Open-access Norte, atalho e armadilha: Notas sobre a remição de pena por trabalho e estudo em Salvador e no Rio de Janeiro

North, shortcut, and trap: Notes on good time credits of penalty for work and study in Salvador and Rio de Janeiro

Resumos

Trata-se de pesquisa qualitativa realizada com processos judiciais de execução penal que analisa como os atores judiciais e penitenciários articulam discursos sobre trabalho e educação nas prisões brasileiras. A pesquisa tem por objetivo perceber as dinâmicas suscitadas pela remição da pena através dessas atividades. Considerando que os pedidos de remição ocupam um lugar privilegiado para análise das dinâmicas de governo e gestão do fluxo prisional, identificou-se ambivalências entre a centralidade do ideal ressocializador, como organizador das interações entre os atores, e o deslocamento de trabalho e educação, como operadores burocráticos do fluxo da execução.

Palavras-chave: prisão; execução penal; remição; ressocialização; fluxo


This is qualitative research carried out with judicial processes of criminal execution which analyzes how judicial and penitentiary actors articulate the discourses on work and education in contemporary Brazilian prisons. This research aims to perceive the dynamics raised by good time credits from these activities. Considering that these credit requests represent a privileged place for analyzing the dynamics of government and bureaucratic management of the prison flow, important ambivalences were identified between the centrality of the rehabilitative ideal, as an organizer of the interactions between the actors, and the displacement of work and education as bureaucratic operators of the criminal execution flow.

Keywords: prison; sentence serving; good time credits; rehabilitative ideal; flow


Este artigo tematiza o instituto da remição1 na execução penal enquanto instrumento legal em disputa, situado entre narrativas de ressocialização, dinâmicas disciplinares e punitivas e lutas pela capitalização do tempo social na prisão (CHIES, 2008). Seguimos as pistas dessas ambivalências através da exploração de processos judiciais de execução penal, compreendidos como um fluxo documental pelo qual se exerce o poder de punir de uma forma particular, configurando uma espécie de “governo à distância”, que se viabiliza por tecnologias de escrita e que articula instituições do sistema de justiça e da administração penitenciária, mas também presos, egressos e familiares, além de atores diversos da sociedade civil (GODOI, 2017, p. 101).

Construído a partir do diálogo entre pesquisas conduzidas anteriormente pelos autores Matos (2016), Godoi (2017) e Fernandes (2022), articuladas com outras chaves analíticas costuradas coletivamente, este artigo busca lançar novas pistas sobre a complexa imbricação entre diferentes tecnologias de governo nas prisões, as mediações operadas pelo judiciário e o lugar da remição da pena neste cenário.

A imbricação entre punição e trabalho constitui um dos eixos centrais do discurso penal moderno, e não por acaso o trabalho prisional é um tema fundamental no debate público e especializado acerca das prisões.2 No sistema prisional brasileiro, estruturado a partir das complexas demandas por ordem da elite branca no período do escravismo tardio,3 o trabalho aparece desde os primeiros desenvolvimentos como dispositivo central de legitimação política e jurídica das prisões, cumprindo importante papel nos desígnios de modernização das práticas de controle social punitivo do país (SALLA, 1999; SANT’ANNA, 2009).

Ainda que a relação discursiva entre trabalho e perdão acompanhe a contraditória história da prisão no Brasil, a ideia de que dias de trabalho poderiam compensar dias de pena só ganha contornos normativos com outro impulso modernizante: a reforma penal de 1984. Além de substituir a parte geral do Código Penal, aproximando-o das tendências jurídicas de países europeus, como Itália e Alemanha, o movimento de reforma produziu a Lei de Execuções Penais, que nacionalizou o regramento prisional do país, jurisdicionalizou a execução das penas e introduziu novos institutos jurídicos, a exemplo da remição.

A previsão normativa original previa a existência da remição para pessoas presas nos regimes aberto e semiaberto que exercessem atividades de trabalho. Com o passar do tempo e a partir de pressões da sociedade civil organizada (TORRES, 2019), essas previsões foram sendo expandidas e reconfiguradas. Em 2011, por exemplo, houve a mudança legislativa que sistematizou o direito à remição pelo estudo e, atualmente, há muitas discussões em torno de questões como o acréscimo de dias por aprovação em exames educacionais (SOARES, 2019), a remição por leitura (OLIVEIRA; SILVA; MELLO, 2018; PROENÇA, 2015) e outras atividades culturais.

A remição, nesse contexto, pode ser vista como parte de um programa normativo de ressocialização, sustentado pelo tripé trabalho-educação-família, e que tem sido um fator importante de justificação do sistema prisional brasileiro e de reprodução da perspectiva que mira como horizonte possível sua “reforma”.4 Navegando entre as ambivalências da prisão, que neutraliza e incapacita, ao mesmo tempo que é atravessada e justificada por programas ressocializadores, buscamos compreender como a remição se apresenta empiricamente de maneira complexa.

Em um trabalho pioneiro e de referência sobre o tema, Chies (2008) destacou como a remição é um dispositivo capaz de intervir na temporalidade da pena de prisão, podendo representar um mecanismo de aceleração do tempo no interior do cárcere, influenciando na luta das pessoas presas para ampliar os seus espaços de liberdade e diminuir a quantidade de tempo passado atrás das grades. Por outro lado, desde o início de sua aplicação, entraves disciplinares operam acoplados a este instrumento de aceleração do tempo. A própria Lei de Execução Penal prevê, por exemplo, a possibilidade de o sentenciado perder dias remidos em razão de uma punição por falta grave no decorrer do cumprimento de pena (MACHADO; PINTO, 2019). Assim, nota-se que a própria estrutura legal revela algo da ambivalência desse instrumento, situado entre o viés de uma injunção ressocializadora e o de um recurso de intensificação da punição; entre a ampliação das possibilidades de saída da prisão e a multiplicação dos meios de reforço da disciplina.

O encarceramento em massa (BORGES, 2018) é entendido aqui como fator decisivo para a transformação dos componentes que estruturam a prisão, sendo essencial para compreender o lugar atual ocupado pela remição nas dinâmicas da execução penal, especialmente sua transformação em um fator entre outros da mecânica de gestão do fluxo populacional que passa pelos espaços de reclusão. O processo de massificação do encarceramento, portanto, delineia o horizonte das análises aqui dispostas. Entretanto, essa investigação parte da opção teórica e metodológica de suspender a hipótese do declínio do ideal ressocializador comumente a ele associado (ALLEN, 1978; GARLAND, 2005). Assim, afasta-se aquela imagem disseminada de uma prisão-depósito, enquanto dispositivo meramente incapacitante (GODOI, 2017, pp. 29-30), para se poder vislumbrar os papéis que o trabalho e o estudo vêm desempenhar efetivamente na gestão atual das penas e das prisões.

A análise empírica da operacionalização da remição da pena no âmbito da execução penal, nesse sentido, possibilita explorar como os atores judiciais e penitenciários articulam os discursos sobre trabalho e educação nas prisões brasileiras contemporâneas, bem como sobre seus efeitos, uma vez que essas atividades estão situadas nas fronteiras tensas entre a busca por melhorias imediatas para a população prisional e os projetos institucionais de perpetuação e expansão do cárcere.

Em meio à expansão seletiva da malha carcerária nas últimas décadas, no Brasil, discursos de extermínio, incapacitação, ressocialização e emancipação têm ocupado a arena de disputas sobre a questão criminal (TEIXEIRA, 2013). A consolidação e ampliação do instituto da remição na legislação coexistem com movimentos diversos e pouco coordenados de avanços e recuos no entusiasmo e na efetivação das atividades de trabalho e educação no cárcere, bem como reiteradas investidas legislativas que visam restringir as oportunidades de progressão de pena e saída antecipada da prisão.

Partindo desse cenário contraditório, o presente estudo se funda em uma estratégia metodológica que pode ser qualificada como exploratória (REITER, 2017), de pesquisa documental e qualitativa (CELLARD, 2008) em processos de execução penal que busca captar: 1) as interações entre as autoridades prisionais e os agentes do sistema de justiça criminal; 2) os discursos dos diversos atores jurídicos e penitenciários sobre o trabalho e a educação na prisão, buscando observar os filtros e as representações que atravessam e constituem suas manifestações (OLIVEIRA; SILVA, 2005); e 3) os efeitos desses discursos no desdobrar das penas - ou seja, as reconfigurações que a remição imprimiria (ou não) nas dimensões qualitativas e quantitativas das penas efetivamente cumpridas.

O processo de execução explicita contradições decisivas para a compreensão das dinâmicas prisionais e dos sentidos políticos da prática do sistema de justiça criminal. O recente desenvolvimento de pesquisas sociológicas e sociojurídicas que deslocam o olhar para esses processos tem apontado para os modelos pelos quais os atos burocráticos e as decisões judiciais determinam a experiência prisional, ainda que o mundo jurídico reivindique historicamente certo alheamento à violência nas prisões, em um evidente esforço de desresponsabilização (GODOI, 2017, 2021; GRUPO CLANDESTINO, 2023; MATOS; NOVAES, 2018).

O acervo documental e empírico que fundamenta este trabalho é composto por quatro processos judiciais, gestados nos circuitos da execução penal do Rio de Janeiro e de Salvador,5 e que foram acessados por caminhos distintos. Os processos referentes ao estado do Rio de Janeiro foram coletados no âmbito do Projeto “Os Sentidos do Cárcere: incapacitação e ressocialização na realidade prisional brasileira contemporânea”, desenvolvido no Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU), sob a coordenação de Michel Misse. Os processos originários do estado da Bahia foram coletados através do Sistema Eletrônico de Execução Unificado (SEEU), a partir de uma lista de alunos de 2018, obtida junto ao Colégio Professor George Fragoso Modesto, localizado no Complexo Penitenciário da Mata Escura, em Salvador. A partir desses bancos de dados, fizemos uma seleção de processos com registro simultâneo de aplicação da remição por estudo e trabalho.

O trabalho se organiza em três seções: na primeira, apresentamos uma explicação mais detalhada da metodologia e formação da amostra. Na segunda e na terceira seções, analisamos, a partir do material empírico, as permanências do ideal ressocializador e os descentramentos pelos quais passaram o trabalho e a educação em relação à pena privativa de liberdade.

Questões de método

O processo de execução penal pode ser compreendido como uma forma particular de arquivo, operado e construído a partir de documentos que geram e são gerados por registros administrativos, pedidos da defesa, processos disciplinares, decisões, laudos e pareceres. Os autos dos processos, em geral, não se apresentam como registros de eventos que ocorrem “em outro lugar”, mas são os próprios atos do regime de processamento que organiza o fluir da população carcerária pelos espaços de reclusão (GODOI, 2021). Nesse sentido, cada peça do arquivo é, ela própria, um dispositivo de intervenção na temporalidade da pena de prisão de tal modo que o “fluxo dos papéis” condiciona o “fluxo dos corpos” (GODOI, 2017, p. 102).6

Na execução, o que está em jogo é a gestão desses fluxos, onde os atores elaboram e operam as categorias jurídicas, administrativas, psicológicas e médicas que interferem no desenrolar do cumprimento da pena. O tempo e o espaço do cumprimento da pena constituem, portanto, os objetos centrais de um processo de execução.

Os processos de execução são compreendidos aqui enquanto documentos que carregam possibilidades diversas de “produzir sujeitos, afetos, conflitos e modos de sociabilidade institucional” (FERREIRA; NADAI, 2015, p. 8). Assim, articula-se uma compreensão dessa forma de arquivo para além da mera função de repositório de informações, destacando seu caráter dinâmico e seu papel ativo na construção de processos institucionais de controle. Os documentos, pensados enquanto peças etnográficas, são encarados como “construtores da realidade”, que produzem a situação da qual fazem parte e sedimentam informações e acontecimentos específicos (VIANNA, 2014, p. 47).

A leitura desses arquivos exige atenção aos silêncios e à forma com que os documentos são elaborados. Os papéis, muitas vezes, excluem ou limitam o registro da circulação daqueles que não são parte do processo, como os familiares que mobilizam o aparato de justiça e abrem possibilidades de acesso a direitos. No entanto, no acumular de mandados, certidões, fichas disciplinares, formulários, planilhas e ofícios, o processo também permite observar atos “aparentemente pouco significativos” (SILVA, 2017, p. 279), sob a forma de meros atos burocráticos, mas que guardam detalhes importantes em sua estrutura aparentemente neutra, engessada e repetitiva.

Como já mencionado, partindo de uma perspectiva exploratória, foram selecionados quatro processos de execução penal, originados de duas amostras diferentes. O critério comum utilizado para seleção dos processos foi o registro de atividades de educação e trabalho ao longo do cumprimento da pena. Com este critério, buscou-se ampliar as possibilidades de acesso à maneira como a remição pode ser referida e operacionalizada nos discursos dos atores institucionais, bem como aos seus possíveis efeitos no fluxo de cumprimento da pena. A primeira amostra foi obtida no banco de dados de processos da execução penal do estado do Rio de Janeiro, produzido no âmbito do Projeto “Os Sentidos do Cárcere” e que contava com 230.492 processos de execução penal “obtidos a partir de uma raspagem [webscrapping] do sistema PROJUDI, da Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro (VEP-RJ)” (MELLO NETO, 2021).

A partir desse universo amplo, foi feita uma filtragem dos autos em que havia algum registro de remição da pena, o que resultou em uma amostra de mais de 4.800 processos nessa condição. A partir daí, foram selecionados apenas os processos com numeração a partir do ano de 2016, mesmo ano dos processos coletados na amostra do estado da Bahia. Esse marco atendia ao critério temporal de serem posteriores a 2011, quando passou a ser legalmente prevista a remição por estudo. A partir dessa segunda filtragem, os processos foram abertos, para buscar aqueles em que a remição tenha ocorrido em decorrência de atividades de educação e de trabalho. Os dois primeiros processos em que se verificou essa dupla ocorrência foram selecionados para análise.

A segunda amostra consiste em processos de execução originários do estado da Bahia, a partir de uma lista de alunos do ano de 2018 do Colégio Professor George Fragoso Modesto, localizado no Complexo Penitenciário da Mata Escura, em Salvador. Essa lista, obtida em uma pesquisa anterior (FERNANDES, 2022), contava com nomes de alunos que exerciam atividades de educação escolar e trabalho na penitenciária. Os processos foram coletados no Sistema Eletrônico de Execução Unificado (SEEU) e organizados em uma planilha. Eles também foram abertos um a um, seguindo a ordem alfabética dos alunos. Os dois primeiros processos que apresentavam documentação de atividades de educação e trabalho foram selecionados e analisados.

Desse modo, a seleção dos processos se deu por aplicação de filtros nessas duas amostras mais amplas: recorte temporal, considerando os processos a partir do ano de 2011, e a existência de registro de atividades de educação e trabalho. Os processos analisados totalizam mais de 1.300 páginas em arquivo digital e dizem respeito a quatro homens7 presos e condenados que atravessaram ao longo do tempo diversas unidades prisionais em seus respectivos estados.8 Além disso, documentam sujeitos envolvidos em diversas atividades que são alcançadas pela remição: educação escolar, curso profissionalizante em fundações, trabalho interno na manutenção de unidade prisional, trabalho em galpão de empresa localizada dentro do complexo prisional, trabalho externo em pequenos estabelecimentos privados e trabalho externo em órgãos públicos conveniados com a administração prisional.

A seleção partiu da premissa de que esses processos não são representativos da execução penal no Brasil, pois tratam de homens presos que tiveram acesso a atividades de trabalho e educação no cumprimento da pena.9 Metodologicamente, podemos fazer um paralelo com a ideia de “excepcional normal”, desenvolvida no campo da micro-história. Para Ginzburg (1989, pp. 176-177), diante das distorções e silenciamentos frequentes nos textos elaborados pelas classes dominantes, um documento excepcional, “estatisticamente não frequente”, pode ser “muito mais revelador do que mil documentos estereotipados”. Portanto, “casos extremos”, nesse sentido, também têm um potencial revelador de seu contexto mais amplo (LEVI, 2006, p. 176).

Essas pistas desenvolvidas no campo da história são importantes para a pesquisa sociológica na execução penal, nas quais os processos são marcados pela ausência de encontros presenciais entre os atores (GODOI, 2021), fazendo com que a produção dos documentos pareça extremamente padronizada, sucinta e repetitiva. Nesse sentido, a escolha de processos que apresentassem necessariamente envolvimento do sujeito com dinâmicas de trabalho e educação amplia o potencial de manifestações diversas dos atores institucionais, além de aprofundar as possíveis compreensões sobre o papel da remição no fluxo de cumprimento da pena. Ademais, entende-se que as dinâmicas características da remição de pena, embora não alcancem a maioria da população carcerária, compõem, de forma geral, o espaço de experiência e o horizonte de expectativas dos sentenciados. Nas próximas seções, essa dimensão heurística da remição de pena deverá restar evidente.

Um norte

A leitura dos processos, especialmente interessada em captar o lugar do trabalho e da educação no processamento da pena, permitiu a constatação de que o ideal ressocializador ainda funciona, em certa medida, como um norte, isto é, como um organizador do fluxo dos processos e dos diálogos entre os atores institucionais que regem a execução da pena no Brasil. Essa dimensão pode ser percebida na maneira como os sujeitos elaboram e decidem sobre os direitos das pessoas privadas de liberdade, recorrendo fartamente a discursos de recuperação e reintegração social, sustentados na tríade trabalho-educação-família.

Uma característica que chama atenção nesses processos “excepcionais” é que a remição ocupa boa parte das páginas do fluxo documental, aparecendo em muitas das manifestações dos atores institucionais. Ofícios, listas de presença, laudos, inspeções, pedidos, manifestações e decisões operacionalizam as chances de trabalho e estudo durante o cumprimento da pena e, ao mesmo tempo, suas possibilidades de capitalização para ampliar espaços de liberdade e diminuir o tempo de reclusão.

É possível dizer também que esse volume de documentos da remição pode ampliar a sensação de caos documental criada pelo acúmulo de “peças” e “movimentações” nos processos de execução, agravada por inserção de planilhas de frequência fora de ordem cronológica e manifestações que não especificam a quantidade de dias a serem remidos em cada período.10

Em certo sentido, a remição gera uma demanda de intervenção constante dos atores no processo. As manifestações dos atores jurídicos sobre os pedidos de autorização para atividades de trabalho e educação e reconhecimento da remição são fortemente influenciadas pela ideologia da ressocialização. No processo RJ 2, em uma decisão que discute um pedido da defesa de saída extramuros para a realização de curso de “informática, ambiente Windows”, o juiz afirma que:

Ademais, deve ser considerado o Sistema Progressivo da Pena, que preceitua a reintegração gradual do apenado na sociedade, inicialmente mediante as saídas extramuros inerentes ao regime semiaberto, posteriormente por meio das saídas quotidianas inerentes ao regime aberto e, finalmente, mediante a concessão do livramento condicional até que o apenado alcance a liberdade total com o cumprimento integral da reprimenda. Por fim, não há qualquer óbice concreto à concessão da saída temporária para frequência a curso, pois se trata de atividade que em muito contribuirá para o processo de ressocialização do penitente (RJ 2, p. 78).

No processo BA 2, por sua vez, o Ministério Público, ao concordar com um pedido de remição feito pela defesa, reconhece a remição por atividade laboral estreitamente ligada às tarefas de humanização das penas e ressocialização do sujeito, nos seguintes termos:

Inegavelmente, o legislador, através do instituto da remição, tenta harmonizar o cumprimento da pena ao caráter humanizatório e ressocializador da execução penal. Às informações constantes dos documentos trazidos tornam-se evidente o cumprimento dos requisitos legais para o benefício (BA 2, p. 105).

Mas a vinculação sugerida acima extrapola esses limites, pois é possível observar que trabalho e educação, ou mais precisamente os discursos ressocializadores construídos a partir dessas categorias sociais, servem como mediadores de outros direitos da execução penal. Nesse sentido, trabalho e educação operam como reguladores das lutas pela ampliação dos espaços de liberdade, na medida em que são elementos importantes que servem de suporte aos pedidos, pareceres e decisões sobre progressão de regime, livramento condicional e saídas temporárias.

No processo RJ 2, essa dinâmica aparece, por exemplo, na discussão sobre o direito à Visita Periódica ao Lar (VPL). O juízo da execução penal determinou que a administração prisional do Instituto Penal Cândido Mendes produzisse um “Relatório Social” para subsidiar a sua decisão em relação a esse pedido da defesa. A Administração prisional, através da Comissão Técnica de Classificação, apresentou um “Exame Social” assinado por uma assistente social, que, em uma “Síntese Avaliativa” escrita à mão, mobiliza fortemente aspectos ligados ao trabalho e à educação, antes e ao longo do cumprimento da pena, para sustentar seu parecer favorável ao direito à VPL. Esse documento destaca que o “apenado iniciou a vida laborativa aos 13 anos”, “atualmente está fazendo curso de computação na Fundação Santa Cabrini”11 e “demonstra capacidade de reestruturar a sua vida familiar e financeira”, “estando consciente dos seus erros e amadurecido na prisão” (RJ 2, p. 90).

Após a juntada desse “Relatório Social” o juiz concede o direito a VPL, reforçando “o caráter ressocializador do instituto” (RJ 2, p. 102) e mobilizando outro elemento central do argumento da assistência social: a demonstração de vínculo familiar, já que a pessoa que será visitada fora do cárcere é o pai do apenado, que o visita no sistema prisional regularmente desde o início do cumprimento de pena.12

No processo BA 1, a vinculação discursiva entre trabalho, educação, ressocialização e acesso a direitos da execução penal aparece logo na primeira manifestação dos atores jurídicos no processo, quando discutem o pedido de progressão de regime apresentado pelo advogado do preso. A defesa fundamenta o pedido de progressão de regime afirmando que:

o reeducando sempre teve conduta irrepreensível dentro do sistema penitenciário, trabalhando e estudando para pagar a sua dívida com a sociedade em busca da sua ressocialização (BA 1, p. 37).

Em breves linhas, o advogado vincula a pena, o trabalho e a educação no sistema prisional com o pagamento de uma dívida com a sociedade e, ao mesmo tempo, como caminho para a ressocialização, explicitando, mesmo sem querer, como ideias de retribuição e ressocialização muitas vezes caminham juntos no mosaico de práticas discursivas da execução penal. O juiz autoriza a progressão de regime, destacando que deve:

o estabelecimento de destino providenciar o devido acompanhamento psicossocial, como recomendado no Relatório de fls. 63-65 e a inserção do(a) sentenciado(a) em atividade de cunho laboral (BA 1, p. 70).

A decisão judicial, contudo, é antecedida da realização de uma “avaliação psicológica”, procedimento exigido pelo Ministério Público para que pudesse opinar sobre a progressão. Em sua manifestação, o MP reconhece que o “penitente”, para usar a expressão mobilizada na peça jurídica, satisfaz o requisito objetivo de cumprimento no regime anterior (lapso temporal), e que atesta “bom comportamento carcerário” (BA 1, p. 55), mas que ainda assim é:

imperiosa a submissão do Sentenciado a avaliação psicológica, de modo a assegurar a correta e adequada individualização da execução penal no caso sub examine e a adaptação do Executado ao ingresso no regime semiaberto, no qual poderá gozar do benefício de saídas temporárias (BA 1, p. 55).

A intervenção dos profissionais de saúde mental e suas interações com os atores jurídicos constituem uma dimensão importante dessa constelação de compreensões sobre o lugar do trabalho e da educação no cumprimento da pena e no acesso ou interdição a direitos da execução penal. Sob uma variedade de designações - ora chamado de exame criminológico, ora de laudo de avaliação psicológica - a intervenção dos saberes “psi”13 compõe o rito da execução penal, sendo, muitas vezes, peça central nas discussões sobre o acesso a direitos, como progressão de regime, trabalho extramuros e livramento condicional.

Nesses exames, promotores e magistrados parecem buscar uma “garantia científica” a respeito da aptidão do preso para ampliar os seus espaços de liberdade. Reishoffer e Bicalho (2017) apresentam pistas importantes sobre as tensões, concessões e acomodações que marcam a relação entre os saberes e poderes jurídico e “psi” na execução das penas. Em um sentido crítico, a insistência do campo jurídico hegemônico na legitimidade dos exames criminológicos, contrariando a posição do Conselho Federal de Psicologia,14 por exemplo, denota uma das táticas de transferência de responsabilidade do mundo jurídico em relação à punição.15

Em meio ao conjunto de críticas sobre a eficácia dos exames, ou sobre as condições de sua elaboração, Reishoffer e Bicalho (2017) aprofundam a discussão, observando como, desde o ponto de vista epistemológico do positivismo,16 os exames operam como um dispositivo disciplinar que funciona, em um sentido geral, como mecanismo de reprodução da legitimidade da pena, da prisão e das hierarquias sociais de classe, raça e gênero que a sustentam.

Não é por acaso, portanto, que os atores jurídicos estejam envolvidos de maneira intensa com a defesa da necessidade desses exames e na sua operacionalização. No processo BA 1, o parecer do Ministério Público sobre a necessidade de avaliação psicológica para a análise jurídica da progressão de regime é uma das peças mais elaboradas de todo o processo. Contrariando a lógica simplificada da maioria dos documentos, esse parecer mobiliza a jurisprudência de tribunais superiores sobre o exame criminológico e cita autores do campo do direito para sustentar seu argumento (BA 1, pp. 54-56), e o mesmo acontece no processo BA 2 (pp. 128-130).

Os promotores, nesses dois casos, parecem ecoar a disputa política em torno da legitimidade do exame. Chama atenção, nesse contexto, que são eles próprios que elaboram as perguntas que devem ser feitas ao acusado e avaliadas pelos psicólogos - o que explicita a concepção elástica de “cientificidade” prevalescente entre esses atores. Assim, a reprodução do discurso legitimador da pena através da ressocialização implica, em última instância, a introdução e manutenção de mais um obstáculo institucional à ampliação dos espaços de liberdade das pessoas presas.

A observação dessas interações entre operadores do direito e “técnicos” da prisão interessa muito, considerando as questões aqui em tela. Nos processos BA 1 e BA 2, mesmo que através de promotores diferentes, o Ministério Público apresenta exatamente os mesmos quesitos dirigidos aos peritos. Este é um dos quesitos apresentados nesses processos:

Quais os recursos (cognitivos e sociais) que o(a) Sentenciado(a) apresenta? Aponte as potencialidades identificadas no momento da realização da avaliação, tais como presença de boa capacidade relacional, bom apoio social, elaboração de projetos para o futuro, construção de estratégias de enfrentamento, presença de apoio sociofamiliar, engajamento em projetos envolvendo atividade laboral, boa capacidade de planejamento e características de liderança etc. (BA 1, p. 56; BA 2, p. 130).

No laudo psicológico do processo BA 1, assinado por apenas uma profissional de psicologia e favorável à progressão de regime, a realização de atividades de trabalho e cursos profissionalizantes, assim como o envolvimento religioso e os vínculos familiares, aparecem com centralidade, tanto no “Histórico do delito e vida carcerária” como na resposta ao quesito transcrito acima:

Nesta Unidade Prisional desenvolve atividades na Empresa X [nome da empresa], Fábrica de portas e janelas de alumínio. Fez curso de mecânica de auto profissionalizante promovido pelo SENAI e é comunicador evangélico, nos cultos da Igreja Batista. […] O sentenciado revela possuir vínculos com irmãos e com a atual companheira. Revela boa receptividade da terapêutica penal, acrescentando novas áreas de experiência laborativa. Tem promessas de realizar a “produção de imagens na Igreja Batista X [nome da igreja]” e torná-la atividade produtiva e de sobrevivência imediata. Deseja “fazer Faculdade de Comunicação” (BA 1, p. 63).

O laudo destaca também que o “sentenciado”, apesar de sua “impulsividade”, “canaliza a energia vital para pensamentos disciplinadores” (BA 1, p. 63). Esse procedimento foi repetido na ocasião de outro pedido de progressão de regime, com a apresentação dos mesmos quesitos. O novo laudo segue na mesma direção:

A sua capacidade de autocrítica se revelou presente, na medida em que referiu entendimento do caráter ilícito do seu ato; e, quando referiu arrependimento e consciência da gravidade de seu crime. Evidenciou a sua capacidade de aprender com a experiência, a partir da punição […]. Em relação aos processos sociais, a forma como se relaciona com os outros, apresentou indicativos da sua capacidade de estabelecer relações positivas de cooperação e consenso, são ratificados pelo seu histórico de desempenho laboral e conduta carcerária (BA 1, p. 151-152).

A estrutura desses documentos, assim como a relação que os atores jurídicos estabelecem com eles, reforçam imbricações entre punição e a tríade trabalho-educação-família. Além do papel essencial na luta por demandas concretas dos presos, a família é evocada como complexo de relações a serem preservadas ou reconstituídas, e como espaço para onde o sujeito deve retornar quando em liberdade.

Na mesma direção, o engajamento em atividades religiosas também surge como elemento que busca ampliar as noções de família e trabalho perante os atores institucionais e administrativos. No processo BA 2, a afirmação do lugar do apenado nas práticas religiosas parece querer reforçar a imagem de preso apto ao trabalho honesto e preservação da família. Nesse caso, os quesitos apresentados são praticamente os mesmos, assim como o sentido geral do laudo, ainda que este guarde algumas especificidades em relação ao do processo BA 1.

Esse laudo apresenta expressões técnicas dos saberes “psi”, aparentemente contraditórias e pouco explicativas, a exemplo de “aponta um sentimento de rigidez e inadequação, com tendência a se afastar do ambiente” (BA 2, p. 144), articuladas com afirmações mais incisivas e compreensíveis, como “demonstrou arrependimento pelo ocorrido, relata que a prisão é justa” (BA 2, p. 144). No documento estão presentes os temas do arrependimento, e a centralidade do trabalho e do suporte de familiares no processo de reinserção social:

Ele demonstrou arrependimento pelo ocorrido, relata que a prisão é justa […] quanto à vida laboral declara que tem atividade laboral específica e conta com suporte familiar. Há indicadores de planejamentos ponderados, baseados em aspectos concretos da realidade, demonstrando grande esforço para engajar-se em atividades socialmente aceitas (BA 2, pp. 145-146).

É interessante notar que esse relatório destaca de forma positiva os “planejamentos ponderados” de futuro que são expressos pelo preso, relacionados com a expectativa de como “poderia ser a vida extramuros” (BA 2, p. 145). Essa ideia surge justamente na resposta ao quesito sobre o “engajamento laboral” do apenado, que realiza trabalhos de serviços gerais na manutenção do presídio. Essa relação aparentemente neutra evoca, contudo, a reprodução, nos exames, das hierarquias e lugares raciais e de classe das pessoas presas, identificando como positivo, planos que não extrapolam os “aspectos concretos da realidade” (BA 2, p. 145).17

Mas esse laudo traz mais elementos para a análise. Ele é, em certa medida, contraditório entre o diagnóstico geral, algumas questões específicas e a conclusão. O laudo indica que:

Na avaliação técnica, há indícios de presença de sentimento de rigidez e inadequação, uma tendência de se afastar do ambiente. Indica indivíduo mais descontrolado e dependente, debilidade mental ou fraco indício de socialização, medo, insegurança, agressividade sádica, dissimulação (BA 2, p. 144).

Ao mesmo tempo, afirma que “o sentenciado não apresentou sintomas psicopatológicos, ou respostas compatíveis com transtorno mental” (BA 2, p. 145) e que ele “assume a responsabilidade do crime pelo qual está privado de liberdade” (BA 2, p. 145), além da avaliação positiva articulando trabalho e família, já descrita acima.

Além disso, a profissional responsável pelo laudo, quando responde ao quesito sobre “prognóstico criminoso e possibilidade de reincidência” (BA 2, p. 146), explicita que “Não é possível aferir prognóstico. Segundo o Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica, não há no Brasil testes validados que possibilitem esta predição” (BA 2, p. 147).

A negativa na realização de prognóstico expresso em relação à possibilidade de cometimento de novo crime, em certa medida, frusta os devaneios preditivos do campo jurídico, entrando no jogo de acomodações e resistências que marcam a interação entre os diferentes atores institucionais da execução penal. A maior novidade desse laudo, contudo, é que ele é o único documento nos quatro processos analisados que pondera os prejuízos que a pena produz para a pessoa privada de liberdade. No quesito que questiona se o “sentenciado necessita de algum acompanhamento psicológico quando em liberdade” (BA 2, p. 145), o laudo aponta que:

Devido à situação de confinamento e restrição dos contatos sociais impostos pelo sistema carcerário e os possíveis prejuízos à saúde que essa situação pode gerar, é recomendável que o sentenciado seja assistido pelos dispositivos da rede de atenção em saúde mental, sem prejuízo do seu benefício jurídico (BA 2, p. 145).

O laudo, portanto, ainda que reproduza as características gerais desse tipo de documentação, destoa ao reconhecer a possibilidade de “prejuízos à saúde” causados pelo próprio sistema carcerário. Não é por acaso que o laudo vai gerar certa perplexidade dos atores jurídicos. O Ministério Público, diante das contradições do documento, se manifesta contrariamente à progressão de regime:

No caso, não demonstrou o apenado ter atingido maturidade emocional suficiente, a fim de compreender a gravidade da conduta por que foi condenado. Tampouco utilizar dos meios disponibilizados, a fim de atingir uma esperada conscientização e adequação. (BA 2, p. 168)

A defesa, por sua vez, vai responder ao MP, destacando os aspectos favoráveis ao seu cliente que aparecem no laudo, argumentando que o exame, ao fim e ao cabo, é favorável ao direito de progressão:

Portanto, não pode o representante do Ministério Público por presunção e ilações, querer afastar o direito subjetivo à progressão do requerente, pois o mesmo preenche todos os requisitos objetivos e subjetivos para progressão e a especialista na área de saúde que é a psicóloga proferiu o parecer no relatório, que o requerente está apto a viver em sociedade (BA 2, pp. 171-172).

Diante desse contexto, o juízo resolve pedir esclarecimentos para a psicóloga que realizou o exame.

Considerando os aspectos cognitivos de personalidade e o estudo das características de personalidade descritas no relatório de avaliação psicológica, determino a complementação do aludido relatório, no prazo de 10 dias, devendo a Psicóloga esclarecer se tais aspectos e características impedem a progressão de regime, uma vez que tais questões parecem não convergir com o disposto no tópico conclusão daquele documento (BA 2, p. 185).

Após a celeuma jurídica, portanto, um novo laudo teve que ser produzido, afirmando de forma mais taxativa que a profissional não vê “impeditivo psicológico para a progressão de regime”, mas que recomenda auxílio psicológico para o “apenado no processo de reinserção social e laboral” (BA 2, p. 188).

Nesse cruzamento dos saberes “psi” no fluxo da execução, trabalho e educação cumprem, portanto, um papel central na conformação dos laudos que servirão de base para pareceres, pedidos e decisões. Esse aspecto é central para a análise proposta neste trabalho, pois revela que a gramática da ressocialização organiza e emoldura a arena onde os direitos da execução são pleiteados. É nas pistas da adesão do preso aos pilares da ressocialização que são evocadas as imagens do sujeito que projeta planos compatíveis com sua existência e encontra-se apto a levar a vida em liberdade.

Também é possível perceber que há certa diversidade na forma como as atividades de trabalho e educação são percebidas pelos atores institucionais ao longo dos processos. Neste sentido, as dinâmicas de trabalho e educação e os discursos sobre elas não podem ser compreendidas de maneira monolítica, sob pena de perder a complexidade dessas experiências e das diferenças de procedimento que fazem surgir no processo.

O trabalho realizado em prisões brasileiras é bastante heterogêneo. As atividades podem ser remuneradas e não remuneradas, certificadas ou não, regulares ou esporádicas. A dimensão espacial do trabalho também é bastante variável e de grande importância, uma vez que essa experiência pode representar uma maior possibilidade de circulação no espaço das prisões ou mesmo a saída diária da instituição. O trabalho intramuros pode ser realizado tanto em funções administrativas precarizadas e gratuitas, que sustentam o sistema prisional no Brasil, como em galpões instalados por empresas em parceria com as administrações penitenciárias. Já o trabalho extramuros envolve a saída do cárcere durante o dia para exercer uma atividade que pode ser viabilizada em instituições públicas ou conveniadas e em empresas privadas. Nesses casos, faz-se necessário um procedimento de inspeção, que busca observar a existência do local e a veracidade da proposta.

Essa dinâmica do trabalho extramuros em um empreendimento privado aparece no processo RJ 2, apresentando questões importantes para a nossa análise. A defesa apresentou um pedido de concessão de trabalho extramuros, juntando uma “Declaração de Proposta de Emprego”, assinada pelo proprietário de uma borracharia localizada na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Na declaração, o dono da borracharia oferece ao apenado vaga de emprego para o cargo de auxiliar de serviços gerais. A declaração é finalizada com um toque jurídico:

Cumprindo todos os procedimentos legais inerentes a contratação, para o seu retorno ao convívio a sociedade através do benefício de regime semiaberto. E por ser expressão de verdade firmo o presente e dou fé (RJ 2, p. 108).

O pedido é atravessado por planilhas de frequência em curso profissionalizante que o apenado já fazia, além de documentos que comprovam a realização de trabalhos internos, de limpeza e manutenção da estrutura prisional. Quando se manifesta especificamente sobre esse pedido, o Ministério Público requer a “devida fiscalização pelo SCIF” (RJ 2, p. 121), o que foi determinado pela juíza (RJ 2, p. 122). A SCIF é a Seção de Inspeção e Fiscalizações, órgão da Vara de Execuções Penais com atribuição para a fiscalização da veracidade da declaração de proposta de emprego. O relatório de fiscalização indica que o proprietário da borracharia:

confirmou o T.E.M ofertado, declarando que, se deferido, o apenado exercerá atividade de serviços gerais. Para tanto, receberá salário no valor de R$ 890,00, a princípio sem vínculo empregatício, com experiência de 90 dias, com posterior avaliação sobre a contratação, sem vale-transporte e sem ticket refeição. Com a vistas a cumprir a jornada de trabalho, de 2ª a 6ª feira, das 09h às 18h e aos sábados das 09h às 14h, com uma hora de almoço, fora do local de trabalho, não prestando atividades externas. Quem solicitou a vaga de emprego para o apenado foi o seu genitor, não existindo grau de parentesco entre o empregado e o empregador. O local não possui monitoramento por câmeras de vídeo. A graduação necessária exigida para o desempenho da função é de nível médio (RJ 2, p. 123).

Após esse procedimento de fiscalização, o Ministério Público se manifestou favorável ao trabalho extramuros e o juiz deferiu o pedido:

[…] mediante controle de presença por folha de ponto, sendo autorizada a saída duas horas antes e o retorno duas horas após as atividades. O trabalho extramuros, ora deferido, será fiscalizado pela SCIF, iniciando-se após 15 (quinze) dias contados da efetivação do benefício (RJ 2, p. 128).

O que chama atenção é que depois desse procedimento de concessão, razoavelmente complexo para os padrões da execução penal, a atividade de trabalho na borracharia praticamente desaparece do processo, diluída em planilhas, atestados e, como veremos, dinâmicas disciplinares.

Na sequência do processo, a defesa, quando apresentou um dos muitos pedidos de reconhecimento da remição, juntou uma “Ressalva”, um atestado da direção do presídio comprovando que trabalhador-preso chegou um dia atrasado no trabalho por estar resolvendo questões administrativas na unidade prisional (RJ 2, p. 193).

A preocupação da defesa em justificar um único atraso de 01h30min ganha concretude na sequência do fluxo documental. Encontramos mais a frente um “Termo de Abertura de Processo” (RJ 2, p. 248), que noticia a instauração de um processo disciplinar contra o sentenciado, em razão de um atraso de onze minutos no retorno do trabalho para a unidade prisional. O processo foi instaurado após “Parte disciplinar” apresentada pelo Chefe de Segurança da Unidade, nos seguintes termos:

Participo que o interno […] não retornou de seu benefício de TEM no horário estipulado, vindo a se atrasar por 11 minutos no dia 31/03/2017 (RJ 2, p. 252).

O processo disciplinar para apuração de falta média segue seu fluxo normal, sem nenhuma ponderação sobre o irrisório tempo de atraso noticiado na “parte disciplinar”. No Termo de Declaração, o sentenciado afirmou que o atraso ocorreu em razão de um grande engarrafamento no caminho entre o trabalho e a unidade prisional (RJ 2, p. 260).

A defesa dele no processo disciplinar é conduzida pela Defensoria Pública, já que os advogados particulares que atuam no processo de execução penal não se apresentaram na ocasião da intimação. A peça da defesa é longa para os padrões da execução penal18 (8 páginas) e, sem conseguir esconder a perplexidade com a existência desse procedimento, a defensora pública destaca a ausência de razoabilidade na punição de pequenos atrasos, ainda mais se considerado a situação do transporte público e do trânsito na cidade do Rio de Janeiro:

Assim sendo, não se pode admitir que um Interno sem culpabilidade alguma possa ser punido pela prática de falta disciplinar média (Regulamento, art. 59, XIX), por um ínfimo atraso absolutamente JUSTIFICÁVEL, sob pena de se violar o art. 57 do Regulamento do Sistema Penal do Estado do Rio de Janeiro, segundo o qual: “Não haverá punição disciplinar em razão de dúvida ou suspeita” (RJ 2, p. 266).

A Comissão Técnica de Classificação, órgão administrativo que, no Rio de Janeiro, conduz o processo disciplinar, não fez nenhuma referência à extensa fundamentação da Defensoria Pública:

Esta Comissão reunida, garantindo o direito de defesa através da Defensoria Pública, ouviu e analisou o Processo Disciplinar contra o apenado supra nominado, passando a opinar o seguinte: Por unanimidade, esta Comissão entendeu que o interno em referência cometeu FALTA MÉDIA, ao praticar fato previsto no art. 59 (DESOBEDECER AOS HORÁRIOS REGULAMENTARES). Portanto, esta comissão propõe, salvo melhor juízo, que o referido apenado seja punido da seguinte forma: REPREENSÃO (RJ 2, p. 272).

Esse processo disciplinar, que não foi objeto de controle de legalidade pelo juízo da Vara de Execuções Penais, abre diversas possibilidades de análise sobre as contradições da jurisdicionalização da execução penal no Brasil. Mas o que nos interessa pensar, aqui, é como o trabalho se desloca rapidamente dos discursos preocupados com a ressocialização do apenado como mais um dispositivo disciplinar.

A análise da última Transcrição de Ficha Disciplinar (TFD) juntada ao processo, indica que o sentenciado já havia respondido a outros processos disciplinares por atraso, mas esses documentos sequer foram juntados ao processo. Não há indícios de que as penalidades leves e médias tenham prolongado o desenrolar da sua pena, mas elas denotam a ameaça disciplinar que paira permanentemente sobre as precárias conquistas de direitos dos presos.

Em relação à vinculação das atividades de trabalho com o ideal ressocializador, portanto, é importante destacar que, nos processos de execução, as dinâmicas laborais concretas não suscitam preocupações nos atores judiciais a respeito das condições de trabalho ou do potencial da atividade para a concreta inserção do sujeito do mercado de trabalho.

Se há uma dimensão legalmente estabelecida da precariedade do trabalho do preso - já que a LEP autoriza o pagamento de menos do que um salário-mínimo -, também é possível dizer que há desinteresse dos atores judiciais a respeito da qualidade desse trabalho e de sua relação concreta com os possíveis objetivos ressocializadores, que sustentam as suas narrativas jurídicas ao longo do processo. O mesmo pode ser dito sobre as atividades educativas: a frequência importa mais que o efetivo aprendizado. Nos circuitos da execução penal, no que se refere ao trabalho e ao estudo, a quantidade prevalece sobre a qualidade.

Atalhos e armadilhas

Se, por um lado, identificamos que o ideal ressocializador ainda tem presença forte na organização dos discursos dos atores da execução e na organização do fluxo da pena - conferindo-lhes um norte -, por outro lado, também é possível dizer que concretamente há um significativo descentramento do trabalho e da educação em relação à punição. A partir da análise dos processos, a remição por trabalho ou estudo parece constituir mais um fator, entre tantos outros, a interferir no desenrolar da pena pelos circuitos da execução penal, restando longe de conformar algo como um eixo principal ou uma finalidade maior - e isso não só porque alcança uma parcela menor da população carcerária.

Sob essa ótica, a remição parece compor uma maquinaria mais ampla e diversificada de dispositivos de gestão populacional que operam através do cárcere - e fora dele. Isso significa dizer que, apesar da forte presença de discursos ressocializadores, quando aplicada a remição, ela opera, na melhor das hipóteses, como um mecanismo de aceleração e retardamento do fluir dos corpos pelos espaços de reclusão - sem remeter a qualquer horizonte de reintegração.

Reconhecer essa oscilação de sentido das atividades de trabalho e educação, de um grande norte da empresa punitiva moderna para a conformação de um mecanismo diminuto, quase residual e meramente burocrático de gestão das penas, é importante para aprofundar a compreensão das estratégias atuais de governo da prisão massificada (GODOI, 2017, pp. 33-34). A partir dessa ambivalência, é possível compreender a referida indiferença dos atores judiciais perante as condições de trabalho e educação no cárcere e suas consequências para a vida dos sujeitos presos. Pouco lhes importa se o trabalho e os estudos feitos prenunciam uma efetiva reintegração social; interessa-lhes tão somente equacionar os dias de trabalho e estudo com as penas cumpridas e a cumprir.19

Ganha relevo aqui uma certa disjunção entre trabalho, educação e a pena de prisão. Se em dado momento histórico ser punido foi sinônimo de submissão a formas de trabalho compulsório ou projetos de reforma pela educação (FOUCAULT, 2008; RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004; VASQUEZ, 2008), atualmente são vistos como direitos dos presos, objeto de demanda da população encarcerada e oportunidade de “melhoria” (KRAHN, 2014, p. 40), podendo levar à saída antecipada da prisão. A operacionalização desse dispositivo potencialmente encurtador do período de reclusão, contudo, carrega de forma exemplar as contradições da execução penal jurisdicionalizada.

A remição pode ser vista como elemento que acelera, mas que também “embola” o fluxo, fazendo surgir diversos documentos, atores e pedidos, nem sempre bem coordenados, no processo de execução. Ademais, ela também pode ser ultrapassada ou atravessada por outros expedientes que incidem no desdobrar de uma execução, seja porque encurtam ainda mais a pena - como uma apelação -, seja porque suspendem seus efeitos - como uma sanção por falta grave, por exemplo. Essas são características que nos permite olhar com mais densidade para as disputas atuais em torno da capitalização do tempo na prisão - essa categoria concebida por Chies (2008, 2019) que fornece chaves importantes para pensar a remição.

O início dos processos de execução penal, em geral, é monótono e silencioso, podendo levar meses ou anos para que pedidos comecem a ser feitos e o processo movimentado. Na Tabela 1, constam alguns dos principais marcos temporais dos processos analisados: a data da prisão em flagrante (quando ocorreu), o início da execução penal, o primeiro pedido realizado em sede de execução (que inclui variados direitos, como progressão de regime, por exemplo), o primeiro pedido de autorização para trabalho ou estudo (salvo trabalhos e atividades educacionais intramuros que tenham sido autorizados sem mediação judicial), o primeiro pedido de reconhecimento da remição e a primeira decisão que reconheceu a existência de dias remidos.

Tabela 1
Pedidos iniciais na execução das penas

O primeiro intervalo que nos interessa pensar é o tempo entre a prisão em flagrante, o começo da execução da pena e a realização do primeiro pedido em favor do preso. Esse tempo vivenciado, mas quase imperceptível no processo de execução, é longo, entre outros motivos, em razão dos requisitos temporais que a lei de execução penal estabelece para o acesso a direitos.20 Estando o indivíduo preso desde a imputação do crime (prisão em flagrante) ou preso com o processo já transitado em julgado (como o caso BA 1), a “calmaria documental” é longa nos processos analisados, registrando entre 1 ano, 3 meses e 8 dias (RJ 2) até 3 anos e 17 dias (BA 2) do dia em que o indivíduo foi preso até a realização do primeiro pedido junto à vara de execução penal. A escassa movimentação no âmbito do processo encobre uma realidade tensa de entrada no sistema prisional, vivência em unidades de presos provisórios (sem condenação definitiva) e seguidas transferências.

Outra questão importante é que a remição se apresenta como uma espécie de investimento de médio ou longo prazo na temporalidade da pena. As oportunidades intramuros são distribuídas segundo critérios administrativos, prescindindo de autorização dos juízes e, portanto, só aparecendo no processo como planilhas de comprovação de frequência. Já as dinâmicas extramuros, em geral, exigem autorização judicial e aparecem primeiro na forma de requerimentos, geralmente elaborados pelas Defensorias Públicas, por diretores de unidades prisionais ou, no caso do Rio de Janeiro, pela Fundação Santa Cabrini. No entanto, também há casos em que o diretor da unidade de regime semiaberto apenas informa ao juízo da execução a liberação para exercício de trabalho extramuros em convênio com órgãos públicos (BA 1).

É possível perceber que dos primeiros pedidos de reconhecimento da remição realizados nos processos há uma margem larga de duração até a decisão que a concretiza, entre 4 dias (BA 2) e 6 meses e 11 dias (RJ 2). Esse pequeno deslocamento do pedido à decisão ainda é condicionado e atravessado por outros fatores, como a expedição de parecer pelo Ministério Público, a juntada de documentos comprobatórios anos depois da atividade exercida (RJ 1, RJ 2, BA 1, BA 2) e a apresentação de documentos sem qualquer pedido formal de reconhecimento da remição (RJ 1).21

No caso RJ 1, é possível notar grandes lapsos temporais entre as manifestações dos atores judiciais em determinadas situações. Um dos pedidos é exemplar nesse sentido. A Defensoria requereu a remição por estudo em novembro de 2017, em razão da comprovação das atividades realizadas em março de 2017, mas que só tinham sido apresentadas nos autos em julho desse mesmo ano. O Ministério Público só se manifestou em janeiro de 2018 e a decisão reconhecendo a remição veio aos autos em fevereiro de 2018. Nesse caso, observamos que há um período de quase um ano entre a frequência escolar e o reconhecimento da remição.

Há ainda outra operação fundamental nas disputas pela temporalidade da pena de prisão: a contagem dos dias trabalhados e das horas de estudo e sua conversão em dias remidos. Já foi dito que, após 2011, a remição passou a ser possível por duas vias: um dia de pena para cada três dias de trabalho e um dia de pena a cada 12 horas de estudo. No entanto, apesar da operação legal ser aparentemente simples, sua concretização no fluxo da execução ganha nuances e complexidades importantes, que podem ser notadas a partir dos processos analisados neste trabalho.

É importante destacar que a grande maioria das situações de trabalho e estudo verificadas nos processos foram devidamente processadas e resultaram em decisões judiciais que reconheceram a remição. Nesse sentido, não é exagero afirmar que nos casos analisados a remição, de forma geral, se apresentou como remição efetiva, com potencial de antecipação da saída da prisão.

Além dessa aceleração, as dinâmicas de trabalho e educação em prisões também têm outro sentido bastante direto, que é possibilitar ao preso ficar mais tempo fora dos muros da prisão. Os processos de trabalho e educação extramuros funcionam também como uma abertura, ainda que intermitente e precária. O caso RJ 2 é significativo nesse sentido, pois em dado momento o apenado tinha autorização para trabalho extramuros seis dias na semana e curso extramuros no período noturno três vezes por semana. Desse modo, o sentenciado pôde passar grande parte da semana fora da prisão, ainda que estivesse em regime semiaberto.

Um dos processos analisados é exemplar na demonstração dessa potencialidade da remição enquanto acelerador do fluxo, mas também revela seus atravessamentos complexos, marcados por imprecisões, falhas e estratégias de retardamento dos atores envolvidos. No caso BA 1, a Defensoria do Estado havia pedido o reconhecimento da remição referente a um longo período de trabalho, que implicava em 203 dias de pena remidos. Esse pedido foi devidamente autorizado pela Vara de Execuções Penais em março de 2019. Apenas um mês depois da decisão, um novo pedido foi feito nos autos. Um advogado particular, que já atuava no processo, requereu o reconhecimento de nova remição e a progressão de regime. Esse cenário é reflexo do investimento a médio prazo na remição e característico dos processos da amostra da Bahia, onde não foram juntados atestados mensais de presença no serviço, mas sim planilhas de muitos meses com a indicação de dias trabalhados em cada período.

O novo pedido do advogado se baseava em três atividades diferentes, devidamente certificadas no processo: frequência escolar na penitenciária, frequência a curso profissionalizante no SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) e trabalho na Procuradoria Geral do Estado (PGE). A lógica adotada no pedido foi a seguinte: com o reconhecimento da remição dos 128 dias de pena já terá sido alcançado o prazo para progressão de regime, que fica desde logo requerido. O exercício dessas atividades permitiu ao advogado requerer a progressão de regime quatro meses antes do prazo legal preestabelecido no cálculo de pena.

No entanto, a disputa por direitos é caracterizada pelo que Chies (2008) chamou de luta pela capitalização do tempo, que pode estar marcada por disputas, equívocos e imposição de novas barreiras e estratégias de desaceleração do fluxo. Nesse caso, o Ministério Público ao avaliar o pedido, reconheceu o direito a remição de 93 dias, não analisando nem explicando por que estava desconsiderando o certificado e o período correspondente ao curso profissionalizante. Diante do que parece ter sido um erro, o magistrado, ao dizer que “analisando cuidadosamente os autos”, concedeu a remição nos termos limitados pelo Ministério Público.

Sem ser possível saber qual o motivo, 35 dias de remição foram desconsiderados e sequer foram analisados. Tampouco houve insistência da defesa para que o período fosse levado em conta. Desse modo, 416 horas de curso profissionalizante se dissolveram no fluxo, perdendo sua capacidade de fazer diferença no desenrolar da pena.

Esse é o exemplo mais característico e radical da dinâmica de dias perdidos na contagem da remição, mas essa dinâmica também se manifesta em outros processos de maneira menos escancarada, como nas 48 horas de estudo não requeridos e nos 19 dias de trabalho ignorados no processo RJ 1 ou nos 83 dias de trabalho não requeridos e esquecidos no RJ 2.

Além disso, há formas ainda mais sutis de perda dos dias remidos, como o descarte das sobras. Quando os dias ou horas não são exatamente divisíveis nos critérios de 3 dias ou 12 horas, há “saldos de tempo” que devem ser utilizados em contas posteriores. No entanto, em nenhum dos processos esse saldo é sistematizado nas certidões e registros da pena e raramente é declarado nas decisões.

Essa dimensão foi notada com mais gravidade nos processos do Rio de Janeiro, onde a operação de contagem dos dias se apresenta como uma operação silenciosa realizada pela burocracia do cartório. Os atores processuais não explicitam sequer o somatório de dias de trabalho e horas de estudo, tampouco determinam quantos dias a remir estão sendo objeto de pedidos, pareceres e decisões. A mera menção aos documentos laborais e escolares é a técnica simplificada de individualização adotada nessas manifestações. Ocorre que nem mesmo esses documentos apresentam um total de dias e horas, o que amplia as margens de equívocos.

Nesses processos, não conseguimos identificar exatamente se os dias que não tinham sido objeto de decisão foram efetivamente remidos, pois as contas de cada documento apresentado não conferem com os números dos atestados de pena. Assim, esse caráter secreto da contagem dos dias, por vezes, não permite avaliar corretamente sequer a existência de dias perdidos, além de fazer com que a fase de contagem seja objeto de pouca disputa e discussão entre os atores. O deferimento pelo juiz encerra os debates no processo e a remição só voltará a aparecer nos atestados de pena juntados aos autos, onde estão supostamente registrados de forma detalhada todos os incidentes e movimentações que atravessam o processo.

No processo RJ 2, é possível observar um caso em que a remição sequer é confirmada por decisão judicial. Consta no processo uma certidão de um técnico judiciário, informando o registro no sistema da remição referente a determinado período:

INFORMO POR MEIO DESTA QUE AS PLANILHAS JUNTADAS NA SEQ.145 REFERENTE AOS MESES DE JUN/JUL DE 2017 JÁ SE ENCONTRAM REMIDAS E REGISTRADAS NO SISTEMA (RJ 2, p. 279).

Ocorre que essa planilha só tinha sido juntada no processo com pedido de reconhecimento da remição pela FSC, nunca tendo sido avaliada pelo MP ou autorizada pela Vara de Execução. Nesse caso há um deslocamento do poder de decidir sobre a remição dos dias, permitindo a outros servidores do poder judiciário concretizar os efeitos da remição. O caráter eminentemente burocrático e administrativo do procedimento fica evidente. E vale notar, mesmo nesse caso, o tempo computado e a quantidade de dias remidos seguem sem ser declarados nos autos, mantendo seu caráter oculto.

Voltando ao processo BA 1, além da constatação dos dias perdidos, há uma outra operação que revela entraves à remição como efetivo acelerador do fluxo. Ao concordar apenas com parte dos dias remidos, o MP já havia tornado “incabível” a antecipação da progressão de regime no momento do pedido. No entanto, o promotor foi além, impondo outros empecilhos à progressão de regime.

Até o momento do pedido de progressão, o preso tinha bom comportamento carcerário atestado nos autos. No entanto, após três manifestações do MP em agosto, setembro e novembro (pedindo atestado de pena, exame criminológico e atestado de conduta, respectivamente), a progressão foi impedida. Na última manifestação, o MP concorda com a progressão, mas a condiciona à expedição de novo atestado de conduta carcerária. Pela primeira vez, após três anos preso, o atestado passou a apresentar “má conduta”, em novembro, mês do terceiro pedido do MP. Não é possível afirmar que esse movimento tenha sido calculado pelo promotor. Mas o episódio revela como os entraves ao acesso a direitos na execução penal deixam o preso sujeito a outras circunstâncias, especialmente ao exercício do poder disciplinar, que pode suspender ou anular os efeitos da remição.

Além disso, as próprias condições de realização do trabalho podem levar a sanções que anulem seus efeitos processuais. No caso que vinha sendo analisado, a conduta foi negativamente avaliada pelo fato de que o preso havia deixado de retornar para a unidade prisional em determinadas noites daquele mês. O magistrado determinou que fosse marcada audiência de justificação para o ano seguinte, 2020. Em um raro momento de encontro entre os atores judiciais e os sujeitos presos, a audiência foi realizada em fevereiro desse ano, sem a presença do Ministério Público, e o preso pôde informar que as faltas ocorreram porque o salário que recebia do convênio em que trabalhava havia atrasado e ele teve a oportunidade de realizar outros trabalhos para compensar sua renda. O caso é paradigmático para entender como as dinâmicas de trabalho convertem-se em elementos burocráticos no fluxo da execução. Todas essas dinâmicas proporcionadas pelo exercício do trabalho externo acabaram, na realidade, adiando sua progressão de regime.

Por manifestação escrita, o MP foi contra a progressão, exigindo um período de reabilitação de 120 dias. No entanto, dias depois, o magistrado, considerando um atestado de boa conduta apresentado em janeiro de 2020, autorizou a progressão de regime sem enfrentar a objeção feita pelo promotor.

Nesse caso, temos um exemplo de como as lutas pela temporalidade da pena não se restringem a contagem das horas e deferimento automático da remição. Aqui, a oposição programática do promotor não só impediu a realização da progressão “antecipada” pela remição, mas também fez com que a mesma só ocorresse três meses depois do momento em que poderia ter ocorrido. Nesses embates pela antecipação da liberdade, também é possível ver barreiras disciplinares e jurídicas, levantadas no meio do caminho, que esticam ainda mais a duração do período de reclusão.

Na contramão ao reconhecimento da remição efetiva, há pelo menos mais um fator importante a ser considerado. Ao lado dos dias perdidos, também é possível dizer que há dinâmicas de remição supérflua nos casos analisados. O sentido conferido a essa expressão busca analisar apenas a dimensão de interferência direta no tempo de reclusão - o que não significar dizer que são supérfluos outros aspectos relevantes do instituto, como a possibilidade de obtenção de renda, ocupação do tempo, estabelecimento de relações com outros sujeitos, dentre tantas outras trabalhadas na literatura. Frente a nulidade dos dias remidos, esses aspectos positivos, aliás, relevam as contradições que atravessam os processos de educação e trabalho nas prisões.

O que aqui se designa como remição supérflua está intimamente conectada aos casos de execução provisória da pena, ou seja, ao início da execução penal antes do trânsito em julgado, pelo fato de o acusado já se encontrar preso em caráter provisório.22 Essa dinâmica faz correr em paralelo um duplo fluxo processual: de um lado, o processo penal segue às instâncias dos Tribunais mobilizado por recursos; de outro, a execução é iniciada através da expedição de guia de recolhimento provisória. O caso RJ 1 revela as possibilidades de atravessamento desses fluxos e certo esvaziamento da temporalidade da remição.

Nesse caso, o acusado havia sido preso em flagrante em julho de 2014, tendo sido condenado originalmente a 23 anos, 3 meses e 29 dias de prisão. Em julho de 2015, após o recurso da defesa, o próprio juiz que estabeleceu a sentença reduziu a pena para 16 anos. Em outubro desse mesmo ano, foi iniciada a execução provisória de sua pena, pois o juiz negou o direito de recorrer em liberdade.

O caso RJ 1 é atravessado por diversos comprovantes de frequência escolar, trabalho em empresa conveniada intramuros, dois cursos técnicos e trabalho extramuros. Os comprovantes são apresentados, muitas vezes, sem uma sequência linear, como as duas planilhas de frequência referentes a abril e maio de 2017 que só foram juntadas ao processo em outubro de 2018, quando o preso já exercia outra atividade laboral. Após alguns anos no exercício dessas atividades, em novembro de 2018, a Defensoria juntou ao processo a decisão do Tribunal de Justiça que havia reduzido a pena total para 6 anos, 4 meses e 24 dias. A decisão havia sido tomada em março de 2018, portanto, oito meses antes de sua apresentação no processo. Esse caso revela os riscos das execuções antecipadas da pena e como as demoras dos atores judiciais podem estender de forma significativa o tempo de prisão. Ao longo de todo ano de 2018, o apenado seguiu fazendo cursos e trabalhando, quando já poderia estar em regime aberto. Quando a decisão foi juntada ao processo, ele já havia cumprido mais de 70% da pena, sem contar com os dias computados pela remição.

As observações aqui coligidas indicam que o instituto da remição de pena por trabalho e estudo pode funcionar nos circuitos da execução penal ora como atalho, ora como armadilha. Quando efetiva, a remição incrementa a pena efetivamente cumprida, podendo precipitar a saída do sentenciado da prisão. Por outro lado, a própria dinâmica de trabalho ou estudo pode expor o trabalhador-preso a mecanismos de sanção que suspendam os efeitos da remição, podendo também levar a supressão de outros direitos - como quando se pune os atrasos no retorno do trabalho com a perda de dias remidos. Ademais, a possibilidade de uma apelação vir a reduzir uma pena em execução provisória em uma escala que torna obsoleta a quantidade de dias remidos não deixa de também projetar sobre o trabalho e o estudo no cárcere a imagem de uma armadilha.

Considerações finais

Este trabalho parte das práticas contemporâneas de encarceramento no Brasil para pensar as tecnologias de governo operadas pela prisão e sua operacionalização por meio dos processos de execução penal.

Na análise exploratória realizada neste trabalho, a estratégia metodológica utilizada foi seguir o rastro da remição nos processos de execução, uma vez que este instituto permite observar, de um lado, as articulações discursivas sobre trabalho e educação em prisões, e, de outro, mecanismos de interferência na operação dos fluxos de documentos e corpos. Nesse sentido, as “lutas pela temporalidade da pena de prisão” (CHIES, 2008) nos pedidos de remição representam um lugar privilegiado para análise das dinâmicas de governo e gestão burocrática do fluxo prisional.

Os principais achados da pesquisa situam a remição em um cenário de ambivalência. Por um lado, a remição mobiliza os atores a se manifestarem com certa frequência nos processos, deixando transparecer a persistência do ideal ressocializador em nosso contexto. Nos casos analisados, o trabalho e a educação estão no centro da construção de uma gramática compartilhada pelos atores institucionais engajados nas dinâmicas próprias da execução penal - funcionando para eles como um norte. A remição documentada nos processos faz com o sujeito preso possa disputar a construção de uma imagem de sujeito “recuperado”, apto a experimentar espaços fora da prisão. A tríade “trabalho-estudo-família” parece central nesse processo e faz com que a remição funcione como um expediente de preparação para disputa de outros direitos, como progressão de regime e saídas temporárias.

Por outro lado, a remição também revela um processo de descentramento do trabalho e da educação no âmbito da execução das penas. Essas atividades não mais ocupam o lugar de eixo punitivo ou de finalidade principal da pena de prisão, mas são mobilizadas juntamente com outros elementos heterogêneos, a partir da gramática dos direitos e de uma perspectiva de redução do tempo de reclusão, sendo mais um fator, entre outros, de interferência no fluxo da execução penal. Nesse sentido, a remição aparece como investimento de médio ou longo prazo, em que as atividades de educação e trabalho são realizadas, mas há muitas incertezas a respeito de sua concretização como atalho para a saída da prisão. O tempo entre as atividades, certificação, atos de comunicação, pedidos, pareceres e decisões é incontrolável e incerto. Nas lutas pela temporalidade nos processos, as demandas de remição quase sempre se converteram em remição efetiva, rendendo a contagem de dias de pena cumpridos pelo exercício de atividades laborais e educativas. A efetividade dos processos de trabalho e educação também rendem menos dias na prisão em um outro sentido, já que as autorizações para trabalho e cursos extramuros permitem períodos fora do cárcere ao longo da semana.

No entanto, as lutas pela temporalidade por meio da remição apresentam outras camadas, como a adoção de estratégias de retardamento ou desaceleração mobilizadas pelos atores envolvidos. A exigência de laudos, relatórios de inspeção, atualização de fichas disciplinares são alguns dos expedientes utilizados. Constatamos que há casos em que essas estratégias não só representam um obstáculo à aceleração do fluxo, mas promovem seu retardamento, como o registro e comunicação no processo de faltas disciplinares ligadas às dinâmicas de trabalho que levam ao adiamento da progressão de regime. Além disso, a dinâmica da contagem burocrática dos dias a remir também se revela uma operação complexa, realizada de maneiras distintas e sujeitas a muitos riscos. Os dias perdidos, que, apesar de documentados, não são considerados nas decisões judiciais, a falta de controle sobre os “saldos” de horas e dias trabalhados, a remição que se torna supérflua pela redução da pena, a ausência de transparência na forma de contagem e os erros materiais na elaboração das decisões ampliam a margem de incertezas do resultado desses investimentos.

Notas

  • 1
    A remição é, em linhas gerais, o cômputo de determinado tempo de execução da pena em razão de atividade de trabalho ou estudo realizada dentro do sistema prisional ou extramuros. Nos termos da Lei de Execução Penal: Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena. § 1º. A contagem de tempo referida no caput será feita à razão de: I - 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar - atividade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional - divididas, no mínimo, em 3 (três) dias; II - 1 (um) dia de pena a cada 3 (três) dias de trabalho.
  • 2
    As dimensões históricas, filosóficas, sociológicas, jurídicas e políticas dessa imbricação fundamental entre punição, trabalho e educação são múltiplas e vastas, não podendo ser tratadas no escopo deste artigo. Aqui, o foco recai sobre a atualidade e a operacionalidade dessa articulação em dois contextos bem situados no tempo e no espaço.
  • 3
    Clóvis Moura (2020, p. 83) pensa o Brasil do século XIX a partir de um movimento de “modernização sem mudança”, e o escravismo tardio é o “cruzamento rápido e acentuado de relações capitalistas em cima de uma base escravista”. As novas técnicas de controle social e punição incorporadas pelas elites políticas brasileiras no período, desde o discurso jurídico liberal/escravista do Código Penal de 1830, até a consolidação da pena de prisão como principal resposta punitiva, respondem às demandas de ordem desse tipo de modernização conservadora (NEDER, 2012).
  • 4
    É possível notar a centralidade e permanência desta perspectiva no recente Decreto nº 11.436/2023, que define os eixos prioritários do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci 2), dentre eles o “fomento às políticas de cidadania, com foco no trabalho e no ensino formal e profissionalizante para presos e egressos” (art. 3º, III).
  • 5
    Os circuitos judiciais da execução penal são diferentes nas duas cidades. Em Salvador, existem duas Varas de Execuções Penais e uma Vara das Execuções das Penas e Medidas de Segurança. Além disso, algumas varas criminais do interior atuam no âmbito da execução penal, em um modelo menos centralizado. Já no Rio de Janeiro só há uma Vara de Execuções Penais na capital, responsável pela tramitação dos processos de todo o estado.
  • 6
    Trabalhamos com um arquivo digital, já que os processos que exploramos são todos digitalizados. O processo de digitalização impacta de forma decisiva toda a dinâmica do fluxo processual. Em outras investigações ainda em curso, percebemos que a digitalização de processos de execução no Rio de Janeiro provocou sérios problemas no andamento do fluxo da execução, causando grandes atrasos na apreciação pelos atores jurídicos de demandas como progressão de regime. Essa dinâmica, que não apareceu na amostra que mobilizamos nesse texto, indica como os papéis - físicos ou digitais - materializam e condicionam o fluxo da execução penal.
  • 7
    Esses quatro homens foram classificados como negros nos documentos estatais apresentados nos processos (fichas disciplinares e antecedentes criminais). A expressão “pardo” aparece em três casos e “negro” em um caso. É preciso estar atento às dinâmicas de “invisibilidade da raça em registros institucionais”, que, entre suas estratégias, mobiliza frequentemente o “uso indiscriminado da modalidade racial ‘parda’” (FERREIRA, 2021, p. 181). Em que pese fotografias 3x4 desses homens em algum momento dos processos, é preciso aprofundar as reflexões sobre os efeitos da produção/ocultamento da raça nesses documentos.
  • 8
    Os processos serão referidos ao longo do texto como RJ 1, RJ 2, BA 1 e BA 2. Apesar dos processos serem públicos e não estarem em segredo de justiça, optamos por não colocar os números dos processos nem os nomes dos sentenciados como forma de preservar as identidades dos sujeitos.
  • 9
    No âmbito nacional, as Notas Técnicas nº 14/2020 e 79/2020 do DEPEN/Ministério da Justiça indicam um aumento no percentual de sujeitos presos participantes de atividades de trabalho e estudo nos últimos anos. Em 2019, as atividades educacionais (desde a formação escolar a atividades culturais) alcançavam 16,56% da população presa e as atividades de trabalho, 19,28%. Não há dados sobre exercício simultâneo dessas atividades. Nas experiências locais, é possível observar as dificuldades enfrentadas nessa dupla jornada (como o cansaço) e as demandas dos presos-trabalhadores para a oferta de turmas noturnas nas escolas, para possibilitar a conciliação entre as duas atividades (BARRETO, 2017, p. 32).
  • 10
    Essa dimensão caótica dos documentos da remição impede a elaboração de um fluxo padrão para seu processamento. Se, a princípio, é possível dizer que existe uma estrutura básica de juntada de comprovantes de educação/trabalho, manifestação do Ministério Público e decisão judicial, nos processos analisados observamos caminhos diferentes, como a ausência de pedido explícito, pedidos ora de períodos mais curtos, ora mais concentrados no tempo, ausência de manifestação do MP ou mesmo de decisão judicial, entre outros. Assim, é possível dizer que os pedidos e as decisões da remição podem ocorrer a qualquer tempo ao longo do cumprimento da pena, comportando uma margem relativamente larga de possibilidades de processamento. Para mais informações sobre o caráter labiríntico do fluxo processual no âmbito da execução penal, ver Mello Neto (2021).
  • 11
    As dinâmicas de educação e trabalho também fazem surgir nos processos outros sujeitos e instituições, que passam a ser mediadores importantes da trajetória do preso e de suas possibilidades de relação entre os atores processuais e o acesso de direitos na execução penal. Diretores escolares, fundações, empresas, órgãos públicos, patronato de presos e egressos e empregadores privados constituem um conjunto amplo de instituições e indivíduos que surgem no processo por força dessas atividades. No caso do Rio de Janeiro, destaca-se a presença da Fundação Santa Cabrini (FSC) como ator central nos processos de remição. A Fundação atua, em muitos casos, pedindo diretamente ao juízo da execução penal a liberação do preso para atividades de educação - como cursos externos - e trabalho. Além disso, a própria Fundação junta ao processo as planilhas que comprovam a carga horária dos cursos ou dias trabalhados, por vezes pedindo diretamente ao juiz o reconhecimento da remição.
  • 12
    A presença do pai do apenado é constante ao longo do processo e, mais do que simbolizar a importância da família nos discursos pautados na ideia de ressocialização, que muitas vezes passam por compreensões moralistas sobre as relações familiares, denota a centralidade da atuação de familiares no acesso a direitos no âmbito da execução penal. A partir da atuação do pai, o sentenciado teve acesso à VPL, conseguiu um trabalho extramuros e fez cursos profissionalizantes. É importante destacar, em outra dimensão, que os movimentos sociais de familiares de pessoas privadas de liberdade, liderados por mulheres, têm protagonizado a luta política pela garantia de direitos no sistema prisional e produzido a crítica mais potente ao encarceramento em massa. Sobre esses processos de luta social, ver os textos de Vieira e Pinho (2021) e Silva (2021).
  • 13
    Mobilizamos o radical “psi” em referência à constelação de saberes e discursos oriundos da psiquiatria, psicologia e psicanálise, que compõem o rito da execução, sempre em uma complexa interação com os discursos e categorias jurídicas.
  • 14
    Em 2003, a Lei nº 10.792 retirou da Lei de Execução Penal obrigatoriedade do exame criminológico para o acesso de direitos como a progressão de regime. Após intensa mobilização do campo jurídico hegemônico, o Supremo Tribunal Federal decidiu que, apesar da mudança legislativa, os magistrados da execução penal poderiam determinar a realização do exame, em decisão motivada, considerando as circunstâncias do caso. Diante desse contexto, os profissionais de psicologia com atuação no sistema prisional e a sociedade civil organizada iniciaram um movimento de denúncia dessa prática, considerada estigmatizante, classificatória e violadora dos direitos humanos. Diante dessas pressões, o Conselho Federal de Psicologia editou a Resolução nº 9/2010, proibindo a realização de exames criminológicos por parte dos profissionais de psicologia com atuação no sistema prisional. A Resolução foi duramente atacada por atores do sistema de justiça e instituições e, por fim, foi revogada pela Resolução nº 12/2011, que matizou a proibição, especificando que os exames não poderiam constituir prognóstico criminológico de reincidência. Ainda assim, essa Resolução foi anulada pelo Tribunal Regional Federal. A história desse embate é narrada em Reishoffer e Bicalho (2017).
  • 15
    Sobre a relação entre o campo jurídico e os exames criminológicos na execução penal, é interessante retomar os resultados da pesquisa quantitativa realizada pela Fundação Seade na cidade de São Paulo, que analisou o universo dos processos de execução penal em tramitação naquela capital. O nível de vinculação entre o conteúdo dos exames criminológicos e as decisões judiciais constituiu um dos eixos de interesse da pesquisa e os resultados apontam que um laudo “positivo” não garantia o acesso aos direitos, mas um laudo “negativo” praticamente interditava o acesso a progressão de regime e liberdade condicional (TEIXEIRA; BORDINI, 2004).
  • 16
    Pensamos o positivismo, aqui, não como uma Escola criminológica do passado, mas como uma cultura de longa duração (BATISTA, 2016), impregnada no sistema de justiça criminal e sustentada no racismo (GÓES, 2016; DUARTE, 2017).
  • 17
    Na pesquisa que escrutinou os arquivos do antigo Juizado de Menores da cidade do Rio de Janeiro, Batista (2003, p. 127) percebeu como documentos técnicos do sistema de justiça, pretensamente neutros, podem reproduzir e naturalizar de forma violenta as hierarquias sociais. Em um laudo psicológico que analisou, “o ‘brilho no olhar’, o desejo de status e de adquirir coisas ‘que não se coadunam com a vida de salário-mínimo’ atestam, para o especialista em questão, que a periculosidade não havia cessado, o que lhe garante mais um ano de prisão e depois mais dois anos de liberdade assistida. Difíceis ganhos fáceis!”.
  • 18
    Para uma análise pormenorizada das diversas formas de atuação de defensores públicos no âmbito da execução penal, ver Godoi (2023).
  • 19
    Na reforma penal que estabeleceu o direito a remição por estudo, em 2011, também se estabeleceu o entendimento de que os dias remidos equivalem a pena cumprida e não a uma redução da pena a cumprir. Como mostra Chies (2008), antes disso, as disputas pela capitalização do tempo na prisão também se davam sobre essa questão.
  • 20
    A Lei de Execução Penal (LEP) estabelecia originalmente o prazo de cumprimento de 1/6 da pena para acessar a progressão de regime. Posteriormente, esses marcos foram alterados, primeiro, apenas para os crimes hediondos (Lei nº 8.072/1990) e, posteriormente, para todos os crimes (Lei nº 13.964/2019). Essas leis são marcadas pela tendência de aumento dos prazos necessários para acessar direitos na execução penal.
  • 21
    Ao comparar os tempos desses dois pedidos em específico, não pretendemos afirmar que seja um padrão da execução das penas nesses estados, mas apenas destacar a heterogeneidade das práticas e tempos no fluxo da remição.
  • 22
    A execução provisória da pena serve para facilitar o acesso de presos provisórios aos direitos da execução, quando as sentenças negam o direito de recorrer em liberdade. Essa forma particular de cumprimento da pena é uma importante condição jurídica que tem sido negligenciada no campo dos estudos prisionais e precisaria ser mais estudada. Por ora, vale apenas ressaltar que ela é distinta da execução antecipada da pena, que esteve em debate nos últimos anos no Brasil e buscava legitimar a execução definitiva da pena antes do trânsito em julgado. Em ambas as modalidades, no entanto, há dinâmicas constantes de antecipação da punição. Para um maior detalhamento desse debate, ver Fernandes e Santana (2019).

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Editado por

  • Editor responsável: Michel Misse.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Abr 2023
  • Aceito
    25 Jul 2023
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