Resumo:
Este artigo trata da crise vivenciada pelo Colégio Universitário da Universidade Federal do Maranhão (Colun/UFMA), nas décadas de 1990 e 2000, e da sua transferência da periferia de São Luís (Vila Palmeira) para o campus central da UFMA, na Vila Bacanga. Problematiza-se a mudança, situando-a num contexto mais amplo de transformações sofridas pelo Colun, cuja permanência naquele bairro popular nunca deixou de ser objeto de tensões e controvérsias relacionadas à sua finalidade e ao público-alvo. Discute-se a singularidade dessa instituição escolar e a sua especificidade enquanto modalidade de escola que se distingue e se torna única no cenário educacional, usando-se como fontes históricas os jornais, os documentos do arquivo escolar, as entrevistas e a legislação pertinente; vestígios mobilizados, cruzados e analisados segundo os pressupostos teórico-metodológicos da história cultural. Conclui-se que a sua reinstalação em novo local ocorreu paralelamente a outras alterações que reconfiguraram a sua identidade: embora tenha se mantido no papel de Colégio de Aplicação, perdeu em parte o caráter comunitário que o diferenciava, passando a funcionar, também, como Colégio Técnico, o qual fortaleceu a escolarização secundária dicotomizada entre o ensino regular e o profissionalizante, em detrimento da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental
Palavras-chave: Colégio Universitário; crise escolar; reconfiguração identitária; Maranhão.
Abstract:
This study covers the crisis experienced by the University College of the Federal University of Maranhão (COLUN/UFMA) in the 1990s and 2000s, and its transfer from the outskirts of São Luís (Vila Palmeira) to the UFMA’s central campus in Vila Bacanga. This change is then problematized, placing it in a broader context of transformations occurring in the COLUN, which the continuity in that popular neighborhood never ceased to be the subject of tensions and controversies regarding its purpose and target audience. The particularity of this school institution, as well as the aspects making this learning modality stand out for its uniqueness in the educational landscape, are thoroughly discussed, employing newspapers, school archival documents, interviews and relevant legislation, as historical sources. These fragments gathered, crossed and analyzed according to the theoretical-methodological assumptions of cultural history. It is concluded that its reinstallation in a new location occurred in parallel with other changes that reconfigured its identity. Although it maintained its role as a laboratory college, it partially lost its sense of community that distinguished it from other regions, also beginning to work as a technical college, thus bolstering a secondary schooling dichotomized between regular and vocational education to the detriment of early childhood education and the initial years of primary education.
Keywords: University School; school crisis; identity reconfiguration; Maranhão
Resumen:
Este artículo trata de la crisis vivenciada por el "Colegio Universitario" de la "Universidad Federal de Maranhão" (COLUN/UFMA), en las décadas de 1990 y 2000, y de su transferencia del entorno de São Luís (Vila Palmeira) para el campus central de la UFMA, en la Vila Bacanga. Se problematiza la permuta, situándola en un contexto más amplio de transformaciones sufridas por el COLUN, cuya permanencia en aquel barrio popular nunca dejó de ser objeto de tensiones y controversias relacionadas a su finalidad y al público al que va dirigido / público objetivo. Se discute la singularidad de esta institución escolar y su especificidad en cuanto modalidad de escuela que se distingue y se torna única en el escenario educacional, usándose como fuentes los periódicos, los documentos del archivo escolar, las entrevistas y la legislación brasileña pertinente; vestigios movilizados, cruzados y analizados según los fundamentos teórico-metodológicos de la historia cultural. Se concluye que su reinstalación en un nuevo local ocurrió paralelamente a otras alteraciones que reconfiguraron su identidad: si se mantuvo el rol de "Colegio de Aplicación"; el carácter comunitario que lo diferenciara se pierde, funcionando también como "Colégio Técnico", que fortalecería la escolarización secundaria dicotomizada entre la enseñanza regular y la formación profesional en perjuicio de la educación infantil y los años iniciales de enseñanza fundamental.
Palabrasclave: Colegio Universitario; crisis escolar; reconfiguración identitaria; Maranhão
Considerações iniciais
A Fundação Universidade do Maranhão (FUM), instituída em 21 de outubro de 1966 (Brasil, 1966), criou, em 20 de maio de 1968, o Colégio Universitário, o qual foi instalado em uma das salas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, à época sediada no Palácio Cristo Rei, no Centro Histórico de São Luís, e tinha como finalidade ofertar o 3º ano colegial, segundo a legislação em vigor (Brasil, 1961). Em 1972, o Regimento Interno do Colégio determinou sua nova identidade institucional, ao transformá-lo em Colégio de Aplicação, vinculado à Faculdade de Educação da Universidade Federal (UFMA. Colun, 1972), e prever a sua ampliação para os três anos do 2º grau - denominação da etapa final da educação básica, de acordo com a reforma do ensino de 1º e de 2º graus, ocorrida em 1971 (Brasil, 1971).
Tais mudanças, entretanto, demoraram um pouco a serem implementadas. De 1972 a 1973 (período em que funcionou em um prédio situado na Rua Viana Vaz, junto à Praça Quinta do Macacão, no Centro Histórico da capital), o Colégio se manteve apenas com a oferta do 3º ano do 2º grau. Já em novo endereço (Rua das Hortas, nº 109 A - também na região central de São Luís), entre 1974 e 1975, foram abertas as novas vagas e realizadas as matrículas de estudantes no 1º e no 2º anos do 2º grau, conforme previa a lei. Em 1975, ocorreu a transferência do Colégio para a Cidade Universitária, que ainda estava em construção na Vila Bacanga, ocupando espaços improvisados nesse campus: primeiramente, no Centro de Estudos Básicos (CEB), conhecido à época como Pombal (atual CEB velho); e, posteriormente, no prédio Pimentão (atual Centro de Ciências Sociais - CCSo).
Essa situação perdurou até 1979, quando professores dos Departamentos de Educação I e II, via convênio da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) com a Secretaria Estadual de Educação (Seduc), conduziram o processo de reestruturação do Colégio Universitário, transferindo-o para um complexo escolar construído pelo governo do estado na Vila Palmeira, bairro cuja urbanização ainda era incipiente, embora sua população aumentasse a cada ano, sem dispor, porém, de muitas das condições mínimas necessárias ao exercício da cidadania.
Com a transferência para a Vila Palmeira concretizada em 1980, adotou-se a sigla Colun para o Colégio Universitário, o qual passou a ofertar o 1º e o 2º graus, inclusive com habilitações profissionais, além do ensino pré-escolar. O Colun manteve toda a sua estrutura em funcionamento naquele bairro periférico até 2006, consolidando-se como Colégio de Aplicação da UFMA, que oferecia, ainda, a formação técnica de nível médio nas áreas de Administração, Enfermagem e Meio Ambiente. Portanto, de 1980 a 2006, o Colun construiu sua trajetória na Vila Palmeira, contando com o corpo de servidores administrativos, o pessoal docente, o segmento discente e o envolvimento daquela comunidade na vida escolar. Ao longo desses anos, intensas lutas marcaram a ação educativa do Colégio, a qual fortalecia o processo de escolarização da sociedade maranhense, tornando-o referência no ensino público da cidade de São Luís, principalmente pela cultura escolar de caráter democrático ali instaurada (Oliveira, 2019).
Em 2006, a transferência das suas instalações físicas para um prédio escolar localizado na Cidade Universitária, situada na Vila Bacanga, trouxe, nessa última fase, nova inclinação ao Colun, com importantes impactos sobre sua finalidade e seu público-alvo: se, por um lado, a ampliação e a qualificação do corpo profissional se articulam à intensificação dos valores democráticos que orientam sua concepção político-pedagógica; por outro, a redução orçamentária e de oferta de matrículas, que provoca o acirramento de disputas por vagas, e a opção pela progressiva retirada das séries iniciais do ensino fundamental, que aos poucos vão sendo eliminadas do seu currículo, são mudanças que colocam em xeque a própria democratização historicamente construída, já que esta não se efetiva plenamente sem a educação qualificada da primeira infância - processo que encontra sua contraparte no fortalecimento da educação profissional técnica de nível médio desde o início dos anos 2000. A incorporação da educação profissional também conspira no sentido de alterar, em certa medida, a natureza, a função e a finalidade do Colégio e o perfil dos seus estudantes (faixa etária, bairros de origem, expectativas de formação etc.).
Nesse sentido, problematiza-se: em que medida o deslocamento urbano e a reorganização curricular verificada no Colégio Universitário no contexto de mudança da Vila Palmeira para o campus do Bacanga reconfiguraram a sua identidade, “[...] que consolida a estrutura escolar na sua internalidade e especificidade, como também na relação sociocultural e política” (Magalhães, 2004, p. 68), seja pela nova localização, seja pela nova dinâmica curricular? Discutir a singularidade da referida instituição, a sua especificidade enquanto modalidade de escola que se distingue e se torna única no cenário educacional, é o objetivo deste artigo. Utilizam-se os jornais locais, a documentação do arquivo escolar, a legislação pertinente e as entrevistas com os sujeitos que vivenciaram tal história como fontes mobilizadas, das quais os vestígios serão cruzados e analisados pela ótica da história cultural. O recorte temporal inicia-se em 1995, quando um ofício foi encaminhado ao reitor da UFMA pela associação de pais, mestres e comunitários da Vila Palmeira, no intuito de reivindicar melhorias nos serviços oferecidos pelo Colun ao bairro, e termina em 2006, quando começou a transferência do Colégio para a Cidade Universitária, o que significou não só a sua reinstalação como espaço escolar novo, mas, também, a sua reconfiguração identitária.
A crise escolar
Durante as décadas de 1980 e 1990, o Colun/UFMA ocupou lugar de destaque na escolarização de significativa parcela da população ludovicense. A instituição escolar ofertou a milhares de estudantes da periferia o ensino de 1º e 2º graus e se fortaleceu como campo de estágio dos licenciandos da universidade federal; além de manter diálogo entre saberes acadêmicos, escolares e comunitários, os quais deram vida ao projeto de reestruturação do Colégio de Aplicação esboçado em 1980 pelos professores do Curso de Pedagogia (UFMA. Colun, 1980). Desse modo, estabeleceu uma forma de escolarização (Castellanos, 2020) que viabilizou práticas culturais “[...] que, diversamente, se apreendem dos bens simbólicos, produzindo assim usos e significações diferençadas” (Chartier, 1991, p. 178), por exemplo, atividades cívicas (hora cívica e desfiles patrióticos), artísticas (banda de música, canto coral, teatro), esportivas (olimpíadas) e folclóricas (festas juninas); bem como feiras de ciências, estágio supervisionado e conselhos de classe, para além do conselho diretor, do grêmio estudantil e da associação de pais, mestres e comunitários, entre outros. Recorte ou bricolagem operada pelo Colégio que, ao separar os elementos da cultura social que mais são úteis ou interessantes a seu percurso, recria-os como uma produção original que resulta da inventividade dos sujeitos inseridos em sua trajetória - estudantes, professores e demais membros do corpo profissional (Forquin, 1993); cultura escolar democrática que se estabeleceu como algo que distingue o perfil identitário da instituição.
Desse modo, enfatiza-se a originalidade da cultura escolar democrática do Colégio Universitário forjada nos anos de sua permanência num bairro periférico, uma vez que a democratização desse espaço escolar, via popularização, legitima-se como resultante das relações de forças estabelecidas em constante equilíbrio de tensões, que mudaram sua trajetória e suas finalidades, depois de ter sido pensado, concebido e concretizado para um público seleto, visando outra formação. (Oliveira; Castellanos, 2021, p. 5)
Paralelamente à consolidação do Colun no cenário educacional maranhense, a UFMA começou a sentir os efeitos da crise que, na década de 1990, atingiu as universidades brasileiras com o deslocamento do modelo napoleônico (caracterizado pela predominância do Estado) para o modelo anglo-saxão (em que ocorre a primazia da sociedade civil); mudança justificada pela necessidade de ampliar o acesso da população ao ensino superior, o qual passou a ser ofertado de forma cada vez mais diversificada, resultando em uma política de desfavorecimento das universidades públicas, principalmente as federais (Saviani, 2010). Essa tendência reformista trouxe dificuldades aos colégios de aplicação, que integram o Conselho Nacional de Dirigentes de Colégios de Aplicação das Instituições Federais de Ensino Superior (Condicap) desde 1990.
O Plano Nacional de Educação proposto pelo Ministério da Educação (MEC) em 1998 determinava uma “[...] racionalização no uso dos recursos que diminu[í]a o gasto por aluno nos estabelecimentos públicos” (Brasil. MEC, 1998, p. 52). Para o Colun, as principais consequências dessa transição foram a retração da oferta de vagas e o descaso com a manutenção física, em virtude da falta de recursos para custear todas as despesas necessárias ao funcionamento dos dois prédios do complexo escolar que abrigava suas instalações: laboratórios, oficinas e recursos audiovisuais, entre outros materiais pedagógicos. Realidade representada por Marie Curie1 (2019, Entrevista), professora de Ciências e de Química da instituição desde 1992:
Eu lembro que ainda participei da celebração de formatura dos pequeninhos do jardim de infância, que tinha uma festa de colação de grau [...]. Quando eu entrei ainda acontecia, mas aí foi diminuindo a oferta porque o quadro de professores também foi diminuindo, até que chegou ao que nós temos hoje, com situação limitada mesmo, nas séries iniciais do ensino fundamental - reduziu muito o quadro. Eu ainda encontrei o gabinete dentário e a banda de música, mas alguns laboratórios já não funcionavam [...], por exemplo, havia inúmeras máquinas de datilografia; mas parece que já estavam desativadas [...], lembro bem de uma oficina de maquete com um curso muito procurado [...]; porém, havia uma fala no sentido de dizer que “o Colun já teve”, ou seja, já teve médico, já teve laboratório disso, já teve laboratório daquilo [...].
Diante da crise, intensificou-se a participação dos servidores do Colégio Universitário nos movimentos grevistas em defesa da universidade pública. A postura combativa, representada pelas práticas reivindicatórias, constitui importante aspecto da cultura escolar produzida na Vila Palmeira; embate em que tomaram parte numerosos agentes sociais implicados nas práticas educativas que influenciaram a atuação dos sujeitos de modo amplo e difuso e nas práticas pedagógicas que provocaram mudanças nas condutas individuais (Franco, 2016).
Nessa dinâmica, os representantes de três grupos sociais claramente se apresentam nas fontes elencadas: a população pobre da periferia, formada pelos habitantes da Vila e do seu entorno (bairros vizinhos, como Barreto, Radional e João Paulo); os profissionais da educação, grupo no qual estão inseridos os servidores do Colun, entre docentes e técnicos especializados; e o segmento universitário, composto de estagiários ou professores em formação (graduandos dos cursos de licenciatura da UFMA). Conjunto heterogêneo, cujo equilíbrio de tensões deu origem à cultura escolar democrática responsável pela constituição e consolidação de uma identidade “colunense”, forjada em pleno subúrbio metropolitano, e “[...] na relação que [se] estabelece com o público e com a realidade envolvente, na forma como a cultura escolar interpreta e se relaciona com o contexto na sua multidimensionalidade” (Magalhães, 2004, p. 68). Essa posição política orientou as ações do grêmio estudantil e de outros segmentos da vida escolar, ganhando forma escrita em ofício de 24 de abril de 1995, no qual a associação de pais, mestres e comunitários, dirigindo-se ao reitor Aldy Mello de Araújo (1992-1996), expressou sua insatisfação sobre a situação do Colun:
Magnífico Reitor, A associação de pais, mestres e comunitários do Colégio Universitário, preocupada em desempenhar o seu papel no sentido de participar mais amplamente do desenvolvimento integral desta escola e sua comunidade, necessitamos de uma assistência que venha favorecer o cumprimento de suas funções a nível global. Considerando que esta associação na intenção de alcançar seus objetivos essenciais visa uma melhor assistência a toda [a] comunidade [do] Colun. Considerando que o Colégio Universitário ao longo destes anos vem desenvolvendo uma política de ensino e extensão voltada para o atendimento da comunidade na qual está inserido. Considerando a carência existente no Colégio de: assistente social; psicólogo; orientadora educacional; médico ou atendimento de primeiros socorros; reativação do gabinete dentário; reativação da biblioteca do primeiro grau; funcionamento das oficinas (falta recurso humano e material) e o funcionamento do núcleo de computação (falta[m] recursos humanos e equipamentos). Considerando que os itens precedentes já existiram e produziram efeitos de fundamental importância a essa comunidade. Considerando que a presença destes profissionais e o funcionamento destes setores só vai beneficiar a formação dos nossos alunos. Por tudo isso, é que esta associação está encaminhando a reivindicação de pais desta escola e aguarda de V[ossa] magnificência um breve atendimento. (UFMA. Colun, 1995, p. 1).
Apesar da carência de recursos humanos e da defasagem tecnológica denunciada pelos representantes do Colégio perante a universidade, sua representação positiva se mantinha por meio de imagens simbólicas enraizadas no imaginário social, as quais abrangem conceitos, crenças, valores, desejos e múltiplas sensibilidades materializadas nos indícios (Pesavento, 2012), estejam eles escritos, fotografados ou presentes na memória dos sujeitos entrevistados. Maria de Jesus Avelar Silva (2019, Entrevista), professora das séries iniciais do ensino fundamental desde 1995, afirma que “[...] ter um filho matriculado no Colun era maravilhoso [e] todos queriam, [de modo que] não só a prova [do seletivo] era muito concorrida [como] também a participação dessas famílias na vida escolar dos seus filhos era uma marca muito forte do Colégio”. A seleção para as admissões de alunos ao ensino fundamental e médio - assim chamados pela Lei nº 9.394/1996 (Brasil, 1996) -continuou com o mesmo nível de concorrência durante vários anos. Essa disputa intensa evidencia como a força da representação mobiliza diferentes indivíduos e produz movimentos capazes de operar mudanças ou garantir permanências numa dada sociedade ou num dado setor, o que não significa que as representações estejam dentro do “regime de veracidade2”, senão que elas, isto sim, incorporam-se aos “regimes de credibilidade ou de verossimilhança3” (Pesavento, 2012). Nessa lógica, Camila Fernanda Pena Pereira (2019, Entrevista), que estudou no Colun da 2ª série do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio (entre 1996 e 2005), relata que, ao matricular-se na instituição, ainda encontrou:
Um Colégio bem tradicional [...]; eu tinha, na verdade, um sonho de estudar lá, porque era uma escola [...] era tida como uma escola de muita qualidade, apesar de pública, [...] competia diretamente com escolas que eram padrão de ensino naquele tempo, como Dom Bosco, Marista [...]; então ela [es]tava naquele padrão de ensino [...], era um desejo da minha família que eu estudasse lá, porque minha irmã já estudava lá [...]. Era uma referência.
Mesmo enfrentando problemas decorrentes da política educacional desfavorável às universidades federais, o Colégio manteve, por algum tempo, o seu poder simbólico e continuou atraindo estudantes que buscavam se matricular no estabelecimento reconhecido como um dos mais prestigiados da capital, em virtude da qualidade do ensino oferecido; lugar que possibilitava alcançar desejáveis classificações escolares (Vincent; Lahire; Thin, 2001). Desse modo, foi uma exceção, se comparado às escolas públicas, as quais não só apresentam, em sua maioria, quadros de penúria em termos humanos e materiais, como também são avaliadas negativamente pela imprensa e pela sociedade.
Essa instituição, concebida como escola de referência ou padrão de ensino, engendrou práticas culturais legitimadas socialmente, que podem ser identificadas nas celebrações festivas que aconteceram por ocasião das formaturas, entre outros discursos enaltecedores realizados dentro e fora dos seus muros, para além dos esforços das famílias no sentido de lutarem para que seus filhos pudessem conquistar o direito à matricula; “investimento de construção do real” (Pesavento, 2012) que era reforçado na divulgação dos aprovados nos vestibulares da UFMA e da Universidade Estadual do Maranhão (Uema), nos quais, em 1997:
O Colégio Universitário, Escola de Aplicação da Universidade Federal do Maranhão, obteve um dos melhores índices entre as escolas públicas do Maranhão [e] o ótimo desempenho dos alunos do Colun [...] foi resultado dos novos métodos de ensino aplicados na escola, com aulas em dois turnos e mais provas [sendo que] a meta para 1997 e[ra] aperfeiçoar cada vez mais o ensino do 3º ano científico e investir em uma avançada política de educação. (Colun..., 1997, p. 12).
Esse espaço citadino teve seu crescimento aos poucos embalado por algumas obras públicas, como o Centro de Saúde Doutor Genésio Rego, o Estádio Castelão, o Mercado Público, o Parque Folclórico e o Colégio Universitário, testemunhando o Colun o desenlace do processo de urbanização, ao tornar-se um catalisador de sonhos que impulsionou a infância e a juventude de uma comunidade pobre a desfrutarem de alguns dos benefícios proporcionados pelo consumo cultural oferecido no interior dos espaços escolares - oportunidade nem sempre disponível às classes populares -; estímulo que já se observara, por exemplo, no símbolo do otimismo que ainda marcava o cotidiano escolar, apesar das dificuldades mencionadas. Na Figura 1, note-se o professor de Física Edson Campos (terceiro da esquerda para a direita) na condição de diretor-geral (1997-2001), que aparece com alguns aprovados no vestibular de 1997. “Performances portadoras de sentidos” (Pesavento, 2012), utilizadas a favor do projeto educativo da instituição e em defesa da trajetória de lutas travadas desde a sua implementação em plena zona periférica da cidade, em meio a ruas estreitas, íngremes e esburacadas, muitas delas espremidas entre o mangue e a terra firme, onde aos poucos o aparelhamento urbano se tornou sofisticado, ainda que não com a qualidade e a distribuição suficiente para sanar as carências daquela população em termos de equipamentos de lazer, transporte, educação, saúde e outros bens culturais.
Inserido na malha urbana do bairro e na própria cultura local como um bem simbólico representativo das lutas populares pela conquista dos direitos necessários à efetivação da cidadania, o Colégio Universitário resistiu enquanto foi possível na tentativa de manter-se vivo com seus traços identitários desenhados nos anos 1980, destacadamente em seu vínculo construído com a população da Vila Palmeira. Mas a crise do Colun se aprofundaria nos anos seguintes pela encruzilhada de interesses instaurada, que posicionava a comunidade do bairro, organizada e representada pelos seus organismos sociais e estudantis (união de moradores, associação de pais, clube das mães, grêmio estudantil etc.), de um lado e, do outro, as gestões do Colégio, a administração superior da universidade e seus departamentos acadêmicos de graduação, que defendiam a necessidade de transferir as instalações do Colégio para o campus. Estratégia político-administrativa fortalecida pela gestão do reitor Othon de Carvalho Bastos (1996-2003), mesmo que os professores tenham se dividido quanto à questão. Segundo Marie Curie (2019, Entrevista):
Tinha uns que queriam vir para cá e outros não. Alguns achavam que vindo para o campus seríamos mais vistos, mas eu nunca acreditei nessa condição, porque acho que se você existe, você pode ser visto em qualquer lugar, e, a meu ver, o Colun teve sua visibilidade lá na Vila como tem aqui no campus. Ele cumpriu um importante papel social tanto lá como aqui
Essa visibilidade se manifestava principalmente pelas exposições, feiras ou mostras científicas realizadas na Vila Palmeira. Eventos cuja importância não diminuiu e, na perspectiva de Isaac Newton4 (2019, Entrevista), professor de Física do Colun desde 1992, “[...] tiveram sua realização garantida, com muito empenho de toda a comunidade escolar até o ano de 2006, sempre com grande sucesso de público”; práticas eliminadas após a transferência do ensino médio para a Cidade Universitária a partir daquele ano. Isso evidencia que, mesmo com o agravamento dos problemas de ordem infraestrutural desde o final dos anos 1990, muitas das práticas escolares que “[...] apresentam modos de estar no mundo, de compreender a realidade e de estabelecer sentido[s], partilhados social e historicamente” (Vidal, 2006, p. 158) foram mantidas durante algum tempo e mobilizaram condutas individuais e empreendimentos coletivos. Com periodicidade bimestral e atividades de culminância ao final de cada ano letivo, as feiras de ciências deixaram lembranças que são evocadas com mais vivacidade quando comparadas aos conselhos de classe, ao conselho diretor, às atividades cívicas e artísticas, bem como em referência às festas e ao próprio estágio supervisionado.
Segundo Edson Amaral de Oliveira (2019, Entrevista), professor de História efetivado em 1997:
As feiras de ciências, acima de tudo, vieram corroborar esse espaço de aprendizagem [...]. Muitas novidades os professores criavam nessas feiras, também os alunos traziam suas contribuições, e nas feiras de ciências a gente tinha um pouco mais de liberdade para expressar o pensamento, desenvolver mais a criatividade; era o momento de descobrir talentos em diferentes áreas [...]. Me lembro que uma vez veio um pessoal do campus e trouxeram uma professora da Holanda que estava visitando São Luís; e ela ficou impressionada com a nossa flora, porque havia um estande de ciências naturais e nesse ano foi trabalhado o tema da botânica, o estudo das plantas, a riqueza vegetal do Maranhão [...]. Havia uma interação muito grande; a comunidade participava, porque ela ia ver os filhos; a escola ficava muito cheia, o dia todo, bastante movimento [...]; rapaz, era muito gostoso! [...]. Também trazíamos alguns alunos que a gente selecionava para participar de encontros científicos e eventos culturais aqui no campus; como uma vez, eu lembro bem que viemos para a SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência], e foi uma maravilha; foi muito enriquecedor.
Ao que parece, a localização do Colégio, fora do campus, não comprometeu o seu caráter de aplicação pedagógica. Considerando-se a garantia da oferta do ensino fundamental (1ª à 8ª série) e do ensino médio (1º ao 3º ano) até a virada do século, com prejuízo apenas da educação infantil ou pré-escola, retirada do currículo ainda nos primeiros anos da década de 1990; a ampliação do território atendido, com a entrada de alunos vindos de outras regiões da cidade, incluindo habitantes de bairros mais privilegiados em termos de localização geográfica, renda e escolaridade; e a regularidade de exposições científicas e demais eventos escolares até 2006, constata-se que, mesmo distante da cidade universitária e inserido na parte periférica do espaço urbano, o Colun deu continuidade à ação educativa projetada desde a sua reestruturação, preservando a natureza de seu funcionamento. A própria dinâmica da vida escolar, representada nas fotografias e nos relatórios de atividades, para citar apenas duas fontes do arquivo institucional, bem como em notícias jornalísticas que difundiram mais ainda tais formas discursivas e imagéticas (Pesavento, 2012), permite-nos afirmar que o papel desempenhado pelo Colégio de Aplicação, concebido como escola-laboratório da UFMA, campo de atuação do estágio supervisionado, veículo para a melhoria do ensino e espaço de formação permanente de crianças, jovens e adultos, foi mantido em sua essência naquele período.
Mesmo diante das dificuldades de cunho orçamentário e dos problemas com a infraestrutura, que, certamente, prejudicaram a ação educativa, o significado ou a identidade singular do Colégio não foram invalidados: a instituição permitiu o desenvolvimento dos processos de criação que geram objetos culturais, sejam eles artefatos de natureza artística, sejam produtos científicos ou tecnológicos. Produção cultural e original surgida no próprio espaço escolar do Colun, concebido aqui “[...] em relação à gênese e formação dos primeiros esquemas cognitivos e motores, ou seja, um elemento significativo do currículo, uma fonte de experiência e aprendizagem” (Escolano Benito, 2001, p. 26) que continuava tendo seu valor julgado nas feiras de ciências (Figura 2), as quais
[...]eram marcantes! Realmente um momento muito esperado! Cada ano acontecia com regularidade. Quando eu cheguei era feira científica, depois a gente passou a chamar de mostra científica; mas assim [...] a escola participava na totalidade. Teve uma época que nós chegamos a fazer dois momentos: um para o fundamental e outro para o médio, porque eram muitos trabalhos e nós não dávamos conta de avaliar tudo em um só dia [...]. Você imagina o prédio inteiro tomado de grupos, que até debaixo das árvores os meninos apresentavam trabalhos [...]; e eram trabalhos bons, coisa boa, muito bom mesmo! Eram todas as áreas, todo mundo participava; era uma chamada da mostra científica, mas todos apresentavam trabalhos; não só a Química e a Física [...]; o movimento que antecedia, o pessoal estudando e se preparando, fazendo as coisas para apresentar; movimentava a escola; era sadio, era muito bom! (Curie, 2019, Entrevista).
No final dos anos 1990, o Colun começou a sofrer um progressivo abandono de alguns de seus espaços em virtude da diminuição da oferta de vagas, o que acarretou a subutilização daquela gigantesca obra pública. Além disso, o aparato tecnológico que ali existiu se tornou obsoleto, desde os laboratórios e as oficinas até o conjunto de equipamentos escolares, os quais, quando da sua implementação, eram tidos como os mais modernos, mas não tiveram reposição ou atualização; a falta de apoio político à instituição reflete a pouca ou quase nenhuma prioridade que a UFMA dispensa ao Colégio de Aplicação e a seus artefatos culturais, diferentemente do que ocorre em instituições congêneres vinculadas a outras universidades federais espalhadas pelo País. Com isso, todas as atividades pedagógicas e administrativas dos níveis fundamental e médio foram concentradas em um só edifício (até então conhecido como “prédio do 2º grau”), esvaziando-se a outra parte daquela estrutura arquitetônica, com a biblioteca (que já fora desativada), as salas de atendimento, os laboratórios e as oficinas. Em matéria intitulada “SOS Colun”, publicada por impresso da Associação de Professores da UFMA (Apruma), que contava com professores do Colégio de Aplicação entre seus membros, a situação foi denunciada da seguinte forma:
O [Colun] (Colégio Universitário) já foi uma escola de referência. Hoje está pedindo socorro. Os aspectos físicos [...] projetam em ritmo acelerado uma decadência cada vez mais visível, e isso é ruim para a UFMA [...]. É preciso e urgente frear a internação do Colun na CTI [sic] do abandono total, doente já está. [...] Por que deixá-lo morrer? Os professores demonstram tristeza ao testemunharem e conviverem com a inércia de ações concretas para reverter o quadro de decadência. A doença do [Colun] tem nome e diagnósticos certos. Desinteresse das administrações da UFMA ao longo dos anos, falta a eficácia da administração do próprio [Colun] e a política do MEC de acabar com os Colégios de Aplicação. (Colun..., 1999, p. 9).
Ao afirmar no texto que o Colun já não é mais uma escola de referência e o que isso representa para a universidade, o articulista parece estar destacando o significado histórico do Colégio no cenário educacional enquanto unidade da UFMA, sua importância para a imagem da universidade ao longo dos anos; ao mesmo tempo, aponta para a ameaça que a situação indesejável trouxe ao capital simbólico usufruído pelos professores que trabalhavam na instituição, aos estudantes universitários que lá estagiavam e aos alunos de ensino fundamental e médio, cujo acesso àquele espaço garantia ou tornava possível a conquista de um certo capital escolar (Bourdieu, 2007). Nessa perspectiva, qual foi a saída encontrada pelos dirigentes hierarquizados institucionalmente via reitoria, pró-reitoria de ensino e direção-geral do Colun? Como reagiu o público até então atendido pelo Colégio Universitário? Que pressões sociais foram exercidas no sentido de levar à ruptura do processo histórico de inserção da UFMA no seio da periferia pobre, interrompendo o projeto educativo de caráter singular que foi construído em meio às camadas mais desprivilegiadas da sociedade ludovicense?
O desfecho da crise
À estratégia governamental de caráter desestatizante, que consistia em reduzir os investimentos públicos federais em áreas como a educação, medida que prejudicou sensivelmente os colégios de aplicação, o Colun respondeu com as táticas de apropriação e resistência dos diretores e coordenadores que buscaram adquirir recursos para o alento e a sobrevivência do Colégio (Certeau, 2012). Exemplo disso é a criação dos cursos profissionalizantes na modalidade subsequente ao ensino médio nas seguintes áreas: Técnico em Administração (2000), Técnico em Meio Ambiente (2002) e Técnico em Enfermagem (2003); alternativa viabilizada para captar verbas públicas e/ou parcerias público-privadas, tendo em vista que as reformas educacionais impostas no plano legislativo, no Brasil, privilegiaram “[...] a velha questão da fragmentação curricular responsável pela heterogeneidade das modalidades de ensino que caracterizam a escolarização secundária [...]” (Castellanos; Oliveira, 2020, p. 66).
Nesse sentido, o Colun associou-se ao Conselho Nacional de Dirigentes das Escolas Técnicas Vinculadas às Universidades Federais (Condetuf). Criado em 1991, esse conselho congrega 23 instituições de ensino de caráter profissionalizante, as quais ofertam educação básica, técnica e tecnológica e integram a esfera da administração pública federal. De natureza colegiada, conta com um fundo financeiro muito superior à pequena e decrescente cifra disponibilizada ao Condicap, do qual o Colun também faz parte. Desse modo, alimentado por essas duas matrizes orçamentárias, o Colun proveu, a duras penas, os meios para atravessar a crise que o atingira desde os primeiros anos da década de 1990. Sua crescente inserção na rede federal de educação profissional tecnológica acelerou o processo de supervalorização do ensino médio em detrimento do ensino fundamental; modificações acentuadas que já vinham sendo operacionalizadas na cultura escolar da dita instituição, que deve ser compreendida à luz do conceito de culturas escolares (Forquin, 1993) únicas ou específicas de cada estabelecimento de ensino e que “[...] tende[m] a adquirir traços idiossincráticos, conferidores de uma identidade organizacional própria” (Torres, 1997, p. 27).
Nesse contexto, começou a ganhar corpo o debate acerca da dualidade que caracteriza a nova fase de sua trajetória singular: Colégio de Aplicação (com ensino fundamental e médio regulares) e Colégio Técnico (com cursos profissionalizantes, todos ofertados na modalidade subsequente ao médio)5. Duplicidade responsável por conflitos internos ocorridos em razão da pouca articulação entre as respectivas modalidades de ensino; duas instituições escolares, aparentemente, cada uma com gestão e corpo profissional próprios, dentro do mesmo estabelecimento público, quando, na verdade, há uma dupla identidade, que se configura em meados da década de 2000.
Nessa mesma década, o Colun se insere na Rede Federal de Educação Profissional Tecnológica, denominada atualmente Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. A partir daí, a escola passa a ter duas identidades: Colégio Técnico e Escola de Aplicação. A ideia da dupla identidade traz à tona antigos fetiches educacionais como o da “qualificação profissional integral”, embora na sua gênese a qualificação já traga consigo a ideia da fragmentação. (Cunha, 2011, p. 92)
A reconfiguração identitária, portanto, já estava em curso à época em que o Colun migrou rumo ao campus. O ano de 2006 torna-se um divisor de águas nessa trajetória, pois é o momento histórico em que ocorre o remanejamento das turmas do ensino médio para o novo endereço. O processo de transferência iniciado ali não foi passivamente aceito pelos moradores que viviam no local, tendo havido resistência de lideranças comunitárias e demais habitantes da Vila Palmeira, que utilizaram vários canais, na imprensa ou fora dela, para demonstrar a insatisfação popular diante dos encaminhamentos que foram dados pela gestão do Colun e pela administração superior da UFMA. O cenário da crise, “[...] construído de forma contraditória e variada, pelos diferentes grupos do social [ou por uma] relação histórica de forças” (Pesavento, 2012, p. 22) latentes desde as décadas anteriores, provocou o impasse temporário em relação ao ensino fundamental, o qual, já restrito em sua oferta entre a 4ª e a 8ª séries, teve sua iminente remoção questionada nos seguintes termos:
Em virtude da intenção da administração do Colégio Universitário [de] remover o espaço físico e educacional destinado às aulas de 4ª a 8ª séries, o qual atende um contingente considerável de crianças e adolescentes moradores do bairro Vila Palmeira e também de bairros adjacentes, nós, abaixo-assinado[s], solicitamos a continuidade do Colégio Universitário, bem como seus serviços educacionais prestados a essa comunidade. Outrossim, o atendimento a essa reivindicação se pauta no que prescrevem os direitos constitucionais sobre educação e também o que reza o estatuto da criança e do adolescente, buscando a viabilidade do acesso dos estudantes a essa escola. (UFMA. Colun, 2008a, p. 1)
Nos últimos anos da década de 2000, com o ensino médio em pleno funcionamento na cidade universitária, os alunos das séries remanescentes do ensino fundamental (4ª, 5ª, 6ª, 7ª e 8ª) tiveram assegurado o direito de concluírem essa etapa da educação básica sem precisarem se locomover ao Bacanga, embora o deslocamento de parte dessas turmas para um anexo escolar localizado no Bairro Bequimão, relativamente próximo à Vila Palmeira, tenha se efetivado. A fragmentação territorial da unidade de ensino causou impactos logísticos, administrativos e pedagógicos; porém, foi a única alternativa viável no sentido de minimizar os prejuízos impostos àqueles estudantes. Solução imediata e parcial do problema desencadeado desde os primeiros movimentos realizados para efetivar-se a saída da periferia e a entrada no campus. Quanto à continuidade do ensino fundamental no entorno adjacente à Vila, a direção do Colun se manifestou oficialmente em resposta ao requerimento supracitado, e uma descrição das condições materiais do edifício que restara à disposição da UFMA naquele complexo arquitetônico foi apresentada.
O prédio onde funciona o ensino fundamental encontra-se em péssimas condições de uso, na sua estrutura física, instalações elétricas, sistema hidráulico, esquadrias de portas e janelas gastas, pisos esburacados, colocando, destarte, em risco de segurança todos aqueles que convivem no dia a dia naquele espaço. Estamos, desde 1980, funcionando naquele prédio, sem receber reforma ou manutenção [...]. Em função das condições precárias de sistema elétrico, os recursos pedagógicos (retroprojetor[es], datashow[s], DVDs etc.), ferramentas pedagógicas importantíssimas para facilitar o processo ensino-aprendizagem, não tem sido possível utilizá-los, o que desmotiva professores e alunos. (UFMA. Colun, 2008b, p. 2).
Com base nessas duas oposições documentadas, entre tantas outras, é possível sentir a tensão não mais latente (mas explícita!) entre grupos e indivíduos envolvidos na tessitura social que constituiu o Colégio Universitário. Campo de forças mobilizado por sujeitos históricos - cada um deles com posicionamentos políticos, discursos, visões de mundo, ideias e valores próprios - pertencentes à universidade, ao colégio e ao bairro; cultura universitária, cultura escolar e cultura local, que, amalgamadas, deram vida ao Colun enquanto campo social engendrado, concebido e preservado pela unidade da forma escolar (Vincent; Lahire; Thin, 2001), tal como se estabeleceu na Vila Palmeira. Realidade histórica transformada a partir dos anos 1990 e 2000, os quais testemunharam a grave crise que viu findar a ação educativa desenvolvida nesse bairro durante mais de duas décadas. O encerramento dessa trajetória foi protagonizado por poucas turmas do ensino fundamental melancolicamente instaladas nas últimas salas ainda em funcionamento dentro da vasta construção concreta e simbólica, porém, atingida pelo descaso governamental que a deixou em situação de crescente abandono. Prédio escolar em acelerado desgaste físico, que, em virtude da sua completa deterioração, acabou interditado pelo corpo de bombeiros. Nos anos seguintes, a obra pública que já fora tão imponente se converteu em ruínas. Desprezo patrimonial denunciado via jornalismo pelo Movimento Popular da Vila Palmeira.
Nos pediram 150 dias para a conclusão da obra, conforme as informações exibidas pela placa de detalhamento dos serviços, que hoje está encoberta pelo matagal. A retirada do Colun da Vila Palmeira foi premeditada. Nos disseram que a escola estava sendo fechada por falta de condições e segurança na estrutura física, mas que depois tudo voltaria ao normal. No entanto, não foi bem assim que as coisas aconteceram. Agora, o prédio está abandonado, deteriorado e serve apenas para abrigo de marginais e usuários de drogas. (Prédio..., 2012, p. 6).
Na visão dos agentes sociais da comunidade, os problemas que culminaram com a transferência para o campus central não se resumiam a questões técnicas relativas à deterioração da estrutura física. Por trás de todas as justificativas apresentadas pela gestão do Colun e pela administração superior da UFMA, os moradores do bairro entenderam que havia uma deliberação tácita de retirar o Colégio daquela população. Por outro lado, percebe-se o tom de nostalgia em relação à instituição. A imagem do prédio que “está abandonado, deteriorado e serve apenas para abrigo de marginais e usuário de drogas” (Prédio..., 2012, p. 6) contrasta com o Colun de outrora, um colégio dinâmico, preenchido por diversas práticas, sujeitos e saberes, enfim, uma cultura escolar em movimento. O sentimento que emana dessas fontes nos permite encontrar “[...] a tradução externa de tais sensibilidades geradas a partir da interioridade [...]” (Pesavento, 2012, p. 34), uma vez que, “[...] mesmo as sensibilidades mais finas, as emoções e os sentimentos [dos indivíduos] devem ser expressos e materializados em alguma forma de registro passível de ser resgatado [...]” (Pesavento, 2012, p. 34).
Resgate que nos permite perceber a importância da política de ensino, pesquisa e extensão ofertada na Vila Palmeira desde 1980, configurando-se como produto cultural, movimentado por práticas e representações que “[...] difundir[am] novas representações e contribuir[am] para a difusão de novas práticas” (Barros, 2003, p. 160). Projeto cujos eixos ou dimensões, em função da escola-laboratório, do campo de estágio, como veículo para a melhoria do ensino e como espaço de formação permanente e de adultos, nortearam sua organização, seu funcionamento e sua relação com a universidade e a comunidade; ponto de partida para o desenvolvimento da sua identidade, construída na interação com “[...] o público [que] se apropria e se relaciona com as estruturas e órgãos de uma mesma instituição, [sendo neste movimento] que as instituições educativas desenvolvem a sua própria identidade histórica” (Magalhães, 2004, p. 68).
Considerações finais
A consolidação do Colégio Universitário teve seu ápice na década de 1980 e possibilitou a uma parte da população pobre da Vila Palmeira, em São Luís, o acesso aos conhecimentos “[...] escolarmente transmitido[s], submetido[s] à lógica escolar da transmissão dos saberes” (Vincent; Lahire; Thin, 2001, p. 28); processo em franca expansão na capital maranhense, porém, sem que existisse, na maioria dos estabelecimentos escolares da cidade, a estrutura adequada em termos de pessoal qualificado e materiais pedagógicos condizentes com a modernização do ensino tão desejada e reclamada. Naqueles anos, a quantidade de alunos matriculados na instituição chegou a ultrapassar os quatro milhares; mais de uma centena de servidores no exercício de suas funções no Colun e quase essa mesma soma de licenciandos da universidade em pleno desenvolvimento do estágio supervisionado curricular obrigatório, que também contribuíram para singularizar a trajetória do educandário. Tal quadro tornou inegável a presença da UFMA na periferia urbana ludovicense; entretanto, esse momento histórico foi seguido pela crise vivenciada na década de 1990 - período em que o Colun se viu prejudicado por uma série de medidas internas e externas que foram minando sua capacidade de ofertar novas matrículas, de absorver estagiários e de garantir a manutenção da estrutura arquitetônica.
Partindo de uma conjuntura mais ampla de desfavorecimento e mesmo sucateamento das universidades federais brasileiras, a crise que atingiu o Colun foi enfrentada pelos vários segmentos que compunham a comunidade escolar: gestores, professores e técnicos, assim como discentes e seus respectivos pais, para além das lideranças comunitárias; sujeitos e grupos sociais que, cada um a seu modo, participaram do jogo de forças que se foi desenhando à medida que diminuía o ritmo frenético de funcionamento do Colégio. Esvaziamento aos poucos daquele enorme espaço escolar onde habitou uma cultura diferenciada, de caráter democrático. Dos embates travados em função da permanência na Vila Palmeira ou da transferência à cidade universitária, esta última possibilidade veio a realizar-se a partir de 2006, quando se concretiza o remanejamento de todas as turmas do ensino médio para o novo prédio do Colun, no campus do Bacanga.
Paralelamente a essa mudança de endereço, outras transformações de ordem organizacional e curricular deram um novo perfil identitário ao Colun, que, ainda na Vila Palmeira, começou a oferecer cursos técnicos na modalidade subsequente ao médio - alguns deles adaptados ao ensino médio integrado desde 2016; inserção justificada no rol das escolas técnicas vinculadas às universidades federais do País, sem deixar de funcionar como Colégio de Aplicação. Dupla natureza que ficou implícita no texto do seu Regimento Interno em 2010 (UFMA. Colun, 2010) e explícita na sua última reformulação regimental, em 2018 (UFMA. Colun, 2018), palco de uma série de debates e até conflitos internos no Colun, a respeito de seu papel no cenário educacional e local.
Referências
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1
Pseudônimo de uma entrevistada que solicitou anonimato.
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2
Com essa expressão, referimo-nos a uma realidade plenamente recuperável em sua exatidão; mas, ao historiador, não é possível operar esse resgate, restando-nos o exame das representações sobre o passado (Pesavento, 2012).
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3
Trata-se de um conhecimento o mais próximo possível a respeito daquilo que não mais se vê nem se vive, mas que se apresenta a nós sob a mediação das imagens e dos discursos que chegam até nós pelas fontes materializadas em diversos suportes: escritos, iconográficos ou sonoros (Pesavento, 2012).
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4
Pseudônimo de outro entrevistado que também optou pelo anonimato.
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5
Desde 2016, Técnico em Administração e Técnico em Meio Ambiente são ofertados apenas na modalidade ensino médio integrado, o que contribui para amenizar a desarticulação entre o ensino regular e a educação profissional.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
13 Out 2023 -
Aceito
01 Jul 2024