Open-access Pelo fim da barbárie, um passo: justiça restaurativa e a superação da (ir)racionalidade punitiva

For the end of barbarism, a step: restorative justice and overcoming the punitive (ir)rationality

Resumo

O artigo visa a realizar uma análise crítica do modelo penal vigente, tomando a justiça restaurativa como exemplo de outro modelo possível. Questiona-se se e em que medida ela apresenta um potencial para o atingimento de modos de soluções de conflitos mais democráticos e comprometidos com os direitos e dignidade humana e, a longo prazo, um passo para a superação do modelo punitivo vigente. Tendo por base uma ideia de restaurativismo em uma perspectiva abolicionista, infere-se que ela possui o potencial de representar uma alternativa na busca de uma lógica menos violenta. A pesquisa é exploratória, com o emprego do método de abordagem hipotético-dedutivo.

Palavras-chave: Direitos humanos; Justiça restaurativa; Racionalidade penal moderna

Abstract

The article strives to carry out a critical analysis of the current criminal model, taking the restorative justice as an example of another possible model. It questions if and to what extent restorative justice presents a potential to achieve ways of conflict resolution that are more democratic and committed to the rights and human dignity and, in the long term, a step to overcoming the current punitive model. Based in an abolitionist perspective of restorative justice, it infers that it has the potential of represent an alternative in the search for a less violent logic. The research is exploratory and adopts the hypothetico-deductive method of approach.

Keywords: Human rights; Modern penal rationality; Restorative justice

Considerações iniciais

Juan Manuel Otero (2007, p. 49) escreve que o sistema de sanções - e aqui, acrescenta-se: especialmente a pena privativa de liberdade - encontra-se “justificado por um discurso jurídico que nos é demasiado familiar”, o qual possui o êxito de “fazer com que não tenhamos de recordar a perturbadora ideia de que ferimos sem finalidade comprovada uns poucos indivíduos, causando-lhes dor de forma programada e inteiramente conscientes disso”. De fato, após as tentativas fracassadas de justificar a pena no Estado moderno1, parece ser necessário perquirir sobre suas “funções reais”, e, com isso, problematizar a racionalidade mesma que preside o sistema penal - analisada, aqui, com base na definição de Álvaro Pires (2004) -, sob pena de se falar em mero sofrimento estéril, o que remete à “era dos suplícios”, como muito bem observado por Michel Foucault (1987).

Tendo em vista os inúmeros estudos que já “desmascararam” as funções declaradas da pena privativa de liberdade e do próprio Direito Penal2, este breve estudo parte das reflexões sobre essa “justificação impossível” (BELOFF, 1993) para lançar um olhar à realidade prática da pena privativa de liberdade do Brasil. Com isso, procura-se contestar a racionalidade punitiva vigente e perquirir acerca de uma outra forma de tratar das “situações problemáticas”3 - ou seja, como salienta Salo de Carvalho (2007, p. 83), dar um passo atrás e indagar, antes de “por que punir?”, se é necessário punir.

Assim, por meio do estudo da justiça restaurativa, a questão que orienta esta investigação é a seguinte: em que medida a justiça restaurativa pode ser considerada uma forma alternativa de solução de conflitos alicerçada em uma racionalidade outra, que se afigura como condição de possibilidade para a superação da (ir)racionalidade punitiva? Em outras palavras: é a justiça restaurativa potencialmente um caminho adequado para que se atinjam modos de solução de conflitos mais humanos e comprometidos com os direitos e dignidade humana e, a longo prazo, um passo para a superação do modelo punitivo vigente? A hipótese deste estudo é que a justiça restaurativa, com seus princípios e valores afastados daqueles vigentes na justiça retributiva, constitui um horizonte promissor e, inclusive, importante, se e na medida em que resulta em um “círculo virtuoso", em detrimento da lógica violenta operante atualmente no âmbito da resolução dos conflitos que a esfera penal chamou a si.

Para percorrer este percurso, realiza-se, primeiramente, um diagnóstico das penas no Brasil, partindo das considerações teóricas acerca da justificação da pena e avançando para uma análise que considere a realidade brasileira e suas peculiaridades, notadamente a permanência das relações desiguais baseadas em raça e classe social, que se refletem na seletividade da atuação do sistema penal, explicitando características da (ir)racionalidade penal vigente. No segundo momento, objetiva-se analisar algumas propostas e potencialidades da justiça restaurativa, a fim de verificar se, e a partir de que pressupostos, ela se insere em um contexto de busca por uma racionalidade diversa para a resolução dos conflitos sociais que são, no presente, subtraídos pelo sistema penal.

Utiliza-se do método de abordagem hipotético-dedutivo, em uma pesquisa do tipo exploratória. Os procedimentos adotados envolvem a seleção da bibliografia que forma o referente teórico deste estudo, sua identificação como produção científica relevante, leitura e reflexão, que, coadunadas com os estudos acerca da realidade prisional e penal brasileira, proporcionam as possíveis respostas ao problema aqui proposto.

1 Entre a justificação impossível e a realidade inimaginável: a pena privativa de liberdade no Brasil e os reflexos da (ir)racionalidade punitiva

Georg Rusche e Otto Kirchheimer (2004, p. 19), em sua obra “Punição e estrutura social”, explicam que, para uma abordagem profícua dos sistemas penais, “é necessário despir a instituição social da pena de seu viés ideológico e de seu escopo jurídico e, por fim, trabalhá-la a partir de suas verdadeiras relações”. Na ótica dos autores, pois, essas “verdadeiras relações” dizem respeito à análise das formas punitivas adotadas em função de um sistema de produção, ou seja, as relações de produção de um dado momento histórico como determinantes da adoção de práticas penais específicas. Evidencia-se, nesse sentido, uma das principais contribuições da obra em questão para o pensamento criminológico, muito bem apreendida por Foucault (1987, p. 27): Rusche e Kirchheimer auxiliam na compreensão de que “as medidas punitivas não são simplesmente mecanismos ‘negativos’ que permitem reprimir, impedir, excluir, suprimir”; pelo contrário, essas medidas “estão ligadas a toda uma série de efeitos positivos e úteis que elas têm por encargo sustentar”, de modo que, “se os castigos legais são feitos para sancionar as infrações, pode-se dizer que a definição das infrações e sua repressão são feitas em compensação para manter os mecanismos punitivos e suas funções.”

Conforme Alessandro Baratta (2016, p. 191), a obra de Rusche e Kichheimer (juntamente com Vigiar e Punir, de Michel Foucault), produziu, no plano epistemológico, resultados irreversíveis, formando o que o autor denomina “enfoque materialista ou político-econômico”, contrapondo-se ao “enfoque idealista”, cujo “núcleo central é representado pelas teorias dos fins da pena”. É interessante pensar, a partir desse viés, nos efeitos desse enfoque “idealista” que, não obstante já desnudado em sua incapacidade em corresponder à realidade, segue norteando as práticas penais no Brasil e em outros países. De acordo com Massimo Pavarini (1993, p. 31), a justificação, para a teoria da pena, torna-se cada vez mais difícil, seja enquanto “justiça”, seja enquanto “utilidade”: “Desde el momento que la pena se ha venido que ‘emancipar’ del ‘castigo divino’, ha estado amenazada permanentemente por el riesgo de ser descubierta por lo que, contingentemente, está de trás de la ficción de lo que quiere hacer creer que es”. Essa dificuldade em justificar a pena, tanto em concreto quanto em abstrato4 não significou, no entanto, o abandono da concepção idealista em prol da admissão da pena - principalmente da pena de prisão - em sua função real, de sorte que o “duvidoso êxito” dos debates que há dois séculos se dividem entre os que entendem que a função da pena deveria ser retributiva, os que pensam que deveria ser intimidativa e aqueles que defendem a função reeducativa, tem sido “uma teoria ‘polifuncional’ da pena, que, atualmente, na maioria dos casos, põe o acento, particularmente, na reeducação” (BARATTA, 2016, p. 191).

Apesar do insucesso na justificação e também da sua legitimação na prática, a pena - embora seja um produto específico da modernidade, que ofereceu ao “Estado moderno um mecanismo de controle supostamente igualitário e afastado de privilégios estipulados antes do aparecimento dos Estados nacionais” (OTERO, 2007, p. 47) - encontra-se de tal forma naturalizada, que pensar em soluções diversas para as situações que hoje chamamos de “criminosas” é um ato quase que subversivo. Conforme entende Álvaro Pires (2004, p. 40-41, grifo do autor), “é quando tentamos pensar de outra forma que tomamos consciência da colonização que ele [o sistema penal] exerce sobre a nossa maneira de ver as coisas”.

Pires (2004, p. 41) argumenta que a racionalidade penal moderna - produzida no Ocidente a partir da segunda metade do século XVIII - cria um “ponto de vista” que naturaliza a estrutura normativa eleita inicialmente pelo sistema penal e, com isso, constitui um obstáculo epistemológico tanto ao conhecimento da questão penal quanto à criação de uma outra racionalidade. Trata-se de uma estrutura normativa telescópica e que valoriza a pena aflitiva. Telescópica pois conecta, na norma de comportamento, dois níveis distintos de normas: as de primeiro grau (comportamento) e as de segundo grau (sanção), de modo que a formulação normativa irá sempre implicar uma sanção a uma norma de comportamento - “aquele que faz x pode ou deve ser punido com y”. Segundo o referido autor (PIRES, 2004, p. 41), três tipos de sanção são viáveis nessa estrutura telescópica: a pena de morte ou de algum castigo corporal, a prisão e a multa, sendo que a pena aflitiva, especialmente a prisão, é que adquire relevo “no auto-retrato [sic] identitário do sistema penal”. Além disso, outra característica desse “ponto de vista” é que é a pena aflitiva que “comunica o valor da norma de comportamento e o grau de reprovação em caso de desrespeito” (PIRES, 2004, p. 41). Desse modo, configura-se um sistema penal cujo autorretrato é punitivo - o procedimento deve ser hostil e as sanções devem ser aflitivas -, e a punição, que não deve preocupar-se com os laços sociais concretos, constitui-se uma obrigação ou necessidade (PIRES, 2004).

Assim, pode-se compreender o porquê de uma das indagações mais importantes do direito penal e da teoria política: “por que punir?”. Essa indagação acaba por esconder uma consideração anterior, consubstanciada na pergunta: é necessário ou não punir? (CARVALHO, 2007, p. 83). Essa “ocultação” se deve, justamente, a essa (ir)racionalidade. De fato, o direito penal moderno propõe uma única solução aos conflitos ocorridos na sociedade, baseada “em um simples punhado de fatos que são tidos como relevantes e considerando um modelo de homem que não admite matizes, que é culpado ou inocente, sem meio termo (OTERO, 2007, p. 49). Não é à toa que o conceito de “homem médio” permeou por muito tempo - e, quiçá, ainda permeia - o imaginário dos juristas, integrando o “senso comum teórico” (WARAT, 1994) no campo das práticas punitivas.

Ademais, a contemporaneidade assiste a um movimento de expansão do direito penal e, com isso, da (ir)racionalidade punitiva que é impulsionada por uma “complexificação” social que hoje resulta não apenas na “sociedade de risco” (BECK, 1998), em que há uma supervalorização da segurança, como também em uma “vivência subjetiva dos riscos” que é claramente superior à sua própria existência objetiva, conforme explica Jesús-María Silva Sanchez (2002). Segundo observa Zygmunt Bauman (2007), tem-se, hoje, uma exacerbação dos “temores existenciais” relacionada, dentre outros motivos, à derrocada do Estado social - e, aqui, cabe mencionar que o autor baseia-se principalmente no contexto da real existência de Estados sociais na Europa. Assim, a partir da incitação de medos bastante específicos - de um molestador, de um assaltante, um pedófilo, etc. - o Estado “ressurge”, não mais em sua faceta social (segurança), mas de proteção, com a promessa, pois, de proteger seus cidadãos. Esse posicionamento não apenas impulsiona uma série de políticas baseadas em uma ideologia de “lei e ordem”, como também anda de mãos dadas com o que Bauman chama de um “clima de precariedade” que é causado pela desregulamentação econômica, pela deterioração da solidariedade social e sua substituição pela auto responsabilidade individual. Nesse quadro, o modelo de intervenção penal subsidiário, defendido a partir de um modelo de Estado alicerçado na ideia de bem-estar social, entra em verdadeiro colapso, de modo que os anteriormente destinatários de medidas sociais passam a permanecer vinculados ao sistema jurídico por meio de normas penais (WACQUANT, 2001).

Nesse clima de insegurança, as rupturas sociais tornam-se mais iminentes: as cidades, antes locais de proteção, converteram-se hoje em fontes de insegurança, riscos e perigos. Assim, travam-se guerras urbanas e tornam-se comuns os espaços em que as pessoas se segregam voluntariamente, erigindo para si um mundo à parte do restante da cidade. São os “espaços de extraterritorialidade” dos que, ocupando um local da cidade, não mantêm com ele conexão: sua conexão se dá com o mundo, com o virtual (BAUMAN, 2007). Naturalmente, essa nova forma de viver é uma possibilidade apenas para as elites - as “elites globais supraterritoriais”, conforme Bauman (2007). Em consequência, apenas aos depauperados subsiste a constante luta pelas melhores condições da sua cidade (pois, para esses, a cidade é realmente o seu lugar): é ali que é travada a batalha pela sua sobrevivência, por um “lugar decente no mundo”. E no Brasil, de fato, trata-se de uma batalha, tendo em vista que a vida das pessoas marginalizadas - os moradores de periferias, trabalhadores informais, especialmente os negros, etc. - é constantemente ameaçada não apenas pelas condições árduas de subsistência, como também da possibilidade de cair nas malhas do sistema penal a qualquer momento (WERMUTH, 2011).

Além disso, uma outra consideração pode ser feita para que se compreenda a extensão dessa (ir)racionalidade. Michel Foucault (2003), quando tratou da questão do poder, logrou demonstrar que o poder não é algo que alguém detém, mas encontra-se “capilarizado”, disperso nas relações sociais e, assim, essas relações de poder se dão de maneira quase imperceptível. “O poder, acho eu, deve ser analisado como uma coisa que circula, ou melhor, como uma coisa que só funciona em cadeia” (FOUCAULT, 1999, p. 35). Daí que “o poder funciona”, transita, e, nessa teia, os indivíduos não são “o alvo inerte ou consentidor do poder”, mas seus intermediários (FOUCAULT, p. 1999, p. 35).

Por certo, o conjunto de elementos que forma o sistema penal envolve relações de poder e de saber e, se assim é, portanto, deve-se compreender que a (ir)racionalidade penal da qual se está a tratar não é possuída por alguém ou algumas pessoas, mas, sim, encontra-se dispersa na sociedade e é exercida mesmo por aqueles que não estão diretamente implicados nos atos do sistema penal. Um exemplo dessa dispersão pode ser vislumbrado quando se analisa a distribuição seletiva da criminalização, a qual foi explicitada pela alteração paradigmática proporcionada pela criminologia crítica. Segundo demonstra Vera Regina Pereira de Andrade (2003, p. 53),

a regularidade a que obedece a distribuição seletiva da criminalidade tem sido atribuída às leis de um código social [...] latente integrado por mecanismos de seleção dentre os quais tem se destacado a importância central dos "estereótipos" de autores e vítimas além de "teorias de todos os dias" (teorias do senso comum) dos quais são portadores os agentes do controle social formal e informal (a opinião pública) além de processos derivados da estrutura organizacional e comunicativa do sistema penal. E sem dúvida um mecanismo fundamental dessa distribuição desigual da criminalidade são os estereótipos de autores e vítimas que, tecidos por variáveis geralmente associadas aos pobres (baixo status social, cor, etc.), torna-os mais vulneráveis à criminalização.

A (ir)racionalidade punitiva faz parte, pois, do imaginário social. Sendo assim, buscar apreender o sistema penal na realidade é tentativa complexa e multifacetada, que requer diversos olhares. Pode-se pensar que um começo possível é buscar abandonar o engodo das teorias legitimantes da pena e buscar, segundo Eugenio Raúl Zaffaroni (2001), não substituir uma ideologia por outra, ou mover-se em um sentido de relegitimação do sistema penal, apesar da sua crítica. Assume-se, assim, com Zaffaroni (2001), que é necessário buscar conhecer o sistema penal como ele se apresenta na realidade marginal dos países latino-americanos, e, aqui, especialmente do Brasil. O autor identifica na expressão “marginal”, e, com isso, emprega-a, vários sentidos: para designar a “localização na periferia do poder planetário, em cujo vértice encontram-se os chamados ‘países centrais’”; para demonstrar, também, “a necessidade de se adotar a perspectiva de nossos fatos de poder na relação de dependência com o poder central”; para assinalar a posição da grande maioria da população latino-americana, que se encontra marginalizada do poder e, ao mesmo tempo, objeto da violência do sistema penal; e, por fim, para indicar a situação de marginalização não apenas no setor urbano, mas também no plano cultural, causada pelo colonialismo, neocolonialismo e tecnocolonialismo (ZAFFARONI, 2001, p. 164-165).

Para tanto, há uma miríade de estudiosos que realizaram grandes contribuições para se pensar a “questão criminal” de forma a lograr as “rupturas criminológicas” necessárias para “reconstruir nosso objeto, nossa metodologia, a nosso favor”, conforme palavras de Vera Malaguti Batista (2011, p. 17)5. Lançando-se aos caminhos abertos por esses estudos, é possível compreender, com Nilo Batista (2006), que no Brasil, o “pecado original” é ter a pena pública se fundado em um sistema escravista em que vigoravam “promíscuas relações” entre o sistema de imposição de sanções e o poder punitivo senhorial (BATISTA, 2006, p. 303).

Analisando essa relação, o autor revela como, aqui, o poder punitivo privado jamais foi regulamentado - o que, inclusive, era entendido como ultraje aos senhores, na medida em que ingerência em sua “propriedade”. Assim, a despeito de algumas tímidas menções legais ou dos penalistas da época ao “castigo excessivo” do senhor sobre o escravo, o que vigorava eram “as trocas recíprocas, as articulações e o trânsito livre entre a pena pública e o poder punitivo privado” (BATISTA, 2006, p. 294). De fato, o senhor era “órgão de execução penal”, pois recebia a função de efetivar a pena de açoites fixada em sentença, assim como o serviço público também executava a pena privada quando das “prisões de correção”, isto é, quando os senhores enviavam os escravos para o calabouço e pagavam para o serviço público realizar, por exemplo, “açoites de correção” (que, naturalmente, estavam fora do controle jurisdicional). Assim, segundo Batista (2002, p. 149), é possível afirmar que “as maiores atrocidades no Brasil colonial se davam no âmbito do direito penal privado.”

Engano é supor que essas práticas e seus efeitos ficaram adstritos ao passado. Lilia Moritz Schwarcz (2019) explica que a escravidão foi tão disseminada no Brasil, que deixou de ser privilégio apenas dos senhores de engenho e tornou-se “acessível” a outras pessoas, como comerciantes, pequenos lavradores, padres, funcionários públicos, etc. Com tal extensão, a escravidão foi muito mais que um sistema econômico: “ela moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferença fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência, e criou uma sociedade condicionada pelo paternalismo e por uma hierarquia muito estrita” (SCHWARCZ, 2019, p. 28). Ademais, o sistema escravista não foi apenas tardiamente abolido no Brasil, como também resultou de uma medida que deixou as pessoas libertas completamente à margem da sociedade, não prevendo qualquer projeto para sua integração (SCHWARCZ, 2019).

Estudando esse processo, Gizlene Neder (1997) analisa como as preocupações relacionadas ao controle social nortearam as decisões políticas no Rio de Janeiro, capital da República, na virada do século XIX para o XX. Segundo ela, ao mesmo tempo em que se buscava remodelar a cidade para içá-la entre as “cidades civilizadas” do “primeiro mundo”, tornava-se necessário remover os “trabalhadores pobres de origem africana para os morros da periferia do centro da cidade” (NEDER, 1997, n.p.). O fim da escravidão também levou à atuação altamente repressora da polícia que escolheu um alvo bastante sugestivo: a capoeiragem. Gerou-se, a partir daí, a cisão entre a “cidade quilombada” e a “cidade europeia”:

Do largo da Lapa (onde localiza-se o Quartel-Geral da Polícia Militar) até o Estácio (onde encontra-se o hoje chamado “complexo penitenciário da Frei Caneca”, que engloba as antigas Casas de Detenção e de Correção), encontramos uma sucessão de edificações ligadas, sobretudo, às instituições policiais que vêm alegoricamente antepondo-se, como uma parede (invisível) a ser transposta, aos moradores dos morros e da periferia que querem ter acesso à cidade (NEDER, 1997, n.p.).

Com a “cortesia” da imprensa, que fazia a campanha da lei e da ordem, foram sendo consolidadas as fronteiras entre a “ordem” e a “desordem” - relacionadas a cada um dos territórios, centro e margem - sendo que os trabalhadores pobres dirigiam-se à “cidade europeia”, mas essa não conhecia a “cidade quilombada”. Dadas essas circunstâncias, as desde então existentes “batidas nos morros” ou “invasões” por policiais passaram a ser adotadas como práticas comuns para levar a cabo um controle e disciplina das áreas segregadas, ou seja, para exercer uma vigilância permanente (NEDER, 1997). O que é observado, desde então, é um processo de criminalização da miséria (NEDER, 2005), aliado ao racismo estrutural e institucional (ALMEIDA, 2019), que se concretizam, por exemplo, na longa lista de massacres e chacinas ocorridas nas periferias brasileiras e no perfil sociodemográfico da população carcerária do país. Como expõe Ana Luiza Pinheiro Flauzina (2006, n.p.), “foi na biografia da escravização negra que o sistema penal começou a se consolidar e é na lógica da dominação étnica contemporânea que continua a operar em seus excessos”.

Assim, conforme demonstra Maiquel Wermuth (2018, p. 304), tem-se no Brasil uma polícia soberana que atua por meio da violência e seletividade punitiva, tributárias da rígida hierarquização social que continua a ser reafirmada mesmo em tempos “democráticos”. Segundo expõe, “do ‘vadio’ e do ‘capoeira’ da incipiente República - esse imenso ‘zumbi’ que ameaçava a ‘ordem pública’ -, é possível perceber uma linha contínua que orienta as práticas arbitrárias e violentas da(s) polícia(s) até a figura do ‘traficante’ na contemporaneidade”. O perfil sociodemográfico da população prisional confirma, pois, essas hipóteses - e, aqui, é importante ter em mente que muitos dos alvos preferenciais da persecução penal não chegam à prisão, pois são mortos sumariamente.

Conforme aponta o Levantamento nacional de informações penitenciárias (Infopen) de 2017, 63,6 % da população prisional brasileira é formada por pessoas de cor/etnia preta e parda, enquanto que - é válido assinalar - a população brasileira conta com um percentual de 55,4% de pessoas pretas e pardas. Quanto à escolaridade, 51,3 % da população prisional não completou o ensino fundamental, 7,2% das pessoas são analfabetas e apenas 0,56 % das pessoas possuem ensino superior completo. A taxa de ocupação das prisões é de 171,62%, sendo que há, de um total de 726.354, 234.866 pessoas presas por crimes contra o patrimônio, 156.749 em virtude do grupo drogas (Lei n. 6.368/76 e Lei n. 11.343/06), seguidos de um total de 64.048 pessoas presas por crimes contra a vida (BRASIL, 2019).

Essa conjuntura demonstra que, apesar da longeva crítica à prisão - as penas curtas, por exemplo, já eram fortemente criticadas na Europa e nos Estados Unidos desde o final do século XIX, embora, no Brasil, ainda vigoravam nesse período penas corporais (BATISTA, 1990) - continua-se a apostar na segregação de uma parcela da população, o que conduz justamente a pensar na função real exercida pela pena de prisão, qual seja, a verdadeira neutralização dos indesejáveis socialmente. Sendo essa a preocupação que impulsiona o presente trabalho, no próximo tópico serão analisadas algumas características da justiça restaurativa, a fim de incitar a reflexão sobre uma outra racionalidade, mais democrática e menos excludente, visando perquirir, pois, sobre a possibilidade de atenuar as mazelas causadas pelo sistema punitivo na sociedade brasileira.

2 No caminho da “utopia orientadora”6, uma estação: a justiça restaurativa

O cenário acima delineado, embora de forma breve, deixa à mostra a situação insustentável vivida no âmbito do sistema de justiça criminal brasileiro. Embora inúmeros problemas digam respeito a uma atuação pré-judicial, como é o caso das violências perpetradas pelas polícias, aquela desencadeada no âmbito da solução dos conflitos, isto é, na justiça, vai a passos largos da inculpabilidade. De fato, conforme explica Baratta (2019, p. 176, grifo do autor), nos processos de criminalização secundária, o que inclui a atuação judicial, é acentuado o caráter seletivo da criminalização primária (direito penal abstrato), sendo que estudos demonstram “os preconceitos e estereótipos que guiam a ação tanto dos órgãos investigadores como dos órgãos judicantes, e que os levam [...] a procurar a verdadeira criminalidade principalmente naqueles estratos sociais dos quais é normal esperá-la”7. O autor (2016) também menciona o conceito de “sociedade dividida”, cunhado por Ralf Dahrendorf, que põe em questão o fato de que os juízes provêm, predominantemente, das camadas médias e superiores da sociedade, e, com isso, os acusados provenientes de grupos marginalizados (o que é a regra) encontram-se em situações desfavoráveis.

Apesar disso, é necessário reconhecer também as crises por que vem passando o Judiciário nas últimas décadas, o que também se reflete na insatisfação da população com a sua atuação. Segundo explica Fabiana Marion Spengler (2018, p. 49), tais crises retratam a própria crise do Estado, em um momento em que “é possível perceber a retração e o descompasso entre a função jurisdicional do Estado e a complexidade conflituosa atual”. A crise estatal, por sua vez, sobrevém da sua “gradativa perda de soberania, sua incapacidade de dar respostas céleres aos litígios atuais, de tomar as rédeas de seu destino, sua fragilidade nas esferas Legislativa, Executiva e Judiciária, enfim, sua quase total perda na exclusividade de dizer e aplicar o Direito” (SPENGLER, 2018, p. 50). Diante desse cenário, surgem procedimentos jurisdicionais alternativos, tais como a arbitragem, a mediação, a conciliação, a negociação, e, inclusive, a justiça restaurativa e sua possiblidade de aplicação (dentre outras), na área que hoje é dominada pela justiça criminal.

A justiça restaurativa, conforme se lê do relatório analítico propositivo da pesquisa realizada por contratação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), coordenada pela Professora Doutora Vera Regina Pereira de Andrade, denominado “Pilotando a Justiça Restaurativa: o papel do Poder Judiciário” (CNJ, 2018), caracteriza-se inicialmente (por volta da década de 1970) como um movimento social que, posteriormente, vai se consolidando como investigação científica e metodológica. Sendo assim,

apresenta um vigoroso contexto histórico de surgimento (em lugares como Nova Zelândia, Austrália, Canadá, Estados Unidos e África do Sul), alicerçado em antigas tradições espirituais (cristianismo, budismo, hinduísmo, judaísmo), antigas experiências indígenas e de práticas compensatórias e restitutivas, baseadas em valores; entretanto, condicionado por iniciativas, práticas e movimentos sociais contemporâneos. A aparição da JR no sistema de justiça pode desta forma ser dimensionada como uma resposta a questões do presente resgatando o aprendizado do passado - uma reverência à ancestralidade (CNJ, 2018, p. 55-56).

De acordo com Raffaella Pallamolla (2009), a justiça restaurativa é um conceito aberto, a respeito do qual há uma grande diversidade de orientações, práticas e fins, além de ser também fluido, eis que vem sofrendo modificações em suas práticas desde os primeiros estudos e experiências. Observa-se que a Resolução n. 225/2016, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2016), que dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário, reconhece essa abertura conceitual, fornecendo a seguinte descrição:

Art. 1º. A Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo estruturado na seguinte forma:

I - é necessária a participação do ofensor, e, quando houver, da vítima, bem como, das suas famílias e dos demais envolvidos no fato danoso, com a presença dos representantes da comunidade direta ou indiretamente atingida pelo fato e de um ou mais facilitadores restaurativos;

II - as práticas restaurativas serão coordenadas por facilitadores restaurativos capacitados em técnicas autocompositivas e consensuais de solução de conflitos próprias da Justiça Restaurativa, podendo ser servidor do tribunal, agente público, voluntário ou indicado por entidades parceiras;

III - as práticas restaurativas terão como foco a satisfação das necessidades de todos os envolvidos, a responsabilização ativa daqueles que contribuíram direta ou indiretamente para a ocorrência do fato danoso e o empoderamento da comunidade, destacando a necessidade da reparação do dano e da recomposição do tecido social rompido pelo conflito e as suas implicações para o futuro.

Vê-se, portanto, que não há uma definição estanque, mas sim uma certa enumeração de características que estruturam as práticas restaurativas, como, por exemplo, a participação das partes e de outros interessados, a técnica consensual e os diversos escopos das práticas: responsabilização ativa, recomposição das relações, atenção às necessidades dos envolvidos.

Pallamolla (2009) analisa, com base em Gerry Johnstone e Daniel W. Van Ness (2007), três concepções de justiça restaurativa que acentuam propósitos diversos - embora não divergentes e que não se diferenciam de forma absoluta, razão pela qual, por vezes, estão presentes conjuntamente nas práticas. A primeira é a concepção do encontro, que enfatiza justamente a oportunidade do encontro entre vítima, ofensor e outros interessados, o que é uma das ideias centrais do movimento. Tal encontro caracteriza-se por não ter a formalidade, tal como na justiça retributiva, como uma de suas características principais, e também não ser dominado por especialistas, tais como advogados e juízes em locais como fóruns e tribunais. A esse respeito, Daniel Silva Achutti (2016) assinala que, estando a justiça restaurativa voltada a outros horizontes que os da justiça retributiva, na medida em que olha não para o passado, mas para o futuro, a sua forma de proceder não é rígida e estabelecida da mesma maneira que nos procedimentos de “busca da verdade” do processo penal. Assim, são as pessoas envolvidas que deliberam a respeito da melhor maneira de enfrentar a situação problemática e constroem coletivamente as soluções.

A segunda concepção analisada por Pallamolla (2009) é a da reparação, segundo a qual o que deve obter destaque na prática é a reparação do dano à vítima, o que pode ser alcançado de diversas formas, material e/ou simbolicamente. Aqui, entende-se que o acordo restaurador e a prática da reparação são a solução justa que, além disso, também “oportuniza a (re)integração do ofensor e a restauração da comunidade abalada pelo delito” (PALLAMOLLA, 2009, p. 57). A questão central, pois, não é aquela que se dirige ao ofensor e à sua punição, mas, sim, à vítima e às suas necessidades. A terceira concepção, por fim, é a da transformação, segundo a qual “o objetivo principal da justiça restaurativa é transformar a maneira pela qual as pessoas compreendem a si próprias e como se relacionam com os outros no dia a dia” (PALLAMOLLA, 2009, p. 58-59).

Da mesma forma que ocorre com seu conceito, a justiça restaurativa também é baseada em uma série de valores e princípios que variam de acordo com cada matriz teórica. Tendo em vista que não é objetivo do presente texto realizar um estudo exaustivo da justiça restaurativa8, senão analisá-la no sentido de um combustível para “combater” a racionalidade punitiva em andamento, citar-se-á apenas alguns dos princípios e valores mencionados pelos autores em estudo. Tanto Achutti (2016) quanto Pallamolla (2009) mencionam os valores elencados por John Braithwaite (2002), que os divide em três grupos: a) valores obrigatórios (constraining values), cuja aplicação é necessária para que o procedimento não se torne opressivo, tais como não-dominação, empoderamento, respeito aos limites legais estabelecidos como sanção (por exemplo, desfechos humilhantes), escuta respeitosa, preocupação igualitária com todos os participantes, accountability/appealability (consiste na possibilidade de os participantes optarem a qualquer momento por um julgamento no sistema tradicional, e vice-versa) e respeito aos direitos humanos; b) valores que devem ser encorajados, tais como a “cura”/restauração, a prevenção de futuras injustiças, etc; c) valores que podem surgir de uma prática bem sucedida, mas que não podem ser exigidos, tais como perdão, desculpas e clemência.

Quanto aos princípios, conforme apontam Raquel Tiveron (2017) e o relatório do CNJ (2018), com base em Howard Zehr (2012), que é um dos expoentes dos estudos sobre o tema, menciona-se: focar nos danos causados (e não nas regras violadas), atentar às necessidades do ofendido, preocupar-se tanto com o ofensor quanto com o ofendido e envolvê-los no processo, buscar soluções exequíveis e não baseadas na ideia de castigo ao autor do dano, atentar para consequências indesejadas da justiça restaurativa, dentre outros.

Àqueles que possuem uma aproximação aos abolicionismos penais, será possível notar certa convergência em alguns valores e princípios presentes na justiça restaurativa. E, de fato, as propostas abolicionistas tiveram e têm grande influência no desenvolvimento teórico e prático da justiça restaurativa (ACHUTTI, 2016; PALLAMOLLA, 2009). Apesar das críticas realizadas aos abolicionismos, as quais são, segundo Vera Regina Pereira de Andrade (2020, p. 44) baseadas em uma carga estigmática que constitui obstáculos ideológicos e epistemológicos, a literatura abolicionista é, na verdade, “uma das mais potentes e consequentes literaturas e experiências sobre a vida em comunidade com liberdade, solidariedade e responsabilidade”. Segundo aponta Zaffaroni (1991, p. 104), na contramão das críticas que temem que o abolicionismo implique abrir mão da resolução dos conflitos, na verdade, não é disso que se trata: “apenas, quase todos os seus autores parecem propor uma reconstrução de vínculos solidários de simpatia horizontais ou comunitários, que permitam a solução desses conflitos sem a necessidade de apelar para o modelo punitivo formalizado abstratamente”.

Sua contribuição à justiça restaurativa e, mais, a importância dessa para uma possível abolição do sistema penal consiste no fato de que as lutas abolicionistas devem ser processuais, ou seja, não se postula uma “revolução” que irá abolir o sistema penal, mas sim um caminho a ser percorrido e que não está sequer já totalmente traçado, senão que está aberto a ser sempre recriado. Assim, conforme Andrade (2020, p. 50), as metodologias encorajadas pelos abolicionistas são diversificadas, e vão “desde processos de descriminalização legal, judicial, ministerial, despenalização, [...] modelos conciliatórios (mediação penal de conflitos, conciliação cara a cara), terapêuticos, indenizatórios, pedagógicos, restaurativos”.

É possível, pois, assim, pensar na justiça restaurativa em uma perspectiva abolicionista, do modo como o faz Daniel Achutti (2016). Para tanto, o autor aponta alguns elementos importantes, tais como: a justiça restaurativa não deve submeter-se ao sistema penal, sob pena de converter-se em um suplemento expansionista do sistema penal; a importância de adoção de uma nova linguagem, que evite a colonização pelas noções tradicionais da justiça criminal; não distinção, inicialmente, entre ilícitos civis e penais, a fim de que as partes possam administrar a situação em consonância com os resultados das práticas; os profissionais não devem “dominar” a justiça restaurativa a fim de evitar a perpetuação da burocratização presente na lógica atual; devem ser refutados quaisquer estereótipos sobre as partes; o foco deve ser a necessidade tanto das vítimas quanto ofensores, assim como da comunidade de apoio; deve ser estimulada a participação ativa das partes, a fim de que o acordo seja de fato resultante de um consenso.

A partir dessas premissas, percebe-se que muitos são os aspectos práticos e também teóricos que merecem atenção para que a justiça restaurativa não acabe sorvida pelo sistema de justiça criminal e defraudada em seu potencial inovador, ou seja, de representar uma nova lógica de resolução dos conflitos que hoje são absorvidos pelo sistema penal. A título de exemplo, mencione-se que ainda não há, segundo Pallamolla (2009), um sistema de justiça inteiramente restaurativo, o que significa dizer que os programas de justiça restaurativa são levados a cabo ou dentro do procedimento criminal ou fora dele, mas surtindo efeitos no processo penal (os momentos de encaminhamento dos casos variam, podendo se dar em fase policial, após a acusação, no decorrer do processo e, inclusive, em sede de execução penal).

Apesar disso, e também do fato de que a justiça restaurativa não acaba, por si só, com o punitivismo9, vê-se que ela fornece a possibilidade de se buscar uma outra lógica para lidar com os conflitos, ou seja, a possibilidade de um outro modelo. Tiveron (2017) trata das bases filosóficas do encontro restaurativo, das quais cita-se, para exemplificar esse potencial, a base proveniente do filósofo Emmanuel Lévinas. Segundo ela, o pensamento de Lévinas explora a questão da ética da alteridade, ou seja, da responsabilidade pelo outro, da realização da justiça enquanto proximidade dos relacionamentos face a face, enfim, do “eu” enquanto envolvido em uma teia de relacionamentos sociais da qual não é possível liberar-se e que impõe responsabilidade. Assim, segundo a autora (2017), é por meio da “outridade” que se realiza o ideal da justiça restaurativa: há uma necessidade de colocar-se no lugar do outro e focar nas possibilidades do futuro, não apenas nas perdas do passado, libertando-se da culpa e ressentimento.

Rosane T. Carvalho Porto (2020) também se reporta à necessidade de se ampliar a análise do sentido de justiça para o âmbito social, ou seja, enfrentar o sentido de justiça social nas práticas restaurativas e abolicionistas. De fato, muitas das críticas formuladas pelos abolicionismos baseiam-se nas desigualdades e violências dos sistemas penais, e, assim, é necessário que se incorpore às práticas e reflexões acerca da justiça restaurativa a noção de desigualdade social que muitas vezes aparece naturalizada nas relações sociais. Assim, se na justiça penal retributiva operam dicotomias simplificadoras da realidade complexa e dinâmica dos encontros humanos (por exemplo: vítima/criminoso), é necessário que esse fato seja problematizado, pois representa grandes desafios também à justiça restaurativa. É preciso, pois, um “pensamento coletivo” capaz de questionar todos aqueles que estão comprometidos com os processos de mudanças de conceitos positivistas e punitivos (PORTO, 2020, n.p.)

Se, conforme sustenta Oscar Chase (2014, p. 21), existe uma reflexividade entre os processos de resolução de conflitos e a cultura em que estão inseridos, de forma que “são instituições através das quais a vida social e cultural é mantida, provocada e alterada”, pode-se argumentar pela importância e necessidade de se fomentar cada vez mais a justiça restaurativa: na medida em que poderá também causar alterações culturais, pode-se conjecturar uma contenção da racionalidade punitiva, em prol de um novo olhar a respeito do que hoje é entendido como crime que demanda uma pena aflitiva, tendo em vista o potencial da justiça restaurativa de instaurar práticas mais humanas de resolução de conflitos e, também, constituir uma esperança ou um passo - embora esse seja um ideal demasiado otimista - rumo a um modelo menos injusto e mais democrático.

Por fim, por oportuno, frise-se que a Resolução n. 225/2016 do CNJ dedica um capítulo à questão da formação e capacitação dos facilitadores em Justiça Restaurativa, cujo plano pedagógico básico dos cursos de capacitação, treinamento e aperfeiçoamento deve ser elaborado em parceria com os respectivos tribunais (artigo 16, § 1º). Embora se assista a uma preocupação crescente com questões envolvendo marcadores de diferença tais como raça, classe e gênero, cabe enfatizar a importância de que sejam tratados desses temas nas capacitações, a fim de que sejam atingidos níveis significativos de igualdade e respeito nas sessões restaurativas. Tendo em vista o cenário de desigualdade do sistema de justiça criminal brasileiro e as características da racionalidade penal moderna, analisadas no tópico anterior, esse parece ser um ponto importante para que se possa realmente alterar esse cenário. É pertinente apropriar-se da ideia abolicionista de se valorizar as lutas micro, e, aqui, pensar na necessidade de lutar, diariamente e em todas as oportunidades, contra esse sistema penal que é violento, seletivo e profundamente racista, reconhecendo, com Vera Andrade (2020, p. 49), que cita Hulsman (1997), que “a justiça penal existe em quase todos nós” e, portanto, precisamos também abolir “a justiça penal em nós mesmos”.

Considerações finais

Buscou-se analisar, no presente estudo, algumas características da racionalidade penal moderna, especialmente no que diz respeito, no Brasil, à pena de prisão e às suas peculiaridades, a fim de questionar esse modelo em virtude das suas consequências fáticas. Assim, questionava-se se, e em que medida, a justiça restaurativa representa um passo possível e necessário na superação dessa realidade e busca por um novo modelo não apenas de solução de conflitos, como também de uma racionalidade outra, menos punitiva e cuja prisão não seja a pena central e principal. Ocorre que a pena privativa de liberdade, além da problemática de sua justificação teórico-filosófica, apresenta-se, no Brasil, em um continuum de violências e espoliações, especialmente em relação a pessoas negras e pobres, cujo ápice é ou a prisão ou execuções sumárias - sendo que, muitas vezes, a prisão também acaba convertendo-se em uma sentença capital. Assim, para além do “ponto de vista” produzido pela racionalidade penal moderna, somado à crescente complexificação social que muitas vezes amplia medos e ódios que acabam desembocando no terreno do sistema penal, tem-se também uma situação agravada por desigualdades históricas no Brasil.

A justiça restaurativa, nesse sentido, exsurge como uma via potencial a indicar - pelo menos - um primeiro passo na busca por “algo melhor”, em virtude de encampar uma lógica diversa da justiça retributiva, eis que há espaço para se valorizar outros aspectos que muitas vezes não possuem lugar no sistema de justiça tradicional: o encontro, o diálogo, a participação dos envolvidos, a substituição da ideia de que o “desvio” requer, de forma inderrogável, a imposição de uma punição (aflitiva), a busca pela satisfação das necessidades de todos os envolvidos, dentre outros.

Não se ignora, apesar disso, os desafios que se impõem quando se pensa na implantação da justiça restaurativa. Esses são, inclusive, analisados e problematizados pela pesquisa conduzida em 2018 a pedido do CNJ, mencionada no decorrer deste estudo. Para exemplificar, cita-se a absorção dos programas de justiça restaurativa pelo sistema de justiça criminal e sua utilização paralela àquele, servindo como “complementar”, o que pode resultar em um afastamento dos seus valores e (re)inserção na lógica punitiva - inclusive com um maior expansionismo da justiça penal. Por tal razão, pois, optou-se também por olhar para a justiça restaurativa em uma perspectiva abolicionista, buscando-se pensar fora do modelo do sistema vigente que coloniza até mesmo as perspectivas alternativas, as quais acabam, muitas vezes, sendo tragadas de volta à sua lógica.

Entende-se que esse caminho não é apenas possível como necessário, não obstante as críticas aos abolicionismos como utopia ou irrealizável na prática. Adota-se, frente a isso, o entendimento de que é necessário um processo - conforme se falou, de lutas micro, lutas diárias -, no qual a justiça restaurativa é um passo fundamental. Seu fomento e expansão pode instaurar, paulatinamente, um entendimento diverso da maneira como é possível resolver situações problemáticas e, ademais, incentivar um modelo mais democrático e relações mais humanas e com maior respeito aos direitos humanos.

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  • 1
    A refutação às teorias absolutas e relativas da pena - sendo essas em seus desdobramentos enquanto teorias de prevenção geral negativa e positiva e prevenção especial negativa - resultou, historicamente, na aceitação da prevenção especial positiva, cuja tentativa de concretização se deu por meio dos modelos correcionalistas. Entretanto, com a sua crise, adentra-se um cenário de, em parte, retorno à uma certa penologia fundamentalista, com teorias neoretributivistas, por exemplo, ou, ainda, à assunção de modelos descritivos enquanto prescritivos, isto é, de teorias que não buscam justificar a pena, senão descrever o que realiza na realidade, como a neutralização seletiva de sujeitos considerados perigosos (PAVARINI; GIAMBERARDINO, 2018). De certa forma, o que resulta frente a esse tema é a punição enquanto “fato”, arbítrio, independentemente de sua justificação: “trata-se de arbítrio, sempre e de qualquer forma, ainda que o direito de infligir sofrimento por parte do Príncipe guarde uma legitimação pactuada” (PAVARINI; GIAMBERARDINO, 2018, p. 44)
  • 2
    Embora exista um entendimento dominante de que a função do Direito Penal é a proteção de bens jurídicos, duas considerações são relevantes, conforme indica Nilo Batista (2007). Primeiramente, que, “numa sociedade verdadeiramente justa e democratizada os fins do direito penal e da pena constituirão, transparentemente expostos e debatidos, um só e indivisível projeto” (BATISTA, 2007, p. 114). Não é esse o caso, contudo, e a visão existente implica que “quando se fala nos fins (ou ‘missão’) do direito penal, pensa-se principalmente na interface pena/sociedade e subsidiariamente num criminoso antes do crime; quando se fala nos fins (ou objetivos, ou funções) da pena, pensa-se nas interferências criminoso depois do crime/pena/sociedade” (BATISTA, 2007, p. 111). Daí ser necessário olhar - sendo essa a segunda consideração - para a função declarada do Direito Penal enquanto ideológica, na medida em que encobre o fato de que o Direito Penal garante uma ordem social desigual - já que “os sistemas jurídicos e políticos de controle social do Estado [...] instituem e garantem as condições materiais fundamentais da vida social” (SANTOS, 2014, p. 7) -, e, assim, um exemplo disso é que, numa sociedade dividida, a escolha dos bens jurídicos tutelados possui caráter de classe e, portanto, implica a exclusão de interesses de parcelas da sociedade nessa esfera decisória (BATISTA, 2007).
  • 3
    Louk Hulsman, autor cujo pensamento abolicionista contribuiu à perspectiva restaurativa, propõe uma mudança de linguagem, já que a que hoje é utilizada (com as expressões “crime”, “criminalidade”, etc.) “obscurecem conflitos sociais”, que devem ser chamados, segundo ele, “situações problemáticas” e contar com a participação das pessoas envolvidas a fim de que se atinja uma forma mais humana de resolução (PALLAMOLLA, 2009, p. 42).
  • 4
    Conforme Pavarini (1993), não se pode prescindir dessa distinção. O autor demonstra que justificar uma pena em abstrato, por exemplo, não implica como consequência certa e imediata a sua justificação em concreto.
  • 5
    Dentre os quais cita-se: Lola Aniyar de Castro, Rosa Del Olmo, Eugenio Raúl Zaffaroni, Juarez Cirino dos Santos, Vera Regina Pereira de Andrade, Vera Malaguti Batista, Nilo Batista.
  • 6
    A expressão é utilizada por Salo de Carvalho (2002, p. 144), em referência à perspectiva de Alessandro Baratta, a fim de expressar “utopia” - aqui, o autor refere-se aos abolicionismos - de uma maneira positiva, impulsionadora de mudanças.
  • 7
    Sobre esse tema, é oportuno mencionar o episódio envolvendo o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e o Juiz de Direito Roberto Luiz Corcioli Filho, que foi punido por aquele órgão por “soltar muito”, noticiado na página eletrônica do Consultor Jurídico com o sugestivo título “Crime de garantismo”, em 23 de novembro de 2020. O Tribunal de Justiça de São Paulo foi, inclusive, denunciado no Conselho de Direitos Humanos da ONU por afastar juízes que supostamente decidiriam mais em favor da liberdade do que da prisão, sendo que Corcioli foi um dos alvos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-23/cnj-julga-nesta-terca-juiz-paulista-acusado-soltar. Acesso em: 06 jan. 2021.
  • 8
    Veja-se, nesse sentido: ACHUTTI, Daniel Silva. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil, 2016; PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática, 2009; TIVERON, Raquel. Justiça restaurativa: a construção de um novo paradigma de justiça criminal, 2017.
  • 9
    Segundo Pallamolla (2009) há oportunidades em que a JR desemboca em oportunidade para magoar o outro e em que todas as partes são “punidas”, no entanto, crer que isso não ocorreria seria ingenuidade; assim, pode-se esperar da justiça restaurativa que as pessoas que possuem essas características tornem-se menos punitivas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023

Histórico

  • Recebido
    18 Fev 2021
  • Aceito
    14 Out 2021
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