RESUMO
A digitalização tem potencial de provocar transformações na organização da produção internacional e no escopo e extensão das cadeias globais e regionais de valor (CGVs), com efeitos sobre as possibilidades de inserção dos países em desenvolvimento. A contribuição deste artigo é analisar potenciais impactos da digitalização sobre as CGVs, identificando algumas particularidades do caso brasileiro à luz do seu padrão de inserção nas CGVs. O artigo apresenta a importância das tecnologias digitais, em um primeiro momento, para viabilizar a conformação das CGVs. Já no período marcado pela “desglobalização”, as tecnologias digitais são adotadas pelas empresas líderes para mitigar os problemas associados às estruturas de produção verticalmente fragmentadas e aos riscos sistêmicos associados à extensão das cadeias. Ao considerar como as tecnologias digitais podem influenciar a organização da produção internacional e as estruturas de governança das CGVs, o artigo aponta tendências multifacetadas e, por vezes, de direções contrárias. Dentre elas, o aumento da concentração de valor gerado nos países desenvolvidos e a ampliação das dificuldades de inserção dos países em desenvolvimento, sobretudo daqueles especializados em atividades intensivas em mão de obra e com significativos atrasos para adoção de tecnologias digitais.
PALAVRAS-CHAVE
Digitalização; Cadeias globais de valor; Reshoring; Adensamento produtivo
ABSTRACT
Digitalization can change how global production is organized and the scope and extension of global and regional value chains (GVCs), with substantial impacts on the GVC participation of developing countries. This paper analyzes the potential impacts of digitization on GVCs, identifying some particularities of the Brazilian case in light of its insertion pattern in GVCs. We show the importance of digital technologies, at first, to enable the conformation of GVCs. In the period marked by “deglobalization”, digital technologies are adopted by leading companies to mitigate the problems associated with vertically fragmented production structures and the systemic risks associated with the extension of chains. By considering how digital technologies can influence the organization of international production and the governance structures of GVCs, the analysis reveals multifaceted and somewhat contradictory trends, including the increased concentration of value-added in developed countries and even more significant difficulties for developing countries’ GVC participation, especially those specialized in labor-intensive activities lacking sufficient technological capabilities.
KEYWORDS
Digitalization; Global value chains; Reshoring; Industrial densification
1. Introdução
As tecnologias disruptivas da era digital impulsionam a reorganização dos processos produtivos no âmbito doméstico e internacional, com efeitos sobre a competitividade de empresas e países. A digitalização é um fator preponderante nessa transformação, que está sendo acelerada pelos efeitos da pandemia do coronavírus à medida que a economia global se tornou cada vez mais virtual devido às medidas de distanciamento físico (ORGANIZATION FOR ECONOMIC COOPERATION AND DEVELOPMENT, 2021ORGANIZATION FOR ECONOMIC COOPERATION AND DEVELOPMENT – OECD. The digital transformation of SMEs. Paris: OECD Publishing, 2021. (OECD Studies on SMEs and Entrepreneurship).). Pesquisas recentes investigaram como produtos e serviços digitais estão reconfigurando os setores tradicionais – processo que tem sido denominado “transformação digital” – e examinaram as tendências de digitalização1 1 Brennen e Kreiss (2014) estabelecem uma distinção conceitual entre o processo amplo de digitalização e os processos técnicos subjacentes da digitalização (i.e., ¨digitização¨), pelos quais a informação é convertida de fluxos analógicos para digitais. intersetoriais (UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT, 2017UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. Information economy report 2017: digitalization, trade and development. Geneva: United Nations Publication, 2017.; ORGANIZATION FOR ECONOMIC COOPERATION AND DEVELOPMENT, 2017ORGANIZATION FOR ECONOMIC COOPERATION AND DEVELOPMEN T – OECD. OECD digital economy outlook 2017. Paris: OECD Publishing, 2017.). O diagnóstico sugere que, no lugar de ficarem confinados aos setores de alta tecnologia, os produtos e serviços digitais facilitam mudanças mais rápidas em uma ampla gama de setores. Assim, a digitalização pode ocasionar a transformação digital das economias e ter diferentes impactos na forma como países e empresas criam e capturam valor ao longo das cadeias globais e regionais de valor (CGVs).
A digitalização é usualmente compreendida como um processo pelo qual as tecnologias, serviços, produtos, técnicas e habilidades digitais difundem-se nas economias (UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT, 2019UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. Digital economy report 2019: value creation and capture: implications for developing economies. Geneva: United Nations Publication, 2019.). Diversos domínios da vida social são reestruturados a partir da adoção e da ampliação do uso de tecnologias digitais por organizações, indústrias e países (BRENNEN; KREISS, 2014BRENNEN, S.; KREISS, D. Digitalization and digitization. Culture Digitally, 8 set. 2014. Disponível em: <https://culturedigitally.org/2014/09/digitalization-and-digitization/>. Acesso em: 13 set. 2021.
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A partir de uma perspectiva analítica focalizada em tecnologias específicas, pode-se dizer que o uso de tecnologias digitais nos processos de produção cobre a fronteira das tecnologias baseadas na Internet: a Internet das Coisas (IoT), nuvem, realidade aumentada e virtual (AR e VR) e tecnologias baseadas em plataforma, incluindo e-commerce, fintech e blockchain (UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT, 2019). A análise de Big Data também é considerada instrumental e possibilitada pela digitalização (UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT, 2020b).
. Em sentido amplo, a digitalização abrange uma variedade de soluções baseadas em tecnologias digitais de diferentes gerações, aplicadas no desempenho de diferentes funções organizacionais das empresas (INSTITUTO EUVALDO LODI, 2018INSTITUTO EUVALDO LODI – IEL. Síntese dos resultados. In: INSTITUTO EUVALDO LODI – IEL. Indústria 2027: riscos e oportunidades para o Brasil diante de inovações disruptivas. Brasília: IEL/NC, 2018.). Frederick, Bamber e Cho (2018)FREDERICK, S.; BAMBER, P.; CHO, J. The digital economy, global value chains and Asia. Durham: Duke University Global Value Chains Center e Korea Institute for Industrial Economics and Trade, 2018. definem duas categorias de tecnologias digitais no contexto da manufatura: tecnologias de produção, que envolvem as áreas de automação e manufatura aditiva, e serviços associados ao processo de coleta de dados, análise e novos modelos de negócios disponíveis pelos mais recentes avanços digitais, como big data e Internet of Things (IoT). A United Nations Conference on Trade and Development (2020b)UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. World investment report 2020: International production beyond the pandemic. Geneva: United Nations Publication, 2020b., por sua vez, reafirma o caráter heterogêneo das tecnologias digitais em termos de escopo tecnológico, adoção entre setores e maturidade técnica e de mercado.
Pode-se questionar em que medida as tecnologias digitais constituem uma “revolução” paradigmática, ou seja, uma transformação na definição dos problemas relevantes e nos padrões de investigação para resolvê-los. A partir dessa noção implícita de paradigma tecnológico, os princípios científicos e técnicos relevantes para cumprir tarefas e as tecnologias específicas empregadas no âmbito da digitalização dão corpo a um paradigma tecnológico bem delimitado, já que envolvem padrões específicos de solução para problemas técnico-econômicos selecionados3 3 De maneira geral, os paradigmas tecnológicos delimitam as restrições operacionais nas melhores práticas prevalecentes e cada paradigma envolve uma heurística de pesquisa específica. Porém, ainda assim, é possível vislumbrar a geração de variedade de produtos e processos, com possíveis compensações de características de produção que diferentes produtores exploram (DOSI; NELSON, 2010). Ademais, como ressaltado pelos autores, os avanços nas bases de conhecimento podem estar entrelaçados com novas fontes de conhecimento, o que faz com que a delimitação das “revoluções” paradigmáticas seja uma tarefa ainda mais difícil, como parece ser o caso no âmbito das tecnologias digitais. . Assim, é importante ressaltar que, em função da natureza dessas tecnologias, os impactos delas sobre a organização da produção internacional nos próximos anos ainda são incertos e poderão ser consubstanciados de distintas maneiras, sendo um tema de grande relevância para os formuladores de políticas econômicas. Em particular, ainda é incipiente o número de pesquisas que abordam a relação entre tecnologias digitais e a reorganização da produção internacional sob a perspectiva dos países periféricos, enfoque particular desta pesquisa que versará sobre o caso brasileiro.
Pesquisas recentes ressaltam que a digitalização da manufatura vem alterando a reconfiguração da organização geográfica da produção, modificando os modelos de negócios das empresas líderes e impulsionando a realocação da produção em direção aos países de origem ou para perto dos mercados finais (SZALAVETZ, 2019SZALAVETZ, A. Digitalisation, automation and upgrading in global value chains–factory economy actors versus lead companies. Post-Communist Economies, Abingdon, v. 31, n. 5, p. 646-670, 2019.; STRANGE; ZUCCHELLA, 2017STRANGE, R.; ZUCCHELLA, A. Industry 4.0, global value chains and international business. Multinational Business Review, Detroit, v. 25, n. 3, p. 174-184, 2017.). Para além da reconfiguração geográfica, este artigo argumenta que as tecnologias digitais transformam as estruturas de governança das cadeias globais e regionais de valor, caracterizadas pela intensa interdependência entre empresas líderes globais e fornecedores dispersos internacionalmente, especialmente no que diz respeito aos limites da estrutura de propriedade e de governança de determinada empresa (insourcing versus outsourcing). Dessa forma, a transformação digital da manufatura poderá impor desafios adicionais aos países periféricos, em especial aos países especializados em atividades intensivas em mão de obra (as “economias de fábricas”, ver BALDWIN, 2019BALDWIN, R. The globotics upheaval. Oxford: Oxford University Press, 2019.), tanto no que diz respeito à participação nas CGVs como ao emparelhamento interpaíses.
Este artigo investiga as mudanças induzidas pela transformação digital na organização da produção internacional, com especial atenção aos efeitos da digitalização sobre as cadeias globais e regionais de valor. Tendo em vista que estabelecer causalidade no âmbito do comércio internacional e, mais especificamente, no contexto das CGVs, não é tarefa simples, tal como amplamente discutido por Taglioni e Winkler (2016)TAGLIONI, D.; WINKLER, D. Making global value chains work for development. Washington, D.C.: The World Bank, 2016. 289 p.4 4 Taglioni e Winkler (2016) discutem que a causalidade entre a participação nas CGVs e o desempenho dos países pode ocorrer em ambas as direções, quer se considere a integração nas CGVs como endógena aos desenvolvimentos do ambiente econômico. , este artigo retrata a importância das tecnologias digitais em uma estrutura de produção verticalmente fragmentada de maneira compatível com o ordenamento cronológico das mudanças ocorridas na organização da produção internacional. Ou seja, em um primeiro momento, destaca-se a importância das tecnologias digitais para a fragmentação e dispersão internacional de etapas dos processos produtivos, conformando as CGVs. Em um segundo momento, discute-se como as tecnologias digitais foram adotadas pelas empresas líderes para mitigar os problemas associados às estruturas de produção verticalmente fragmentadas e aos riscos sistêmicos associados à extensão das cadeias de suprimento globais. Ademais, a partir da relação entre transformação digital e reorganização da produção internacional, este artigo buscará ainda apresentar os principais desafios associados ao caso brasileiro, tendo em vista o padrão de inserção do Brasil nas CGVs. Como contribuições, espera-se identificar tendências na reorganização das cadeias globais e regionais de valor decorrentes da transformação digital e implicações para a inserção dos países periféricos, onde o uso em grande escala dessas tecnologias ainda está se desenvolvendo.
A estrutura do artigo é a seguinte: a próxima seção discute as mudanças na organização da produção internacional e a importância das tecnologias digitais. Em um primeiro momento, discute-se a emergência das CGVs, reconhecendo as tecnologias digitais como fator condicionante e, ao mesmo tempo, a influência delas sobre a estrutura de governança das cadeias. Em seguida, discute-se as mudanças mais recentes na organização das CGVs, apresentando as principais hipóteses exploratórias a respeito da reorganização estratégica das cadeias globais e regionais de valor em curso. A terceira seção discute os principais desafios para o caso brasileiro frente às mudanças da organização da produção internacional, tendo em vista o padrão de inserção do Brasil nas CGVs e seu estágio de transformação digital. A última seção tece as considerações finais.
2. Tecnologias digitais no contexto da produção verticalmente fragmentada
2.1 Sobre a emergência das CGVs
O ritmo, a escala e o escopo das CGVs levantaram uma série de questões sobre quais são os fatores que influenciam a decisão das empresas de fragmentar internacionalmente sua produção. O aprofundamento da integração da economia global no âmbito do comércio internacional, associado à fragmentação de processos produtivos liderados por empresas que terceirizaram algumas de suas atividades (essenciais e, especialmente, não-essenciais), teve elementos de variadas origens como forças motrizes, traduzindo-se em um dos pilares fundamentais do que Baldwin (2006)BALDWIN, R. Globalisation: the great unbundling(s). In: SECRETARIAT OF THE ECONOMIC COUNCIL (Org.). Globalisation challenges for Europe and Finland. Geneva, 2006. p. 1-51. chamou de “segunda onda de globalização”. Em particular, o avanço da digitalização foi imprescindível enquanto base tecnológica que possibilitou o arranjo da produção internacional nos moldes observados a partir da década de 1980.
De acordo com Baldwin (2013), aBALDWIN, R. Global supply chains: why they emerged, why they matter, and where they are going. In: ELMS, D. K.; LOW, P. (Org.). Global value chains in a changing world. Geneva: WTO Publications, 2013. p. 13-60. revolução das TICs contribuiu para que grande parte do international sourcing deixasse de ser feito entre economias maduras. A inclusão de países em desenvolvimento, que passaram a importar insumos, processá-los e exportá-los na forma de bens, peças, componentes e serviços (TAGLIONI; WINKLER, 2016TAGLIONI, D.; WINKLER, D. Making global value chains work for development. Washington, D.C.: The World Bank, 2016. 289 p.), dependeu de inovações tecnológicas intimamente ligadas às TICs que possibilitaram às ETNs dos países centrais coordenar todas as etapas da produção à distância, sem aumentar os custos atrelados a esta atividade, mantendo intacta a comunicação entre segmentos produtivos dispersos (RODRIK, 2018RODRIK, D. New technologies, global value chains, and the developing economies. Cambridge: NBER, 2018. (NBER Working Paper Series, 25164).). Naquele momento, as ETNs dos países centrais estavam também usufruindo das grandes diferenças salariais entre seus ambientes domésticos e aqueles para onde as etapas produtivas seriam alocadas, tornando a produção globalmente dispersa uma alternativa lucrativa (BALDWIN, 2013BALDWIN, R. Global supply chains: why they emerged, why they matter, and where they are going. In: ELMS, D. K.; LOW, P. (Org.). Global value chains in a changing world. Geneva: WTO Publications, 2013. p. 13-60.). No entanto, como será visto adiante, alguns autores argumentam que os efeitos da automação tornariam os diferenciais de custos trabalhistas cada vez mais obsoletos (DE PROPRIS; BAILEY, 2020DE PROPRIS, L.; BAILEY, D. Industry 4.0 and regional transformations. Abingdon: Routledge, 2020.; DE PROPRIS; PEGORARO, 2019DE PROPRIS, L.; PEGORARO, D. Technological disruptions and production location choices. In: CHIDLOW, A. et al. (Org.). The changing strategies of international business: how MNEs manage in a changing commercial and political landscape. Cham: Springer International Publishing, 2019. p. 221-240.).
As necessidades econômicas expressas no paradigma técnico-econômico mostraram-se, assim, guias relevantes para as direções do desenvolvimento tecnológico. Por um lado, a dispersão das etapas produtivas remetia a um trade-off entre menores custos produtivos e maiores custos de coordenação, implicando inclusive o nível de fragmentação da produção (DE BACKER; MIROUDOT, 2013DE BACKER, K.; MIROUDOT, S. Mapping global value chains. Paris: OECD Publishing, 2013. p. 1-46. (OECD Trade Policy Papers, 159).; JONES; KIERZKOWSKI, 2001JONES, R. W.; KIERZKOWSKI, H. A framework for fragmentation. In: ARNDT, S.; KIERZKOWSKI, H. (Org.). Fragmentation: new production patterns in the world economy. New York: Oxford University Press, 2001. p. 17-34.). Por outro lado, o avanço da microeletrônica e o uso das TICs baratearam o controle e otimização remotos e em tempo real de etapas dos processos produtivos. Em outras palavras, os avanços das TICs permitiram coordenar o novo e complexo paradigma de produção à distância, uma vez que ferramentas mais baratas e confiáveis aumentaram a negociabilidade de bens e serviços (ORGANIZATION FOR ECONOMIC COOPERATION AND DEVELOPMENT, 2013ORGANIZATION FOR ECONOMIC COOPERATION AND DEVELOPMEN T – OECD. Interconnected economies: benefiting from global value chains. Paris: OECD Publishing, 2013.).
Outro fator relevante que influenciou a dispersão global da produção está relacionado aos custos de comercialização5 5 Os custos comerciais incluem todos os custos entre o fornecedor e o consumidor final, incluindo, no caso de mercadorias, transporte terrestre, custos portuários, custos de frete e seguro, tarifas e taxas, custos não tarifários, mark-ups de importadores, atacadistas e varejistas; e, no caso de serviços, custos de comunicação e barreiras comerciais, como medidas não tarifárias (DE BACKER; MIROUDOT, 2013). (HUMMELS, 2007HUMMELS, D. Transportation costs and international trade in the second era of globalization. The Journal of Economic Perspectives, Nashville, v. 21, n. 3, p. 131-154, 2007.). Com avanços tecnológicos nas áreas de transporte e comunicação, o deslocamento marítimo e aéreo de mercadorias experimentou melhorias significativas, dadas por desenvolvimento de novos materiais, adoção de motores mais eficientes – como em aeronaves a jato -, maior intermodalidade do transporte, crescente automação e uso cada vez mais disseminado de contêineres. A redução do custo de transporte responderia não somente pelo aumento do comércio internacional, com a integração de uma quantidade maior de economias à produção global, mas também pelo crescente fluxo de bens intermediários, isto é, de peças, componentes, insumos e matérias primas que, extraídos ou produzidos em um país, deslocavam-se para outras economias para que fossem processados ou montados, num contexto de processos produtivos fragmentados.
Athukorala (2005)ATHUKORALA, P. Product fragmentation and trade patterns in East Asia. Asian Economic Papers, Canberra, v. 4, p. 1-27, 2005. observa uma relação de mão dupla entre o aprofundamento da fragmentação internacional e a melhoria das tecnologias de produção, indicando que estas, ao permitir a divisão dos bens em componentes mais finos e portáteis, também possibilitaram maior penetração nos diferentes e mais especializados mercados e maior fragmentação das cadeias de valor, estimulando novos esforços tecnológicos e, assim, ainda maior fragmentação do produto. A estes avanços, circunscreve-se o desenvolvimento de novos materiais, o progresso técnico associado à produção de máquinas e equipamentos com capacidade de produção mais precisa de peças e componentes miniaturizados, a robotização capaz de integrar estas peças e componentes para a montagem do bem final e a introdução de automação flexível, que possibilitou maior diferenciação de produtos finais sem a perda de economias de escala, num processo que se denominou “customização em massa”6 6 Coutinho (1992) já apontava que, ao longo dos anos 1980, o uso crescente dessas tecnologias, conformadas no que o autor denominou “complexo eletrônico”, produziu um verdadeiro “vendaval de destruição criativa”, contemplando um amplo espectro de aplicações na produção dos mais variados bens e serviços. A revolução técnica constituiu um novo paradigma tecnológico, com difusão exponencial viabilizada pela produção em larga escala de chips cada vez mais avançados, capazes de permitir crescente capacidade de programar processos de automação a partir de computadores dedicados a guiar sistema de máquinas. . Assim, as tecnologias de produção também foram responsáveis pela mudança de âmbito no qual se daria a competição internacional – antes principalmente no nível dos setores produtivos, estabelecendo-se, a partir do aprofundamento da fragmentação da produção global, no nível das etapas de produção de um processo produtivo.
A natureza da evolução das tecnologias digitais é fundamental para compreender as formas como se organizaram as redes produtivas de comércio e os fluxos de investimento responsáveis pelas modificações da produção internacional a partir da década de 1980. Algumas dessas questões incluem a possibilidade de apropriação do conhecimento e a capacidade para sua codificação, a direção de trajetórias tecnológicas e a base de capacitações potencialmente úteis para lidar com os problemas associados às novas tecnologias. Tais questões estão no âmbito das estratégias empresariais decisivas para o fenômeno da fragmentação produtiva e da emergência das CGVs, sobretudo quando competem às grandes corporações transnacionais.
2.2 A reorganização da produção internacional e os avanços das tecnologias digitais
Se o avanço da microeletrônica foi um dos fatores responsáveis pelo movimento de fragmentação produtiva nos anos 1970 e 1980, o incremento da automação e da conectividade no processo de produção, com a ampliação recente da transformação digital pelo uso de diversas tecnologias, tais como sensores, impressão 3D, processos computacionais poderosos, robôs inteligentes, drones autônomos e inteligência artificial, também foi e está sendo capaz de transformar padrões de organização da produção internacional. Tal transformação envolve tanto a alocação de tarefas dos processos produtivos, como a quantidade de atores envolvidos, sua dispersão geográfica e a qualidade de suas funções nas redes produtivas.
De forma geral, as transformações na produção internacional decorrentes do uso de tecnologias digitais avançadas nos processos produtivos são mediadas pelas decisões de empresas líderes e pelas relações de poder que estas guardam no âmbito das cadeias de valor7 7 Empresas-líderes continuamente reavaliam os riscos de offshoring ou terceirização à luz de vários aspectos dinâmicos, como mudanças tecnológicas e políticas, alterações geográficas atreladas à demanda, alterações das preferências do consumidor e dos riscos de localização (BHATIA, 2013). , chamadas pela literatura de governança das CGVs8 8 Para uma discussão dos determinantes da governança das cadeias, chamada também de visão “top-down” (de cima para baixo), ver Gereffi, Humphrey e Sturgeon (2005). . Os fatores que determinam o tipo de relação vigente em cada cadeia, a cada função desempenhada, influenciam a decisão corporativa estratégica da empresa-líder entre estabelecer uma estrutura de produção verticalmente integrada versus terceirizar etapas no âmbito doméstico ou internacional, o que está sujeito à avaliação de compensações complexas, para além da estratégia de minimização de custos9 9 Ao longo da segunda onda da globalização, as estruturas de poder em que as empresas interagem e operam economicamente foram se transformando, orientadas também pela busca por maior flexibilidade e diversificação de localização dos produtores, fornecedores e demandantes. Ademais, a expansão internacional dos estágios de produção pode estar relacionada a fatores institucionais, à disponibilidade de infraestrutura e ao acesso a mercados externos, a insumos estratégicos (mercados intermediários de importação e exportação) e a entrada em novos mercados (com a proximidade da demanda final como fator-chave) (UNITED NATIONS ECONOMIC AND SOCIAL COMMISSION FOR ASIA AND THE PACIFIC, 2015). .
Se a tecnologia, por sua natureza, restringe aquilo que a empresa é capaz de fazer, destaca-se que a digitalização permite às empresas multinacionais mudar rapidamente seus modelos de negócios, ajustando plataformas ou modificando interações existentes (NAMBISAN; WRIGHT; FELDMAN, 2019NAMBISAN, S.; WRIGHT, M.; FELDMAN, M. The digital transformation of innovation and entrepreneurship: progress, challenges and key themes. Research Policy, Amsterdam, v. 48, n. 8, 2019.). Cabe ainda ressaltar que os efeitos das tecnologias digitais nas estruturas de governança das CGVs podem apontar, por vezes, tendências de sentidos contrários. De um lado, poderão implicar transformações nos processos físicos envolvidos em sua produção, bem como no design dos bens produzidos e serviços prestados. De outro, podem revolucionar os “métodos de fazer as coisas”, para além das tecnologias como artefatos, transformando o modo como se divide uma tarefa complexa e a maneira pela qual se organiza e coordena o trabalho e os métodos de decisão das empresas.
O contexto no qual as tecnologias digitais manifestam o recente avanço é de um processo de reorganização de cadeias que não se dá necessariamente em âmbito internacional. Baldwin (2006BALDWIN, R. Globalisation: the great unbundling(s). In: SECRETARIAT OF THE ECONOMIC COUNCIL (Org.). Globalisation challenges for Europe and Finland. Geneva, 2006. p. 1-51., 2011BALDWIN, R. Trade and industrialisation after globalisation’s 2nd unbundling: how building and joining a supply chain are different and why it matters. Cambridge: NBER, 2011. (NBER Working Paper Series, 17716).) sugere que a dispersão das etapas de produção é um processo predominantemente regional, argumentando que a geografia é importante para o ingresso nas cadeias de suprimentos. Com a crise global de 2008 e o subsequente “grande colapso do comércio”, a tendência seria de um aprofundamento deste arranjo. De acordo com Gereffi (2014), aGEREFFI, G. Global value chains in a post-Washington Consensus world. Review of International Political Economy, London, v. 21, n. 1, p. 9-37, 2014. configuração geográfica não é constante e sua escala espacial pode mudar ao longo do tempo. Ademais, existem diferenças importantes nos padrões globais de matérias-primas, bens industriais e serviços intermediários: o comércio de bens industriais intermediários é mais regionalizado quando comparado ao de serviços intermediários que, por sua vez, é mais regionalizado do que o de matérias-primas.
Esse “novo normal” é influenciado por fatores cíclicos, como enfraquecimento da demanda global, e por fatores estruturais, como mudanças regionais na atividade econômica e na composição do comércio, em direção às atividades de serviços, e nas políticas comerciais, com aumento do protecionismo e, em especial, no ritmo de fragmentação dos processos produtivos, com desaceleração das CGVs (MARCATO, 2018MARCATO, M. Trade integration in a vertically fragmented production structure: theory, metrics, and effects. 2018. Tese (Doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018.). Tais mudanças tornaram o comércio internacional menos responsivo à renda (MARCATO, 2018MARCATO, M. Trade integration in a vertically fragmented production structure: theory, metrics, and effects. 2018. Tese (Doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018.), ainda que tenham ocorrido simultaneamente à preservação e à ampliação da interdependência entre as economias, o que, por sua vez, aumenta a exposição internacional a riscos sistêmicos (UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT, 2020aUNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. Key statistics and trends in international trade 2019: international trade slump. Geneva: United Nations Publication, 2020a.).
No período recente, questiona-se o aprofundamento do caráter regional das cadeias de valor em meio ao potencial esgotamento do sistema de produção internacional. Dentre as razões para um encurtamento ainda maior da amplitude das redes produtivas, estão os custos incorridos por ETNs com o monitoramento, a comunicação e a coordenação de filais, agora percebidos como mais altos do que inicialmente previstos, especialmente quando ocorrem problemas logísticos e operacionais no âmbito dos processos produtivos (DE BACKER; FLAIG, 2017DE BACKER, K.; FLAIG, D. The future of global value chains: business as usual or “a new normal”? Paris: OECD Publishing, 2017. (OECD Science, Technology and Industry Policy Papers, 41).).
Um potencial efeito relevante das tecnologias digitais é justamente a redução de custos de governança e de transação. Além do aumento da eficiência na integração de tarefas e processos produtivos, tais tecnologias permitem formas de coordenação mais eficazes entre as atividades das cadeias de valor. À exemplo do ocorrido nas décadas de 1970 e 1980, o aumento da conectividade digital torna possível o controle sem propriedade, o que permite que as empresas líderes influenciem diversas unidades da CGVs sem gerenciá-las diretamente (KANO; TSANG; YEUNG, 2020KANO, L.; TSANG, E. W. K.; YEUNG, H. W. Global value chains: a review of the multi-disciplinary literature. Journal of International Business Studies, Atlanta, v. 51, n. 4, p. 577-622, 2020.). Uma implicação latente, assim, é uma tendência de aumento da importância dos fornecedores externos, permitindo a expansão da terceirização pelas empresas líderes (ELIA; MASSINI; NARULA, 2019ELIA, S.; MASSINI, S.; NARULA, R. Disintegration, modularity and entry mode choice: mirroring technical and organizational architectures in business functions offshoring. Journal of Business Research, Athens, v. 103, p. 417-431, 2019.) e contrabalanceando a lógica de redução de atores envolvidos nos processos produtivos. Esta é uma tendência que aponta para o aumento de possibilidades às empresas de países em desenvolvimento, no que tange à participação nas redes de produção.
Convergente a este processo, estão as chances de maior fragmentação das cadeias, dadas pelo aprofundamento do caráter modular e em camadas da economia digital, que impulsiona a produção de componentes cada vez mais padronizados, tornando tecnologias complexas progressivamente mais “difundíveis” ao longo dos anos. Ao reforçar estruturas de governança modulares10 10 As cadeias de valor modulares geralmente apresentam fornecedores que fazem produtos ou prestam serviços de acordo com as especificações do cliente, tendo relacionamentos mais substanciais do que em estruturas simples de mercado e com um alto volume de informações (ver GEREFFI; HUMPHREY; STURGEON, 2005). Além disso, o mecanismo de governança central é a tecnologia da informação e os padrões para troca de informações. (FOSTER et al., 2018FOSTER, C. et al. Digital control in value chains: challenges of connectivity for East African firms. Economic Geography, Worcester, v. 94, n. 1, p. 68-86, 2018.; UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT, 2019UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. Digital economy report 2019: value creation and capture: implications for developing economies. Geneva: United Nations Publication, 2019.), a digitalização reduz barreiras tecnológicas à entrada e cria maiores oportunidades de participação nos setores relacionados (STURGEON, 2019STURGEON, T. J. Upgrading strategies for the digital economy. Global Strategy Journal, Chicago, v. 11, n. 1, p. 34-57, 2019.).
Estes cenários representam alternativas à latente percepção, pelas empresas-líderes, de riscos sistêmicos que ameaçam a viabilidade econômica dos negócios que comandam. Esta noção ficou ainda mais evidente com os efeitos econômicos da pandemia da Covid-19 e seus impactos na produção internacional e no investimento transfronteiriço, causando a interrupção das cadeias de abastecimento em diversos setores11 11 Ver Dweck et al. (2022) para uma discussão a respeito dos efeitos da pandemia sobre a estrutura produtiva brasileira e ampliação da dependência de importações do Sistema Único de Saúde brasileiro. . Tornou-se patente, por outro lado, a condição de excessiva dependência de várias cadeias de suprimento em relação à China. Baldwin e Evenett (2020)BALDWIN, R.; EVENETT, S. Covid-19 and trade policy: why turning inward won’t work. London: CEPR Press, 2020. recordam que o fechamento de Hubei, no início da pandemia em 2020, resultou em paralisação da produção do setor automotivo e das indústrias eletrônica e farmacêutica e fortaleceu o argumento de resiliência produtiva para justificar decisões empresariais em favor da diversificação da base de fornecedores e replicação de atividades produtivas em mais de uma localidade.
Pelo lado dos Estados nacionais dos países desenvolvidos, no entanto, uma das saídas encontradas foi a formulação de políticas que estimulam a volta de empresas e atividades para território doméstico, reduzindo a fragmentação produtiva e visando proteger setores estratégicos, como o de equipamentos de saúde, e construir formas de autonomia nacional ou regional da capacidade produtiva (UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT, 2020aUNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. Key statistics and trends in international trade 2019: international trade slump. Geneva: United Nations Publication, 2020a.). Um exemplo é o programa “America First”, lançado durante o governo Trump (DACHS; PAHL, 2020DACHS, B.; PAHL, S. Are global value chains in decline? Global investments & local development. London: The London School of Economics and Political Science, 2020. Disponível em: <https://blogs.lse.ac.uk/gild/2019/07/26/are-global-value-chains-in-decline/>. Acesso em: 18 set. 2020.
https://blogs.lse.ac.uk/gild/2019/07/26/...
).
Conforme ilustração de Baldwin e Evenett (2020), aBALDWIN, R.; EVENETT, S. Covid-19 and trade policy: why turning inward won’t work. London: CEPR Press, 2020. pandemia expôs fraquezas inerentes a um sistema que exige que todas as suas partes funcionem como um relógio. Eventos inesperados, ainda que localizados, impedem que isso aconteça, caso não haja esforços para reorganização dessa estrutura. As cadeias globais de valor se tornaram muito complexas, extensas e rígidas, tornando as empresas que as comandam incapazes inclusive de enxergar todos os atores envolvidos. A quebra de algum dos elos, como o que ocorreu durante a pandemia da Covid-19, após o terremoto de Fukushima em 2011, e o encalhamento do cargueiro no canal de Suez ainda em 2021, é capaz de se propagar por toda a rede, causando uma série de dificuldades ao longo da teia de relações. De Backer e Flaig (2017)DE BACKER, K.; FLAIG, D. The future of global value chains: business as usual or “a new normal”? Paris: OECD Publishing, 2017. (OECD Science, Technology and Industry Policy Papers, 41). ressaltam que a busca persistente de ETNs por alto nível de flexibilidade, sob os pilares de single-sourcing, just-in-time e estoques reduzidos, agrava esse cenário. Para aumentar sua resiliência, as corporações tendem a buscar progressivamente um melhor balanceamento entre custos de eficiência e diversificação de riscos, adotando fontes alternativas de suprimento e construindo cadeias mais curtas e mais próximas ao consumidor final.
Em sentido contrário, o desenvolvimento e a difusão de algumas tecnologias digitais podem tornar a internacionalização de etapas do processo produtivo (offshoring) menos atraente para as empresas-líderes. Isso decorre, especialmente, das possibilidades ampliadas de regimes de teletrabalho e da superação facilitada de barreiras linguísticas. De um lado, o armazenamento e a computação em nuvem possibilitam, em computadores pessoais padrões, a realização de tarefas complexas que envolvam uma grande quantidade de dados (UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT, 2020bUNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. World investment report 2020: International production beyond the pandemic. Geneva: United Nations Publication, 2020b.), dispensando a instalação de estruturas corporativas próximas a locais de atuação da empresa ou de atendimento da demanda. No mesmo sentido estão os avanços na realidade virtual e aumentada e na teleconferência (BALDWIN, 2019BALDWIN, R. The globotics upheaval. Oxford: Oxford University Press, 2019.). De outro lado, melhorias em softwares de tradução permitem comunicação mais eficiente entre falantes de idiomas distintos, permitindo prescindir de parte dos funcionários antes fundamentais para atender um determinado mercado (UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT, 2020bUNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. World investment report 2020: International production beyond the pandemic. Geneva: United Nations Publication, 2020b.), reduzindo o espaço para a integração de países em desenvolvimento nos processos produtivos.
Corrobora este processo as possibilidades dadas a partir do avanço da digitalização em termos de uma produção caracterizada cada vez mais por baixo custo e alta qualidade, que privilegia a alocação de tarefas nas economias desenvolvidas e desencoraja a realização de offshoring, dando lugar a estratégias de reshoring12
12
Reshoring diz respeito a “mover a manufatura de volta ao país de origem da empresa matriz” (ELLRAM, 2013) ou ainda à “mudança genérica de localização em relação a um país off-shore anterior” (FRATOCCHI et al., 2014).
(DE BACKER; FLAIG, 2017DE BACKER, K.; FLAIG, D. The future of global value chains: business as usual or “a new normal”? Paris: OECD Publishing, 2017. (OECD Science, Technology and Industry Policy Papers, 41).). De Backer e Flaig (2017)DE BACKER, K.; FLAIG, D. The future of global value chains: business as usual or “a new normal”? Paris: OECD Publishing, 2017. (OECD Science, Technology and Industry Policy Papers, 41). lembram que as empresas enfrentaram queda da qualidade de seus produtos quando produzidos em filiais estabelecidas no exterior, acarretando custos inesperados com recalls. A maior flexibilidade proporcionada pelas novas tecnologias contribuiria para que o problema pudesse ser enfrentado, sem que as ETNs incorressem em custos adicionais pela produção nos países desenvolvidos, onde há melhor infraestrutura de produção e mão de obra mais qualificada para adoção das técnicas da Indústria 4.0, e com a vantagem de se estar próximo a importantes mercados consumidores (DACHS; PAHL, 2020DACHS, B.; PAHL, S. Are global value chains in decline? Global investments & local development. London: The London School of Economics and Political Science, 2020. Disponível em: <https://blogs.lse.ac.uk/gild/2019/07/26/are-global-value-chains-in-decline/>. Acesso em: 18 set. 2020.
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).
Essa tendência contribuiria para encurtar as cadeias produtivas e restringir as oportunidades de atuação para países em desenvolvimento (FERRANTINO; KOTEN, 2019FERRANTINO, M. J.; KOTEN, E. E. Understanding Supply Chain 4.0 and its potential impact on global value chains. In: WORLD TRADE ORGANIZATION – WTO (Org.). Global value chain development report. Geneva: WTO, 2019. n. 103.), também pela menor presença, nessas economias, de capacitações atreladas à fronteira tecnológica e capazes de atrair a alocação de tarefas produtivas. A condição tecnologicamente subdesenvolvida desses países agravaria sua exclusão de cadeias com maior presença de tecnologias digitais (FOSTER et al., 2018FOSTER, C. et al. Digital control in value chains: challenges of connectivity for East African firms. Economic Geography, Worcester, v. 94, n. 1, p. 68-86, 2018.; GOORIS; PEETERS, 2016GOORIS, J.; PEETERS, C. Fragmenting global business processes: a protection for proprietary information. Journal of International Business Studies, Atlanta, v. 47, n. 5, p. 535-562, 2016.), com a consequência de maior concentração do valor gerado nas redes de produção num grupo menor de empresas e países.
Por outro lado, a literatura vislumbra uma tendência de replicação de cadeias de alguns setores como forma das empresas líderes aumentarem a responsividade às mudanças de demanda (DE BACKER; FLAIG, 2017DE BACKER, K.; FLAIG, D. The future of global value chains: business as usual or “a new normal”? Paris: OECD Publishing, 2017. (OECD Science, Technology and Industry Policy Papers, 41).). Tecnologias digitais, atreladas ao uso da manufatura aditiva e de robôs autônomos, permitem o aprofundamento da customização em massa, com a produção, a custos reduzidos, de uma grande quantidade de bens customizados, organizados em lotes menores, com mais ampla variedade. Torna-se economicamente viável, nessas condições, estabelecer uma quantidade maior de centros de produção mais próximos ao mercado final, o que representa potenciais oportunidades para inserção a destinos de investimentos menos populares (BALDWIN; EVENETT, 2020BALDWIN, R.; EVENETT, S. Covid-19 and trade policy: why turning inward won’t work. London: CEPR Press, 2020.), especialmente em setores manufatureiros, onde se reduzem diferenciais de custos de trabalho, tornando-os insuficientes, em alguns casos, para justificar custos e tempo de transporte de mercadorias entre localidades distantes. Para setores de serviço, dá-se o contrário. Os custos com trabalho não se alteram, mas os custos comerciais caem significativamente, permanecendo as etapas produtivas distantes do mercado consumidor do serviço prestado.
As práticas de reshoring possuem, contudo, outros fatores motivantes que contribuem de modo oposto à replicação de cadeias. Especialmente em setores considerados estratégicos, há um desejo, por parte de empresas líderes, de que os processos produtivos estejam situados mais próximos aos processos inovativos (DE BACKER et al., 2016DE BACKER, K. et al. Reshoring: myth or reality? Paris: OECD Publishing, 2016. (OECD Science, Technology and Industry Policy Papers, 17).). Resgata-se, para esse argumento, a noção da inovação enquanto processo evolutivo e cumulativo intimamente atrelado ao aprendizado decorrente da identificação de problemas concretos no ambiente produtivo e da introdução de soluções adequadas para resolvê-los, a partir do desenvolvimento de novas tecnologias13 13 À luz da reconfiguração internacional da produção, Berger (2013) investigou a importância da manufatura para sustentar capacidades inovativas, no caso dos Estados Unidos. Os resultados do estudo revelaram que as tarefas manufatureiras desempenharam papel crucial para a melhoria contínua de produtos e processos. Nesse sentido, a autora ressalta que o enfraquecimento dos canais de transferência de tecnologia poderia prejudicar a competitividade industrial de longo prazo do país em questão. Em um sentido mais amplo, a perda de densidade industrial pode prejudicar a capacidade inovativa de uma economia. . Em setores como o de engenharia, a distância entre etapas de produção foi decisiva para reduzir o feedback virtuoso entre pesquisa e desenvolvimento (P&D) e fabricação (DE BACKER; FLAIG, 2017DE BACKER, K.; FLAIG, D. The future of global value chains: business as usual or “a new normal”? Paris: OECD Publishing, 2017. (OECD Science, Technology and Industry Policy Papers, 41).), motivando a realocação de atividades.
Especialmente desde a crise internacional de 2008, a integração nas redes de produção internacional passou a ser vista para além do desafio de tornar-se competitivo em atividades de maior valor agregado, mas também da perspectiva do envolvimento de mais atores locais nas CGVs. A ideia é que a agregação de valor pode ocorrer também pela atuação, em larga escala, em atividades de menor valor adicionado, gerando igualmente altos montantes lucros, salários e arrecadação tributária, mas também promovendo transformações estruturais a partir da criação de ligações interindustriais domésticas (INOMATA; TAGLIONI, 2019INOMATA, S.; TAGLIONI, D. Technological progress, diffusion, and opportunities for developing countries: lessons from China. In: WORLD TRADE ORGANIZATION – WTO (Ed.). Global value chain development report 2019. Geneva: WTO, 2019.; KUROIWA, 2015KUROIWA, I. Industrial deepening in East Asia. Tokyo: Institute of Developing Economies, Japan External Trade Organization (JETRO), 2015. (IDE Discussion Papers, 489).; MARCATO; DWECK; MONTANHA, 2022MARCATO, M. B.; DWECK, E.; MONTANHA, R. The densification of Chinese production chains in the context of vertically fragmented production. Structural Change and Economic Dynamics, Amsterdam, v. 60, p. 75-89, 2022.).
As tecnologias digitais têm impacto importante, ainda, na distribuição de valor ao longo das CGV, por estarem intrinsecamente atreladas ao fornecimento de serviços, o que contribui para o processo conhecido como servicificação (ou servitificação) da manufatura (UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT, 2020bUNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. World investment report 2020: International production beyond the pandemic. Geneva: United Nations Publication, 2020b.), definido justamente como o aumento do componente de serviço das atividades fabris. A implicação desse fenômeno é o aumento do valor adicionado associado às etapas pré e pós-manufatura, com concomitante redução do valor adicionado associado às atividades manufatureiras (HALLWARD-DRIEMEIER; NAYYAR, 2018HALLWARD-DRIEMEIER, M.; NAYYAR, G. Trouble in the making? The future of manufacturing-led development. Washington, D.C.: World Bank, 2018.; MAYER, 2018MAYER, J. Digitalization and industrialization: friends or foes. Geneva: United Nations Publication, 2018. (UNCTAD Research Papers, 25).; REHNBERG; PONTE, 2018REHNBERG, M.; PONTE, S. From smiling to smirking? 3D printing, upgrading and the restructuring of global value chains. Global Networks, Hoboken, v. 18, n. 1, p. 57-80, 2018.).
Segundo United Nations Conference on Trade and Development (2019), aUNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. Digital economy report 2019: value creation and capture: implications for developing economies. Geneva: United Nations Publication, 2019. servicificação pode tornar as empresas líderes mais focadas na inovação, enquanto as atividades produtivas de menor valor são terceirizadas. Cresce a importância dos ativos intangíveis nas cadeias, deslocando o valor adicionado para atividades como P&D e inovação (prévias às tarefas fabris) e gerenciamento de dados de mercado e inteligência de mercado (posteriores às etapas manufatureiras) (GARAY-RONDERO et al., 2019GARAY-RONDERO, C. L. et al. Digital supply chain model in Industry 4.0. Journal of Manufacturing Technology Management, Bradford, v. 31, n. 5, p. 887-933, 2019.; UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT, 2020bUNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. World investment report 2020: International production beyond the pandemic. Geneva: United Nations Publication, 2020b.). Como resultado, o valor é cada vez mais capturado pelos atores que controlam os dados e recursos digitais necessários para gerenciar a produção.
Segundo Baldwin e Forslid (2020)BALDWIN, R.; FORSLID, R. Covid, globotics, and development. VOX, CEPR Policy Portal, 16 jul. 2020. Disponível em: <https://voxeu.org/article/covid-19-globotics-and-development>. Acesso em: 13 set. 2021.
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, países em desenvolvimento enfrentarão dificuldades crescentes em conduzir processos de desenvolvimento atrelados ao ganho de participação relativa do setor industrial. Em contrapartida, o desenvolvimento baseado no setor de serviços pode ser facilitado, contanto que tais economias estejam capacitadas para atuarem em cadeias digitais, oferecendo sua mão de obra de baixo custo sem precisar, como antes, produzir bens tangíveis exportáveis com ela. A urgência da adoção de políticas que fomentem o uso de tecnologias atreladas à Indústria 4.0 nos países desenvolvidos também é reforçada por Rodrik (2018)RODRIK, D. New technologies, global value chains, and the developing economies. Cambridge: NBER, 2018. (NBER Working Paper Series, 25164)., que alerta que automação, robotização, manufatura aditiva e digitalização demandam trabalho essencialmente mais qualificado.
3. Os desafios do Brasil à luz do padrão de inserção nas CGVs
Tal como já discutido, as tecnologias digitais permitem a interação entre máquinas, insumos, pedidos de compra, logísticas de distribuição e estoques ao longo do processo produtivo, bem como construir simulações prévias das condições de produção, de venda e pós-venda para novos produtos e processos produtivos (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA, 2016CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA – CNI. Desafios para Indústria 4.0 no Brasil. Brasília: CNI, 2016.). Dessa forma, ao promoverem integração de etapas produtivas e consistirem em relevante avanço tecnológico com potencial de transformar a dinâmica da produção global, tais tecnologias condicionarão vantagens competitivas que, distribuídas desigualmente a favor de empresas mais próximas da fronteira tecnológica, ampliam os desafios a economias que já possuem posição subordinada na produção global, como é o caso brasileiro.
Em um primeiro momento, vale destacar que a economia brasileira mal adotou os avanços tecnológicos próprios da revolução técnico-científica dos anos 1970 e 1980, o que influenciou sua relativa exclusão das cadeias de suprimento globais (MOREIRA JUNIOR, 2020). Assim, a incorporação das tecnologias disruptivas da era digital mostra-se como um passo ainda mais complexo e urgente, embora mudanças de paradigmas tecnológicos também possam representar janelas de oportunidade para o reposicionamento de atores atrasados (PEREZ; SOETE, 1988PEREZ, C.; SOETE, L. Catching up in technology: entry barriers and windows of opportunity. In: DOSI, G. et al. (Org.). Technical change and economic theory. London: Pinter Publishers, 1988.).
Segundo Araújo e Diegues (2021), aARAÚJO, C. G.; DIEGUES, A. C. Brasil e China: os descaminhos da inserção nas cadeias globais de valor. Campinas: Instituto de Economia, Unicamp, 2021. (Texto para Discussão, 406). integração de uma economia às CGVs deve ser entendida a partir da estrutura produtiva doméstica dada, que depende das decisões de ETNs quanto à alocação dos processos produtivos que coordenam e da formulação e efetividade de políticas industriais que levem a inserções mais virtuosas, atreladas a atuações em atividades mais importantes do ponto de vista da agregação de valor. Neste sentido, a economia brasileira parece estar à margem das mudanças relacionadas ao fenômeno de fragmentação vertical da produção, o que é explicado pelas distâncias geográficas em relação às economias centrais e ao sudeste asiático, que concentra parte importante de etapas da rede produtiva – e caráter regional das cadeias, que acabam por se organizar para o suprimento de mercados mais dinâmicos (além do Sudeste Asiático, Europa e América do Norte) -, bem como pela ausência de políticas industriais que resolvam as precárias condições de logística e os altos custos de transação (CANUTO, 2014CANUTO, O. A alta densidade das cadeias de produção no Brasil. In: NEVES, L. P. (Org.). A inserção do Brasil nas cadeias globais de valor. Rio de Janeiro: CEBRI, 2014. v. 2, ano 13. (CEBRI Dossiê Edição Especial).).
O relevante papel da economia brasileira enquanto fornecedora de recursos minerais e outras commodities, bens cujas produções se situam a montante nas CGVs e, assim, dependem menos de valor agregado de outros setores, reforça esta posição. A entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC) – e também a aceleração de seu processo de urbanização, com reflexos positivos sobre o dinamismo de sua indústria de transformação – fez com que o país asiático se tornasse grande demandante das exportações brasileiras (FLEURY; FLEURY, 2020FLEURY, A.; FLEURY, M. T. L. A reconfiguração das cadeias globais de valor (global value chains) pós-pandemia. Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 100, p. 203-209, 2020.). Dessa forma, a economia brasileira viveu um período de crescimento que, nos anos 2000, pode ter colaborado para afastar esforços mais ousados em termos de políticas para construção de capacitações tecnológicas e produtivas, que segundo os autores poderia ter ampliado a diversificação de elos domésticos e a uma integração mais virtuosa à produção global.
Segundo Sturgeon e Dallas (2021), oSTURGEON, T. J.; DALLAS, M. P. Reorganização das cadeias globais de valor: riscos e oportunidades para o Brasil, resultantes da pandemia de COVID-19. Brasília: Confederação Nacional da Indústria, 2021. Brasil não representa nenhuma das três funções tradicionais encontradas nas CGVs, isto é, a de inovação e controle, de processamento de exportações ou de exportação de peças e componentes. Para além das exportações em setores de commodities primárias e de bens manufaturados baseados em recursos naturais, o restante dos bens exportados é majoritariamente direcionado para contemplar a demanda final dos países importadores, e não para ser por eles processado e reexportado. A grande dimensão e relativa diversificação da estrutura produtiva em comparação à de outros países em desenvolvimento, por seu lado, permite a outros setores domésticos, especialmente aqueles produtores de intermediários de baixa e média tecnologia, funcionarem como clusters locais com forte densidade e relativa autossuficiência mediante conteúdo importado, destinados a servir outras indústrias domésticas a jusante, de forma a inibir o envolvimento em redes globais de produção (HERMIDA, 2017HERMIDA, C. C. Padrão de especialização comercial e crescimento econômico: uma análise sobre o Brasil no contexto da fragmentação da produção e das cadeias globais de valor. 2017. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-graduação em Economia, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2017.).
No entanto, ainda que o Brasil apresente baixa inserção nas CGVs, a integração produtiva havia crescido de meados da década de 1990 até o início da década de 2010. Este movimento teria ocorrido, segundo Hermida (2017)HERMIDA, C. C. Padrão de especialização comercial e crescimento econômico: uma análise sobre o Brasil no contexto da fragmentação da produção e das cadeias globais de valor. 2017. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-graduação em Economia, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2017., em função do deslocamento, ainda que suave, da posição da economia do país à jusante das cadeias, com aumento do conteúdo importado de suas exportações. De um lado, o pós-crise de 2008 teria trazido uma queda relativa das exportações de bens primários, próprios de pouca utilização de conteúdo estrangeiro. De outro, tanto a própria exportação de produtos primários, quanto de serviços e manufaturas de baixa-tecnologia aprofundaram seus graus de especialização vertical, utilizando mais valor agregado de outros países em seus processos produtivos. Esse fenômeno teria contribuído para manter os setores produtores dos primeiros bens como aqueles que mais participam das CGVs, na estrutura produtiva brasileira, seguido das commodities que formam o grupo “Agricultura, floresta, caça e pesca”, no qual o país tem vantagens comparativas crescentes e bastante sólidas.
Do ponto de vista setorial, Ferraz, Gutierre e Cabral (2014)FERRAZ, L.; GUTIERRE, L.; CABRAL, R. A indústria brasileira na era das cadeias globais de valor. Brasília: CNI, 2014. Prêmio CNI de Economia – Categoria: Competitividade e Comércio Exterior. ressaltam a grande verticalização interna da indústria de transformação, o que contribui para a baixa inserção deste conjunto de atividades nas redes produtivas, já que boa parte dos insumos utilizados são produzidos domesticamente. No entanto, três atividades se destacam como contraexemplos deste padrão, apresentando participação mais robusta e representando potenciais objetos de políticas que visem estimular a adoção de tecnologias digitais e, consequentemente, uma inserção mais virtuosa na produção internacional.
A indústria de eletrônicos é caracterizada como aquela cuja cadeia de valor mais cresceu entre 2007 e 2017, no mundo. No Brasil, a redução da pobreza, o alargamento da classe média e os investimentos em infraestrutura de telecomunicações, a partir da segunda metade da década de 2000, haviam favorecido o consumo de bens eletrônicos e de internet, trazendo à tona as potenciais vantagens competitivas que poderiam ser afloradas no setor. Para tal, há de se considerar a dinamicidade inovativa destas atividades, para as quais a competividade das empresas depende de esforços constantes de P&D e do fornecimento de serviços de tecnologia da informação (OLIVEIRA; REIS; BLOCH, 2017OLIVEIRA, I. T. M.; REIS, C. F. B.; BLOCH, C. D. A inserção do Brasil no comércio internacional de serviços e suas relações com cadeias globais de valor. In: OLIVEIRA, I. T. M. O.; CARNEIRO, F. L.; SILVA FILHO, E. B. S. (Org.). Cadeias globais de valor, políticas públicas e desenvolvimento. Brasília: Ipea, 2017.).
O setor de dispositivos médicos, por sua vez, tem seu maior mercado latino-americano justamente no Brasil. As empresas brasileiras atuam essencialmente no segmento de equipamentos hospitalares, mas o país também conta com a presença de grandes ETNs de origem estrangeira, seja com unidades de produção, seja com escritórios de distribuição. A atividade exportadora destas empresas concentra-se, no entanto, em produtos descartáveis, como curativos e materiais para sutura cirúrgica (OLIVEIRA; REIS; BLOCH, 2017OLIVEIRA, I. T. M.; REIS, C. F. B.; BLOCH, C. D. A inserção do Brasil no comércio internacional de serviços e suas relações com cadeias globais de valor. In: OLIVEIRA, I. T. M. O.; CARNEIRO, F. L.; SILVA FILHO, E. B. S. (Org.). Cadeias globais de valor, políticas públicas e desenvolvimento. Brasília: Ipea, 2017.), isto é, em bens com baixo valor agregado. Para além da migração para atividades responsáveis pela produção de itens com maior incorporação de tecnologia, Sturgeon et al. (2014)STURGEON, T. J. et al. A indústria brasileira e as cadeias de valor globais: uma análise com base nas indústrias aeronáutica, de eletrônicos e de dispositivos médicos. São Paulo: Editora Campus, 2014. enxerga potencialidades para que o país aumente atividades de P&D voltadas ao desenvolvimento de softwares, os quais são capazes de maior adição de valor na cadeia.
O terceiro destaque é o setor aeroespacial, que conta com o caso de sucesso da Embraer, criada como empresa estatal em 1969, para atuar inicialmente no desenvolvimento de aeronaves militares, utilizando a mão de obra qualificada de instituições de pesquisa deste meio. Posteriormente, passou a produzir para o mercado civil, concorrendo no ramo de aeronaves de tamanho médio. A inserção nas redes de produção internacional é dada pela importação de matérias primas e componentes dos sistemas utilizados nos aviões, os quais vêm de empresas de países desenvolvidos (PORTO; CANUTO; MOTA, 2017PORTO, P. C. S.; CANUTO, O.; MOTA, A. A. L. As possibilidades de inserção do Brasil nas cadeias globais de valor. IGEPEC, Toledo, v. 21, n. 1, p. 10-27, 2017.). As exportações, por sua vez, concentravam-se, de acordo com (OLIVEIRA; REIS; BLOCH, 2017OLIVEIRA, I. T. M.; REIS, C. F. B.; BLOCH, C. D. A inserção do Brasil no comércio internacional de serviços e suas relações com cadeias globais de valor. In: OLIVEIRA, I. T. M. O.; CARNEIRO, F. L.; SILVA FILHO, E. B. S. (Org.). Cadeias globais de valor, políticas públicas e desenvolvimento. Brasília: Ipea, 2017.), em aviões acabados (80%), consistindo apenas 20% em peças e componentes. Atividades de importante agregação de valor, nas quais empresas locais têm pouca inserção e poderiam estar mais presentes, são serviços atrelados à operação das aeronaves, como manutenções, revisões e reparos.
A superação de desafios impostos pelo avanço das tecnologias disruptivas da era digital ao Brasil não passa, no entanto, por estratégias orientadas exclusivamente para aprofundar a inserção dos diversos setores nas cadeias globais e regionais de valor. Ainda que, de forma geral, uma integração mais bem pensada nas redes produtivas possa ser frutífera para alavancar a adoção e difusão de determinadas técnicas ao longo da estrutura produtiva. Neste sentido, a United Nations Conference on Trade and Development (2018)UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. Trade and development report 2018: power, platforms and the free trade desilusion. Geneva: United Nations Publication, 2018. reitera a falta de indicativos de que inserções passivas nas CGVs gerem efeitos de transbordamento positivos e significativos em países menos desenvolvidos, argumentando por políticas que induzam à geração de valor agregado doméstico e adensamento produtivo, com instrumentos que estimulem transferência e absorção de tecnologia.
Contudo, se a formação de empresas líderes em segmentos próprios de maior agregação de valor parece ser uma tarefa de difícil cumprimento, as próprias ETNs brasileiras que já se inserem de forma mais virtuosa em algumas etapas produtivas sofrem com incessante ameaça, o que Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (2020)INSTITUTO DE ESTUDOS PARA O DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL – IEDI. Digitalização e as cadeias globais de valor. Carta IEDI, São Paulo, v. 989, 2020. Disponível em: <https://iedi.org.br/cartas/carta_iedi_n_989.html>. Acesso em: 15 dez. 2022.
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chamou de efeito “deslocamento” no fenômeno de espraiamento progressivo da economia digital. De forma gradual ou brusca, as ETNs cujas atividades baseiam-se em tecnologias digitais perturbarão a existência de corporações preexistentes de ramos correspondentes, as quais podem não dispor de tempo hábil para se adaptarem à nova realidade técnica (de sincronização entre diversas etapas produtivas, fábricas autogestadas ou utilização de processos que dispensam mão de obra, por exemplo), perdendo vantagens competitivas por não conseguirem reduzir a relação custo e receita de suas estruturas produtivas ou aumentar a qualidade de seus produtos.
Neste contexto, duas saídas vêm à tona, sob a possibilidade de serem combinadas. A primeira delas é a retomada da importância das relações produtivas com os países da América do Sul e do Sul Global, no geral, que, como já apontado por Castilho (2010)CASTILHO, M. A inserção do Brasil em um mundo fragmentado: uma análise da estrutura de comércio exterior brasileiro. In: ACIOLY, L.; CINTRA, M. A. M. (Org.). Inserção internacional brasileira: temas de economia internacional. Brasília: Ipea, 2010. v. 2, p. 369-396. e Baumann (2014)BAUMANN, R. O Brasil e as cadeias globais de valor. In: NEVES, L. P. (Org.). A inserção do Brasil nas cadeias globais de valor. Rio de Janeiro: CEBRI, 2014. v. 2, ano 13. (CEBRI Dossiê Edição Especial)., já tinha grande importância no processo de fragmentação da produção brasileira, especialmente desde o início dos anos 2000. Apoiado por políticas de âmbito regional, este espaço tem potencial para expandir cadeias locais, permitindo às empresas brasileiras assumir posições de liderança em elos de maior geração de valor, tal como discutido em Marcato (2022)MARCATO, M. B. Regional dynamics in global production sharing: evidence from “Factory South America”. European Journal of Development Research, London, 2022. No prelo..
Tal iniciativa deve estar acoplada, no entanto, à priorização de segmentos onde o país já possui competências consolidadas e à criação de incentivos que permitam a expansão e a sobrevivência de atividades domésticas associadas, com desenvolvimento de capacitações tecnológicas por fornecedores em digitalização avançada. Nos termos do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (2020)INSTITUTO DE ESTUDOS PARA O DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL – IEDI. Digitalização e as cadeias globais de valor. Carta IEDI, São Paulo, v. 989, 2020. Disponível em: <https://iedi.org.br/cartas/carta_iedi_n_989.html>. Acesso em: 15 dez. 2022.
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, trata-se de recorrer aos efeitos “adaptação” e “complementaridade” a partir da emergência da economia digital. O primeiro refere-se à adoção, por empresas já bem posicionadas, das tecnologias emergentes, alçando-as a novos padrões de qualidade e eficiência. O segundo diz respeito à emergência de corporações em novos ramos e para a produção de novos bens, oferecendo, por exemplo, serviços próprios da Indústria 4.0.
O desafio é enorme, mediante o atraso já observável. Pesquisas da Confederação Nacional da Indústria (2016CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA – CNI. Desafios para Indústria 4.0 no Brasil. Brasília: CNI, 2016., 2018CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA – CNI. Investimento em indústria 4.0. Brasília: CNI, 2018.) mostram que há dificuldades não somente na adoção de tecnologias digitais, mas também no conhecimento das técnicas que pautam o deslocamento da fronteira tecnológica. Uma grande parcela das empresas que estavam, em 2018, mais propensas a investir em digitalização já possuíam tecnologias semelhantes, sugerindo que estavam em estágios iniciais de sua adoção. Portanto, a estratégia para ampliar a incorporação das tecnologias digitais na estrutura produtiva brasileira precisa combinar, de forma sistematizada e com objetivos bem definidos, uma série de esforços. A coerência entre as medidas é crucial para aumentar as possibilidades de sucesso. Segundo Negri e Morais (2017), oNEGRI, J. A.; MORAIS, J. M. Análise da evolução das ações e dos programas da FINEP no apoio à inovação empresarial (2003-2014). In: TURCHI, L.; MORAIS, J. M. (Org.). Políticas de apoio à inovação tecnológica no Brasil: avanços recentes e propostas de ações. Brasília: IPEA, 2017. p. 153-185. Brasil tem um histórico recente de políticas excessivamente desmembradas e sem orientação para investimentos.
Do rol de iniciativas imprescindíveis, fazem parte instrumentos de financiamento de curto e, especialmente, de longo prazo, incentivos tributários atrelados a contrapartidas em forma de investimentos, expansão e melhoria de infraestrutura de telecomunicações, atualização de cursos de formação para qualificação de mão de obra, mudanças em marcos regulatórios – incluindo de direitos de propriedade intelectual, que devem privilegiar, nos setores eleitos estratégicos, os produtores domésticos -, mecanismos de promoção de transferência tecnológica a partir da operação de ETNs estrangeiras e construção de canais de cooperação entre organizações estatais e privadas, fortalecendo o sistema nacional de inovação. Não se deve deixar de lado a coerência da gestão de preços estratégicos da economia à estratégia de renovação do parque industrial, subordinando a política macroeconômica a este projeto, o que significa um olhar atento à funcionalidade das taxas de juros e de câmbio (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA, 2016CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA – CNI. Desafios para Indústria 4.0 no Brasil. Brasília: CNI, 2016.; NASSIF, 2019NASSIF, A. Política industrial e desenvolvimento econômico: teoria e propostas para o Brasil na era da economia digital. In: FEIJÓ, C.; ARAÚJO, E. (Org.). Macroeconomia moderna: as lições de Keynes para as economias em desenvolvimento. Rio de Janeiro: Elsevier, 2019. p. 81-100.; MOREIRA JUNIOR, 2020)MOREIRA JUNIOR, H. Indústria 4.0 e novas dimensões tecnológicas no centro da economia-mundo capitalista: perspectivas para o Brasil. Oikos, Rio de Janeiro, v. 19, n. 2, p. 79-91, 2020..
4. Considerações finais
Há uma transformação em curso na organização da produção internacional. Este artigo mostrou como, em um primeiro momento de aceleração da globalização e emergência das CGVs, as tecnologias digitais alavancaram tal transformação, tornando viável técnica e economicamente a fragmentação vertical da produção. Em um segundo momento, marcado pela “desglobalização” e crescente preocupação com a autonomia produtiva, a adoção de tecnologias disruptivas da era digital por empresas líderes representa uma possibilidade de mitigar os riscos sistêmicos atrelados à extensão das cadeias. A pandemia de coronavírus revelou notadamente a fragilização das cadeias de abastecimento globais. Tal cenário de reorganização da produção internacional revelou a necessidade de aumentar a resiliência das CGVs, traduzindo-se em decisões empresariais que podem levar à regionalização, diversificação da base de fornecedores, replicação das unidades produtivas e reshoring.
A crescente difusão de tecnologias digitais tem um alcance multissetorial por se aplicar a diferentes setores econômicos e, sobretudo, por combinar distintos nichos de atividade a partir de sua utilização. O principal desdobramento é a existência de efeitos multifacetados, com tendências por vezes contrárias, o que exige olhar atento às características de cada atividade econômica para melhor compreensão dos impactos esperados. A digitalização, enquanto avanço tecnológico, tem o potencial de reestruturar parcialmente as limitações físicas que refletem o nível ótimo da fragmentação vertical da produção, estimulando as empresas líderes a reavaliar suas estratégias de internacionalização produtiva. Ao lado de condicionantes técnicos da fragmentação de processos produtivos, de custos ambientais e do trabalho e do balanço entre produção interna e externalizada, as tecnologias digitais têm o potencial de transformar o significado e as estruturas de governança das CGVs.
Nesse sentido, a digitalização possibilita, por um lado, formas de coordenação mais eficazes entre as atividades das CGVs, concedendo-lhes um caráter ainda mais modular, aprofundando o particionamento dos processos produtivos. Por outro lado, abre novas possibilidades no que tange o modo de fazer as coisas que resultam no encurtamento de cadeias produtivas e na concentração de valor gerado em seu âmbito. Seja pela presença difundida de teletrabalho, pela superação de barreiras linguísticas, pela redução da importância de diferenciais de custos de trabalho ou por busca de maior qualidade nos bens produzidos, haverá um estreitamento das oportunidades disponíveis aos países em desenvolvimento, sobretudo àqueles com dificuldades para incorporar as tecnologias disruptivas da era digital, como ilustrado pelo caso brasileiro.
No caso brasileiro, a compreensão das oportunidades associadas à economia digital pelos formuladores de políticas deve valer-se de elementos analíticos que de fato ilustrem o atual momento do cenário internacional, marcado pela busca por resiliência pelas grandes corporações das economias avançadas e por autonomia produtiva pelos Estados nacionais. Os movimentos de simplificação das cadeias produtivas, diversificação das bases de fornecedores e realocação de tarefas podem ficar circunscritos aos países desenvolvidos, uma vez que esses países estão bem posicionados na fronteira tecnológica das tecnologias digitais. Dessa forma, as estratégias orientadas exclusivamente para aprofundar a inserção brasileira nas cadeias globais e regionais de valor apresentam poucas chances de sucesso, tendo em vista o atraso no que diz respeito à adoção de tecnologias digitais. Por fim, políticas que busquem avanços na transformação digital devem estar alinhadas às iniciativas que busquem ampliar a geração de valor no âmbito doméstico das cadeias e envolvam o adensamento produtivo das cadeias.
Agradecimentos
Os autores fazem um agradecimento especial à Michelle Malher (IE-UFRJ), que contribuiu com o projeto de pesquisa que foi base para o desenvolvimento posterior deste artigo.
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Brennen e Kreiss (2014)BRENNEN, S.; KREISS, D. Digitalization and digitization. Culture Digitally, 8 set. 2014. Disponível em: <https://culturedigitally.org/2014/09/digitalization-and-digitization/>. Acesso em: 13 set. 2021.
https://culturedigitally.org/2014/09/dig... estabelecem uma distinção conceitual entre o processo amplo de digitalização e os processos técnicos subjacentes da digitalização (i.e., ¨digitização¨), pelos quais a informação é convertida de fluxos analógicos para digitais. -
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A partir de uma perspectiva analítica focalizada em tecnologias específicas, pode-se dizer que o uso de tecnologias digitais nos processos de produção cobre a fronteira das tecnologias baseadas na Internet: a Internet das Coisas (IoT), nuvem, realidade aumentada e virtual (AR e VR) e tecnologias baseadas em plataforma, incluindo e-commerce, fintech e blockchain (UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT, 2019UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. Digital economy report 2019: value creation and capture: implications for developing economies. Geneva: United Nations Publication, 2019.). A análise de Big Data também é considerada instrumental e possibilitada pela digitalização (UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT, 2020bUNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. World investment report 2020: International production beyond the pandemic. Geneva: United Nations Publication, 2020b.).
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De maneira geral, os paradigmas tecnológicos delimitam as restrições operacionais nas melhores práticas prevalecentes e cada paradigma envolve uma heurística de pesquisa específica. Porém, ainda assim, é possível vislumbrar a geração de variedade de produtos e processos, com possíveis compensações de características de produção que diferentes produtores exploram (DOSI; NELSON, 2010DOSI, G.; NELSON, R. Technical change and industrial dynamics as evolutionary processes. In: HALL, B. H.; ROSENBERG, N. (Org.). Handbooks of the economics of innovation. Amsterdam: North-Holland, 2010. v. 1, p. 51-127.). Ademais, como ressaltado pelos autores, os avanços nas bases de conhecimento podem estar entrelaçados com novas fontes de conhecimento, o que faz com que a delimitação das “revoluções” paradigmáticas seja uma tarefa ainda mais difícil, como parece ser o caso no âmbito das tecnologias digitais.
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Taglioni e Winkler (2016)TAGLIONI, D.; WINKLER, D. Making global value chains work for development. Washington, D.C.: The World Bank, 2016. 289 p. discutem que a causalidade entre a participação nas CGVs e o desempenho dos países pode ocorrer em ambas as direções, quer se considere a integração nas CGVs como endógena aos desenvolvimentos do ambiente econômico.
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Os custos comerciais incluem todos os custos entre o fornecedor e o consumidor final, incluindo, no caso de mercadorias, transporte terrestre, custos portuários, custos de frete e seguro, tarifas e taxas, custos não tarifários, mark-ups de importadores, atacadistas e varejistas; e, no caso de serviços, custos de comunicação e barreiras comerciais, como medidas não tarifárias (DE BACKER; MIROUDOT, 2013DE BACKER, K.; MIROUDOT, S. Mapping global value chains. Paris: OECD Publishing, 2013. p. 1-46. (OECD Trade Policy Papers, 159).).
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Coutinho (1992)COUTINHO, L. A terceira revolução industrial e tecnológica: as grandes tendências de mudança. Revista Economia e Sociedade, Campinas, v. 1, n. 1, p. 69-87, 1992. já apontava que, ao longo dos anos 1980, o uso crescente dessas tecnologias, conformadas no que o autor denominou “complexo eletrônico”, produziu um verdadeiro “vendaval de destruição criativa”, contemplando um amplo espectro de aplicações na produção dos mais variados bens e serviços. A revolução técnica constituiu um novo paradigma tecnológico, com difusão exponencial viabilizada pela produção em larga escala de chips cada vez mais avançados, capazes de permitir crescente capacidade de programar processos de automação a partir de computadores dedicados a guiar sistema de máquinas.
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Empresas-líderes continuamente reavaliam os riscos de offshoring ou terceirização à luz de vários aspectos dinâmicos, como mudanças tecnológicas e políticas, alterações geográficas atreladas à demanda, alterações das preferências do consumidor e dos riscos de localização (BHATIA, 2013BHATIA, U. S. The globalization of supply chains: policy challenges for developing countries. In: ELMS, D.; LOW, P. (Org.). Global value chains in a changing world. Geneva: WTO Publications, 2013. p. 313-328.).
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Para uma discussão dos determinantes da governança das cadeias, chamada também de visão “top-down” (de cima para baixo), ver Gereffi, Humphrey e Sturgeon (2005)GEREFFI, G.; HUMPHREY, J.; STURGEON, T. The governance of global value chains. Review of International Political Economy, London, v. 12, n. 1, p. 78-104, 2005..
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Ao longo da segunda onda da globalização, as estruturas de poder em que as empresas interagem e operam economicamente foram se transformando, orientadas também pela busca por maior flexibilidade e diversificação de localização dos produtores, fornecedores e demandantes. Ademais, a expansão internacional dos estágios de produção pode estar relacionada a fatores institucionais, à disponibilidade de infraestrutura e ao acesso a mercados externos, a insumos estratégicos (mercados intermediários de importação e exportação) e a entrada em novos mercados (com a proximidade da demanda final como fator-chave) (UNITED NATIONS ECONOMIC AND SOCIAL COMMISSION FOR ASIA AND THE PACIFIC, 2015UNITED NATIONS ECONOMIC AND SOCIAL COMMISSION FOR ASIA AND THE PACIFIC – UNESCAP. Asia-Pacific trade and investment report 2015: supporting participation in value chains. Thailand: United Nations Publication, 2015.).
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As cadeias de valor modulares geralmente apresentam fornecedores que fazem produtos ou prestam serviços de acordo com as especificações do cliente, tendo relacionamentos mais substanciais do que em estruturas simples de mercado e com um alto volume de informações (ver GEREFFI; HUMPHREY; STURGEON, 2005GEREFFI, G.; HUMPHREY, J.; STURGEON, T. The governance of global value chains. Review of International Political Economy, London, v. 12, n. 1, p. 78-104, 2005.). Além disso, o mecanismo de governança central é a tecnologia da informação e os padrões para troca de informações.
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Ver Dweck et al. (2022)DWECK, E. et al. COVID-19 and the Brazilian manufacturing sector: roads to reindustrialization within societal purposes. Structural Change and Economic Dynamics, Amsterdam, v. 61, p. 278-293, 2022. para uma discussão a respeito dos efeitos da pandemia sobre a estrutura produtiva brasileira e ampliação da dependência de importações do Sistema Único de Saúde brasileiro.
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Reshoring diz respeito a “mover a manufatura de volta ao país de origem da empresa matriz” (ELLRAM, 2013ELLRAM, L. M. Offshoring, reshoring and the manufacturing location decision. The Journal of Supply Chain Management, Tempe, v. 49, n. 2, p. 3-5, 2013.) ou ainda à “mudança genérica de localização em relação a um país off-shore anterior” (FRATOCCHI et al., 2014FRATOCCHI, L. et al. Manufacturing reshoring: threat and opportunity for East Central Europe and Baltic Countries. In: ZHUPLEV, A.; LIUTO, K. (Org.). Geo-regional competitiveness in Central and Eastern Europe, the Baltic countries, and Russia. Hershey: IGI Global, 2014.).
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À luz da reconfiguração internacional da produção, Berger (2013)BERGER, S. Making in America. Cambridge: The MIT Press, 2013. investigou a importância da manufatura para sustentar capacidades inovativas, no caso dos Estados Unidos. Os resultados do estudo revelaram que as tarefas manufatureiras desempenharam papel crucial para a melhoria contínua de produtos e processos. Nesse sentido, a autora ressalta que o enfraquecimento dos canais de transferência de tecnologia poderia prejudicar a competitividade industrial de longo prazo do país em questão. Em um sentido mais amplo, a perda de densidade industrial pode prejudicar a capacidade inovativa de uma economia.
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Fonte de financiamento: Os autores declaram que não houve fonte de financiamento.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Nov 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
18 Fev 2022 -
Revisado
20 Abr 2023 -
Aceito
11 Ago 2023