Introdução
A partir da coleta dos dados de boletins de ocorrência registrados no município de São Paulo no período de 2008 a 2017 que relatam casos de violência física e/ou verbal motivada por discriminação à identidade de gênero ou à orientação sexual, produzimos alguns mapas e os apresentamos a seguir com alguns comentários sobre sua metodologia. Os dados foram coletados a partir de uma planilha disponibilizada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP) e georreferenciados em sistema de informações geográficas (SIG) a partir da informação do bairro da ocorrência.
Não nos aprofundamos aqui nos outros dados presentes nos boletins e tampouco pretendemos resumir essa violência aos casos registrados. Deixamos essas reflexões para outra oportunidade. Assim, trabalhamos com os dados da localização e o número de ocorrências.
A construção dos mapas
Realizamos o mapeamento a partir de dois fundos de mapa (Figura 1): o primeiro apresenta o município em métrica euclidiana, o segundo é um modelo no qual cada distrito foi representado com uma mesma forma geométrica (hexágono). Este preserva a maior parte das relações de vizinhança presente no mapa em métrica euclidiana, como é possível observar na imagem, o que permite seu uso e comparação. Sobre o modelo, Eduardo Dutenkefer (2017, p. 138-139) afirma:
O propósito principal é oferecer e estabelecer um fundo de mapa que não interfira em demasia nas propriedades visuais essenciais quando o principal desta representação é transmitir uma mensagem mais “clara” possível de um fenômeno que podemos representar graficamente.
O mapa-modelo que usamos foi elaborado por Dutenkefer (2017), inspirado no projeto gráfico London Squared, que apresentou os bairros de Londres como quadrados de igual tamanho e área, resultando numa malha de quadrados. Seu uso é dirigido a representações nas quais não deve haver privilégio na visualização de um fundo de mapa com grandes extensões territoriais em relação aos dados. O autor construiu outros modelos (quadrados e retângulos), mas o hexágono foi a forma que teve resultados visuais mais comunicativos, além de respeitar melhor a topologia. Observamos também que as anamorfoses feitas a partir desse mapa-modelo apresentam menos ruídos visuais nos contornos.
Mostramos o número de registros por distrito em cada um desses fundos de mapa, por meio de círculos proporcionais (Figura 2).
Número de ocorrências policiais de violência física e/ou verbal motivada por discriminação à identidade de gênero ou à orientação sexual, por distrito, no município de São Paulo - 2008-2017
No mapa topográfico, é praticamente impossível apreender com detalhes o que acontece na área central, em razão da sobreposição dos círculos. Ali observamos tanto o maior número de casos registrados, como também distritos com extensões territoriais menores. A aglomeração de círculos no primeiro mapa é, por um lado, comunicativa, pois observamos que o fenômeno acontece ali de forma densa e em grandes proporções; por outro, perdemos a informação da localização das ocorrências. Uma alternativa seria fazer um recorte com uma escala maior e apresentá-lo ao lado do mapa.
Além da distribuição geográfica, da proporção e da densidade, visíveis no mapa em fundo topográfico, o mapa-modelo permite a visualização de todos os círculos, que nesse caso não se sobrepõem. A informação da divisão em zonas permite uma analogia com o primeiro mapa, cuja imagem está mais presente no cotidiano e, portanto, é mais facilmente reconhecida. Não se trata de uma representação melhor que a outra, mas de uma visualização alternativa dos dados no espaço cartográfico.
Com os mesmos dados, construímos anamorfoses (Figura 3) no software ScapeToad (ANDRIEU; KAISER; OUREDNIK, [s.d.]). Esse programa faz o que Nusrat, Alam e Kobourov (2018, p. 1107) chamam de “cartogramas contínuos”: transformações nas áreas mantendo as adjacências. Ele funciona a partir da aplicação dos algoritmos de Gastner e Newman (2004), baseados em difusão de áreas, nos polígonos do arquivo de fundo de mapa com dados estatísticos associados.
Anamorfoses do número de ocorrências de violência física e/ou verbal motivada por discriminação à identidade de gênero ou à orientação sexual, por distrito, no município de São Paulo- 2008-2017
Não identificamos vantagens de uma anamorfose ou outra. Ambas apresentam os dados com a mesma qualidade, apesar de alguns detalhes gráficos distintos próprios dos fundos de mapa utilizados. Como imagens de um espaço, elas cumprem sua função: informam visualmente as áreas onde o fenômeno é mais frequente, ao mostrá-las numa hierarquia visual de tamanhos.
Quando olhamos a grade de transformação gerada pelo programa (uma grade reticular aplicada ao mapa-base da anamorfose, que também é submetido à transformação) (Figura 4), vemos que a anamorfose feita a partir do mapa-modelo mostra mais detalhadamente as áreas contraídas por meio de filamentos que se formam com as linhas em contato. A divisão da zona leste em duas é mais explícita, e alguns distritos perdem em expressão visual. O grande filamento na zona sul da primeira anamorfose diz respeito à extensão territorial do mapa-base.
Considerações finais
Discutir publicamente a construção de mapas, seus elementos constituintes, como a métrica do fundo de mapa, concorre para o que Monmonier (1991) propôs há quase três décadas, mas que é ainda muito atual: desconstruir a abordagem positivista na cartografia, de que existe uma única construção cartográfica possível para os fenômenos - que, em geral, são mapas euclidianos.
O que vimos é que, com os mesmos dados, é possível criar imagens diferentes, que servem a objetivos diversos, e não há uma mais correta ou verdadeira que a outra: elas podem servir a propósitos distintos. Consideramos que a elaboração de uma sequência de mapas como a que se apresenta aqui resulta na possibilidade de explorar o potencial do mapa como uma linguagem produtora de discursos, além de contribuir para a apreensão de um espaço cartográfico que é relativo, e não uma simples analogia da realidade (Fonseca, 2004).
Referências
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ANDRIEU, D.; KAISER, C.; OUREDNIK, A. ScapeToad. Disponível em: Disponível em: https://scapetoad.choros.ch Acesso em: 19 ago. 2019.
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DUTENKEFER, E. A cidade e o mapa: representações cartográficas da urbanidade de São Paulo. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-04072018-123123/pt-br.php Acesso em: 19 ago. 2019.
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FONSECA, F. P. A inflexibilidade do espaço cartográfico, uma questão para a Geografia: análise das discussões sobre o papel da Cartografia. Tese (Doutorado em Geografia Física) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. Disponível em: Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8135/tde-09082010-130954/pt-br.php Acesso em: 21 ago. 2019.
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GASTNER, M. T.; NEWMAN, M. E. J. Diffusion-based method for producing density-equalizing maps. PNAS, v. 101, n. 20, p. 7499-7504, p. 2004. doi: https://doi.org/10.1073/pnas.0400280101
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NUSRAT, S.; ALAM, J.; KOBOUROV, S. Evaluating cartogram effectiveness. IEEE Transactions on Visualization and Computer Graphics, v. 24, n. 2, p. 1105- 1118, 2018. doi: https://doi.org/10.1109/TVCG.2016.2642109
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Maio 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
26 Ago 2019 -
Aceito
09 Dez 2020