Resumo
Este ensaio teórico pretende discutir de que modo o direito migratório produz a figura do “migrante irregular”. A discussão se desenrola a partir do paradoxo migratório representado pelo direito de saída de determinado território não acompanhado de um consequente direito de entrada em outro. Busca-se compreendê-lo em seus efeitos biopolíticos, que tem como um de seus sintomas a construção do “migrante irregular” como figura ambivalente: de um lado, sua vida inspira proteção humanitária internacional; de outro, representa um risco em relação ao qual o corpo social deve ser protegido. Inspirado na genealogia foucaultiana, este ensaio acadêmico busca atentar-se para essas estratégias do poder, capaz de nos permitir identificar quando o direito internacional, sob a pretensão de uma proteção humana universal, atua exatamente na hierarquização de humanidades.
Palavras-chave: Direito Migratório; Biopolítica; Paradigma Imunitário
Abstract
This theoretical essay intends to discuss how migration law produces the subjectivity of the "irregular migrant". The discussion takes place on the migratory paradox represented by the right to leave one territory, not accompanied by a consequent right of entry into another. It seeks to understand it in its biopolitical effects, which has as one of its symptoms the construction of the "irregular migrant" as an ambivalent figure: on the one hand, his life inspires international humanitarian protection; on the other, it poses a risk against which the social body must be protected. Inspired by Foucauldian genealogy, this academic essay aims to draw attention to these strategies of power in order to allow us to identify when migration law, under pretension of a universal human protection, acts exactly in the hierarchy of humanities.
Keyword: Migration Law; Biopolitics; Paradigm of immunity
Introdução1
A crise migratória é um dos temas mais urgentes da teoria jurídica e política contemporâneas e tem provocado o fenômeno jurídico, sobretudo o sistema internacional dos direitos humanos, a lhe oferecer saídas, ainda que pontuais e transitórias. Pautadas na tradição liberal dos direitos humanos, algumas respostas são dadas, ora no sentido de reforçar o princípio da dignidade da pessoa humana frente à soberania dos Estados, ora argumentando pela prerrogativa do Estado em impor restrições ao direito dos indivíduos de imigrar em seu território.
O presente ensaio teórico não busca responder exaustivamente os diversos aspectos dessa crise, mas apenas pontuar uma de suas dimensões, que aqui chamaremos de paradoxo migratório. Ao privilegiarmos essa dimensão, buscaremos jogar luz para os efeitos biopolíticos/tanatopolíticos, que permanecem invisíveis quando apenas se considera aquela dicotomia marcada pela soberania do Estado diante da dignidade do indivíduo e vice-versa.
Nesse sentido, este trabalho se organiza em quatro itens: no primeiro, faremos algumas considerações introdutórias ao chamado paradoxo migratório, deslocando-o de um registro meramente jurídico para aquele marcado pela biopolítica. No item 2, considerando as contribuições de Roberto Esposito, abordaremos de que modo o paradoxo migratório adentra o cálculo da vida nas fronteiras biopolíticas, formadas no interior do paradigma imunitário. No item 3, focaremos na construção do migrante irregular como figura ambivalente para os direitos humanos. E, por fim, no item 4, analisaremos o governo2 do migrante irregular no interior das estratégias biopolíticas e tanatopolíticas no cenário da crise migratória e de seu paradoxo.
1. Considerações introdutórias ao paradoxo migratório
O Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) (BRASIL, 1992) dispõe, em seu artigo 12, sobre algumas garantias a respeito do direito migratório, tais como, a liberdade de locomoção; o direito de sair livremente do seu próprio país e de qualquer outro; e, por fim, o direito de não ser privado arbitrariamente de entrar em seu próprio país. Vê-se, portanto, que há expressa previsão legal da garantia de sair de qualquer país acompanhada do direito de entrada, tão somente, naquele que seria o seu próprio. De fato, o direito de entrada tem sido interpretado pelo Comitê de Direitos Humanos de maneira abrangente, buscando aplicá-lo a apátridas residentes em um determinado Estado, assim como a outros não nacionais que mantenham com algum Estado vínculo considerável (WEISSBRODT; DIVINE, 2012, p. 163).
É importante notar, todavia, que o próprio PIDCP estipula algumas limitações a esses direitos, desde que estejam previstas em lei e direcionadas à proteção da segurança nacional, da ordem, da saúde e moral públicas, bem como dos direitos e liberdades das demais pessoas. Sendo assim, os direitos migratórios encontram-se emaranhados às relações entre produção de risco e garantia da segurança, as quais permeiam as estratégias biopolíticas nos cenários migratórios contemporâneos, conforme será explorado no decorrer do ensaio.
Em tese, o direito de saída de determinado território deveria implicar na garantia de ser admitido em outro país, pelo simples fato da efetividade do primeiro estar condicionada a do segundo. Entretanto, sujeitos de determinada nacionalidade, ao emigrarem seu país de origem, não são titulares do direito de entrada em outro, o que o evidencia o que chamamos neste texto de paradoxo migratório.
Trata-se de noção aferida a partir dos debates feitos na teoria política que aceitam amplamente a premissa de que os Estados têm o direito de controle de imigração, ainda que admitam haver algumas limitações morais a esse controle, como a garantia de extensão e reunião familiar3 (CARENS, 2013). Segundo Fine (2016, p. 135), nas décadas recentes, alguns dos principais teóricos políticos4 têm argumentado em defesa do direito dos Estados - embora com extensões diferentes - de restringir a entrada de migrantes em seus territórios.
Com efeito, seja pela disposição legal do PIDCP, seja pelas discussões teóricas mais recentes a respeito dos direitos migratórios, estes convergem, em grande medida, para um terreno que se mostra paradoxal, uma vez que o direito de saída garantido a todos5, não vem acompanhado do direito de entrada em qualquer território6.
A resposta a tal paradoxo, em geral, é dada pela teoria do direito, ora apostando em um direito natural de imigrar, cujo fundamento estaria alocado na própria condição humana (WELLMAN, 2016); ora fundamentando-se na dignidade moral dos Estados, em razão de sua força soberana advinda do contrato social (OBERMAN, 2016). Seja pendendo à noção de um sujeito humano universal ou à representação soberana de um Estado racional, as respostas dadas a tal paradoxo não levam a sério as consequências dele decorrentes, porque desconsideram seus efeitos biopolíticos no interior do paradigma imunitário (ESPOSITO, 2017a).
Sendo assim, a garantia do direito de saída não acompanhada do direito de entrada insere-se em um contexto de proteção do território interno e de seus nacionais, conforme estipulação do PIDCP. Não se trata, contudo, de questão relativa apenas à soberania nacional ou a um direito humano a imigrar. O que importa, pelo viés de análise escolhido, são os efeitos performativos7 de construção de subjetividades sob o manto da suspeita e a não hospitalidade àqueles que se encontram nas fronteiras do Estado. O limbo promovido pelo paradoxo migratório refere-se menos a um vazio jurídico causado pela incompletude do direito de saída, e mais em um transbordamento de categorizações jurídicas, políticas, morais, religiosas e culturais daqueles que são construídos performativamente como “migrantes irregulares” em um cenário marcado pelo biopoder.
Já é clássica a distinção foucaultiana a respeito de duas modalidades de poder, por ele chamadas de poder soberano e biopoder8. Enquanto o primeiro era marcado pela negatividade de um poder que exclui e, no limite, referia-se a um direito de fazer morrer e deixar viver; o segundo postula exatamente o seu oposto, ou seja, um poder de fazer viver e deixar morrer (FOUCAULT, 2011b). Essa modificação no exercício do poder evidenciada por Foucault demonstra uma preocupação direcionada a práticas que majorem e multipliquem a vida, colocando-a no centro das medidas políticas, que buscarão a sua proliferação, no entanto de maneira vigiada, controlada e regulada (FOUCAULT, 2010, 2011a).
Quando olhado pelo viés soberano do poder, o paradoxo migratório é colocado apenas dentro dos limites estabelecidos pelo Estado à liberdade dos migrantes. Todavia, quando visto através do prisma do biopoder, tal paradoxo importa mais pela produtividade que esses limites adquirem na construção de subjetividades a partir do par normal/anormal (nacional/não-nacional; cidadão/estrangeiro; migrante regular/migrante irregular).
Sendo assim, apenas quando se tem em consideração as contribuições foucaultianas que os efeitos produtivos do biopoder vêm à superfície. Nesse sentido, as fronteiras deixam de representar decisões soberanas de delimitações legais do território, tornando-se, elas próprias, fronteiras biopolíticas. Essas, por sua vez, têm como efeito a figura do “migrante irregular” como forma e conteúdo ambivalente (VAUGHAN-WILLIAMS, 2015).
A ambivalência do “migrante irregular” refere-se à proteção que sua vida inspira, ao mesmo tempo em que encarna um risco em relação ao qual a sociedade deve ser defendida. De fato, este é o cálculo do poder quando a vida ganha centralidade, apontando, de um lado, que a vida do “migrante irregular” deve ser assegurada, sempre tendo em consideração, entretanto, a manutenção da vida do próprio corpo político (VAUGHAN-WILLIAMS, 2015).
A noção de fronteiras biopolíticas implica em uma nova configuração do conceito de segurança nas fronteiras. Ao se ter em conta os efeitos biopolíticos arregimentados nas fronteiras territoriais, uma nova tecnologia espacial de poder emerge. Segundo Kitagawa (2011, p. 212), diferentes das fronteiras territoriais, as fronteiras biopolíticas não têm como objetivo a territorialização de espaços geográficos, mas o seu contrário. Isto é, funcionam como técnicas de desterritorialização das fronteiras buscando governar aquilo que foi desterritorializado.
Nessa nova tecnologia espacial de poder, a relação entre segurança e liberdade nas fronteiras biopolíticas ganha outros contornos. A desterritorialização e o governo do desterritorializado fazem com que a segurança nas fronteiras biopolíticas dependa de pessoas em movimento em seu redor. Contudo, essa movimentação não significa afirmar que essa liberdade de locomoção não encontre restrições. Na verdade, tal liberdade é produto de uma série de mecanismos de segurança que condicionam, por sua vez, sua própria possibilidade (VAUGHAN-WILLIAMS, 2015, p. 39).
Sendo assim, a liberdade e o movimento nas fronteiras biopolíticas são criadas pelos próprios mecanismos de segurança que irão governá-los nesse espaço. É exatamente no interior dessas estratégias que o “migrante irregular” é construído como sujeito portador de direitos migratórios - possuindo liberdade de locomoção, por exemplo -, conforme disposição do PIDCP, cujas restrições legais, por outro lado, se efetivam a partir de sua construção como perigo ao território em que pretende ingressar.
Questão problemática que se coloca no quadro9 desenhado pela biopolítica refere-se aos episódios em que práticas direcionadas à proteção da vida decaem, exatamente, em medidas tanatopolíticas10 de produção ou exposição contínua de sujeitos à morte. Enquanto para Foucault, tal situação se resolveria pelo acionamento pontual do racismo de Estado como discurso de legitimação da produção de mortes (FOUCAULT, 2010), para Esposito, trata-se de manifestação própria do regime biopolítico do paradigma imunitário (ESPOSITO, 2017; FONSECA; ARAUJO, 2018).
Segundo Esposito (2017a; 2017b) tanto o sujeito como o Estado referem-se a sintomas imunitários de uma comunidade que procura se proteger de um risco a ela mesma inerente. Sendo assim, qualquer perspectiva de análise que pressuponha a existência de um sujeito natural ou de um Estado racional, não compreende o “migrante irregular” como resultado de um conjunto de práticas que o constrói como figura ambivalente, lhe realocando como causa de uma série de problemas de ordem nacional - tais como problemas financeiros, médicos, laborais, sanitários etc.
Desse modo, apenas ciente das movimentações biopolíticas das fronteiras que se torna possível uma análise crítica do direito migratório, que o tome, inclusive, como manifestação imunitária capaz de hierarquizar humanidades (FASSIN, 2012). No tensionamento existente entre práticas biopolíticas e tanatopolíticas, o direito manifestado no paradoxo migratório é capaz de classificar vidas que merecem ser vividas e aquelas cujas mortes não são passíveis de luto (BUTLER, 2015).
Inspirado na genealogia foucaultiana e sem qualquer pretensão de esgotar as discussões a este respeito, este ensaio acadêmico busca verificar em que medida o direito migratório é operado na construção do “migrante irregular” como figura ambivalente, cuja vida convoca proteção imunitária, ou cuja morte torna-se necessária como obsessão autoimune do corpo social.
2. Comunidade e o paradoxo migratório: o cálculo da vida nas fronteiras biopolíticas.
Pensar os fenômenos de migrações a partir de uma perspectiva jurídica invariavelmente nos coloca frente à possibilidade de existência de um direito humano à imigração (MILLER, 2016; OBERMAN, 2016). Algumas das dificuldades com as quais juristas e operadores do direito se deparam advém do seguinte paradoxo: o direito de sair de um Estado e de entrar em outro não são simétricos (PERRUCHOUD, 2012), isto é, a garantia do indivíduo emigrar um país não é acompanhada do direito de imigrar em outro. Conforme afirma Perruchoud (2012, p. 129) “the right to leave is incomplete because the effective exercise of the right is contingent upon the right to enter another country”.
A resolução de tal paradoxo é sugerida, muitas vezes, na esteira de uma tradição filosófica contratualista que pressupõe um sujeito natural dotado de direitos morais em face de um Estado fruto de um contrato social. Sendo assim, as possíveis soluções colocadas ao direito migratório estariam localizadas ora na legitimidade moral dos Estados em não permitirem a migração (WELLMAN, 2016), ora na dignidade moral dos sujeitos cujo direito de migrar encontra-se inscrito em sua própria natureza humana (OBERMAN, 2016). Seja pendendo à soberania estatal ou à liberdade individual, não se leva a sério o paradoxo migratório, porque permanece invisível o enigma biopolítico que o atravessa (ESPOSITO, 2017a).
O tema do paradoxo é também uma das preocupações de Roberto Esposito (2017b, p. 17). Para ele trata-se de elemento constitutivo da própria comunidade, pois ela é ao mesmo tempo aquilo que nos é necessário e impossível. Necessário porque desde sempre existimos em comum, e impossível porque tal condição é ela mesma irrealizável em sua plenitude. Colocar sob o prisma biopolítico o paradoxo migratório pode desvelar as estratégias de poder não percebidas pelo debate - necessário, mas insuficiente - que o equaciona tão somente em termos de soberania estatal versus liberdades individuais.
Em Europe’s border crisis Vaughan-Williams (2015) adentra em tal frequência ao postular as fronteiras estatais como arranjos biopolíticos e o “migrante irregular” como resultado performativo de tais conformações. Nas fronteiras biopolíticas a subjetividade do “migrante irregular” adquire forma e conteúdo ambivalentes, pois de um lado representa uma vida que deve ser protegida e, de outro, manifesta-se como um risco em relação ao qual o Estado deve ser defendido (VAUGHAN-WILLIAMS, 2015, p. 17). A proteção exigida pela vida do migrante e o risco que ela suscita inscreve-se no que Esposito denominou por enigma da biopolítica.
A concepção espositiana da biopolítica como um enigma provém da constatação de episódios no cenário político contemporâneo em que estratégias dirigidas à proliferação e majoração da vida decaem em ações cujos resultados alinham-se a uma tanatopolítica, isto é, a episódios de exposição de sujeitos à morte (ESPOSITO, 2017a). O argumento trabalhado neste artigo consiste em que o paradoxo migratório é um instrumento jurídico central para a fabricação do “migrante irregular" nas fronteiras biopolíticas.
Nessa perspectiva, a existência de um direito de emigrar alinha-se às técnicas biopolíticas de promoção e proteção da vida, sobretudo nos casos de pedidos de refúgio, cujo fundamento jurídico é o fundado temor de perseguição. Entretanto, a inexistência de um direito de imigrar pode revelar-se como instrumento de construção da figura do “migrante irregular” como forma de vida tomada como suspeita, dispensável e perigosa à comunidade. Tal construção pode se verificar não apenas na denegação dos pedidos de refúgio, mas também em todos os obstáculos burocráticos exigidos para sua efetiva concessão. A chave para a compreensão de tal enigma - e que segundo Esposito, teria faltado a Michel Foucault - insere-se no que o filósofo italiano elaborou como paradigma imunitário.
Quando concebe a comunidade moderna em termos imunitários, Esposito instala no coração do debate político o movimento próprio de autorregulação e autoproteção do corpo social à maneira do mecanismo fisiológico dos organismos vivos. Segundo o autor, tanto a tradição jurídico-político, como a biomédica, tem na imunidade um termo central: para a primeira, relaciona-se à salvaguarda que exime alguém de cumprir uma lei aplicável a todos; para a segunda, diz respeito à capacidade de um organismo reagir a um corpo estranho ou a uma doença. Se a regulação e a proteção se impõem para a manutenção do corpo social, a imunização é uma reação da comunidade na busca de se eximir dos riscos de sua desagregação. A figura do “migrante irregular”, como perigo ao Estado, constrói-se precisamente nessa correlação imanente entre communitas e immunitas.
O filósofo italiano pensa a biopolítica moderna alinhada ao paradigma imunitário, afirmando ter o último inventado a primeira e não o seu oposto (ESPOSITO, 2017b, p. 154). Se é assim, communitas e immunitas formam um par político-filósofico inseparável, na medida em que uma existe em função da outra. Na contracorrente da filosofia política tradicional, ao pensar etimologicamente a comunidade, Esposito atribui menor valor ao com - que significa estar junto - e maior valor ao munus - cujo sentido aponta para o dom, o ofício, aquilo que se dá e não se recebe e, no limite, para a expropriação e o risco. Sendo assim, a comunidade para Esposito não se trata de uma congregação de valores ou identidades compartilhadas, mas de uma relação cujo fundamento é um defeito original (ESPOSITO, 2017b, p. 82): a absoluta exposição ao outro em razão da obrigação de dar e não receber nada em troca, conceito preciso do munus.
Nessa reconstrução hermenêutica da communitas, Esposito a redefine considerando os três significados do termo do qual ela deriva, qual seja, o latim munus, presente também em immunitas. Enquanto os dois primeiros significados do munus - onus e officium - apontam respectivamente para a “obrigação” e “ofício”, o terceiro significado remete, paradoxalmente, para o dom. Não se trata, por sua vez, de um simples dom (do latim donum), mas de um dom qualificado pela exigência de uma contrapartida. Em síntese, segundo o filósofo, “once someone has accepted the munus, an obligation (onus) has been created to exchange it either in terms of goods or service [servizio] (or officium)” (ESPOSITO, 2010, p. 4).
Com essa ênfase no munus Esposito nos oferece um conceito de comunidade que faz referência a uma qualidade negativa: não se trata de um compartilhamento de algo que é próprio, cujo sentido se ligaria à propriedade ou à possessão - tal como uma identidade nacional. Trata-se, por sua vez, de conceito marcado pelo débito, pelo juramento, pelo dom que deve ser dado (ESPOSITO, 2010). Communitas, então, pode ser entendida como uma “totality of persons united not by a “property” but precisely by an obligation or debt; not by an “addition”… but by a “subtraction”… by a lack, a limit that is configured by an onus” (ESPOSITO, 2010, p. 6).
Não sendo permeada por relações de pertencimento, a communitas nos fornece uma leitura capaz de nos afastar de critérios excludentes relacionados àquilo que seria da ordem do próprio, como a mencionada identidade nacional ou a cidadania. Nesse sentido, as medidas de sujeição, estigmatização e exclusão do “migrante irregular” não encontram fundamento, senão nos próprios elementos elencados para sua exclusão. Por outro lado, o afastamento das relações de pertencimento como matéria-prima da comunidade deixa transparecer que em seu lugar vigoram o débito e a subtração, isto é, a troca infinita do munus.
O munus traduz-se como lei sem a qual a comunidade não existiria. Esta só existe porque seus membros estão vinculados a uma lei comum: da tarefa, do dever, da obrigação, da exposição infinita ao outro. O comum não é, pois, o compartilhamento de bens, valores morais ou direitos inatos; antes, tais condições são apenas efeitos imunitários contra a lei comum. Segundo Esposito (2017b, p. 69), “é como se a comunidade existisse antes da lei ou também como se a lei precedesse a comunidade. A comunidade e a lei são um todo no sentido de que a lei comum não prescreve senão a exigência da comunidade mesma”. Em síntese, a lei da comunidade é a lei do risco.
O risco inerente à comunidade exige, por conseguinte, a sua proteção negativa e, neste sentido, a sua imunização. O fato do munus encontrar-se tanto etimologicamente em communitas e immunitas é justificado pelo movimento biopolítico da própria comunidade dobrar-se sobre si mesma garantindo-lhe proteção imunitária contra um risco que lhe imanente. Embora inerente à comunidade, tal risco não é natural ou previamente dado, mas construído e formatado pelo dispositivo11 imunitário.
Nas fronteiras biopolíticas, o paradoxo migratório imuniza os Estados e seus nacionais criando o “migrante irregular” como um risco. Sintetizando a relação imanente entre comunidade e imunidade Esposito (2017a, p. 65) afirma que “se communitas é a relação que, vinculando seus membros ao compromisso de doação recíproca, põe em perigo sua identidade individual, a immunitas é a condição de dispensa dessa obrigação e, logo, de defesa diante de seus efeitos expropriatórios”.
Eis o paradoxo comunidade/imunidade que, irremediavelmente, imuniza para proteger, mas ao proteger, nega. Segundo o autor, a proteção negativa da vida fez aparecer na modernidade tanto o indivíduo quanto o Estado como subprodutos do dispositivo imunitário: o indivíduo como dupla renúncia de seus instintos e impulsos que se imuniza para se proteger dos outros (ESPOSITO, 2017b, p. 118); e o Estado como artifício desenhado pela renúncia de direitos naturais para proteção da vida humana (ESPOSITO, 2017a, p. 75).
Nesse sentido, qualquer perspectiva que toma o Estado ou o sujeito como pressupostos - como aquelas elencadas no início do capítulo -, e não como produtos do dispositivo imunitário, não é capaz de enfrentar os desdobramentos disso decorrentes, a exemplo do papel do direito - veículo do paradoxo migratório - na fabricação contínua do “migrante irregular” como figura ambivalente.
3. Fronteiras biopolíticas e a construção performativa do “migrante irregular”
Ao se munir das perspectivas fornecidas por tais lentes, as fronteiras, que em geral são tidas tão somente como um dos aspectos da soberania, ganham forma e se locomovem pelo dispositivo imunitário. Segundo Esposito, para Hobbes, “o estado político não pode ser visto como a prossecução ou o reforço do estado natural, mas seu reverso negativo” (2017a, p. 75), ou seja, o Estado é tido como artifício destinado à proteção da vida dos sujeitos em comunidade e que, todavia, os nega. Sobre a posição dos sujeitos no regime da soberania, Esposito afirma que
[...] Nunca como nesse caso, o termo é tomado em seu duplo significado: eles são seus sujeitos na medida em que a instituíram voluntariamente através de um contrato livre. Mas lhe estão sujeitos porque, uma vez instituída, não podem resistir-lhe exatamente pelo mesmo motivo - porque estariam resistindo, se o fizessem a si próprios (ESPOSITO, 2017a, p. 77).
Para proteger os indivíduos dos riscos inerentes ao estado de natureza, o Leviatã emerge como resultado imunitário à salvaguarda e manutenção da vida. Ao passo que os indivíduos são, eles próprios, efeitos de outra imunização, que os dispensam das obrigações a todos impostas. Segundo Campbell (2017b, p. 19) “[...] imune é aquele (o sujeito imunitário é obviamente declinado no masculino nas fontes latinas citadas ao longo da análise) que é exonerado, ou dispensado, pela lei da doação recíproca”.
A identidade individual e os atributos do sujeito - tais como razão, liberdade e dignidade - constituem-se em clara relação com a imunidade. Enquanto a tradição jurídica desconsidera a condição imanente de exposição ao risco, desenhando o sujeito como portador de direitos naturais - onde estaria alocado o direito de imigrar, por exemplo - o dispositivo imunitário descobre nesse mesmo sujeito - portador de uma nacionalidade - as estratégias de poder que o dispensou das obrigações mútuas. Colocar em visibilidade tais estratégias permite identificar, não apenas os limites de imunização que demarcam as fronteiras dos Estados e de seus nacionais, mas, sobretudo aquilo que se constrói como risco em relação ao qual se deve erguer tais fronteiras.
O risco como lei da comunidade, lida a partir do debate com as migrações, implica nesse duplo processo de imunização. O primeiro eixo de atuação consiste no estabelecimento de limites entre os indivíduos lhes garantindo a condição de sujeitos - ser sujeito e sujeitado. É a partir deste movimento que se constrói aqueles que comungam de uma nacionalidade e de direitos relativos à cidadania, e aqueles que, por não se imunizarem, expressam justamente os perigos de desagregação da comunidade e que, todavia, merecem proteção humanitária. Projetado para além do campo individual, o segundo eixo de imunização refere-se ao estabelecimento das fronteiras como necessárias à proteção, não apenas dos territórios nacionais, mas também de sua força e vigor no jogo internacional.
No desenho jurídico-político internacional, segundo Perruchoud (2012, p. 124), os princípios de soberania estatal e de integridade territorial apontam para uma única conclusão de caráter lógico: de que o movimento de pessoas pelas fronteiras é objeto de controle do Estado. Tal controle, por sua vez, não se dirige apenas sobre o território, mas abrange, sobretudo, as pessoas. Nas palavras do autor,
Migration Law, including laws on nationality, is essential to the creation of States: for a State to exist, it must have both inhabitants (nationals) and borders. Migration and nationality laws establish the dividing line between nationals and non-nationals, and make the border meaningful for people attempting to cross it either way. It is often said that migration law is about borders: geopolitical borders between States, and borders between nationals (PERRUCHOUD, 2012, p. 124)
Para além de delimitar as diferenças entre nacionais e não nacionais e, a partir daí lhes conferir maior ou menor grau de direitos relativos à nacionalidade, as leis de migrações se inserem em um nível que escapa ao poder soberano, cujo efeito, segundo Foucault, seria o de meramente traçar limites à liberdade. Enquanto o poder soberano se expressa a partir da limitação, exclusão e negatividade, a biopolítica manifesta-se na produtividade de um poder que constrói, fabrica e formata (FOUCAULT, 2010; 2011).
As leis de migrações - e aqui, o que mais nos interessa, o paradoxo migratório - não apenas limitam os espaços para não nacionais, mas os fabricam enquanto tais, conferindo-lhes um modo de vida e um tipo de existência, cuja conformação poderá reclamar medidas de segurança nas fronteiras. Se considerada tão somente a partir dos princípios da soberania, o problema das migrações facilmente se resolveria lançando mão ora da gramática dos direitos humanos, ora do vocabulário da teoria do Estado (MILLER, 2016; OBERMAN, 2016; WELLMAN, 2016).
Para se conceber, entretanto, o direito migratório como manifestações imunitárias, não basta apenas apontar o rol de prerrogativas do poder soberano na delimitação das fronteiras, mas compreender como essas se locomovem enquanto limites biopolíticos dirigidos à criação do perigo e à promoção da segurança. Tal compreensão, por sua vez, permite diagnosticar, não apenas a produção contínua do risco encarnado na figura do “migrante irregular”, como também vislumbrar as estratégias de escamoteamento do risco como lei da comunidade. Em outras palavras, insere-se na mesma estratégia o apagamento da lei comum do munus como defeito original da comunidade e a criação artificial e contínua de novos riscos em relação aos quais se locomove a imunização.
Por adentrar em terreno de proteção interna e projeção externa do próprio Estado, as fronteiras biopolíticas representam não apenas delimitação do território nacional, mas construções ligadas ao que Foucault chamou de mecanismos de segurança, direcionados à majoração da vida do corpo político - os sujeitos imunizados e o próprio Estado - frente a todos os perigos e riscos promovidos por formas de vida consideradas como suspeitas. Segundo Vaughan-Williams (2015, p. 112), “the very notion of the border security can be thought as performing an immunitary function”.
Muito embora não as trate como limites biopolíticos, Perruchoud elabora interessante conceito de fronteiras, para além da usual linha imaginária que distingue duas entidades soberanas. Segundo o autor, a fronteira não implica apenas na separação de nacionais e estrangeiros a partir da delimitação territorial, “but also a complex assemblage of various bordering’ mechanisms which make the borderline a social - rather than merely legal - entity” (PERRUCHOUD, 2012, p. 124-125). Ao conceituar as fronteiras, não como entidade já construída (border), mas como um conjunto complexo de mecanismos em construção (bordering), o autor nos fornece algumas possibilidades de leitura que as apreendam em seus constantes movimentos de alargamento e encolhimento a depender da política dicotômica de risco-segurança adotada.
Para além de retórica política, o tema da segurança, ao adentrar no terreno desenhado pela biopolítica, gera como efeito a desterritorialização das fronteiras, bem como o constante manejamento de riscos induzidos, em razão dos quais se clamam, uma vez mais, por novos mecanismos de segurança. O paradoxo migratório soma-se à função imunitária promovida pela noção de “segurança das fronteiras” induzindo a criação de riscos incorporados pelas subjetividades migrantes tidas como regulares/irregulares.
Na anatomopolítica dos corpos individuais (FOUCAULT, 2011), fabrica-se o outro estrangeiro como perigo à segurança nacional. O risco como categoria abstrata é incorporado pelos sujeitos considerados perigosos à própria comunidade, cujos trejeitos, cor da pele, traços étnicos e culturais, manifestarão maior ou menor perigo a depender do inimigo a ser combatido. De outro lado, pela regulação biopolítica das populações (FOUCAULT, 2008), a segurança é calculada nos limites do jogo das normalidades (normal/anormal; nacional/estrangeiro; migrante regular/migrante irregular; saudável/pernicioso etc.), configurando populações como risco biológico à própria força do Estado (FOUCAULT, 2010), facilmente verificados nos casos em que se atrelam a um conjunto de migrantes tipos raros de doenças cujo contágio solaparia a saúde do corpo político.
O paradoxo migratório, nesse sentido, importa mais pelos seus efeitos performativos na construção de “migrantes irregulares” como figura ambivalente do que pela incompletude do direito migratório. A ausência de um direito de imigrar representa, não apensar um vazio jurídico causado pela incompletude do sistema, mas também um trasbordamento de categorizações jurídicas, políticas, morais, religiosas e culturais daqueles que serão tidos como suspeitos para adentrarem o território.
4. Tanatopolítica migratória ou quando as fronteiras biopolíticas decaem em práticas de morte
Importa ressaltar que, no quadro desenhado pelo dispositivo imunitário, a vida do “migrante irregular” não se trata de algo descartável, cujo destino seria inevitavelmente a sua aniquilação. Trata-se, em verdade, de subjetividade construída com face ambivalente, na medida em que inspira proteção à sua vida, ao mesmo tempo em que manifesta risco à comunidade. Entretanto, conforme apontado pelo diagnóstico foucaultiano de Fassin (2012), a razão humanitária de proteção aos direitos humanos, ao emergir em contexto biopolítico, acaba por criar hierarquias de humanidades entre populações migrantes, estabelecendo vidas mais humanas que outras.
Desse modo, o risco inerente à própria comunidade é não apenas desconsiderado, mas apagado e, em seu lugar, são dispostas regras de pertencimento comunitário. Tendo em consideração aquilo eleito como da ordem da unificação, a exemplo da nacionalidade, tudo que se apresenta como potencial nocividade à segurança nacional é construído como risco. Ao se pressupor uma unidade compartilhada que não a lei do munus, a proteção coloca-se como exigência primeira daquela comunidade tida como originalmente uma. Curiosamente, é em nome dessa proteção que se cria o risco. Não o risco encarado como munus, mas o risco fabricado e formatado pelos próprios mecanismos de segurança das fronteiras.
A indução de riscos pelos próprios mecanismos de proteção carrega, paradoxalmente, o problema do enfraquecimento e do aniquilamento do corpo político pelo desenvolvimento de uma compulsão desagregadora autoimune. Embora Esposito reconheça que o medo de contaminação do corpo político remonte às preocupações da antiguidade, foi apenas na modernidade que a percepção do risco se tornou algo da ordem da autoconsciência política do ocidente. É nesse período que se verifica uma intensificação de respostas a potenciais contaminações, as quais, em contrapartida, podem acarretar num acionamento neurótico de segurança através da sociedade. Em âmbito internacional, o filósofo aponta para os primeiros sintomas de uma crise autoimune por meio da qual “the risk from which the protection is meant to defend is actually created by the protection itself (ESPOSITO, 2011, p. 141).
O perigo da autoimunidade propagada pela multiplicação de práticas imunitárias é, para Esposito, da ordem da própria relação imanente entre communitas/immunitas. Como já mencionado, o defeito original da comunidade exige práticas de imunização, as quais, todavia, apagam este débito constitutivo como lei do comum. A negação do risco como algo inerente à própria comunidade acaba por projetá-lo para seu exterior, cuja existência reclamará medidas de segurança, inclusive, de modo preventivo. Essa projeção contínua do risco para fora dos limites comunitários pode avolumar-se a níveis tais que a imunização deixa de consumar-se como proteção negativa da vida para se transmutar em desagregação tanatopolítica do comum.
De fato, é o tema da autoimunidade que recupera a noção de biopolítica imunitária como da ordem do enigma. Em outras palavras, a autoimunidade explicita a radicalidade da pergunta colocada por Foucault (2010) e retomada por Esposito: “Why does a politics of life always risk being revesing into a work of death?” (ESPOSITO, 2008). Enquanto para Foucault, as práticas tanatopolíticas manifestavam-se apenas pelo acionamento inusual do racismo de Estado no interior do jogo do biopoder (FOUCAULT, 2010), para Esposito, trata-se de sintomas próprios de um transbordamento de políticas imunitárias cujos efeitos podem ser percebidos cada vez mais na construção de “tantos pequenos muros - até transformar a própria ideia de comunidade na forma de uma fortaleza assediada” (ESPOSITO, 2017b, p. 142).
Tendo em vista a inexistência do direito de entrada, o paradoxo migratório é instrumento capaz de ser mobilizado por estratégias imunitárias que fabricarão performativamente subjetividades aptas a entrarem no território nacional e os “migrantes irregulares”, sendo os últimos considerados subjetividades ambíguas. Caso o tensionamento das fronteiras biopolíticas atinja níveis auto imunitários, o “migrante irregular” sai de cena como figura ambivalente - cuja vida inspira proteção, mas também representa um risco - e adentra tão somente o registro da suspeita e do perigo.
A inflação de medidas de segurança auto imunitárias tem, na contemporaneidade, evidente manifestação sintomática na chamada “guerra contra o terrorismo”, cuja percepção de se estar constantemente em risco advém da própria procura obsessiva por segurança pelos governos ocidentais (ESPOSITO, 2008, p. 141). Tal perspectiva, contudo, não nega a existência do terrorismo, mas o compreende no interior de uma tecnologia de poder, que o (re)cria no momento mesmo em que é política e juridicamente manejado na impressão das marcas da “irregularidade”. Nesse cenário, o “migrante irregular” materializa-se em corpos individuais e populações com práticas culturais, étnicas e religiosas específicas (em geral, de tradição islâmica), em relação aos quais situações de violência são, muitas vezes, senão legitimadas, ao menos permitidas.
Em Frames of war,Butler (2009) afirma que quando práticas de violência são legitimadas e permitidas, as mortes delas decorrentes tornam-se impassíveis e indignas de luto e, justamente por não inspirarem o processo de luto, não eram tampouco consideradas vidas. Nas palavras da filósofa,
Such frames are operative in […] the politics of immigration, according to which certain lives are perceived as lives while others, though apparently living, fail to assume perceptual form as such. Forms of racism instituted and active at the level of perception tend to produce iconic versions of populations who are eminently grievable, and others whose loss is no loss, and who remain ungrievable. The differential distribution of grievability across populations has implications for why and when we feel politically consequential affective dispositions such as horror, guilt, righteous sadism, loss and indifference ( BUTLER, 2009 , p. 24).
Nas fronteiras de transfiguração entre práticas biopolíticas/tanatopolíticas as subjetividades migrantes tornam-se instrumentos de estratégias de poder que as estabelecem numa hierarquia de humanidades (FASSIN, 2012). Para adentrar em tal quadro, contudo, há que se atingir os critérios eleitos para a própria condição de humano e, portanto, de vidas que merecem ser vividas, na medida em que são vidas passíveis de luto (BUTLER, 2015). Quando migrantes cruzam as fronteiras de seus países de origem na direção de outro(s), ao mesmo tempo em que adentram no espectro desenhado pelo paradoxo migratório, são incluídos também neste cálculo biopolítico que os classificará como humanos ou não humanos, a depender do luto que suas mortes inspirariam.
Os critérios elencados para condição de humano são, pois, critérios imunitários. Seja como produtos das fronteiras biopolíticas, seja na sua reversão tanatopolítica auto imunitária, os “migrantes irregulares” apenas podem ser assim concebidos como formações de um complexo aparato de técnicas discursivas e não discursivas. Desse modo, não dizem respeito a sujeitos portadores de uma dignidade moral, na qual estariam também contidos os fundamentos de seus direitos naturais. Esta, em verdade, trata-se apenas de sua versão imunitária.
Se de um lado, tal inversão representa a perda de um direito humano universal à imigração, de outro, é apenas por ela que se capacita o olhar para os limites dos quadros de atribuição de dignidade a vidas que merecem ser vividas (BUTLER, 2009). Nesse sentido, as fronteiras biopolíticas promovem um deslocamento no sujeito, concebendo-o, não como anterior às delimitações territoriais, mas como resultado desse aparato biopolítico que, ao delimitar um território, estipula também a condição de “irregularidade” de determinados migrantes, tendo em vista não serem titulares do direito de entrada.
Com isso, ao realocar a lei do munus no centro do debate político-filosófico, Esposito nos permite pensar as fronteiras como arranjos biopolíticos que se instauram na medida em que são construídos, tanto o Estado como o sujeito, como manifestações imunitárias. Sem tal perspectiva, impossível seria verificar a construção performativa de “migrantes irregulares” a partir incompletude jurídica consistente no paradoxo migratório.
A resposta tradicionalmente dada a tal paradoxo pela teoria do direito aliada à filosofia política é incapaz de contemplar tal complexidade, justamente pela equalização da universalidade do humano que não apreende a condição ambígua do “migrante irregular”. Sendo inapta a perceber tal conformação biopolítica, mostra-se insuficiente para diagnosticar as irrupções autoimunes de um quadro em que alguns corpos se materializam como humanos e outros não (BUTLER, 2011). É apenas por meio da apreensão desse quadro, ao invés da pressuposição de um sujeito universal, que se possibilita ao direito migratório identificar os corpos que ainda não atingiram a qualidade de humano (BUTLER, 20009).
Em síntese, quando o paradoxo migratório é retirado da relação pendular entre liberdades individuais versus soberania estatal, para ser realocado no quadro desenhado pela biopolítica, ao direito migratório são oferecidas novas perspectivas de análise, sobretudo nos casos em que ele próprio se manifesta em sua expressão imunitária. O diagnóstico de sua atuação nas fronteiras biopolíticas explicita, ao invés de apagá-la, a lei geral da comunidade consistente na troca infinita do munus.
Atentar ao defeito original e obrigacional da communitas permite identificar as estratégias de imunização frente às quais se poderão promover políticas em relação ao Outro que, em última análise, coincidem com a própria comunidade. Não se trata, entretanto, do sentido óbvio de que cada um de nós tem a ver com o outro, mas sim, segundo Esposito (2017b, p. 82), do “sentido de que o outro nos constitui do fundo de nós mesmos. [...] Que somos nada além do que o outro - como certa vez Rimbaud teria dito. Ou que somos estrangeiros para nós mesmos, como muitas vezes se repetiu”.
Importa ressaltar, a título de conclusão, que a abertura ao Outro se dá sempre no interior de uma comunidade que nos é, paradoxalmente, necessária e impossível. Retomando o filósofo italiano, a comunidade não se realiza jamais “[...] somente porque ela está já desde sempre realizada, no sentido de que é aquele ‘defeito’ mesmo visto pelo lado da sua destinalidade originária. Deste ponto de vista, qualquer esforço de alcançar um fim é não menos inútil do que o de reencontrar uma origem” (ESPOSITO, 2017b, p. 81).
5. Considerações Finais
Discutir a existência de um direito humano à imigração torna-se questão fundamental quando observamos cotidianamente casos de migrações forçadas, sejam decorrentes de fundado temor de perseguição, sejam em consequência de desastres ambientais ou catástrofes naturais. Enquanto tal discussão reporta-se a um terreno delimitado pelo poder soberano, outras possibilidades emergem quando analisamos o paradoxo migratório sob o prisma da biopolítica.
Por tal viés, a incompletude do direito de saída importa muito menos pelo limbo jurídico a que dá causa, do que pelo transbordamento de práticas discursivas e não discursivas que constroem o “migrante irregular” como figura ambivalente.
Nas fronteiras biopolíticas o direito opera como instrumento de um poder que, para além de impor limites à migração, fabrica, formata e conduz subjetividades, cujas vidas inspiram proteção, ao mesmo tempo em que manifestam espécie de risco à comunidade. Atentar-se para essas estratégias do poder nos permite identificar quando o direito migratório, sob a pretensão de uma proteção humana universal, atua exatamente na hierarquização de humanidades.
Compreender as fronteiras em suas movimentações biopolíticas (bordering) permite identificar o direito migratório como manifestação imunitária de proteção ao risco, bem como as estratégias de proteção indutoras dos riscos que supostamente buscam solapar.
Realocar o risco como defeito original da comunidade é o que permite identificar os movimentos jurídicos de sua construção contínua sobre as quais o direito migratório atuaria. Em outras palavras, apenas ciente do risco como constitutivo da própria comunidade que se permite a identificação, em primeiro lugar, da sua negação, e em seguida, de sua projeção na figura do “migrante irregular”.
A tentativa de pensar o paradoxo migratório como sintoma decorrente da relação entre communitas e immunitas insere-se na busca de elaborar práticas voltadas para o outro, para além de um direito humano à imigração. Realocar o munus como lei original da comunidade implica em considerá-la desde sempre na sua relação com o risco e a imunização. Tal deslocamento é o que permite o diagnóstico das estratégias de mascaramento de tal condição comunitária, que projetam o risco para o exterior - inexistente - da comunidade, encarnado na figura do “migrante irregular”.
Referências bibliográficas
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1
Este ensaio teórico é fruto das discussões promovidas no curso “Direitos Humanos e Migrações”, ofertado em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, e ministrado pelo Prof. Dr. José Antônio Peres Gediel e pela Profa. Dra. Melissa Martins Casagrande. Aos dois, bem como aos demais colegas, sou grato pelas reflexões propostas, sem as quais este trabalho não seria possível. Agradeço também a Caroline Godoi de Castro Oliveira pela leitura atenta do texto final.
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No curso Segurança, Território, População, Foucault (2008) alarga sua genealogia do poder ao inserir em suas análises a noção de governo. Foucault traça genealogicamente as formas históricas de governo e encontra no arcabouço da pastoral cristã uma compreensão de governo como condução da conduta dos homens e não do território. Para os desígnios deste ensaio teórico, importa, portanto, pensar as práticas de governo nas fronteiras biopolíticas, não como mecanismos de delimitação territorial, mas como uma atuação sobre a conduta dos sujeitos que irão ser construídos performativamente como migrantes regulares ou irregulares, na medida em que se movimentam, pautados pelo governo, no entorno dessas fronteiras.
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Vale lembrar a recente polêmica envolvendo o atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que em 2018 havia determinado a separação e detenção de crianças que buscavam adentrar os Estados Unidos, onde seus pais residiam de maneira considerada pelo governo como irregular. Mais de 2300 crianças foram separadas de seus pais entre abril e maio daquele ano. Em junho Trump anuncia o fim da política de separação, no entanto, o debate permaneceu acalorado, tendo em vista a obscuridade a respeito do que viria a acontecer com tais crianças. Segundo coluna publicada no The New York Times, tal política continua a operar seus efeitos nos Estados Unidos, ainda que Trump tenha anunciado recuo há um ano. Ver: https://www.nytimes.com/2019/06/21/opinion/family-separation-trump-migrants.html (Acesso em: 2 de agosto de 2019).
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De acordo com Sarah Fine, podemos encontrar entre esses autores da teoria política Michael Blake, David Miller, Ryan Pevnick, John Ralws, Michael Walzer e Christopher Heath Wellman. Ver: FINE, S. Immigration and Discrimination. In: FINE, S.; YPI, L., eds., Migration in Political Theory: The Ethics of Movement and Membership. Oxford: Oxford University Press, 2016, p. 135.
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Existem limitações a e esse direito, conforme demonstrado por Stilz em “Is there an unqualified right to leave?”, que, por extrapolarem a proposta deste trabalho, não serão nele trabalhadas. Ver: STILZ, A. Is There an Unqualified Right to Leave? In: FINE, S.; YPI, L., eds., Migration in Political Theory: The Ethics of Movement and Membership. Oxford: Oxford University Press, 2016, p. 57-79.
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Muito embora não exista um direito de entrada em qualquer território previsto legalmente, Shaschar aponta para um tipo de mobilidade nas migrações pautada no mérito dos migrantes, o que, nesse caso, poderia ser visto como a construção da figura dos “migrantes regulares”. Ver: SHACHAR, A. Selecting by Merit: The Brave New World of Stratified Mobility. In: FINE, S.; YPI, L., eds., Migration in Political Theory: The Ethics of Movement and Membership. Oxford: Oxford University Press, 2016, p. 175-201.
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Quando Butler pensa a performatividade, ela se apropria da leitura de Derrida (1991) sobre o ato performativo de Austin, de acordo com a qual a linguagem performativa requer, por sua vez, a citação (citacionalidade) e reiteração (iterabilidade) constante das normas regulatórias, como as referentes ao direito de migração. Assim, é possível verificar as inúmeras constrições que se dão no entorno de determinados sujeitos, construindo-os performativamente, a partir de mecanismos de citação reiterada de regas sobre a regularidade/irregularidade do sujeito migrante.
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Segundo Foucault (2010; 2011a), em contraposição ao excludente poder soberano reinante até meados do século XVIII, surge neste período o biopoder vocacionado à proteção, majoração e multiplicação da vida. Sendo um tipo de poder normalizador, a sua atuação construtiva se dá a partir de critérios de normalidade e anormalidade, disciplinando corpos individuais (poder disciplinar), bem como regulando populações (biopolítica). Nesse sentido, pode-se argumentar que tanto o poder disciplinar como a biopolítica são espécies do gênero biopoder.
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O termo quadro utilizado neste artigo tem inspiração em Judith Butler, em Frames of war quando pensa a problemática do “framing”. Nas palavras da filósofa (BUTLER, 2009, p. 1): “[...] the frames through which we apprehend, or indeed, fail to apprehend the lives of others as lost or injured (lose-able or injurable) are politically saturated. They are themselves operations of power. They do not unilaterally decide the conditions of appearance but their aim is nevertheless to delimit the sphere of appearance itself […]”.
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Enquanto a biopolítica remete a uma atuação do poder dirigida à produção, majoração e multiplicação da vida biológica, a tanatopolítica, como seu reverso, aponta para práticas e técnicas voltadas para a produção deliberada de morte. Tais noções não ocupam polos diametralmente opostos da política contemporânea, na medida em que a própria tanatopolítica pode constituir-se como manifestação de um decaimento da biopolítica como seu resultado “lógico”. Para pensarmos no problema da presente pesquisa, é em nome da vida da comunidade de um território nacional que se estabelecem práticas biopolíticas de segurança nas fronteiras selecionando aqueles mais aptos a adentrar no território. Eventualmente, tais práticas ganham contornos tanatopolíticos, quando se autorizam maior ou menor exposição à morte daqueles tidos como migrantes irregulares, em nome da manutenção da própria vida daqueles que se busca salvaguardar. Para mais detalhes, ver: ARAUJO, D. C.; FONSECA, A. C. M. Exposição à morte e biopolítica: uma abordagem a partir do racismo de Estado e do paradigma imunitário. Revista de Direito da UFPR, V. 63, p. 117-140, 2018
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Esposito utiliza o termo dispositivo em clara acepção foucaultiana relativa a “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito que são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre esses elementos” (FOUCAULT, 2000, p. 244) e que gera como efeito a produção de corpos individuais e populações e aqui, os que mais nos interessam, aqueles marcados pela subjetividade do “migrante irregular”.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Jun 2020 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2020
Histórico
-
Recebido
13 Abr 2019 -
Aceito
10 Ago 2019