Na sequência de uma pesquisa etnográfica num centro de apoio social e psiquiátrico, ensaiamos uma reflexão sociológica acerca dos gestos morais dos seus residentes nas sociabilidades que ali vão entretecendo. Num contexto em que, pela rigidez das regras e pela necessidade de compatibilizar a proteção e a promoção da autonomia, o reconhecimento da humanidade dos residentes nem sempre se verifica, os residentes revelam capacidades críticas e morais colocadas em prática com particular evidência no ato de pintar. Conclui-se que a pintura fomenta a responsabilização dos pintores, favorecendo assim o seu reconhecimento enquanto seres morais.
Palavras-chave: Moralidades; pintura; instituições; reconhecimento; responsabilidade
Following ethnographic research in a social and psychiatric center, we propose a sociological reflection on the moral gestures of its residents in the sociabilities that are intertwined there. In a context where, due to the rigidity of the rules and the need to reconcile the protection and promotion of autonomy, the recognition of residents’ humanity does not always occur, residents reveal critical and moral capacities put into practice with particular evidence in the act of painting. It is concluded that painting encourages the responsibility of painters, thus favoring their recognition as moral beings.
Keywords: Moralities; painting; institutions; recognition; responsibility
Habitar o espaço do Pisão: as infraestruturas de acolhimento e de estadia
Centro de Apoio Social do Pisão (CASP) é uma instituição residencial que se localiza no concelho de Cascais, área metropolitana de Lisboa, a norte, onde desagua o rio Tejo. É um concelho com territórios socialmente contrastantes. Quanto mais perto do mar, mais os bairros residenciais são socialmente valorizados, e, inversamente, os espaços residenciais interiores tendem a perder valor. Além disso, entre os concelhos de Cascais e de Sintra localiza-se o Parque Natural Sintra-Cascais. E é neste parque que se situa a Quinta do Pisão.
Nesse sentido, a instituição gerida pela Santa Casa da Misericórdia de Cascais encontra-se afastada dos polos residenciais e comerciais do concelho. Sendo uma instituição que acolhe cerca de 350 pessoas diagnosticadas com diferentes patologias do foro psiquiátrico, a proteção do seu espaço é-lhe conferida pelo local onde a quinta foi constituída.
Afastada do habitual bulício que ocorre em bairros densamente povoados, a quinta onde residem esses seres em situação de vulnerabilidade encontra-se instalada numa cartografia paisagística particular. Extraindo-se o habitual rebuliço provocado por quem ali reside, e por quem ali trabalha diariamente, outros ruídos são imputáveis à vida ambiental que rodeia a instituição. É preciso notar que o referido ambiente se altera de acordo com as estações do ano, e, em face da sua atual imprevisibilidade, tem de se contar com as circunstâncias climatéricas adversas que podem ali ocorrer de maneira incerta.
Nesse sentido, o sossego conferido pelo manto vegetal que abraça a instituição talvez tenha sido uma razão para que o centro alojasse pessoas com as referidas características. Identificadas com doenças que desestruturam os seus comportamentos, que se intrometem na sua autonomia individual e coletiva, e, correlativamente, na sua responsabilidade, este ambiente verde, cercado por montes, vales e pela serra de Sintra não se configura generoso para quem queira de ali sair sem autorização das autoridades que governam a instituição.
A lonjura relativa aos povoados, à qual se acresce não ter sido bafejada com vias convidativas a longas deslocações a pé, sem transportes públicos frequentes, conduz a que a cercania que rodeia aquele espaço acabe por funcionar como uma fronteira que os isola completamente das redondezas distantes. Assim, o conforto que habitualmente se atribui à serenidade concedida pela verdejante paisagem natural, cortada exclusivamente pelos sons emitidos por seres vivos que por ali circulam, ou pelas manifestações derivadas da fúria do clima, vai compor-se com as eventuais adversidades que podem resultar daquele isolamento. Perante um local com estas singularidades e, por isso, suportada por uma carta cuja partitura é desabrida para quem ali habita, as infraestruturas oferecidas pela instituição a quem chega e a quem ali permanece durante um longo período de tempo requerem uma atenção especial.
E foi justamente nessa instituição que a nossa pesquisa etnográfica, de cariz qualitativo, compreensivo e empírico, foi desenvolvida. Durante aproximadamente 15 meses, já descontados os três meses em que o acesso ao seu recinto nos foi vedado devido às restrições impostas no advento da pandemia, convivemos de perto com a população que ali vive e trabalha. Inicialmente, durante 4 dias por semana entre as 9:00 e as 17:00, e, posterior e gradualmente, reduzindo a frequência das intervenções, mas, em contrapartida, focalizando com particular acuidade certos momentos, mormente as atividades de pintura, tendo em vista os objetivos da investigação, pudemos observar diretamente o dia-a-dia e as atividades desenvolvidas dos residentes e com estes entabular conversas informais. Os dados aqui apresentados provêm dos registos em diário de campo (DC) dessas observações e conversas.
Sobre o edificado: notas sobre a quadratura do círculo
A edificação do CASP e a sua inserção no ambiente referido promovem o isolamento da instituição. Aliás, a sua carta arquitetónica acentua o afastamento, uma vez que o CASP está localizado na extremidade da Quinta do Pisão.
A instituição é composta por um conjunto de edifícios desenhados por uma coreografia desalinhada. A entrada principal, por onde é possível aos funcionários, visitas e residentes (com a devida autorização) entrarem e saírem do recinto, é demarcada por uma cancela e uma cabine de portaria à esquerda, onde está presente pelo menos um segurança. A cancela demarca a fronteira entre os que habitualmente estão dentro, porque residem nela, e aqueles que, vindos de fora, não moram ali.
Passando a cancela, segue-se uma rua de cerca de 50 metros. Do lado esquerdo da mesma, encontra-se, desde logo, e seguidamente à portaria, um pequeno armazém, ou sala de arrumos, depois, um espaço onde as carrinhas da instituição estacionam; do lado direito, avista-se um pequeno jardim, pouco frequentado, num plano inferior ao da rua, no qual se acham flores plantadas, algum arvoredo e um pequeno lago com peixes.
Ao fim desses 50 metros, encontra-se um largo. Aí posicionado, temos um edifício de dois andares à frente. No andar de baixo situa-se um museu da instituição, no de cima um conjunto de escritórios, local de trabalho dos técnicos de assistência social, do pessoal administrativo e de gestão.
Ainda no largo, do lado esquerdo temos duas salas, uma de atividades, e logo em seguida a sala de visitas, onde os residentes do CASP se encontram com amigos e familiares. Não obstante alguns residentes gostarem de se sentar nas margens da rua que dá acesso ao largo, observando as entradas e saídas, é sobretudo a partir do largo que o espaço se descobre densamente povoado. Ora, estando neste largo, há duas vias possíveis.
Indo pela esquerda, tem-se uma correnteza de edifícios de cerca de 80 metros de comprimento. Estes edifícios consistem em salas de atividades, alguns lotes de residência para os indivíduos mais autónomos e ainda, finalmente, alguns gabinetes para os monitores das atividades desenvolvidas na instituição. Chegados ao fim desta via, dá-se de caras com um portão de ferro com uma segunda portaria que controla a abertura e o fecho do mesmo. Para lá do portão tem-se um quintal com dois edifícios: do lado esquerdo, é a cantina principal, do lado direito é o maior edifício do recinto, o dormitório masculino, o qual é dividido em várias alas, tendo em conta o estado de saúde dos residentes. Neste edifício estão ainda a enfermaria, onde se administra a medicação intravenosa, as salas de estar, onde os residentes podem ver televisão, e as casas de banho várias, onde se executa a higiene. E ainda, no piso térreo, um conjunto considerável de salas de atividade. Note-se que a existência deste portão se deve ao facto de nem todos os residentes poderem sair do dormitório (e pátio associado): por um lado, aqueles cuja situação clínica inviabiliza a locomoção, por outro, aqueles cuja condição é classificada como perigosa para o regular funcionamento da instituição e do seu quotidiano.
Regressamos ao largo da entrada. Se em vez de seguirmos pela esquerda enveredarmos pela direção oposta, temos uma rua de cerca de 20 metros onde, do lado direito, se encontra o acesso por escadas ao jardim já mencionado. Mais adiante, ainda à direita, acha-se a cantina onde os profissionais do CASP tomam as suas refeições.
Por sua vez, do lado esquerdo temos uma primeira saída, que faz o contorno do edifício do museu e que constitui aquilo que se poderá denominar como a faixa central do espaço da instituição. Aqui situa-se um pequeno parque de estacionamento, onde os funcionários que utilizam o carro para ir trabalhar o podem deixar. Passando este parque, acede-se à zona do bar, centro geográfico do recinto.
Esta zona é composta por zonas relvadas, bancos para se estar sentado, uma esplanada e o edifício propriamente dito do bar. Do lado esquerdo do bar encontra-se um pequeno campo de futebol. Ultrapassando o bar, descobre-se mais algumas zonas relvadas e bancos de jardim, após o que se desemboca no dormitório masculino, situado na extremidade oposta da entrada principal. Sublinhe-se ainda que ao lado deste dormitório existe um terreno com dimensão significativa onde se plantam hortas, atividade em que os residentes podem participar.
Retrocedendo ao largo inicial. Voltando à direita, vimos ser esta a primeira saída à esquerda. Mas, não cortando para o parque de estacionamento e seguindo mais um pouco, há uma segunda. Esta via tem cerca de 80 metros e desemboca no terreno da horta. Do lado esquerdo, uma correnteza de bancos; do lado direito um edifício grande que é o dormitório feminino, tendo também um pequeno refeitório, salas de estar, balneários, sala de computadores e biblioteca. No piso térreo encontra-se a rouparia e salas de atividades. Depois deste edifício descobre-se uma capela onde os residentes que professam fé podem fazer as suas orações.
Finalmente, e transportando-nos para a extremidade oposta da entrada principal, ultrapassando o dormitório masculino e o terreno agrícola, acede-se à Quinta do Pisão, que formalmente já não pertence ao CASP.
Todas estas ruelas e salas são densamente povoadas entre as 9h e as 17h, horário em que se encontram presentes os funcionários dedicados à dinamização das atividades. Fora deste horário (em que o pesquisador não esteve presente), os residentes, regra geral, encontram-se nos seus dormitórios. Esta informação, dada pelos funcionários, resulta justamente das características da população residencial. Mesmo para aqueles que apresentam maior autonomia, a possibilidade de terem maior liberdade de movimentos é limitada, por um lado, porque a instituição está isolada dos outros ambientes residenciais, e, por outro lado, o CASP assume a responsabilidade pela vida total destes utentes.
E é nestas ruelas que as interações e sociabilidades se dão continuamente. Entre residentes, entre funcionários e entre uns e outros. É uma verdadeira cidade. Há caminhos habituais: residentes que, na hora de almoço dos funcionários, sabendo onde se localiza o refeitório destes, aguardam à entrada, na impossibilidade de aí entrar.
Como também nas salas de atividades, onde não só estão presentes os residentes e os monitores envolvidos na atividade para a qual a sala está, naquele momento, afetada; entram e saem também outros residentes e funcionários para trocar dois dedos de conversa.
Entre o bem da circulação e o bem da proteção
Nesse sentido, o desenho do edificado para além do seu desalinho, não se mostra muito amigável para quem a orientação no terreno não é uma das suas capacitações mais fortes. E para aqueles que por razões médicas se encontram ainda mais enclausurados, as suas ligações com o ambiente são nulas.
Basta tomar a atenção por onde circulam os residentes. Usam o hábito adquirido na circulação diária. Só em momentos especiais é que o hábito é trocado por migrações outras que os obrigam a usar vias diferentes.
Todavia, o traçado da mencionada quadratura dos diversos edifícios apresenta um ingrediente extra que convém a alguns dos residentes. Torna possível driblar algumas das regras da instituição e, num certo sentido, acomoda naqueles instantes o que de ruim pode-se vislumbrar nas infraestruturas de acolhimento e de permanência que são oferecidas por aquela arquitetura edificada. Mas não retira dela outras vantagens.
Há relatos que fazem prova de que o bem da circulação para além das cercanias da instituição ou é vedado ou então é deveras dificultado. De acordo com os autos da instituição, de um lado, e em conformidade com as regras por esta estabelecida do outro lado, ao bem do movimento mais livre é sobreposto um outro bem, que é o da proteção dos residentes, gerando amiudadas vezes tensões, dilemas e aporias (EHRENBERG, 2014; EYRAUD, 2006).
A razão principal prende-se ao diagnóstico médico atribuído a cada um deles. E são uma imensa minoria aqueles que têm autorização para sair de modo autónomo. E mesmo estes têm de cumprir regras estritas, sendo que o seu incumprimento acarreta sanções, entre as quais a proibição de mais saídas autónomas.
Entre outras histórias relatadas a este propósito, num certo dia um dos residentes que estava a trabalhar no atelier de pintura volta-se para a monitora e solicita-lhe autorização para dar uma volta nas redondezas da instituição. A razão prendia-se à necessidade de inspiração para pintar o seu quadro. A monitora devolve-lhe a resposta fazendo uma contraproposta. Pede-lhe que olhe pela janela o arvoredo que envolve o atelier de pintura. Este, não satisfeito, volta a insistir no pedido. Como a monitora não pode permitir saídas, solicita que ele aborde a questão junto da técnica de serviço social a quem incumbe facultar ou não as saídas da instituição, mesmo quando são curtas ausências como era o caso. O senhor pretendia dar um passeio pelas redondezas para observar a paisagem.
Face a esta demanda o senhor fala com a referida técnica, pedindo-lhe autorização para sair por breves momentos. Mas a autorização não lhe foi concedida. Em conversa com ela, diz-nos que indeferiu o pedido por causa do perigo de fuga. Foi-nos dito que, se autorizasse o requerido, a possibilidade de evasão era grande, indicando que o residente já tinha, em outras ocasiões, tentado escapar da instituição.
Interessa mencionar que a razão desse impedimento é a responsabilidade da instituição em proteger estes seres vulneráveis. Mesmo parecendo ser uma pessoa calma e tranquila, como era a maneira como o senhor se comportava no atelier, a monitora retorquiu utilizando a seguinte expressão: “oh! Com aquele [num tom carinhoso] nunca se sabe! Até é pelo bem deles. Imagina o que poderia acontecer se ele saísse sozinho. Isto é para os proteger.” (DC, 29/jul.2020).
Na verdade, as deslocações para fora da instituição são pouco frequentes. E quando a possibilidade de sair é autorizada, a sua faculdade não é presidida pela concessão da autonomia, mesmo quando esta aspiração faz parte das orientações políticas do CASP. Só saem habitualmente em grupo e devidamente enquadrados. Se antes da pandemia poucos ainda tinham a oportunidade de sair autonomamente, depois deste acontecimento a possibilidade tornou-se mais rara.
Mesmo a compaixão (CLÉMENT, 2018; CORCUFF, 2005) não parece ser razão suficiente para qualquer cedência. Em conversa escutada no bar, uma das funcionárias conta a uma colega a história da tentativa de fuga do António: “Então não é que o António se quis pôr ao fresco… É sempre a mesma coisa com ele. Tem um feitio tramado, chiça!”. A colega no seu ar cândido exclama: “Coitadinho. Aqui fechado há tantos anos. Não é fácil” (DC, 17 jun. 2020). Não obstante este desabafo, o facto é que a interdição se manteve, e, face à degradação da doença do António, a possibilidade de uma acentuação da clausura está em cima da mesa, concluiu quem contou este episódio.
Da semântica da competência: um tabuleiro de xadrez com várias apostas
Pelos relatos escutados e transcritos para o caderno de notas, a verificação das ligações dos residentes com o ambiente fora da instituição torna-se difícil de apurar com rigor. Atender às conexões entre a interface interna à instituição com a outra que se estende para fora da mesma é interessante para reequacionarmos a semântica da competência, que é um dos desígnios terapêuticos do próprio CASP, e, de resto, em linha com as políticas sociais contemporâneas que apostam em abordagens mais individualizadas e capacitantes. (DODIER; RABEHARISOA, 2006; EYRAUD; VIDAL-NAQUET, 2012; FRANSSEN, 2003; GARDELLA; CEFAÏ, 2011; PATTARONI, 2007).
A mesma ponderação também pode ser verificada se o ângulo da atenção se deslocar para outras tensões presenciadas em situação. Das reclamações e queixas anotadas é possível extrair outras problemáticas levantadas por alguns dos residentes. E, com este atendimento, outras possibilidades são abertas sobre os seus modos de agir em função de operações críticas (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2020) que produzem sobre a habitabilidade deste espaço (BREVIGLIERI, 2012). E estas aspirações dão suporte aos questionamentos morais dirigidos às vivências e convivências naquele contexto.
Tendo isso no horizonte, basta tomar em atenção dois dos objetivos da instituição para se confirmar que os exercícios conducentes à autonomia e à segurança dos moradores são dois eixos importantes na intervenção psicossocial a que o trabalho dos técnicos se tem de focar para a sua concretização, não sendo isento de incertezas (DEMAILLY et al., 2019; MARQUIS, 2017; OGIEN, 2014; RAVON, 2020). Na verdade, favorecer a autoestima, respeitar a independência ou promover a reabilitação e a reinserção de quem cuidam diariamente requerem atividades e práticas a que os técnicos se têm de comprometer na realização do seu trabalho, deles solicitando um tato particularmente aguçado (BESSIN, 2012; CEFAÏ, 2015; DELMAR, 2012; SOULET, 2016; VRANCKEN; MACQUET, 2012) e criatividade (MOLINIER; LEGARRETA, 2016) para encontrar a “distância certa” (BREVIGLIERI, 2005; PATTARONI, 2007) e, assim, desemaranhar situações de tensão evidente por via da “ação que convém” (THÉVENOT, 1990). E esse trabalho tem de ser frequente e permanente, usando para isso uma paleta diversa de técnicas e atividades para o efeito.
Desse modo, a praticidade (FREGA, 2016) dessas atividades pressupõe a preparação de um fim que é justamente a aquisição da autonomia, mesmo que esta se revele uma finalidade que é lida como um continuum gradativo. Isto é, se o seu propósito é encarado como um continuum, o seu alcance não se almeja nem pelo planeamento, nem por deduções possíveis que se retirem das ações que visam aquele objetivo.
Por outras palavras, exercitar práticas desenhadas a partir dos menus técnicos incluídos nas atividades escolhidas para esta finalidade pressupõe encarar a obtenção da autonomia como um processo longo, sem haver a possibilidade de se estabelecerem metas definidas com prazos concretos. Nesse sentido, as demonstrações da persecução bem-sucedida da consecução de autonomia dificilmente podem ser medidas ou provadas, não só porque não parece ser fácil a adoção de provas para o efeito, mas também porque o processo longo que é equacionado para a sua fabricação dificilmente apresenta experiências aquisitivas coerentes, sequenciais ou lineares, das quais seja possível apurar que os extremos dessa sequência sejam efetiva e notoriamente distintos entre si.
Daí estar-se perante uma promessa que abre um futuro, mas cuja abertura é tão ampla que qualquer comprometimento levanta problemas complexos. Empurrá-los com o devir do tempo só os corrói porque o prometimento de uma autonomia bem-sucedida fica sempre por cumprir. E o desfecho assim desenhado continua a não renegar aquela promessa.
O Centro de Atividades e Capacitação para a Inclusão: um mosaico de apostas
O Centro de Atividades e Capacitação para a Inclusão é um exemplo que propicia uma reflexão sobre as significações que podem ser atribuídas quer às capacidades a trabalhar, a desenvolver e a manter, quer às possibilidades que aquele fazer continuado determina para as experimentações demonstrativas das efetivas aquisições que tendem a renovar-se pela sua reprodução, como também para a demonstração que as habilitações conseguidas ora promovem a autonomia destes seres, ora contribuem para que a referida autonomia apoie a inclusão. Neste sentido, tanto a sua criação como a exaltação do seu trabalho para esta teia de objetivos e finalidades, às quais se encontram associados verbos como desenvolver, estimular, estabelecer, contribuir, favorecer, promover, garantir, privilegiar e respeitar, obrigam-nos a reequacionar a semântica que habitualmente aparece agremiada ao substantivo capacitação (EHRENBERG, 2020; GENARD; CANTELLI, 2008).
Uma vez que a capacitação diz respeito às práticas atuantes sobre seres para modificar a sua natureza - de inábeis a habilitados -, as significações a retirar das suas atuações não se encerram nesta faina que mostra azáfama e continuidade. É preciso considerar os processos que acompanham as experiências que estão na base das capacitações almejadas, mas também observar aquilo que os dispositivos (DODIER; BARBOT, 2016) usados tendem a nominalizar em si como sujeitos, dotados de subjetividade (DUVOUX; ASTIER, 2006; CANTELLI; GENARD, 2007).
Essa nominalização exige dar atenção quer à habituação que é trazida pela experimentação de exercícios conhecidos, quer à sua renovação criativa com a aplicação de usos práticos não reconhecidos justamente em virtude da sua novidade (JOAS, 1996). Estimar uns e outros compromete-nos a apreciar os objetos que são convocados como suportes àquelas atividades práticas.
Dando atenção acrescida ao centro criado para o desenvolvimento de diferentes atividades, não só é possível observar locais onde são possíveis realizar aprendizagens cognitivas e manuais a partir de múltiplos objetos como também verificar que aqueles trabalhos visam, segundo a instituição, tanto a ocupação do tempo, quanto o treinamento de competências mais amplas que envolvem diversas áreas laborais com intervenção manual. Não menorizando a natureza ativa dos exercícios que se fazem quando o tempo serve para se estar ocupado, no trabalho oficinal não só são outras as capacitações esperadas como também os objetivos dos técnicos, que estão ali a apoiar os residentes e esperam que estes retirem das atividades manuais outros recursos, em particular a autonomia e a responsabilidade (GENARD, 1999, 2023).
A repetição do trabalho realizado com a madeira, com o ferro, com o papel, entre outros materiais, leva a que os residentes, para além de tomarem conhecimento de como atuar com ações convenientes para usar o espaço e o tempo de trabalho, também se deem conta que aquele labor requer uma determinada ordenação dos gestos na busca, quer dos objetos, quer dos instrumentos de trabalho. Se o trabalho é restaurar uma mesa, ou pelo contrário é dar continuidade à pintura de uma moldura, ou é trabalhar o ferro que vai suportar a mesa, os residentes que escolhem cada um desses trabalhos têm de saber orientar-se na oficina. Sendo certo que contam com apoio de alguém mais capacitado, à medida que o tempo vai passando a promessa da consolidação dos gestos e dos desempenhos autónomos e responsáveis vai estando cada vez mais no centro das apreciações dos técnicos.
Isto é, sendo objetivos traçados para o manejo das coisas, considera-se também como propósito todo um outro conjunto variado de práticas que regulam aquelas atividades. O treinamento que requer tempo para as aprendizagens merece também ser considerado como meio para apurar quem vai apresentando condições de conseguir organizar-se para o desempenho global da atividade, seja ela qual for. E aquela avaliação requer a aplicação de múltiplos juízos. Saber orientar-se no espaço, demonstrar conhecimento de como administrar o tempo, no final deixar a banca limpa e mostrar que antes de sair tem de arrumar os materiais e os instrumentos de trabalho segundo os procedimentos existentes em cada uma das oficinas.
É de notar que as diligências referidas estão inscritas em cada uma das expressões verbais que acompanham os objetivos do trabalho oficinal. Nesse sentido, por aqueles tempos e naqueles locais, quem lá está em representação da instituição espera que as atividades oficinais sejam um pouco mais do que meras ocupações. Estas têm dinamismos que oferecem competências, mas as capacitações que se prometem como recursos para a autonomia e a responsabilidade são conferidas pela inclusão nas oficinas.
Para além das propriedades capacitantes mencionadas, outras não se podem descartar. Prendem-se às sociabilidades (SIMMEL; HUGHES, 1949) as que têm também de dar valor quando estão juntas naqueles espaços. O que perguntar, como interrogar, como retirar benefícios da interajuda para o trabalho que fazem, manter adequadamente o tom de voz, respeitar os tempos da fala, honrar os compromissos, considerar a hierarquia da ordenação dos seres e objetos que povoam aquele espaço, são outras capacitações a que estão sujeitos a provar (BOLSTANSKI; THÉVENOT, 1999) ao longo do tempo.
Acomodar os corpos às situações: todos vulneráveis, todos resistentes
Tratar como capacitante a maneira como as sociabilidades se fazem naqueles espaços singulares significa que não é suficiente equacionar as questões morais trazidas pelas gramáticas da autonomia e da responsabilidade (GENARD, 2023) só sob o prisma das atividades que ligam os sujeitos aos objetos de produção. E não basta fazer intervir naquele binómio a intervenção dos equipamentos instrumentais que permitem a sua funcionalidade para se encontrar respostas aos problemas trazidos por aquelas gramáticas.
E por que é que não é equação suficiente para essa reflexão? Porque se o comum no plural (THÉVENOT, 2006) se faz com a contemplação de objetos não humanos, a humanidade dos seres que ali coexistem enquanto oficiam à medida que executam o que têm de fazer não pode ser descurada, justamente pelas razões das expressões adverbiais que a instituição usa e que dão o tom justificativo para a sua existência.
Hoje, no quadro da definição das políticas e ações públicas nesse âmbito, já não é aceitável que uma instituição dessa natureza exista nominalmente se estiver encarregue de ser exclusivamente um espaço de dormitório onde coexistem seres conotados socialmente como loucos (CASTEL, 2009; BARBIER, 2002; VRANCKEN, 2010). Atualmente, no quadro de uma antropologia que está cada vez mais a assentar na não exclusão quer dos seres, independentemente de qualquer categorização, quer dos não humanos, sem exceção de qualquer ser vivo, torna-se deplorável que instituições como esta sejam depósitos de seres humanos devidamente enclausurados e fechados para o mundo.
Para levar a cabo todas as consequências possíveis da aplicação dessa antropologia inclusiva (GENARD, 2009), as considerações disjuntivas associadas aos dois pólos (capacitados e incapacitados, ou autónomos e vulneráveis) já não são tidas como suficientes, e muito menos como satisfatórias. Nesse sentido, outra gramática foi-se substituindo a esta. E a sua aceitação já fez uma longa viagem, começando a ser nobilitada a partir dos anos sessenta do século passado.
É do conjuntivo que interessa agora tratar, uma vez que há uma equivalência de valor, quer quando se discorre sobre o capacitante e autónomo, quer quando se pensa no incapacitante, e, por isso, num ser em estado de vulnerabilidade. A paridade aqui delineada é do ponto de vista do seu tratamento humano, uma vez que os seres, sendo vulneráveis, como acontece com os residentes, não perdem na totalidade nem a sua autonomia nem a sua responsabilidade, mesmo que em situações concretas haja a necessidade de se contemplar complacências e desculpas pelos efeitos de determinadas práticas, ações e condutas.
E do mesmo modo perante falhas ou faltas cometidas sujeitam-se a experiências cujos problemas requerem deles retificações sem as quais reconhecem que podem ser punidos com sanções que os incomodam a ter de as cumprir. Dito de outra maneira, mesmo os mais vulneráveis não deixam de ser resistentes (BRODIEZ-DOLINO, 2015; CHANIAL, 2012). E atos de resistência apelam a práticas de sobrevivência ou de subsistência como armas de defesa da sua dignidade humana.
Do mesmo modo que se entregam ao trabalho que realizam nas oficinas, e como dão a conhecer que nem sempre tudo corre como esperam, no reconhecimento que em práticas inesperadas também pode haver falhas, isto é, erros de execução, os residentes que ali praticam ofícios diversos vão-se apercebendo que há reparações a fazer. Ora estas correções têm um amplo espectro.
E o seu alcance pode se dispersar em diversas ocorrências que não se ligam exclusivamente ao trabalho que estão a operar com maior ou menor determinação ou entusiasmo. Independentemente da natureza dos erros, das incorreções expressas pela maneira como atuam naqueles contextos, estas não deixam de se manifestar fora delas.
Através do senso que ali demonstram ao se aperceberem do engano, ou de um juízo inadequado, ou ainda do não cumprimento de regras estabelecidas, dão-se conta que estas ocorrências também resultam de atos acometidos por outras pessoas com quem lidam no quotidiano. E experimentam tais situações embaraçosas, incómodas ou desagradáveis, quer com outros residentes, mas também com técnicos e outros funcionários da instituição.
As queixas são indícios desse senso. Não só um senso sensorial, que decorre da sua corporalidade, mas reclamações indiciadas a partir de critérios razoáveis (BOLTANSKI, 1990; BREVIGLIERI, 2020, 2023; BREVIGLIERI; STAVO-DEBAUGE, 2007; LIVET; THÉVENOT, 1997; PIETTE, 2015; QUÉRÉ, 2021). Das que se escutam com regularidade, a questão da pouca comida com que são servidos às refeições é uma das mais recorrentes. E dirigem-se aos funcionários reclamando que estão com fome apesar de já terem almoçado. Habitualmente, a justificação que recebem deles é que a dose servida ao almoço é a medida adequada para as necessidades funcionais do seu corpo. Por vezes insistem, outras vezes não prolongam a conversa, dando conta que consideram o critério subjacente ao argumento avançado. No entanto, basta haver o afastamento da pessoa, para lapidarmente dizer de sua justiça: “isto não é forma de tratar um ser humano” (DC, 19 nov. 2020).
Outras vezes manifestam saudades dos seus familiares. E fazem sentir a sua ausência nos momentos das visitas. Durante a pandemia, as visitas exteriores foram condicionadas. Numa ocasião, um dos utentes queixou-se da ausência do seu irmão. A funcionária usou o vírus para justificar não ter havido essa visita. Perante a justificação, retorquiu que não a aceitava uma vez que os funcionários não residem na instituição, e, por essa razão, cada um deles pode trazer o vírus quando ali entram diariamente. E insiste com outro argumento: nem ele nem o irmão padecem da doença do vírus. Perante mais este motivo, a senhora remata a conversa, informando-o que vai verificar se é possível resolver o problema. A conversa teve um fim sem solução. E a amargura do residente nunca foi satisfeita, soube-se mais tarde em conversa com a funcionária.
Questões sobre o vestuário são outras das controvérsias escutadas e anotadas no caderno de campo. O vestuário é atribuído pela instituição. Mas não há um fardamento igual para todos. E às vezes os tamanhos da roupa distribuída não se adequam ao tamanho dos seus corpos. Foi o que referiu um dos residentes ao fazer a queixa num dado dia. A funcionária justificou com os problemas da lavandaria. Nem sempre se consegue lavar toda a roupa, e, por essa razão, o que lhe aconteceu naquele dia deve-se a esta razão. Respondeu de imediato que não estava de acordo porque para alguns nunca ocorria tal coisa. Serviu-se de uma medida de equivalência e assinalou preferências no modo de tratamento, em que uns são mais iguais do que outros. Nessa troca de argumentos, a funcionária explica-se que essa experiência desagradável calha a todos. Isto é, todos estão em situação de lotaria: uns dias são uns a sofrer com vestimentas com medidas pequenas, mas no outro dia podem ser outros. Mas este argumento não o satisfez, e após a retirada da funcionária desabafou com desagrado: “isto não é maneira de tratar as pessoas que pagam para estar aqui” (DC, 17 maio 2021).
Momentos similares também foram captados no atelier de pintura. Num belo dia, um dos pintores que habitualmente se serve das técnicas que essa atividade promove, deu-se conta que há poucas cores para pintar. A paleta está reduzida, o que lhe tolhe a criatividade, e mesmo a vontade de pintar. A pintora mostra-se solidária com o reparo, mas justifica a falta de materiais por causa dos poucos recursos para os adquirir num tempo apropriado. Por isso, a reposição é mais lenta. Curiosamente toda essa argumentação não tolhe o seu lamento: “e querem que façamos arte…” (DC, 21 abr. 2021). A monitora diz que “a arte é mais do que os materiais utilizados “, estimulando-o a prosseguir o trabalho. O residente, por seu turno, conclui: “não é bem assim… “. Isto é, o argumento fatalista não cola. E deixa no ar desafios à monitora para que esta reinvente outros argumentos mais aceitáveis para esta falha. Estimular a criação requer outros cuidados porque sem eles as práticas da pintura deixam de ser recursos para recarregar a autonomia que tanto almejam.
A moralidade como atos de existir: afeto-me em nome da arte
Em muitas das andanças naquele vasto território, o atelier de pintura foi dando a conhecer outras “pinturas” para além daquelas que eram vertidas para a tela pelos pintores abstratos que têm estado particularmente sob o nosso mirante. Parecendo uma impossibilidade inicial, à medida que os mergulhos naquele contexto se tornaram mais frequentes a intensidade do olhar foi cotejando situações em que desaguavam momentos hilariantes, não exclusivamente pelo divertimento que suscitavam os episódios recortados pelas anotações feitas, mas pelo espanto que causavam em virtude da sua natureza inusitada.
O que se passava é que a ordem habitual das cenas que os sentidos captavam, ora em ritmo de flash, ora num plongée mais pronunciado, permitiram rearranjar de outras formas a teia de relações que ali ia sendo urdida. De facto, o tempo conseguiu esculpir a desordem na ordem, e vice-versa, o que o imediato impossibilita em virtude não só da duração, mas sobretudo de ser inviável discernir entre o habitual e a raridade das ocorrências. Por outro lado, a curta permanência dificulta o propósito de atender às coisas que habitualmente são consideradas como menores (PIETTE, 2020). E existe essa atração fatal para dar existência às recorrências atribuindo às singularidades das situações um lugar de menor destaque para a análise.
Vaguear pelo tempo que foi passando não só conduziu às artes de usar os sentidos, mas também deu a possibilidade de os pintores observados mostrarem essa faculdade, dando dicas indiretas da melhor maneira de as agarrar, quer pelo olhar, quer pelo olfato. E este segundo aspecto não se pode descartar, mesmo quando os jogos de linguagem corporal mostravam certa aspereza. Não que houvesse penitência ou ausência de harmonia naquelas entregas não esperadas. O que, na verdade, revelavam eram práticas em que o depósito da confiança expressava a retribuição da atenção que lhes era dada à medida que os mergulhos naquele espaço foram sendo mais intensos, para além da frequência.
E este tem sido um dos ensinamentos retirados das devoluções que eram sensorialmente sentidas quando a nossa presença no terreno passou a ser entendida, gradualmente, pelos pintores como sendo nós um dos deles, e não um dos outros, isto é, mais um daqueles que ali estavam para monitorizar as suas atividades. Por isso, estes atos de deslocação da atenção deles para quem ali estava a observar o que faziam passou a ser entendida, de um lado, como um cuidado que manifestavam, mas do outro lado, como alertas para o despertar da nossa curiosidade por aquilo que o manejar corporal deles ia querendo dizer situação após situação.
Tais atenções não faziam atrair meras espreitadelas em relação àquilo que os corpos vulneráveis pretendiam afirmar com maior firmeza ou com dúvidas existenciais. O atrevimento devolvido pela sua corporalidade apresentava sentidos compósitos, mas nas suas composições estava sempre implícita a possibilidade de adentrar para apanhar aquilo que mantinham secreto para os outros aos quais respeitavam certa distância, mesmo que comedida. Tais permissões em mirar ofereciam sempre a possibilidade de passar da espreitadela rápida para a observação mais fixada, sempre que possível, nas suas atividades e nas suas práticas questionadoras, trazendo assim à liça as suas operações críticas (BOLTANSKI; THÉVENOT, 1999, 2020).
Desse modo, a ativação dos sentidos foi sendo preparada com o tempo de estadia, e o seu prolongamento permitiu espreitar melhor as diversas artes que aqueles pintores iam metendo nos seus diversos afazeres. E deixavam o temor de lado para interrogar a quem de competência, pelos seus direitos, e não só, porque confrontavam a própria natureza da instituição.
E não é do acaso que as inquirições aparecem com estes sentidos. Basta dar atenção ao que sucede com frequência indevida quando alguns dos residentes ensaiam chegar à fala com funcionários, monitoras ou técnicas de serviço social. É comum observar-se que quando algum dos residentes apela para a atenção de um dos funcionários quando os vê passar no seu horário de trabalho, estes, não raras vezes, não param para escutar o que aqueles lhes têm para dizer. É certo que pode dar-se o caso das queixas ou as reclamações a fazer sejam as mesmas que foram comunicadas dias antes ou até no próprio dia, as quais poderão já ter sido atendidas. É certo, ainda, que a disponibilidade dos funcionários para atender a todas as solicitações de que são objeto, para mais tratando-se no Pisão de uma população que tende à repetição, é limitada, obrigando uma administração do tempo por forma a conseguirem desempenhar as funções para as quais estão mandatados. No entanto, nestes casos, o que é facto é que se nota que nem sequer têm o cuidado de parar, olhar para o indagador e dar uma resposta qualquer, ou no mínimo acenar dando a entender que o chamamento foi considerado, isto é, que se aperceberam que aquele corpo tem a tangibilidade que a voz expressa naquele instante. Continuam a sua marcha e nem reparam na sua existência corpórea.
Parecem ser vivos porque estão certos de que ouviram e entenderam que tinham um pedido a fazer, um esclarecimento a solicitar, uma reclamação a lançar. Mas a indiferença (FREIRE, 2010) como que os tratam é como se a sua humanidade não habitasse aqueles seres instigantes e, pior ainda, estando estes eventualmente preocupados com alguma coisa que lhes afeta a sua estadia naquela instituição.
Afetações morais nas significações dos sensíveis gestos sensoriais: o grito da singularidade e da arte espelhada em si mesmo
Não é de somenos depararmo-nos com situações em que ocorrem entabulações como a que se segue, e onde o artista dá conta de como a pintura afeta (FAVRET-SAADA, 1990) o seu corpo. O efeito desta afetação é de tal modo pungente que altera a dinâmica da sua corporalidade. A deslocação que Bonifácio, pintor abstrato inscrito no atelier de pintura, faz sobre o assunto acerca da sua pintura é uma maneira de promover sinais não só sobre a energia dos seus gestos enquanto usa os pincéis, mas, sobretudo, para fazer notar que emprega toda a carga sensorial nestas práticas.
De tal forma é a qualidade que destina ao que faz que Bonifácio atribui à tela propriedades que ultrapassam a natureza objetivada dos materiais de que esta é composta (DASSIÉ, 2020).
Entende que objetivar a tela como equipamento de que se serve para expressar o que sente através da aplicação da paleta de cores que tem ao seu alcance não é de todo suficiente. Esta superfície branca a que se atribui um dado predicado não se reduz às formas e conteúdos que vai expressando, ou melhor, que vai dando conta até a pintura ficar concluída.
A afetação da tela está ligada à sua vida. Sem tela não existe como ser. Ela representa o “seu passado” (DC, 29 jul. 2020) como refere quando comenta o que faz no atelier. E a existência da sua vida manifesta-se pelo ato de pintar o que sente nos diferentes momentos reservados a esta atividade.
Projeta os tempos da sua vida por estas práticas. Busca na memória, daquilo que retira dos seus pensamentos, toda a “energia para pintar” (DC, 26/jun./2020), não se esquecendo de nomear que nesses pensamentos estão também incluídas as experiências que acolhe dentro da instituição.
Não pretende figurar-se como tantos outros. Não é esse o sentido do seu compromisso com a tela. Se a tela é a sua vida existencial, esta tem de transportar para os outros a sua singularidade. É este o seu senso moral, uma vez que cada quadro finalizado dá conta da propriedade autoral que não se pode partilhar com mais ninguém (RESENDE; CARVALHO, 2023).
A sua convicção é tão decidida que informa que “deixa quatro marcas de tinta com o próprio dedo nos quatro cantos da tela” (DC, 26 jun. 2020). Não só tudo é feito a dedo. O que importa é que no final não possa haver qualquer tipo de apropriação alheia. Estão lá as marcas do seu dedo. E as linhas que espelham o equipamento corporal que mais o enobrece deixam ali a “sua marca pessoal”. Na verdade, tudo se encaixa no seu compromisso com a arte. Para além do gosto, não obstante as dúvidas que o assaltam sobre os seus resultados, é a carga da sua pessoa que ali fica cravada.
Porque a imagem dos dedos na tela não se reduz à singularidade da sua pessoa. Não é exclusivo enquanto maneira de identificar a pintura. Sendo uma marca de si como resultado do seu trabalho, ela exprime também os outros lados dos seus traços que compõem a tela.
E o delineamento da obra que representa as pinceladas de que se servem as formas para que a pintura produza sentido também expressa conversas que enceta consigo próprio (DEPRAZ et al., 2006). E estes diálogos interiores que se exteriorizam nas artes de fazer a pintura permitem dar-se a conhecer aos outros como pessoa.
Dando-se a conhecer tal como entende ser a singularidade do seu eu espera do outro o reconhecimento (RESENDE; CARVALHO, 2020). Na autonomia vertida na obra deixada está requerida a sua responsabilidade uma vez que deste trabalho é possível observar os seus resultados (RESENDE; CARVALHO, 2023). Não é uma mera terapia. É um trabalho, é uma atividade que o desgasta física e emocionalmente. Neste sentido, exige respeito (ZACCAI-REYNERS, 2006) por aquilo que Bonifácio faz no atelier.
Num outro apontamento do diário de campo, o mesmo pintor, ainda antes de iniciar o seu trabalho, aproveita para desfiar uma confidência. Isto é, a comunicação é pessoal, o que revela confiança na relação entre o emissor e o destinatário da mensagem. O que revela é uma mágoa. Num primeiro momento parecia indicar que o que pretendia dizer era um mero desabafo. Mas à medida que descrevia a situação, foi dando a entender que o que guardara para si da ocorrência era bem mais doloroso do que a exteriorização de algo reprimido.
A comoção com a qual descreve o que aconteceu tornou possível identificar que estava ofendido com “a crítica que um monitor dirigiu ao seu trabalho nessa manhã” (DC, 16 set. 2020). E a ofensa foi sentida como um ultraje, isto é, abalou a sua integridade como autor das suas pinturas.
O que nos quis transmitir com a sua declaração é que não conferiu autoridade a quem monitoriza esta atividade para que este pudesse intrometer-se naquilo que pinta no atelier. Tais atos ultrapassam o aceitável (BREVIGLIERI, 2009) uma vez que foi sentido como uma ingerência indevida e, por isso, que não tem para ele qualquer legitimidade. Deste modo, aquele ato foi para si injustificável, e nesse sentido, a mágoa mostrada expressa um sentimento de injustiça.
Parece exagero fazer-se esta inferência em virtude de estarmos perante um ser vulnerável? O seguimento da sua conversa, o que avançou em seguida como fundamentação da sua crítica, mostra bem que as suas fragilidades cognitivas e comportamentais não apagam a razoabilidade da sua argumentação.
E como ser moral sabe distinguir, avaliar e valorar os atos de alguém com quem interage de acordo com a natureza dos significados que se apresentam a si como bons ou como maus (QUÉRÉ, 2015). E mesmo que a pessoa exerça sobre ele a autoridade naquele contexto - a referência é o monitor, o mandante dos comentários -, o seu lugar na ordem hierárquica requer dele outros compromissos que respeitem a sua grandeza inspirada (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2020). A graça como dom patenteada pelo trabalho é dele. E assume-a com responsabilidade (GENARD, 1999).
Indignado com ações intrusas, sente-se desassossegado e persegue o seu questionamento de modo a entender se esta sua convicção é convincente. E rema interrogando-se por interposta questão que lança ao observador: “como é que se sentiria se eu lhe dissesse que o que aponta aí no seu caderno é uma porcaria?” (DC, 16 set. 2020).
Para conferir se o sentimento de um ato moralmente reprovável para si é também um ato de envolvimento em prol de critérios justos, faz estabelecer na experiência descrita uma equivalência com aquilo que o observador sentiria se naquele instante estivesse no seu lugar (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2020). Ora, informa interrogativamente, coloque-se no meu lugar e diga-me se o seu trabalho fosse considerado uma coisa mal acabada ou sem valor como se sentiria perante estas críticas?
Pois é, o substantivo “porcaria” remete para algo que ou nada vale ou pouco vale. E esse algo nada mais é que o seu trabalho. E a pintura é para si um bem que representa um ofício, mas também um bem em si mesmo uma vez que pintar é também falar consigo mesmo. Neste sentido as práticas da pintura expressam intrigas que vêm de si. Indicam ao outro o si mesmo (RICOEUR, 2015), isto é, a tela expressa partes da sua autenticidade como ser (TAYLOR, 2018). E essa verdade apresenta para Bonifácio um valor inestimável.
Afetações em nome da arte: obras de arte não são obras de misericórdia
A centração em si não exclui o seu compromisso com práticas de outro foro. E esses envolvimentos em nome da arte apresentam igualmente uma carga moral, a qual é indissociável da sua ação (WERNECK, 2013, 2021; WERNECK; FERREIRA, 2023), no caso, pictórica. Há nas suas observações um sentido da responsabilidade em relação ao modo como se entrega às suas pinturas (RESENDE; CARVALHO, 2023).
A sua postura criteriosa relativamente àquilo que imagina ser o quadro que pretende adornar com cores usando gestos largos ou curtos é antecedida por cadências ora uniformes ora irregulares. O manejo das mãos com os pincéis aparenta uma certa técnica aprendida de uma prática constante e regular nos ateliers onde trabalha, nem sempre afincadamente, diga-se.
A tenacidade não tem horas marcadas. E isso confere-lhe um certo direito de se considerar artista. Nem sempre as horas destinadas institucionalmente à pintura são momentos de inspiração. Arte e obrigação impostas por aquilo que está convencionado pela instituição nem sempre combinam entre si. Quando a natureza do chamamento agarra, a inspiração atira-se para a tela. Esta é, como vimos, uma referência para a sua existência.
Nestes momentos, as práticas sobre a tela vão aperfeiçoando aquelas técnicas. Não deixa de procurar e explorar o inesperado quando está a pintar (AURAY; VÉTEL, 2013). E entende como arte as formas abstratas. De qualquer modo, não deixa de estar atento aos comentários de quem o acompanha no atelier (RESENDE; CARVALHO, 2021). Mas é dele o tempo para as apreciações.
No entanto, vai deixando claro que aqueles juízos não podem adentrar em críticas sobre o seu julgamento relativamente ao gosto que exprime quando considera que um quadro está concluído. Na verdade, nem sempre pinta num ápice os seus quadros. Tem de sentir que tem tempo para os remoer com o vagar de quem está a degustar o que faz com prazer. Retira deleite das pinturas, mas não deixa de mostrar reticências em relação a alguns dos resultados. Isto é, o agrado nem sempre lhe confere o consolo desejado.
Não autorizando que se imiscuam no gosto, tem também o cuidado de acompanhar as apreciações com os seus comentários. Não deixa por mãos alheias esta atividade. E não só: insiste quando tem a noção de que alguns comentários feitos pelas monitoras “não estavam nos melhores termos” (DC, 16 set. 2020). Tem o cuidado de confidenciar ao observador essa sua convicção.
Num belo dia em que se mostrou incomodado com comentários que uma dada monitora tinha feito da parte da manhã sobre aquilo que estava na tela, não satisfeito, à tarde volta a insistir para que a monitora se aproxime porque pretende falar de novo sobre esse assunto. Essa insistência dá mostra da sua insatisfação. Ou explicou-se mal, ou aquela não compreendera devidamente a mensagem da tela. E não desiste do feito. Resiste porque como artista tem o dever de se explicar corretamente.
E mantém a ação pedindo-lhe que venha de imediato “porque caso contrário, sem ouvi-lo não irá perceber bem o seu trabalho” (DC, 16 set. 2020). Reivindica para si a vontade de se justificar, para usar a reflexividade que mostra ter para se explicar a quem está no atelier a monitorizar o seu trabalho.
E esta supervisão requer avaliação em relação às atividades que ali estão a desenvolver. Sendo ele o autor da obra artística, o que ali está plasmado, fruto da energia corporal e de uma imaginação que busca inspiração no baú das memórias, tem de ter uma explicação sua.
Não importa haver discordâncias. O que vale é que tem voz e o que a tela mostra aos outros não é nada mais do que os seus pensamentos. E se a tela expõe a sua existência essa exposição afeta-o na sua plenitude.
A tela não desgruda dele. E apegando-se à tela não se desapega da sua vida que é narrada sucessivamente por cada uma das telas que já pintou. As consequências morais dos apegos (HENNION, 2017) são notórios. Na verdade, as telas são efervescências (DURKHEIM, 2013) das suas devoções a estas.
As inquietações são tão fortes quando Bonifácio está perante a tela que nunca deixa de falar sobre as suas pinturas, estejam estas concluídas ou não. Não foi despiciendo observar que por vezes ele matuta com frequência sobre as suas decisões em relação às deliberações a tomar sobre cada uma delas.
No seu juízo, as temporalidades (MOL; LAW, 1994) que interferem com as conclusões do seu trabalho não são sempre as mesmas. E utiliza essa vantagem quando dialoga com quem está a observar de perto o seu trabalho. E nessas interações joga com a linguagem sobre a finitude daquilo que está a fazer no atelier.
O pôr fim a um quadro tem uma latitude que não deixa de ser desconcertante. Do seu ponto de vista, tal desconcerto não é embaraçoso. Joga o jogo sobre o desfecho de um quadro sempre num panorama composto pela contingência, mas também pela ambivalência.
Neste sentido, usa taticamente a seu favor a ambiguidade e a eventualidade de pôr fim à pintura (CERTEAU, 2003; RESENDE; CARVALHO, 2020). E quase sempre usa uma medida justificativa para assentar o seu juízo quer na incerteza, quer na hipótese de pôr termo à obra em possibilidades em aberto nunca devidamente assertivas.
Isto não significa que para si esta realidade seja de todo irreal. Dito de outra maneira, Bonifácio não nega a substância da realidade que se apresenta a si, que há um tempo para pôr cobro à sua pintura. Deixa em aberto o acaso e o incerto porque joga na tensão entre aquilo que pretende revelar ou ocultar ao outro acerca da gestão da sua pintura. E é por este sentido que “esboçando uma expressão «matreira»“ informa o observador que o acompanha de perto: “não sei se está a compreender, porque há coisas que eu não lhe posso dizer...” (DC, 23 set. 2020).
Isto é, a decisão de se a obra está ou não terminada pertence a um tempo que é exclusivamente do artista. E o denominado oficiador da arte é Bonifácio e mais ninguém.
Se quem espreita ou observa atentamente a obra dele entende que esta está finalizada, tal entendimento não é certo para o autor. Há sempre a tal eventualidade e ambiguidade na decisão em relação ao tempo da sua contingência. Esta é sempre uma possibilidade entre outras. E Bonifácio confessa no final da sessão que afinal vai desdizer-se, uma vez que considera que a tela ainda não está terminada.
E, então, por que lhe não convém dar por finalizada a tela? Esta é uma questão previsível quando alguém afirmara com segurança que aquela pintura estava terminada. Ao surpreender o outro com a resposta contrária permite que se indague “o que está a pensar ainda fazer”. Perante a tentativa de descoberta daquilo que vem a seguir, este responde “com um sorriso estampado no rosto: «fica para surpresa»“ (DC, 23 set. 2020).
Avistar o que vai suceder a seguir fica em aberto. O jogo é justamente dar continuidade ao jogo que a tela ainda não concluída abre à sua frente, e que lhe permite enfrentar quem estava certo do contrário.
Não, a arte que afeta Bonifácio permite-lhe conferir a conclusão ao jeito de quem pinta e não de quem está a olhar com atenção aquilo que ele é capaz de fazer. E disso não abre mão. E se quem ali está pretende saber o que se vai passar a seguir, então tem de continuar a jogar com ele um jogo cujo fim está exclusivamente na sua posse. É Bonifácio que determina a indeterminação dos atos de conferir a conclusão daquele quadro. Não se trata tanto de retirar benefícios desta indecisão. O que parece estar em causa é a vontade de muralhar os seus mundos como artista. É esta proteção que pretende garantir. E esta vontade expressa uma responsabilidade moralmente válida.
Do desfecho da tela: o que fica para compor?
Não parece ser suficiente fechar o desfecho da tela sem ter em conta que são as práticas de envolvimento de Bonifácio e outros atores que nos permitem retirar as principais ilações daquilo que ocorre no Pisão no âmbito das consequências dos seus gestos morais em contexto institucional. Estamos, como vimos, perante uma instituição particular.
O CASP é uma das muitas Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) que proliferam em Portugal. O estatuto destas instituições exige delas atuações concretas de proteção a pessoas vulneráveis. No caso presente, o seu objeto principal visa principalmente proteger pessoas vulneráveis. São seres qualificados como portadores de múltiplas incapacidades cognitivas e motoras derivadas de doenças do foro psíquico.
Contudo, as ações públicas a que se dedica não se concentram na assistência e proteção a estes seres. A sua missão é mais abrangente. Por isso, a intervenção de médicos, técnicos e outros funcionários aponta para um trabalho diário com as pessoas no sentido de adotar atividades que correspondam às capacitações que aqueles revelam perante as ações propostas. Nem todos se mostram capazes de se inserir em atividades que possibilitem ganhos de capacitação tão alargadas quanto aquilo que conseguem demonstrar nos treinamentos previstos. Estando perante aptidões distintas, avaliadas segundo parâmetros e medidas adequadas a cada uma das tarefas propostas, os compromissos que estes trabalhos requerem são também diferentes.
Toda a trama que foi objeto de análise envolveu justamente atores como Bonifácio, que têm feito prova de serem capazes de se envolver em atividades oficinais que promovam proveitos em termos de autonomia e de responsabilidade. São as suas experiências resultantes dos seus envolvimentos situados que tornaram possível caminhar para o desfecho da tela, que, num sentido figurado, significa fechar esta discussão sociológica sobre as moralidades em contexto institucional.
E as praticidades desses atores em situação de vulnerabilidade mostraram-se compostas de sentidos institucionais imprevisíveis, considerando as análises apresentadas no texto. Todos os cenários apresentados são telas encerradas na instituição. E mesmo se algumas ensaiam entretecer fios que se projetam para fora, as suas exposições não vão além de territórios bem delimitados.
E, como descrevemos, as fronteiras não são imaginárias. São tangíveis quer pelas cercas que os rodeiam quer pelas cancelas que fixam os limites para entrar ou sair. Ora, nos espelhos que as telas projetam não estão presentes exclusivamente fachadas de portais envidraçados que, embaciados, podem desdobrar os sentidos morais retirados das situações recortadas. Isto é, aqueles espelhos não apresentam propriedades que ofuscam os sentidos dos gestos de moralidade que ali coexistem com frequência. Entre muitas daquelas composições, é possível escrutinar operações críticas que não só são justificadas com a razoabilidade esperada como também põem o dedo na ferida de uma problemática moral que por hábito não se apresenta em termos aceitáveis.
E se as limitações do aceitável podem ser apontadas à ampla paleta dos seus decibéis, cujas variações até podem causar surdez (VON DER WEID, 2018), como acontece com a indiferença perante solicitações frequentemente reclamadas pelos residentes, outras mostram asperezas com níveis de intensidade diferenciados. Entre estes encontram-se, por exemplo, a mágoa cuja dor na frequência como é cometida pode ter como consequência a corrosão, mesmo que benigna, da identificação de si (BREVIGLIERI; STAVO-DEBAUGE, 2004).
Benigna porque provavelmente se espera que o esquecimento atenue os seus efeitos. Mas não é irrazoável avançar com a hipótese contrária: a de causar uma identidade magoada (POLLAK, 1993) que permanece no tempo e que a melancolia (JANKÉLÉVITCH, 2011; STAROBINSKI, 2013) expressa os seus efeitos.
Tudo isto remete para as afetações que agastam pensamentos práticos, mas ao mesmo tempo chamam a atenção para o lado existencial de objetos que se atravessam naquelas vidas. É o que acontece, por exemplo, com a medida do vestuário oferecido pela instituição e pela tela que apresenta a propriedade de contribuir para a existência de Bonifácio dentro e fora do Pisão.
Destinações projetadas na singularidade do seu ser através das obras que produz, mas igualmente marcações que se instalam no seu interior pela vontade que exprime ao pintar, que ao se exteriorizarem expõem-se como gritos em prol da arte que pratica, cujas ações as distingue de meros atos de autocomiseração. Dito de outra maneira, as telas pintadas são o resultado de um trabalho energético, interior e exterior, atividades que não se compadecem com políticas de piedade e de compaixão (CLEMENT, 2018; CORCUFF, 2005).
É certo que não as rejeita, mas o reconhecimento que clama aponta para outras amplitudes. Da grandeza de inspiração (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2020) que, quer ele, quer alguns outros, reivindicam abertamente pelo respeito (ZACCAI-REYNERS, 2006) da singularidade (HEINICH, 1997), apelam igualmente para seu renome (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2020) como pintores abstratos. Sabem, como já foi referido em outros textos (RESENDE; CARVALHO, 2020, 2021, 2023), que têm mercado fora da instituição. E é por esta sageza que se agarram para defender a sua pessoa como artistas que são pelo reconhecimento conferido por quem compra a arte que ali produzem tenazmente.
São justamente as práticas de resistência que lhes conferem a propriedade de gestos morais significativos. E pela sua praticidade constante, mesmo que apelidados de refilões, que as moralidades expostas estão suportadas pela autonomia e responsabilidade que indicam possuir quando as cenas de enquadramento passam de meros ambientes de luz insuficiente para outras cujas luminosidades transformam as reclamações em críticas límpidas. Tidos como respondões - pessoas que refilam muito, isto é, mordem os calcanhares de quem os acolhe -, as suas reações tornam-nos seres existentes mesmo que a sua existência possa parecer suspensa ou evitada por certos atos de desapego.
Finalmente, e para que o desfecho da tela abra outras composições, tomamos de empréstimo as reflexões deixadas por Jean-Louis Genard (2020) sobre os mantos da moral erguidos a partir da tese da excecionalidade humana. No seu entender, a referida prerrogativa está a chegar ao fim. Outros seres vivos são cada vez mais convidados a ser incluídos nos debates sobre a equação entre a autonomia e a responsabilidade. E nesta inclusão não esquece artefactos que são a extensão dos humanos fruto das transformações tecnológicas (WEID, 2015). Nesse sentido, a problemática da moral não abraça tudo aquilo que somente diga respeito ao binômio disjunção e conjunção associado aos humanos que pela atuação da razão se podem apresentar nas arenas públicas. A composição do conjuntivo é alargada a toda uma outra gama de seres humanos e vivos, contemplando igualmente as aproximações humanas via robôs ou via inteligência artificial (LATOUR, 1994).
Transpor essas meditações para dentro do Pisão abre a paleta dos desafios que estando a ser defrontados talvez mereçam um cuidado acrescido. E um dos merecimentos a ter em conta são justamente os gestos morais expostos por Bonifácio e outros residentes. Os seus envolvimentos manifestados pelas operações críticas indiciam garantias de autonomia e de responsabilidade a levar mais a sério. Por outro lado, destes saem outros envolvimentos que clamam seriamente para que os bens reclamados sejam elevados na sua generalidade em prol de uma humanidade comummente ordenada (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2020; THÉVENOT, 2006), justificando processos de equivalência não reconhecidos institucionalmente.
Na verdade, estas notas fazem compor outras partituras sobre as práticas a que os seus envolvimentos respondem, mas que parecem ainda carecer de valor. Ao censurá-los, ou ao evitar retirar deles preceitos válidos, não se está a atribuir importância à gramática de responsabilidade (GENARD, 1999) que aqueles gestos comprovam amiudadamente.
Além dos exemplos aqui mencionados, outros casos foram anotados, o que revela que, no Pisão, a comunalidade (THÉVENOT, 2014, 2020, 2022) é composta e recomposta por cenas cujos enquadramentos ligam os residentes aos ambientes que lhes dão vida, isto é, tem uma dinâmica própria (OGIEN, 2014; RAWLS, 2010). E neste dinamismo estão presentes gestos morais que por vezes passam despercebidos. E a sua obscuridade desloca a centralidade desta gramática, que merece ser tida em conta no dia a dia. Não levar a sério esta advertência faz com que não se colha as ilações dos efeitos das ações dos humanos ali presentes que manifestam os envolvimentos narrados.
E se os seres vulneráveis são compostos de resistência, como já foi mencionado, tem de se admitir que da sua praticidade ocorram faltas que se cometem, ou falhas. E umas e outras transferem o questionamento para a irresponsabilidade. No entanto, só há atos classificados como irrefletidos porque estes se defrontam com a trama da responsabilidade não praticada. E, sendo identificados, não é descartável que assalte o desejo, se não mesmo a vontade, de tentar remediar o mal que possam ter causado com ou sem intencionalidade naqueles contextos. A sua remediação está nos palmos de cada uma daquelas mãos. E assistimos ao seu acontecimento devidamente reconhecido.
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