Resumos
Introdução: A dissecção espontânea de artéria coronária é causa rara de síndrome coronariana aguda e, em mais de 70% das vezes, o diagnóstico é feito por meio de necrópsia. O tratamento ideal ainda é incerto, sendo a intervenção coronária percutânea, a cirurgia de revascularização miocárdica e o tratamento clínico as opções terapêuticas. O objetivo deste trabalho foi avaliar as características clínicas, o tratamento e a evolução de uma série de casos de dissecção espontânea de artéria coronária.
Métodos: Estudo retrospectivo, unicêntrico, baseado em análise de banco de dados de um serviço de alta complexidade em cardiologia.
Resultados: Identificamos 25 pacientes com dissecção espontânea de artéria coronária, dos quais 56% eram do sexo feminino, com idade de 48,8 ± 10 anos. Apenas 24% não apresentaram fator de risco para aterosclerose e, em 92% dos casos, o quadro clínico foi de síndrome coronária aguda. A artéria descendente anterior foi o vaso mais acometido (48%) e houve apenas um caso envolvendo múltiplos vasos. A estratégia conservadora foi realizada em 56%, a intervenção coronária percutânea em 40% e a revascularização miocárdica em 4%. A taxa livre de eventos hospitalares e tardios foi de 92 e 84,2%, respectivamente.
Conclusões: A dissecção espontânea de artéria coronária foi predominante em mulheres jovens, com pelo menos um fator de risco para doença arterial coronariana. A escolha de diferentes estratégias terapêuticas confirma a natureza ainda controversa da abordagem ideal da dissecção espontânea de artéria coronária. Acreditamos que o tratamento ideal ainda seja o individualizado.
Doença da artéria coronariana; Infarto do miocárdio; Intervenção coronária percutânea
Background: Spontaneous coronary artery dissection is a rare cause of acute coronary syndrome and diagnosis is made by necropsy in more than 70% of the cases. Optimal treatment is still uncertain, and the treatment options are percutaneous coronary intervention, coronary artery bypass surgery and medical therapy. The objective of this study was to evaluate the clinical characteristics, treatment modalities and outcome of a series of cases with spontaneous coronary artery dissection.
Methods: Retrospective, single-center study, based on the analysis of the database at a high-complexity cardiology service.
Results: We identified 25 patients with spontaneous coronary artery dissection, 56% were female, with a mean age of 48.8 ± 10 years. Only 24% had no risk factor for atherosclerosis and in 92% of the cases, the clinical presentation was of acute coronary syndrome. The left anterior descending artery was the most commonly affected vessel (48,1%) and there was only one case involving multiple vessels. The conservative approach was used in 56%, percutaneous coronary intervention in 40% and coronary artery bypass grafting in 4%. The in-hospital and late event-free survival was 92% and 84.2%, respectively.
Conclusions: Spontaneous coronary artery dissection predominated in young women, with at least one risk factor for coronary artery disease. The choice of different therapeutic strategies confirms the still controversial nature of the optimal approach for spontaneous coronary artery dissection. We believe that individualized therapy is still the optimal modality.
Coronary artery disease; Myocardial infarction; Percutaneous coronary intervention
A importância da discussão acerca da doença arterial coronariana (DAC) na sociedade contemporânea é atestada pelo número endêmico de pessoas afetadas por elas. As doenças cardiovasculares ainda são as principais causas de morte no país, representando mais de 40% dos óbitos.1 A DAC é mais comumente relacionada à aterosclerose, mas as anomalias congênitas das artéria coronárias, as arterites coronarianas associada às vasculites sistêmicas, a displasia fibromuscular e a dissecção espontânea de artéria coronária (DEAC) são outras etiologias a serem consideradas.
O primeiro caso de DEAC foi descrito por Pretty, em 1931, em achado de necrópsia.2 É causa rara de isquemia miocárdica aguda, e o diagnóstico ainda é feito por meio da necrópsia em mais de 70% dos casos.3 , 4 Ocorre mais frequentemente em pacientes jovens, predominantemente no sexo feminino. A apresentação clínica mais frequente é de uma síndrome coronária aguda. A artéria descendente anterior é o vaso mais acometido, e a dissecção em múltiplos vasos ocorre em cerca de 20% dos casos; recorrência em 10 anos ocorre em um terço dos pacientes. Estimativas recentes relatam mortalidade em 10 anos de 7,7%.5 - 7
O objetivo deste estudo foi descrever a incidência, as características clínicas, as modalidades de tratamento e a evolução de pacientes em uma série de casos de DEAC.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo retrospectivo, unicêntrico, realizado em um serviço de atenção terciária, de alta complexidade em cardiologia. A pesquisa baseou-se em análise de banco de dados, revisão de prontuário e contato telefônico.
População do estudo
Foi realizado rastreamento no Banco de Dados do Serviço de Hemodinâmica do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HCFMUSP), utilizando a palavra-chave "dissecção", entre março de 2001 e junho de 2012, sendo obtidos 901 potenciais pacientes. Foram realizadas avaliações individuais dos prontuários e das coronariografias, durante as quais foram excluídos outros diagnósticos, como aterosclerose coronariana, dissecção iatrogênica traumática, dissecção de borda de stent e dissecções em outras artérias. Evidenciou-se um total de 25 pacientes compatíveis com a história clínica e coronariografia de DEAC. O diagnóstico angiográfico de dissecção coronariana foi obtido pela avaliação de pelo menos dois hemodinamicistas.
Coleta de dados
Foram obtidas características demográficas, apresentação clínica, distribuição da DAC, modalidade de tratamento e evolução intra e extra-hospitalar. A investigação dos eventos foi realizada por meio de informações obtidas da revisão de prontuários e de contatos telefônicos. Nos casos em que um mesmo evento se repetisse em um paciente, foi considerado o primeiro evento para fins da análise.
O desfecho do estudo foi a ocorrência de eventos cardíacos e cerebrais adversos maiores (ECCAM) durante o seguimento, definidos como óbito por qualquer causa, acidente vascular cerebral (AVC), infarto agudo do miocárdio (IAM) e revascularização do vaso-alvo (RVA).
As variáveis contínuas foram descritas como média e desvio padrão, enquanto as variáveis categóricas foram descritas como frequências e porcentagens. A taxa de eventos foi estimada pelo método de Kaplan-Meier.
RESULTADOS
Foram identificados 25 pacientes com diagnóstico de DEAC (Tabela 1), sendo 56% do sexo feminino. A média de idades foi de 48,8 ± 10 anos. A prevalência de hipertensão arterial foi de 60%, dislipidemia 44%, tabagismo 32% e diabéticos 16%. Apenas 24% dos pacientes não apresentaram nenhum fator de risco para aterosclerose. Os quadros coronarianos instáveis predominaram, com 80% dos pacientes apresentando-se com IAM (metade deles com supradesnivelamento do segmento ST) e 12% com angina instável. Dois pacientes (8%) apresentaram angina estável.
Houve apenas um (4%) caso de DEAC envolvendo múltiplos vasos (TCE, artéria descendente anterior e artéria circunflexa). A artéria descendente anterior foi o vaso mais acometido (48%). A estratégia de tratamento clínico foi predominante, sendo realizada em 56% dos casos, e a terapêutica farmacológica baseou-se na associação de antitrombóticos e anti-isquêmicos. O tratamento com intervenção coronária percutânea foi realizado em 40% dos pacientes, por meio do implante de stent não farmacológico, ou por dilatação com balão em um caso. Apenas o paciente com dissecção de múltiplos vasos foi tratado com cirurgia de revascularização miocárdica.
A taxa livre de ECCAM hospitalares foi de 92%, havendo apenas um (4%) caso de IAM e um de AVC em pacientes com DEAC tratados por ICP e por tratamento clínico, respectivamente. O seguimento tardio foi de 75,6 ± 43,1 meses. Houve perda de seguimento de seis pacientes. A taxa livre de ECCAM no longo prazo foi de 84,2%. Não houve evidências de recorrência de dissecção espontânea no seguimento tardio. Contudo, houve um episódio de morte súbita aproximadamente 2 anos após DEAC em paciente tratado clinicamente. Houve também um caso de IAM sem supradesnivelamento do segmento ST, num paciente previamente tratado por ICP (Tabela 2). A incidência global estimada de óbito cardiovascular ou infarto durante durante o seguimento é ilustrada na Figura.
Incidência tardia (após a alta hospitalar) de óbito cardiovascular ou infarto em pacientes com diagnóstico de dissecção espontânea das coronárias.
DISCUSSÃO
A incidência de DEAC é substantivamente maior em pacientes jovens, e sua incidência, etiologia e fisiopatologia permanecem obscuras.4 , 5 Acredita-se que fatores hormonais, o estresse cardiocirculatório e o aumento da força de cisalhamento, associados a fatores relacionados ao enfraquecimento da parede vascular, propiciam a ruptura primária da vasa vasorum, levando à hemorragia e, consequentemente, à separação das camadas da parede arterial, criando-se uma falsa luz entre as camadas íntima e média da parede vascular.8
O exercício físico intenso precede o evento em cerca de 50% dos casos que ocorrem no sexo masculino e o status periparto está presente em 20% das mulheres.5 Uma série de comorbidades, como síndrome de Marfan, síndrome de Ehlers-Danlos, síndrome do anticorpo antifosfolipídeo, doença de Osler-Weber-Rendu, poliarterite nodosa, lúpus eritematoso sistêmico, sarcoidose e hipertensão arterial grave, tem sido descrita em associação com a DEAC.
Outras condições associadas incluem trauma torácico, cirurgia cardíaca, dissecção de aorta, uso de cocaína, tabagismo, uso de anticoncepcionais orais ou de ciclosporina, entre outros.7 , 9
Neste trabalho, evidenciamos maior incidência de DEAC em uma população jovem, predominantemente no sexo feminino. Em relação às características clínicas, apesar do predomínio de pacientes jovens, houve uma elevada taxa de hipertensão arterial sistêmica, assim como de dislipidemia e tabagismo. Além disso, apenas 24% dos pacientes apresentavam-se sem nenhum fator de risco para aterosclerose, sugerindo que parte dessa população poderia apresentar doença aterosclerótica associada. Outro dado interessante foi a ausência de mulheres em período de periparto na população estudada, fato que pode ser explicado pela taxa etária mais elevada da população feminina em relação a outros estudos.
Considerando DEAC uma causa importante de morte súbita em adultos jovens, principalmente se envolvidos os múltiplos vasos, tronco de coronária esquerda (TCE) ou região proximal de artéria descendente anterior,4 , 5 nosso trabalho mostrou um espectro de apresentação clínica predominantemente de quadros coronarianos agudos (92%). Apesar de quase metade dos pacientes apresentar dissecção de artéria descendente anterior, a ausência de mortes cardíacas no período intra-hospitalar pode ser explicada pela baixa incidência de dissecções em multivasos ou em TCE.
A estratégia terapêutica mais adequada para o tratamento de DEAC depende da gravidade clínica e dos achados coronariográficos, como número de vasos envolvidos, tamanho do vaso, localização e extensão da dissecção e da área de miocárdio em risco.6 No presente trabalho, a escolha das estratégias terapêuticas (clínicas, percutâneas ou cirúrgicas) confirmou a natureza ainda incerta da abordagem ideal da DEAC. O predomínio da estratégia conservadora (56%) baseou-se, provavelmente, na estabilidade clínica, na característica uniarterial e na localização imprecisa do flap da dissecção. Na maioria das vezes, o local inicial de rotura intimal é de difícil localização. Na persistência dos sintomas e com a identificação do orifício de entrada da dissecção, o tratamento percutâneo pode ser indicado. Dissecções com oclusão coronariana, envolvendo múltiplos vasos ou TCE, e na presença de choque cardiogênico, o tratamento cirúrgico de urgência parece ser o mais indicado.10 , 11
A ausência de mortes no período hospitalar e a alta taxa livre de eventos no seguimento tardio (84,2%) confirmam a tendência de um prognóstico favorável em pacientes que sobrevivem ao primeiro evento. Estudos mais recentes mostram sobrevida em torno de 80% em 25 a 30 meses.7 , 10 , 12 À luz dos conhecimentos atuais, a abordagem ideal da DEAC deve ser individualizada, levando-se sempre em consideração a apresentação clínica e as características angiográficas.
Nosso estudo teve algumas limitações, como o fato de ser retrospectivo, com base em informações de banco de dados e de prontuário, além de não ter sido possível contato telefônico no acompanhamento tardio em todos os casos. Por isso, houve perda de uma parcela não desprezível de pacientes, que não fizeram parte da análise final. Além disso, a inclusão de pacientes que tiveram seus procedimentos realizados em momentos bastante diferentes, ainda mais em uma especialidade em que os avanços dos métodos, dispositivos e medicamentos são tão acelerados, fez com que alguns dos indivíduos recebessem tratamentos diferenciados.
CONCLUSÕES
Em nosso estudo, a incidência de dissecção espontânea de artéria coronária foi predominante em mulheres jovens com síndrome coronariana aguda, a maioria com presença de pelo menos um fator de risco para doença aterosclerótica coronariana. A artéria descendente anterior foi o vaso mais acometido, e a abordagem terapêutica foi individualizada. A taxa de eventos cardíacos e cerebrais adversos maiores foi reduzida na evolução tardia, mas necessita ser melhor avaliada, com estudos prospectivos com maior número de pacientes.
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FONTE DE FINANCIAMENTONão há.
REFERÊNCIAS
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1 Brasil. Ministerio da Saude. DATASUS. Informações de Saúde.
Mortalidade [Internet]. Brasília; 2007 [citado 2011 ago. 15]. Disponível em:
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/obtbr.def
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Errata
Como publicado no volume 22, número 1 de 2014, na página 32, no artigo "Dissecção espontânea de artéria coronária: abordagem terapêutica e desfechos de uma série consecutiva de casos”, nos nomes dos autores, onde se lê Jammil Cade, leia-se "Jamil Cade".
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2014
Histórico
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Recebido
18 Nov 2013 -
Aceito
04 Fev 2014