalho; c) então, pode-se afirmar que a proposta de curso de Pedagogia no País está comprometida com a prática e não com a práxis ou mesmo com o trabalho dos pedagogos, conforme se aprofundará a seguir.

Pensa-se que o desencanto, a fragmentação, a precarização, a intensificação, a autointensificação, a desistência, cujas causas são oriundas de um capitalismo em seu atual estágio, são assumidos pelos professores e pelos pedagogos, que acabam por se sentir cada vez mais empregados e não trabalhadores, gerando o estranhamento do sujeito em relação ao que produz. Do mesmo modo, a reedição do “empregamento” dos professores e dos pedagogos é um processo que os desconecta de se representarem como trabalhadores, revelando também uma desconexão com os sentidos de si e de seu trabalho, sem os quais, salvo por processos artificiais, se mantêm separados o caracol e sua concha (Antunes, 2005): os trabalhadores, os meios de produção e o trabalho.

Desse modo, em busca de uma resposta quanto a uma concepção de Pedagogia e, em decorrência, de entender como esta se evidencia no cotidiano, percebe-se um descolamento entre: 1) a proposta das políticas educacionais de a Pedagogia ser destinada à formação de professores, quando o que se necessita é transcender a sala de aula, buscar renovados sentidos para a educação no contexto social e, nessa perspectiva, reexplicar (quem sabe reeditar) a escola; 2) e o fato de tal proposta reduzir a Pedagogia e, em decorrência, o trabalho dos pedagogos, que, no cotidiano escolar, na tentativa de atender às demandas de seu emprego, acabam contribuindo ainda mais para essa redução e, paradoxalmente, sentindo uma diminuição paulatina de seu imaginário como trabalhadores (Ferreira, 2017b).

Compreende-se que a Pedagogia tem como objeto a educação:

esse fenômeno humano, portanto, social, político, cultural, epistemológico, antropológico, filosófico, psicológico, enfim, um fenômeno que, para ser estudado, exige esforços conjugados de ciências diferentes associadas à Pedagogia. (Ferreira, 2010, p. 236).

Assim configurado, trata-se de um fenômeno atinente ao campo da Pedagogia, mas estudá-lo pode exigir “incluir outras ciências, mas convocadas a partir da perspectiva da Pedagogia. É essa a compreensão a ser resgatada, pensa-se” (Ferreira, 2010, p. 236). A ciência referida é dialógica, capaz de compreender sujeitos e ações, com um rigor marcado pela cientificidade, com certeza, mas considerando a linguagem, a subjetividade e a historicidade também implicadas nos fenômenos.

Assim, para além da “docência”, considera-se que o objeto da Pedagogia, como ciência da educação, será a educação. Nesse sentido, para quem se dedica a estudar a Pedagogia, faz-se imprescindível a leitura de outras áreas do conhecimento, como a Filosofia, a História, a Sociologia, a Psicologia, a Biologia, entre muitas outras, cujas produções contribuem para que se possa entender e aprofundar investigações sobre o fenômeno educacional, objeto dessa ciência, a Pedagogia. Em outras palavras, no campo da educação, a produção do conhecimento, um processo social “complexo e dinâmico”, exige ser abordada com uma percepção multi ou plurirreferencial, o que implica pensar haver um amálgama no conhecimento pedagógico, resultante da pluralidade cultural pertinente aos diferentes campos do conhecimento.

Considerações finais

Pensa-se que seja necessário continuar discutindo, refletindo, sistematizando, produzindo leituras sobre a Pedagogia, sobre a relação da área e do curso com as políticas educacionais no País e sobre o trabalho dos pedagogos. Esses sujeitos, entendidos como trabalhadores, realizam o trabalho pedagógico, que é político, histórico, cultural, educacional e organiza a escola e as instituições educativas. Isso demanda pensar sobre o lugar que é dado e que os próprios pedagogos se dão em sua atuação. Por isso, a necessidade de os pedagogos pensarem sobre a educação, a escola, o seu trabalho, inicialmente, resgatando a autoria deles nesse processo, com base em algumas proposições consideradas oportunas para a escola no atual momento:

  1. a) reelaboração dos sentidos estabelecidos pelos pedagogos como sujeitos de seu trabalho;

  2. b) resgate da autonomia e da responsabilidade pelo pedagógico por parte dos pedagogos;

  3. c) práticas de gestão do pedagógico, de modo participativo, dialógico, responsável e cidadão;

  4. d) reflexão contínua sobre o pedagógico e sobre a aula, resgatando aspectos metodológicos e didáticos;

  5. e) percepção da escola como espaço e tempo da produção do conhecimento.

Assim, de alguma forma, são buscados elementos para reconstituir a imagem social da Pedagogia, do curso de Pedagogia e, em decorrência, dos pedagogos como sujeitos fundamentais na elaboração de alternativas para a retomada de um processo educacional em acordo com as demandas contemporâneas, considerando que, como se sabe, cotidianamente, no ambiente acadêmico e, sobretudo, nas escolas, a Pedagogia não tem o status de ciência como uma prerrogativa comum e de consenso. Faz-se necessário conquistar esse consenso, não somente com mais intensa inserção da área na escola, como esclarecendo suas características, que a diferenciam de outras áreas. Uma possibilidade de início, entende-se, seja a (re)constituição da Pedagogia a partir de uma síntese entre as políticas educacionais para a área e para o curso de Pedagogia, o modo como essas políticas impactam os cursos dentro das instituições e, em decorrência, como esses cursos impactam o trabalho a ser realizado pelos egressos na escola.

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    Texto produzido a partir de projeto desenvolvido com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (Processo 303650/2016-8) e da Fundação de Apoio à Pesquisa no Estado do Rio Grande do Sul - FAPERGS (Processo 2333-2551/14-7).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2019
  • Aceito
    14 Fev 2020
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