Open-access INDICATIVOS DA NECROPOLÍTICA SOCIOAMBIENTAL BRASILEIRA

Resumo

No contexto de crise socioambiental que se evidencia na Amazônia Legal, este artigo tem como objetivo geral identificar vínculos entre as ações do governo brasileiro vigente (2019-2022) e a necropolítica socioambiental. Dentre os objetivos específicos, a investigação proposta visa a demonstrar a participação do governo federal em vigor no aumento dos incêndios, desmatamentos, invasões a territórios indígenas, garimpo ilegal e violência na Amazônia Legal. Com base na obra de Achille Mbembe, este estudo busca delimitar uma crise humanitária originada na necropolítica do governo Bolsonaro. Fazendo uso de uma metodologia quantitativa, esta pesquisa partiu da coleta de dados relacionados à desarticulação de normas ambientais garantidoras de políticas públicas, discursos oficiais de incitação à violação de normas ambientais e inércia no combate a crimes ambientais na Amazônia e contra os povos indígenas no período de janeiro de 2019 a agosto de 2022. Em uma análise qualitativa, tais dados foram inseridos em um quadro analítico derivado da obra de Mbembe sobre a necropolítica. Como resultado, restam reforçadas e justificadas as denúncias de crime contra a humanidade que tramitam contra o Presidente da República perante o Tribunal Penal Internacional (TPI).

Palavras-chave:  crime contra a humanidade; governo federal brasileiro; meio ambiente; necropolítica socioambiental; Tribunal Penal Internacional

Resumen

En el contexto de la crisis socioambiental en la Amazonia Legal, este artículo tiene como objetivo identificar los vínculos entre las acciones del actual gobierno brasileño (2019-2022) y la necropolítica socioambiental. Entre los objetivos específicos, la investigación propuesta pretende demostrar la participación del actual gobierno federal en el aumento de los incendios, la deforestación, las invasiones de territorios indígenas, la minería ilegal y la violencia en la Amazonia Legal. A partir del trabajo de Achille Mbembe, este estudio busca delimitar una crisis humanitaria originada en la necropolítica del gobierno Bolsonaro. Utilizando una metodología cuantitativa, esta investigación comenzó con la recolección de datos relacionados con la desarticulación de las normas ambientales que garantizan las políticas públicas, los discursos oficiales que incitan a la violación de las normas ambientales y la inercia en la lucha contra los delitos ambientales en la Amazonía y contra los pueblos indígenas desde enero de 2019 hasta agosto de 2022. En un análisis cualitativo, tales datos se insertaron en un marco analítico derivado de la obra de Mbembe sobre la necropolítica. Como resultado, se refuerzan y justifican las acusaciones de crímenes contra la humanidad contra el Presidente de la República ante el Tribunal Penal Internacional (TPI).

Palabras clave:  crimen contra la humanidad; gobierno federal brasileño; medio ambiente; necropolítica socioambiental; Tribunal Penal Internacional

Abstract

Within the context of the socio-environmental crisis evident in the Legal Amazon region, this article aims to identify links between the actions of the current Brazilian government (2019-2022) and socio- -environmental necropolitics. Among the specific objectives, the proposed investigation seeks to demonstrate the involvement of the current federal government in the increase of fires, deforestation, invasions of Indigenous territories, illegal mining, and violence in the Legal Amazon region. Drawing from Achille Mbembe’s thesis, the study aims to delineate a humanitarian crisis stemming from the necropolitics of the Bolsonaro government. Employing a quantitative methodology, the research involved collecting data related to the dismantling of environmental norms that guarantee public policies, official discourses inciting the violation of environmental norms, inertia in combating environmental crimes in the Amazon and against Indigenous peoples, spanning from January 2019 to August 2022. In a qualitative analysis, these data were integrated into the analytical framework derived by the authors from Mbembe’s work on necropolitics. As a result, the accusations of crimes against humanity filed against the Brazilian president the International Criminal Court (ICC) are further reinforced and justified.

Keywords:  crimes against humanity; Brazilian federal government; environment; socio-environment necropolitics; International Criminal Court

Introdução

A escolha do tema proposto deu-se em virtude da violência envolvida no assassinato de Dom e Bruno 1 enquanto trabalhavam em prol dos povos indígenas na Amazônia, e o descaso do governo federal diante do ocorrido. A destruição do meio ambiente brasileiro durante a vigência do governo atual (2019-2022) é evidente e traz consequências diretas e permanentes, tanto pela usurpação dos recursos naturais pátrios, em um contexto nacional, quanto pela propulsão do aquecimento climático global.

Em um ambiente de insegurança jurídica extrema, os grupos em situação de vulnerabilidade, dentre os quais os povos indígenas, são muito afetados. Nesse contexto, a pergunta central da pesquisa foi: Em que medida a atuação do governo brasileiro vigente, em questões socioambientais, ancora-se em elementos constitutivos de uma necropolítica socioambiental?

Metodologicamente, partiu-se da coleta e análise de dados relacionados à desarticulação de normas ambientais garantidoras de políticas públicas, discursos oficiais de incitação à violação de normas ambientais e inércia no combate a crimes ambientais na Amazônia e contra os povos indígenas, no período de janeiro de 2019 a agosto de 2022. O corte temporal dos dados corresponde ao período compreendido entre o momento em que o atual chefe do Poder Executivo foi empossado até a finalização deste texto.

O presente estudo também envolveu análise teórica, com pesquisa bibliográfica e revisão de literatura, com o propósito de identificar possíveis vínculos entre ações do governo federal vigente e uma necropolítica socioambiental. Como escolha epistemológica dos autores, foram priorizadas as abordagens decoloniais e os pensadores originários de países fora do eixo eurocêntrico. Partindo de tal premissa, os autores derivaram elementos constitutivos do conceito de necropolítica com vistas a elaborar um quadro analítico dos achados da pesquisa.

A necropolítica é tomada aqui como administração do terror e como uma política que destrói qualquer vínculo que não seja de inimizade. O quadro analítico serve para verificar em que medida as ações do governo aproximam-se ou se distanciam dos elementos constitutivos da necropolítica ( Quadro 1 ).

1 A política socioambiental brasileira no período de 2019 a 2022

Nesta seção serão apresentadas algumas ações de governo que podem ser identificadas como constitutivas de práticas necropolíticas. Para tanto, os autores elaboraram um quadro analítico derivado da obra de Mbembe ( 2017 ) ( Quadro 1 ).

A análise será feita da seguinte forma: as ações de governo serão cotejadas com os elementos constitutivos da necropolítica descritos no Quadro 1 .

Preliminarmente, é necessário destacar que o governo federal em vigor (2022) descumpre o direito fundamental de acesso à informação, contido no artigo 5 o , XXXIII, da Constituição Federal Brasileira ( BRASIL, 1988 ). Isso materializa-se em discursos de desqualificação dos materiais produzidos por órgãos e técnicos especializados em uma conjuntura de irregularidades na gestão de dados socioambientais. Falta clareza e divulgação adequada de dados socioambientais pelas fontes oficiais; por isso o levantamento dos dados que embasam este estudo foi penoso, mas, ainda assim, seu conjunto é volumoso e explícito o suficiente para demonstrar os resultados obtidos.

Tabela 1
. Elementos constitutivos de uma necropolítica

Dentre os dados coletados, aqueles relacionados à desarticulação de normas ambientais garantidoras de políticas públicas passaram pelo levantamento e análise das medidas provisórias, Projetos de Lei de iniciativa do Poder Executivo Federal e Decretos editados pelo Presidente da República no período proposto. Os discursos oficiais de incitação à violação de normas ambientais são notórios e foram compilados de sites governamentais e de mídia. Por seu turno, os dados relativos à inércia no combate a crimes ambientais na Amazônia e contra os povos indígenas, foram obtidos, essencialmente, junto ao Programa TerraBrasilis do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), Rede MapBiomas, Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Prodes), ONG SOS Amazônia e Instituto do Homem e do Meio Ambiente na Amazônia (Imazon).

TerraBrasilis é uma plataforma do Inpe para organização, acesso e uso, por meio de um portal web , dos dados geográficos produzidos pelos seus programas de monitoramento ambiental. Disponível desde 2015, é alimentada com dados do Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), um sistema de alerta que tem a função de dar suporte à fiscalização e controle de desmatamento e da degradação florestal ao Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama). O MapBiomas é uma Organização Não Governamental (ONG), composta por diversas associações civis, que reúne informações coletadas ao longo de todo o ano e faz a verificação dos dados, eliminando interferências para apresentar o dado do ano anterior consolidado.

Os dados acerca do crescimento da violência contra os povos indígenas foram compilados do Atlas da Violência 2021 ( IPEA, 2021 ), produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em conjunto com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), e do Conselho Indigenista Missionário ( CIMI, 2016 , 2021 ), com base nos relatórios dos anos de 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021, que têm como fonte a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Ainda que os resultados sejam significativos, deve ser também considerado o número de subnotificações, assim como a gravidade das violências, que, muitas vezes, não são propriamente relatadas, inclusive porque a maior parte dos assassinatos apresenta motivos ignorados ou desconhecidos; a pesquisa não diferenciou as mortes quanto ao gênero.

Os dados coletados ao longo deste estudo denotam um ambiente de insegurança jurídica e extrema incerteza quanto aos direitos socioambientais ao longo dos últimos quatro anos no Brasil. Antes de detalhá-los, vale pontuar, novamente, que esta pesquisa teve como enfoque o levantamento de: (i) informações atreladas à desarticulação de normas garantidoras de políticas públicas ambientais; (ii) discursos oficiais de incitação à violação de normas ambientais; e (iii) inércia no combate a crimes ambientais e contra os povos indígenas dentro da Amazônia, no período compreendido entre janeiro de 2019, quando o atual chefe do Executivo foi empossado, e agosto de 2022, quando foi concluída a redação deste texto.

Nos quadros que seguem, foi mantida a ordem cronológica das ações de governo para que o leitor acompanhe o trajeto do próprio governo.

Quadro 2 . Ações de governo e vínculos com a necropolítica – de 1º/1/2019 a 11/4/2019

Data Ações de Governo Elemento
Constitutivo da
Necropolítica (EC)
1º/1/2019 O chefe do Poder Executivo transferiu o processo de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação de terras indígenas da Funai para o Mapa por meio da Medida Provisória (MP) 870 ( BRASIL, 2019j ), posteriormente convertida na Lei n. 13.844, de 2019 ( BRASIL, 2019h ). EC3
EC6
28/2/2019 Foram publicadas no Diário Oficial da União as Portarias n. 107 a 127 do Ministério do Meio Ambiente, publicizando a exoneração de 21 dos 27 superintendentes do Ibama em diversos Estados ( BRASIL, 2019k ). EC3
EC6
29/3/2019 Publicação do Decreto n. 9.741/2019 ( BRASIL, 2019c ), mediante o qual o Presidente da República reduziu drasticamente o orçamento do Ministério do Meio Ambiente, que teve como consequência o bloqueio de R$ 187,4 milhões, o equivalente a 22,7% do seu orçamento discricionário ( PINA, 2019 ). EC3
EC4
EC9
11/4/2019 Por meio do Decreto n. 9.759/2019, o Presidente da República extinguiu os Comitês e Conselhos responsáveis pelo acionamento do Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Água, inviabilizando sua atuação ( IBAMA, 2019 ). EC3
EC6
11/4/2019 Depois do ministro do meio ambiente anunciar a intenção de indenizar proprietários rurais que foram desapropriados por terem imóveis dentro de unidades de conservação com recursos do Fundo Amazônia, em 17/05/2019 ( BARBOSA, 2019 ), portanto, para regularização fundiária – ato que não é permitido pela governança do fundo ( FUNDO AMAZÔNIA, 2022 ), também através do Decreto n. 9.759/2019, o Presidente da República extinguiu o Comitê Técnico (CTFA) e o Comitê Orientador (COFA) do Fundo Amazônia ( BRASIL, 2019d ). EC3
EC9
11/4/2019 Por meio do Decreto n. 9.760/2019, posteriormente instituído pela Portaria Conjunta 1/2019, foi criado o Núcleo de Conciliação Ambiental para revisar as multas ambientais aplicadas pelo Ibama ( BRASIL, 2019e , 2019l ). Como consequência, até agosto/2019 a aplicação de multas ambientais sofreu uma queda de 29,4% ( SHALDERS, 2019 ). EC3
EC9
29/8/2019 Durante uma transmissão ao vivo nas redes sociais, o presidente da República afirmou que iria rever a demarcação de terras indígenas por suspeita de irregularidades relativas à venda de terras protegidas para estrangeiros explorarem; sem apresentar evidências, declarou: “é muita terra para pouco índio” ( É MUITA TERRA..., 2019 ). EC1
EC3
EC5
EC8
30/8/2019 Oficialmente identificado em 30/8/2019, aproximadamente quatro meses depois do Decreto n. 9.759/2019, um derramamento de petróleo atingiu a costa brasileira e alcançou a faixa litorânea de 4.334 km em 11 Estados litorâneos, até 22/11/2019; trata-se do maior derramamento de óleo bruto da história brasileira e um dos mais extensos já registrados no mundo ( PENA et al. , 2020 ). Ainda assim, transcorreram 41 dias até que o derramamento começasse a ser combatido pelo governo federal ( IBAMA, 2019 ). EC3
EC6
Fonte: elaborado pelos autores.

O Fundo Amazônia foi criado há mais de dez anos e consiste, basicamente, na aplicação de recursos doados pela Noruega e pela Alemanha para projetos de fiscalização e redução de desmatamento na região, é gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Até sua inviabilização pelo governo federal vigente, mais de R$ 3 bilhões já haviam sido doados para projetos de pesquisa e geração de renda na Amazônia ( FUNDO AMAZÔNIA, 2022 ).

A declaração de alocar os recursos do Fundo Amazônia para regularização fundiária – ato que não é permitido pela governança do fundo –, somada à extinção do Comitê Técnico (CTFA) e do Comitê Orientador (Cofa) pelo Decreto n. 9.759/2019 ( BRASIL, 2019d ), sem que fosse restaurada a governança, implicaram a paralisação da distribuição dos valores, que somavam R$ 2,9 bilhões em 2020. O comprometimento do Fundo Amazônia é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 59, uma das ações do “Pacote Verde”, que tramita perante o Supremo Tribunal Federal ( STF, 2022b ).

Quadro 3 . Ações de governo e vínculos com a necropolítica – em 29/5/2019

Data Ações de Governo Elemento
Constitutivo da
Necropolítica (EC)
29/5/2019 Publicação do Decreto Presidencial n. 9.806/2019, que alterou a composição do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), principal órgão consultivo e deliberativo da Política Nacional do Meio Ambiente, reduzindo o número de conselheiros de 96 para 23, sendo 17 representantes do governo e apenas 4 conselheiros de entidades ambientalistas e 2 conselheiros de entidades empresariais, e atribuindo a presidência do órgão ao então ministro do meio ambiente Ricardo Salles ( BRASIL, 2019f ). EC3
EC9
Fonte: elaborado pelos autores.

A rigor, o Conama tem um colegiado que reflete o regime democrático, composto pelo Poder Público, setor empresarial e entidades ambientalistas, e que, entre outras atribuições, é responsável por estabelecer normas para o licenciamento de atividades potencialmente poluidoras, acompanhar a criação e gestão de Unidades de Conservação (UCs), determinar a realização de estudos das alternativas e possíveis consequências ambientais de projetos públicos ou privados e avaliar regularmente a efetivação e a execução das políticas e normas ambientais do país, estabelecendo sistemas de indicadores ( BRASIL, 1981 ). Para Rocha Neto ( 2021, p. 299 ), é “lícito dizer que o contexto político atual é de enfraquecimento das participações e, portanto, das instâncias decisórias compartilhadas”.

Quadro 4 . Ações de governo e vínculos com a necropolítica – em 18/6/2019

Data Ações de Governo Elemento
Constitutivo da
Necropolítica (EC)
18/6/2019 O Presidente da República editou a Medida Provisória (MPV) n. 886, retirando novamente da Funai a competência para a demarcação de terras indígenas, mas manteve o órgão no âmbito do Ministério da Justiça por uma determinação anterior do Congresso Nacional ( BRASIL, 2019a ). A MPV n. 886 foi convertida na Lei n. 13.901/2019, a qual passa a dispor sobre a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios, ocasião que se refere ao Conselho nacional de Política Indigenista (XV), ao zoneamento ecológico econômico (VIII) e demais disposições que alteram secretárias, subchefias e cargos de natureza especial, passando a vigorar em novembro do mesmo ano ( BRASIL, 2019i ). Compete acrescentar que a exposição de motivos – que, erroneamente, remete à MPV 870 e não à 886 – está assinada pelo ministro do trabalho e previdência social, Onyx Lorenzoni, e pelo ministro da economia, Paulo Roberto Nunes Guedes. EC3
EC7
EC9
Fonte: elaborado pelos autores.

Nesta ação ficou patente o vínculo não apenas com os elementos constitutivos 3 (que acentua a inimizade) e 9 (que suspende direitos sob a alegação de protegê-los), mas, igualmente, com o EC7, que condena grupos vulneráveis a reduzir sua existência ao ato de prestar contas à morte. Trata-se de um dos mais acentuados vínculos das ações de governo com fundamentos da necropolítica socioambiental.

Quadro 5 . Ações de governo e vínculos com a necropolítica – de 1º/7/2019 a 7/08/2019

Data Ações de Governo Elemento
Constitutivo da
Necropolítica (EC)
Julho/2019 O líder da aldeia Mariry, da etnia Wajãpi, no Amapá, foi assassinado a facadas após um grupo de 50 garimpeiros fortemente armados invadir a aldeia, que pediu socorro por meio das redes sociais e instâncias institucionais sem receber qualquer resposta adequada por parte do Estado ( INVASÃO A TERRA..., 2019 ). EC1
EC3
EC4
3/7/2019 Números divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), provenientes do sistema “TerraBrasilis”, mostraram que o desmatamento no bioma Amazônia em junho/2019 (920,4 km 2 ) foi 88% maior do que em junho/2018 (488,4 km 2 ) ( TERRABRASILIS, 2019b ).
Os incrementos de desmatamento nas áreas indígenas da Amazônia são ainda mais alarmantes. Na Terra Indígena (TI) Ituna-Itatá, que, dentre as áreas listadas, foi a mais afetada; a dimensão desmatada foi de 15,72 km 2 em 2018 para 119,96 km 2 em 2019. Na TI de Apyterewa o desmate subiu de 18,91 km 2 em 2018 para 85,27 km 2 em 2019 ( TERRABRASILIS, 2019c ).
EC7
7/8/2019 Foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) a Portaria n. 2.170 exonerando Ricardo Galvão do cargo de Diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) ( BRASIL, 2019n ), órgão subordinado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, responsável por coletar dados de desmatamento, depois de um embate público entre ele e chefe do Executivo sobre a qualidade e a publicidade dos dados de desmatamento divulgados pelo órgão ( A POLÊMICA..., 2019 ). Galvão, que é livre-docente do Instituto de Física da USP, estava cedido ao Inpe, no qual trabalhava como pesquisador há mais de 40 anos ( FERREIRA; DIAS; ESCOBAR, 2019 ). EC3
Fonte: elaborado pelos autores.

Em 10 de agosto de 2019 produtores rurais iniciaram um movimento conjunto de incêndios florestais criminosos, articulado por meio de grupos de WhatsApp, que ficou conhecido como o “Dia do Fogo”. Tratando-se de um crime ambiental, seus danos não respeitaram fronteiras; a fumaça gerada pelas queimadas na Amazônia no “Dia do Fogo” percorreu milhares de quilômetros e levou sua fuligem até São Paulo, fazendo o dia virar noite ( MONCAU, 2020 ). Dados de satélite coletados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelam um aumento de mais de 300% no volume de queimadas no norte do país quando comparado com os números do dia anterior ( MACHADO, 2019 ). O jornalista que denunciou o “dia do fogo” está sob ameaças ( SILVÉRIO et al. , 2019 ).

Quadro 6 . Ações de governo e vínculos com a necropolítica – de 14/8/2019 a 1º/10/2019

Data Ações de Governo Elemento
Constitutivo da
Necropolítica (EC)
14/8/2019 Até 14/8/2019 foram cerca de 32.728 focos de incêndio apenas no bioma Amazônia, o que representa um aumento de cerca de 60% em relação à média dos três anos anteriores no mesmo período ( SILVÉRIO et al. , 2019 ). EC3
24/9/2019 O Presidente do Brasil declarou, na abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), que a Amazônia “não está sendo devastada e nem consumida pelo fogo, como diz mentirosamente a mídia” ( OLIVEIRA; ARAÚJO, 2022 ). EC3
30/9/2019 Durante uma reunião com empresários na Arábia Saudita por conta do fórum de investimentos Future Investment Iniciative , o presidente brasileiro afirmou que os povos indígenas eram os responsáveis pelos incêndios na Amazônia ( OLIVEIRA; ARAÚJO, 2022 ). EC3
1 o /10/2019 Mediante a Portaria n. 1.597/2019, o secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública dispensou Bruno Pereira da função de coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Diretoria de Proteção Territorial da Fundação Nacional do Índio ( BRASIL, 2019m ). EC3
26/11/2019 O Poder Executivo propôs o PL 6.162/2019, que consiste em um “Plano Regional de Desenvolvimento da Amazônia para o período de 2020 a 2023” ( BRASIL, 2019b ). EC3
EC4
EC5
EC9
Fonte: elaborado pelos autores.

O Anexo III do PL supramencionado – n. 6.162/2019, traz uma série de conceitos indeterminados permeados pelo termo “sustentável”, com fortes indicativos de estímulo às atividades inadequadas para a região amazônica, como: “aprimoramento do escoamento de commodities” (6.2), “implementação de programa de biorrefinarias” (6.17), “construção e pavimentação asfáltica” (4.4), “criação de incubadoras” (2.6) ( BRASIL, 2019b ).

Em uma guerra, que também é discursiva, o governo federal vigente usa palavras como estratégias desenvolvimentistas para descaracterizar as comunidades, o território e liberar o uso da floresta em âmbitos nacional e internacional. O PL 6.162/2019 serve para caracterizar o desmonte das políticas públicas ambientais e a falta de atenção que o governo federal dá ao tema, haja vista que a proposição aponta dois caminhos possíveis: mudança ou extinção (i) das instituições responsáveis e (ii) das políticas públicas, em nome do cenário de desenvolvimento regional do país, principalmente na região Amazônica ( BRASIL, 2019b ).

Trata-se de mais uma ação comprometida com políticas de inimizade (EC3) e com práticas que, ao invisibilizar grupos indígenas, tendem a condená-los à condição de grupos indesejáveis ao rolo compressor do “desenvolvimento” (EC4, EC5 e EC9).

Ao longo do ano de 2019 os focos de incêndio no território nacional ultrapassaram a média dos últimos 22 anos nos meses de janeiro, fevereiro, abril e agosto. Na Amazônia Legal os números superaram a média do vintênio nos meses de fevereiro, maio e agosto, superando, também, a máxima, em março e abril ( SILVÉRIO et al. , 2019 ). A ocorrência de incêndios em maior número no ano de 2019, de estiagem mais suave, indicava que o desmatamento poderia ser um fator de impulsionamento às chamas, pois a relação entre os focos de incêndio e o desmatamento registrado do início do ano até o mês de julho/2019 mostrou-se especialmente forte. A concentração de incêndios florestais em áreas recém-desmatadas e com estiagem branda representou forte indicativo do caráter intencional desses incêndios provocados para limpar tais áreas ( SILVÉRIO et al. , 2019 ).

Em 2019 a Amazônia brasileira já havia perdido 17% de sua floresta. Naquele momento, especialistas estimaram que se essa porcentagem atingisse entre 20% e 25%, “chegaremos ao ponto de virada crítico e irreversível, a partir do qual o bioma se transformará em savana” ( LOVEJOY; NOBRE, 2018 ). O desmatamento entre janeiro e julho de 2019 (km 2 ) dos dez municípios da Amazônia, correspondem a: (1) Apuí/AM: 151,0 km; (2) Altamira/PA: 297,3 km; (3) Porto Velho/RO: 183,5 km; (4) Caracaraí/RR: 16 km; (5) São Félix do Xingu/PA: 218,9 km; (6) Novo Progresso/PA: 67,8 km; (7) Lábrea/AM: 197,4 km; (8) Colniza/MT: 82,4 km; (9) Novo Aripuanã/AM: 122,3 km; e (10) Itaituba/PA: 67,8 km (adaptado de Ipam, “Amazônia em chamas” ( SILVÉRIO et al. , 2019 ), com dados do Inpe e SAD/Imazon). Dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia ( FONSECA et al. , 2019 ) mostram que, em setembro/2019, 802 km 2 foram desmatados na Amazônia Legal, 80% a mais do que em setembro/2018. Conforme o Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Imazon, o monitoramento dos últimos 2 anos está avançando e a floresta já perdeu, em termos comparativos, o equivalente a 2 mil campos de futebol por dia, com a maior devastação nos últimos 15 anos ( IMAZON, 2022 ).

Quadro 7 . Ações de governo e vínculos com a necropolítica – de 6/2/2020 a 28/6/2021

Data Ações de Governo Elemento
Constitutivo da
Necropolítica (EC)
6/2/2020 O Poder Executivo propôs o Projeto de Lei n. 191/2020 para “regulamentar” o § 1º do art. 176 e o § 3º do art. 231, ambos da Constituição Federal ( BRASIL, 1988 ), para autorizar a pesquisa e a lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos, o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica e o plantio de transgênicos em terras indígenas, além de instituir a indenização pela “restrição do usufruto” de terras indígenas ( BRASIL, 2020b ). EC3
EC4
EC5
EC6
EC7
EC8
22/04/2020 Em reunião ministerial presidida pelo chefe do Poder Executivo, o ministro do meio ambiente Ricardo Salles afirmou: “precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura da imprensa que só fala de covid, e ir passando a boiada, e mudando todo o regramento e mudando normas”, para, segundo o ministro, “dar de baciada a simplificação regulatória que nós precisamos” ( STF LIBERA..., 2020 ). EC3
EC4
EC9
09/06/2020 O chefe do Poder Executivo determinou que a Polícia Militar de Rondônia suspendesse o apoio fornecido aos fiscais do Ibama e do ICMBio em operações de combate ao desmatamento ( MAISONNAVE, 2019 ). EC4
EC6
EC9
7/07/2020 O chefe do Poder Executivo sancionou com vetos a Lei n. 14.021/2020, que previa medidas de proteção para comunidades indígenas durante a pandemia de Covid-19 ( BOLSONARO SANCIONA..., 2020 ). Ao longo do ano de 2020 foram propostas inúmeras MPVs, abrindo créditos extraordinários para diversos setores da economia e Ministérios em virtude da pandemia de Covid-19, no entanto o governo federal vetou 22 dispositivos do plano emergencial para enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas, que previam medidas de proteção para as comunidades indígenas no mesmo período pandêmico ( RAMOS, 2020 ). Dentre os itens vetados constavam a obrigação de o poder público fornecer itens como água potável, materiais de limpeza, higiene e desinfecção; leitos de UTI, ventiladores pulmonares e materiais informativos sobre a Covid-19 ( BRASIL, 2020c ). EC3
EC4
EC5
EC6
EC7
EC8
EC9
13/9/2020 O governo vigente cortou os orçamentos do Ibama e do ICMBio para 2021, reduzindo drasticamente a capacidade operacional do Ibama e do ICMBio. No caso do Ibama, o corte nas verbas foi de 4%, para R$ 1,65 bilhão. Do total, R$ 513 milhões ainda dependiam de crédito extra a ser aprovado pelo Congresso, ou 31%. No ICMBio a redução foi ainda maior: queda de 12,8% para R$ 609,1 milhões e R$ 260,2 milhões (43%) ( BRANT; MACHADO, 2020 ). EC3
28/9/2020 Ricardo Salles decidiu, na 135ª Reunião Ordinária, revogar as quatro resoluções do Conama ( SHALDERS, 2020 ), posto que duas delas restringiam o desmatamento e a ocupação em áreas de mangues, restingas e dunas ( BRASIL, 2002 ), e as outras duas continham restrições relativas às áreas situadas ao redor dos reservatórios de água, mangue e restinga, propiciando a especulação imobiliária nas faixas de vegetação das praias e a ocupação de áreas de mangue nominadas “apicuns” para produção de camarão, em uma tentativa explícita de favorecer o setor hoteleiro que pretendia empreender em áreas costeiras ( SALLES APROVA, 2020 ). EC3
28/06/2021 Sob a alegação de que era necessário combater o desmatamento, o Presidente da República autorizou, com a assinatura do Decreto n. 10.730/2021, o emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem (GLO) nas terras indígenas, em unidades federais de conservação ambiental, em áreas federais em geral e, mediante requerimento do respectivo governador, em outras áreas dos Estados abrangidos, no período de 28 junho a 31 de agosto de 2021 ( BRASIL, 2021b ). EC3
Fonte: elaborado pelos autores.

Desde o início da gestão do governo atual, menos de 3% dos 155.367 alertas de desmatamento na Amazônia foram fiscalizados ou ocorreram em áreas com autorização para supressão de vegetação; 85,4% da área não sofreu fiscalização ou não tinha autorização para supressão; ou seja, somente cerca de 14,6% da área foi fiscalizada ou possuía permissão de desmatamento ( MAPBIOMAS, 2022 ).

Aguiar ( 2019 ) explica que a Amazônia tem determinantes quanto ao desmatamento: (i) motivo territorial (anos 1970 e 1980), pecuária extensiva e expansão da soja (anos 1990); (ii) extração de madeira pela criação das estradas BR 0101 e BR 230; (iii) a mineração; e (iv) baixa capacidade de execução das leis para preservação ambiental. O desmatamento na região amazônica está diretamente relacionado aos incêndios florestais criminosos.

Em agosto/2020 foi registrado um total de 29.307 focos de incêndio na Amazônia Legal. Os altos índices de devastação ocorrem apesar do emprego dos militares, com a Operação Verde Brasil 2, para tentar conter os danos na região, As Forças Armadas atuam na região desde maio, ao custo de R$ 60 milhões mensais ( BRANT; MACHADO, 2020 ).

Em 2019, para a ação de prevenção e controle de incêndios florestais nas áreas federais prioritárias, a proposta orçamentária previa R$ 29,7 milhões; uma queda de 37,6% em relação a 2018. Em 2020, o Projeto da Lei Orçamentária Anual (Ploa) previa uma redução de 27,4% no orçamento para fiscalização ambiental e combate a incêndios. O projeto de orçamento de 2021 previa R$ 82,9 milhões para ações de controle e fiscalização ambiental, uma redução de 25,4% em relação ao último ano do governo Temer (2008) ( BRANT; MACHADO, 2020 ).

No dia 6 de julho de 2022, o atual ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, compareceu à Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados e afirmou medidas para coibir crimes ambientais e desmatamento, no entanto os deputados da oposição negam as medidas e ressaltam a fragilidade de órgãos como Ibama e ICMbio, destacando que os orçamentos dos órgãos não estão discriminados no Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop). Na ocasião, Leite afirmou que “já foram executados 68% do atribuído ao Ministério do Meio Ambiente, 75% do ICMbio e 67% do Ibama”, e que havia um condicionamento de quase metade do valor ao aval do Congresso ( HAJE, 2022 ).

Pouco tempo antes, no mês de junho de 2022, 35 organizações expressivas divulgaram um manifesto alertando para a grave conjuntura de obstáculos no acesso a informações e irregularidades na gestão de dados na área socioambiental brasileira, dentre os quais citaram que o governo federal não produz dados estruturados sobre ações de combate a invasões a Terras Indígenas, uma ferramenta essencial para a proteção dos povos tradicionais ( TRANSPARÊNCIA BRASIL et al. , 2022 ).

De uma forma geral, pode-se afirmar que a violência letal contra os povos indígenas recrudesceu na última década; nos 11 anos, de 2009 a 2019, em números absolutos, houve 2.074 homicídios de pessoas indígenas, segundo os dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) ( BRASIL, 2020d ). O Atlas da Violência ( CERQUEIRA et al. , 2019 ) tem um capítulo intitulado “Violências contra indígenas”, que traz uma série de gráficos correlacionando a taxa de homicídios de indígenas por Unidade da Federação (UF), que demonstram que os crimes ocorreram com maior intensidade no Amazonas (49), em Roraima (41) e no Mato Grosso do Sul (39).

Estudos também mostram o aumento do número de suicídio entre os povos indígenas, com uma maior taxa de mortalidade por suicídio em homens indígenas solteiros, com 4 a 11 anos de escolaridade, na faixa etária de 15 a 24 anos, no domicílio e nos finais de semana, tendo como principal método o enforcamento; mais de 90% dos casos tinham a presença de sintomas de transtorno mental. Os principais fatores de risco para o suicídio foram pobreza, fatores históricos e culturais, baixos indicadores de bem-estar, desintegração das famílias, vulnerabilidade social e falta de sentido de vida e futuro ( SOUZA et al. , 2020 ).

O conjunto de ações governamentais que flexibiliza a proteção dos territórios indígenas e desumaniza os povos tradicionais, mantém vínculos com os elementos constitutivos da necropolítica socioambiental EC1, EC3, EC4, EC5, EC6, EC7, EC8 e EC9 do Quadro 1 .

O Brasil deixou de zelar pelas atividades realizadas sob sua jurisdição, diversamente ao conteúdo de acordos, pactos e declarações dos quais é signatário, ocasionando danos transfronteiriços que emergem para outros países que observam com seriedade as questões socioambientais. O discurso de ódio e as atitudes perpetradas pelo governo geram a dizimação dos indígenas e a perseguição das comunidades tradicionais, além do agravamento da violência, dos desmatamentos e das queimadas nas áreas rurais brasileiras, e a exploração desmedida dos recursos naturais pátrios.

Considerações finais

Os fatos levantados e analisados ao longo deste estudo materializam-se em um ambiente de insegurança jurídica e de extrema incerteza quanto aos direitos socioambientais no Brasil. O discurso de ódio e as atitudes perpetradas pelo governo atual geram a perseguição das comunidades tradicionais, além do agravamento da violência, dos desmatamentos e das queimadas nas áreas rurais brasileiras, e a exploração desmedida dos recursos naturais pátrios. A análise levou à primeira constatação de que os dados socioambientais desse governo são de difícil acesso e não integrados em uma plataforma; não há transparência.

No contexto de crise socioambiental que se evidencia na Amazônia Legal, este artigo apresentou, em forma de quadros e modelo analítico, um repertório de dados e fatos que vinculam ações do governo brasileiro vigente (2019-2022) à necropolítica socioambiental. Para tanto, os autores derivaram um quadro analítico da obra de Achille Mbembe ( 2017 ), adequando a teoria necropolítica do filósofo camaronês à realidade brasileira por meio de elementos constitutivos, para orientar a identificação e a análise das ações de governo.

A experiência brasileira recente, na perspectiva socioambiental, torna o conceito emergente de necropolítica uma administração do terror contra determinados grupos caracterizados como indesejáveis. Trata-se de uma faceta da política que, em vez de alargar os espaços para o uso público da razão e do diálogo, destrói todo e qualquer vínculo que não seja o de inimizade. Todas as formas de exercício do poder foram conduzidas às custas da vida, dos sonhos e dos desejos de grupos colocados à margem de qualquer possibilidade de acesso a recursos necessários à vida digna.

Ficou evidente que não é suficiente controlar ou disciplinar, mas eliminar fisicamente populações de grupos originários, sempre tomados como óbices aos processos desenvolvimentistas. Nessa toada, o conjunto de ações aqui analisadas proporcionou a emergência de grupos populacionais, para quem viver passou a significar sempre um processo de prestação de contas à morte. Tomando como fio condutor um poderoso (em muitos casos ele é velado) instrumento de destruição do Outro – o racismo –, foi possível suspender um elenco de direitos com o uso de uma suposta justificativa de protegê-los.

Verificou-se que os Projetos de Lei, Decretos e Medidas Provisórias voltados à desestruturação do Estado Democrático Socioambiental, foram propostos em maior volume nos dois primeiros anos do governo em vigor (2019-2020), muitos ao longo da pandemia da Covid-19. O atual chefe do Poder Executivo Brasileiro utilizou atos normativos para aplicar o retrocesso ambiental, tendo o desmonte do Estado Democrático Socioambiental como modus operandi; são proposições voltadas ao favorecimento do garimpo e do agronegócio, à redução da cobertura florestal amazônica e dos territórios das populações tradicionais, opostas aos preceitos da Constituição Federal e aos acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário.

A análise dos dados também ressaltou um reiterado discurso de desumanização das populações tradicionais proferido pelo chefe do Poder Executivo e seus aliados, que reduz o papel dos indígenas e exalta a função do agronegócio, por vezes citando dados falsos e refugando evidências científicas. Em suma, restou demonstrada uma provável participação do governo federal vigente no aumento dos incêndios, desmatamentos, invasões a territórios indígenas, garimpo ilegal e violência na Amazônia; por consequência, os resultados desta pesquisa, para além de se coadunarem com o conceito de necropolítica de Mbembe ( 2017 ), reforçam e justificam as denúncias de crime contra a humanidade que tramitam contra o Presidente da República perante o Tribunal Penal Internacional (TPI).

É difícil arriscar qualquer previsão sobre quanto tempo será necessário para reduzir ou reverter os vínculos aqui apontados entre as ações de governo, a necropolítica socioambiental instituída e suas infinitas consequências sobre a Amazônia Legal, sua bio e sociodiversidade.

Referências

  • 1
    Ao longo do texto os autores mencionam apenas os primeiros nomes – “Dom” e “Bruno” –, em uma tentativa de sensibilização do leitor característica da metodologia decolonial que guia o trabalho. Trata-se de Dominic Mark Phillips (1964-2022), um jornalista britânico que trabalhou para jornais internacionais de grande circulação e residiu no Brasil de 2007 a 2022, até que foi assassinado enquanto entrevistava indígenas e ribeirinhos para um livro sobre a Amazônia no Vale do Javari, segunda maior terra indígena do Brasil, no extremo-oeste do Amazonas. Dom foi assassinado junto com Bruno da Cunha Araújo Pereira (1980-2022), um indigenista brasileiro e servidor de carreira da Funai, considerado um dos maiores especialistas em indígenas isolados ou de recente contato do país e exímio conhecedor do Vale do Javari.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2022
  • Aceito
    15 Dez 2023
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