Resumos
Em alguns pacientes a utilização dos meios de contraste iodados é contraindicada pela possibilidade de desencadearem efeitos colaterais graves ameaçadores da vida. Nesses casos, existem relatos em que o gadolínio (gadobutrol), comumente empregado na ressonância nuclear magnética, pode ser usado como meio de contraste para coronariografia. Relatamos dois casos com antecedente de alergia grave ao contraste iodado, que realizaram coronariografia com gadolínio. Os procedimentos foram bem tolerados, a quantidade de contraste não excedeu 0,3-0,4 ml/kg e as imagens obtidas foram de qualidade aceitável para efeitos de diagnóstico.
Doença da artéria coronariana; Angiografia coronária; Meios de contraste; Gadolínio
The use of iodinated contrast media is contraindicated in some patients due to serious life-threatening adverse events. In such cases, there are reports that gadolinium (gadobutrol), which is commonly employed in magnetic resonance imaging, may be used as contrast media for coronary angiography. We report two cases with a history of severe allergy to iodinated contrast agent who underwent coronary angiography with gadolinium. The procedures were well tolerated, the amount of contrast media did not exceed 0.3-0.4 ml/kg and the images obtained were of acceptable quality for diagnostic purposes.
Coronary artery disease; Coronary angiography; Contrast media; Gadolinium
RELATO DE CASO
Cinecoronariografia com gadolínio em pacientes com alergia grave ao contraste iodado
Coronary angiography with gadolinium in patients with severe allergy to iodinated contrast media
George César Ximenes MeirelesI; Sérgio KreimerII; Gilberto Guilherme Ajjar MarchioriIII; Micheli Zanotti GalonIV; Rafael ScanavaccaV
IDoutor. Diretor do Serviço de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista do Hospital do Servidor Público Estadual. São Paulo, SP, Brasil
IIMédico cardiologista intervencionista do Serviço de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista do Hospital do Servidor Público Estadual. São Paulo, SP, Brasil
IIIMédico cardiologista intervencionista do Serviço de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista do Hospital do Servidor Público Estadual. São Paulo, SP, Brasil
IVMestre. Médica cardiologista intervencionista do Serviço de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista do Hospital do Servidor Público Estadual. São Paulo, SP, Brasil
VMédico residente em cardiologia do Serviço de Cardiologia do Hospital do Servidor Público Estadual. São Paulo, SP, Brasil
Correspondência Correspondência: George César Ximenes Meireles. Rua Sena Madureira, 1.265 Vila Mariana São Paulo, SP, Brasil CEP 04021-051 E-mail: george.ximenes@terra.com.br
RESUMO
Em alguns pacientes a utilização dos meios de contraste iodados é contraindicada pela possibilidade de desencadearem efeitos colaterais graves ameaçadores da vida. Nesses casos, existem relatos em que o gadolínio (gadobutrol), comumente empregado na ressonância nuclear magnética, pode ser usado como meio de contraste para coronariografia. Relatamos dois casos com antecedente de alergia grave ao contraste iodado, que realizaram coronariografia com gadolínio. Os procedimentos foram bem tolerados, a quantidade de contraste não excedeu 0,3-0,4 ml/kg e as imagens obtidas foram de qualidade aceitável para efeitos de diagnóstico.
Descritores: Doença da artéria coronariana. Angiografia coronária. Meios de contraste. Gadolínio.
ABSTRACT
The use of iodinated contrast media is contraindicated in some patients due to serious life-threatening adverse events. In such cases, there are reports that gadolinium (gadobutrol), which is commonly employed in magnetic resonance imaging, may be used as contrast media for coronary angiography. We report two cases with a history of severe allergy to iodinated contrast agent who underwent coronary angiography with gadolinium. The procedures were well tolerated, the amount of contrast media did not exceed 0.3-0.4 ml/kg and the images obtained were of acceptable quality for diagnostic purposes.
Descriptors: Coronary artery disease. Coronary angiography. Contrast media. Gadolinium.
Os contrastes iodados são usualmente utilizados para a realização de coronariografias e angioplastias coronárias e geralmente são bem tolerados. No entanto, complicações podem ocorrer, e a nefropatia por contraste e as reações alérgicas são as mais frequentemente relatadas. A maioria das reações alérgicas pode ser prevenida com o uso prévio de corticosteroides e anti-histamínicos. Nas situações em que há contraindicação ao uso desses contrastes em decorrência de reação alérgica grave, o contraste à base de gadolínio pode ser uma opção.1
A maioria dos agentes de contraste utilizados nos exames de ressonância nuclear magnética é à base de quelatos do íon paramagnético gadolínio, que vem sendo utilizado desde o final da década de 1980. De modo geral, considera-se que os agentes de contraste à base de gadolínio são muito mais seguros que o contraste iodado. O íon gadolínio, quando livre na circulação, é bastante tóxico, com meia-vida biológica de algumas semanas, muito maior que a apresentada pelos compostos quelados de gadolínio, que é por volta de 1,5 hora. O íon gadolínio, quando está quelado a uma molécula, tem sua farmacocinética alterada, acelerando sua depuração e reduzindo de forma acentuada sua toxicidade. A quelação do gadolínio possibilita aumento de até 500 vezes na taxa de excreção renal do composto. O agente quelante é o que diferencia os diferentes meios de contraste à base de gadolínio encontrados no mercado.2
O uso de meios de contraste à base de gadolínio intra-arterial é considerado "fora da bula", pois é indicado apenas para administração venosa. A primeira descrição de uso de gadolínio intra-arterial foi realizada por Pavone et al.3, em relato de portografia arterial em 12 pacientes com lesões hepáticas. Desde então, vem sendo utilizado para arteriografias periférica e cerebral, coronariografia e angioplastia coronária em pacientes com reações graves ao contraste iodado.1,2,4,5
A prevalência de reações alérgicas ao gadolínio é pouco frequente (0,07%) e é maior em pacientes com história de reação alérgica ao iodo.1,6 A incidência de reação anafilática varia de 1 por 100.000 a 1 por 500.000 administrações de gadolínio.
Na presente publicação, relatamos dois casos de substituição do contraste iodado pelo gadolínio para a realização de coronariografia, em pacientes com contraindicação ao uso de contraste iodado por reação alérgica grave.
RELATO DOS CASOS
Caso 1
Paciente do sexo feminino, 63 anos, com história de dispneia e dor precordial com irradiação para o membro superior esquerdo, relacionada aos esforços habituais, com duração de três minutos e melhora com o repouso, iniciada há três meses. Tinha antecedente de infarto do miocárdio e história de angioedema e urticária relacionada a exame com contraste iodado. A pressão arterial era de 130/80 mmHg e a frequência cardíaca, de 62 bpm. A ausculta cardiopulmonar era normal.
O eletrocardiograma de repouso mostrava ritmo sinusal e progressão lenta de onda R de V1-V4. O ecocardiograma transtorácico mostrou hipertrofia concêntrica do ventrículo esquerdo e hipocontratilidade moderada da parede ântero-apical do ventrículo esquerdo. A cintilografia miocárdica com dipiridamol revelou hipocaptação transitória acentuada na parede anterior do ventrículo esquerdo. Foi, então, indicada coronariografia.
Foram realizados testes cutâneos para contraste iodado: teste de puntura com várias diluições, cujo resultado foi negativo, e teste intradérmico com substância pura, que mostrou resultado positivo, contraindicando a realização do procedimento com contraste iodado. O teste cutâneo com gadolínio foi negativo.
A paciente foi medicada, previamente à coronariografia, com fenoxifenadina 180 mg/dia via oral, com início três dias antes do procedimento, e prednisona 20 mg via oral a cada 8 horas, com início no dia anterior ao exame.
A coronariografia foi realizada pela técnica femoral (introdutor e cateteres 5 F) e mostrou artérias circunflexa e coronária direita sem lesões significativas e lesão de 100% no terço médio da artéria descendente anterior. Circulação colateral estava presente da artéria coronária direita para a artéria descendente anterior +++/4+ e ventriculografia esquerda não foi realizada. Foram utilizados 34 ml de gadobutrol (Gadovist®, Bayer Schering Pharma, Berlim, Alemanha) e o procedimento decorreu sem complicações.
Cirurgia de revascularização miocárdica foi realizada uma semana após a coronariografia (anastomose da artéria torácica interna esquerda-artéria descendente anterior). A paciente evoluiu sem complicações e recebeu alta hospitalar no décimo dia de pós-operatório.
Caso 2
Paciente do sexo feminino, 55 anos, com história de dor precordial com irradiação para o membro superior esquerdo aos médios esforços, duração de 15 minutos a 20 minutos e melhora com o repouso. Relatava fibromialgia e história de alergia a contraste iodado (choque anafilático), sulfa, dipirona e anti-inflamatórios não-esteroides. A pressão arterial era de 120/80 mmHg e a frequência cardíaca, de 75 bpm. A ausculta cardiopulmonar era normal.
O eletrocardiograma de repouso mostrava ritmo sinusal com extrassístoles ventriculares isoladas e sobrecarga ventricular esquerda. O ecocardiograma transtorácico mostrou fração de ejeção do ventrículo esquerdo de 43%, disfunção sistólica segmentar (acinesia septal) e alteração de relaxamento do ventrículo esquerdo. Foi, então, indicada coronariografia.
Em decorrência da história de choque anafilático a contraste iodado, não foram realizados testes de alergia ao contraste iodado. A paciente foi medicada, previamente à coronariografia, com fenoxifenadina 180 mg/dia via oral, hidroxizina 25 mg e prednisona 20 mg via oral a cada 8 horas, com início 25 horas antes do procedimento.
A coronariografia foi realizada pela técnica femoral (introdutor e cateteres 5 F) e mostrou artérias coronárias com irregularidades parietais. A ventriculografia esquerda não foi realizada. Foram utilizados 30 ml de gadobutrol e o procedimento decorreu sem complicações. A paciente recebeu alta hospitalar no dia seguinte.
DISCUSSÃO
Trata-se da primeira publicação em língua portuguesa do uso do gadobutrol em substituição ao contraste iodado para a realização de coronariografia em paciente com história de alergia grave ao iodo. Pelo fato de a reação alérgica grave com risco de morte decorrente do uso de contraste iodado ser muito rara (1 morte por 55.000 casos)7 e de a maioria dos pacientes responder satisfatoriamente ao preparo prévio com anti-histamínico e corticosteroides, é muito difícil a obtenção de casuística para publicação do uso do gadolínio em substituição ao contraste iodado em pacientes submetidos a coronariografia, limitando-se à publicação de relatos de caso.
Em razão de o uso clínico de altas doses de gadolínio intra-arterial não ter sido estudado, é prudente restringir seu uso para 0,3-0,4 mmol/kg (equivalente a 0,3-0,4 ml/kg).2 Assim, os exames realizados com gadolínio devem ser cuidadosamente planejados, utilizando poucas projeções que definam adequadamente as artérias coronárias, limitando o número e o volume de injeções de teste, e não realizando a ventriculografia esquerda.
As reações adversas agudas ao uso intravenoso de gadolínio podem ser divididas entre maiores ou graves e menores, e entre gerais e locais. A incidência total de reações adversas aos meios de contraste na ressonância nuclear magnética varia, aproximadamente, entre 2% e 4%. As reações menores gerais mais comuns são náusea, vômito, urticária e cefaleia, enquanto as locais são irritação, ardor e sensação de frio. Casos de reações adversas agudas maiores ao gadolínio, como laringoespasmo e choque anafilático, são raros.8 Reações adversas após a injeção intravenosa de gadolínio são mais frequentes em pacientes que já tiveram reações prévias a qualquer tipo de contraste de uso interno, quer seja gadolínio ou contraste iodado (dobro de chance), e em pacientes com história de asma e alergias.9
Os efeitos intra-arteriais do uso do gadolínio foram pouco estudados e a maioria dos relatos de caso da literatura não citam reações adversas ao gadolínio.1,3,4,5 A injeção intracoronária de gadolínio pode resultar em arritmia cardíaca grave (fibrilação ventricular), decorrente da osmolalidade (700 mOsm/kg) do contraste injetado diretamente na artéria coronária, mais do que o dobro da osmolalidade plasmática.10 Outro efeito é a nefrotoxicidade que pode ocorrer com altas doses de gadolínio, embora seja menos nefrotóxico que os contrastes iodados.1 O gadolínio não deve ser usado em pacientes com insuficiência renal crônica grave (clearance estimado de creatinina < 30 ml/min/1,73 m²) e em pacientes com insuficiência renal aguda de qualquer gravidade, pelo risco de desenvolvimento de fibrose sistêmica nefrogênica.11 O controle seriado da creatinina pós-procedimento em nossos casos não apresentou alterações, mostrando-se seguro com as doses utilizadas.
A opção pela técnica femoral decorreu da restrição do volume de contraste gadolínio, pois, usualmente, a cateterização das artérias coronárias pela técnica femoral é mais fácil que pela técnica radial, com diminuição da necessidade de testes de contraste para sua localização.
As maiores limitações para o uso do gadolínio para a realização de arteriografia são sua opacidade, menor que a do contraste iodado, e o limite de volume que pode ser utilizado. Nos presentes casos as imagens obtidas foram de qualidade aceitável, definindo claramente a anatomia coronária e a presença ou não de lesões obstrutivas (Figuras 1 e 2).
Dessa forma, concluímos que o meio de contraste gadolínio é uma alternativa potencial para pacientes com alergia grave ao contraste iodado que tenham indicação de coronariografia.
CONFLITO DE INTERESSES
Os autores declaram não haver conflito de interesses relacionado a este manuscrito.
Recebido em: 14/5/2012
Aceito em: 30/8/2012
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Nov 2012 -
Data do Fascículo
2012
Histórico
-
Recebido
14 Maio 2012 -
Aceito
30 Ago 2012