MAGALHÃES. Justino. O mural do tempo: manuais escolares em Portugal. Lisboa: Colibri/Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, 2011.
Há pelo menos dois séculos os manuais assumem um importante papel no mercado editorial e na formação das mentalidades coletivas. Apesar disso, só a partir da década de 1960 e, sobretudo, já nos anos 1980, foi observado um interesse crescente pela história dos livros e das edições escolares em diferentes países, como Estados Unidos, Alemanha, Japão e França1. Em Portugal, Justino Magalhães tem desenvolvido estudos referenciais sobre cultura escrita, sistemas escolares e instituições educativas, no centro dos quais ele situa o livro escolar.
Professor catedrático da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, Justino Magalhães é pesquisador da história da educação portuguesa, na linha de cultura escrita e modernidade educativa. Graduou-se em História, pela Universidade do Porto, e doutorou-se em Educação, pela Universidade de Minho. Realizou quatro pós-doutorados, os dois últimos na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França. Já publicou vinte e quatro livros, mais de quarenta capítulos em livros, além de dezenas de artigos e trabalhos em eventos científicos. O mural do tempo é a sua penúltima obra, publicada em novembro de 2011, pelas Edições Colibri e pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa.
O livro é estruturado em duas partes: a primeira, O livro escolar na base da cultura escolar, tem dois capítulos: História do manual escolar e Livro escolar e razão educativa. A segunda, Manuais escolares em Portugal (sécs. XVI-XX), com três capítulos: Manuais do ensino primário elementar e complementar, Uma biblioteconomia em expansão e O livro escolar no centro da convenção educativa. O livro se inicia com um pequeno texto intitulado O mural do tempo, no qual o autor apresenta sua proposta e algumas premissas de análise.
Para finalizar a obra, retoma sua tese e principais argumentos no texto Memória do futuro: conservar, regimentar, prevenir. Trata-se de um ensaio cuja origem foi a análise da regulamentação do livro escolar. Nele, o autor parte da seguinte questão: "como o sistema punitivo da censura aos materiais impressos evoluiu para um sistema preventivo e de vigilância desde a produção até a circulação e ao uso?" (p. 264). Sua conclusão deu origem à tese de que disciplinar e censurar o livro escolar significou a normalização da leitura, a sistematização do conhecimento e a disciplinarização do pensamento, enquanto meios reguladores da sociedade. Isto se comprovaria pelo conjunto e pela hierarquia de órgãos e regulamentos que estruturaram os campos da autoria, edição, circulação e utilização dos livros escolares em Portugal, a partir de meados do século 19.
Nesse intuito, Magalhães apresenta um inventário de livros escolares publicados e adotados no ensino primário - elementar e complementar - português, do século 16 até início da década de 1970. São 1.043 títulos organizados em duas categorias: os livros escolares integrados, ou manuais escolares, e os livros escolares em sentido amplo, dispostos por matéria. Praticamente toda a segunda parte da obra é dedicada ao arrolamento deste conjunto de livros, comentado e comparado em suas categorias. Também se expõe e se analisa as listagens de manuais aprovados e adotados, publicadas entre 1882 e 1910.
A escolha metodológica foi a da abordagem serial2. Em trabalho anterior (Magalhães, 2006), o autor afirmou a legitimidade da abordagem específica da seriação no tratamento desse tipo material didático por meio da qual se faria emergir o que ele chamou de uma "etnohistoriografia do manual escolar" (p. 36). Aliás, a consideração do caráter complementar entre a história dele e a história do livro, em geral, justificaria esta escolha: principal suporte da cultura escolar, os manuais escolares constituem um caso particular no quadro mais amplo da cultura escrita.
Justino aponta que o reconhecimento da especificidade do manual escolar em relação ao livro originou um campo científico, a chamada manualística. Ela se ocupa do inventário de suas diversas tipologias, da recomposição de sua gênese e da evolução em sua configuração e semântica, peculiar aos estudos de seriação, e da hermenêutica das práticas pedagógicas, didáticas e culturais subjacente ao livro escolar. Empenha-se, ainda, em reconstituir seus circuitos e mecanismos de circulação e as formas de utilização, tomando o livro escolar como fonte histórica que consagra uma ordem de leitura.
Mesmo constituindo um objeto epistêmico e o centro de um campo particular, os manuais têm sido cada vez mais utilizados no corpus documental de pesquisas a respeito dos métodos e práticas escolares, como evidenciado no caso da produção em torno da história das disciplinas escolares. Ainda que a história do livro escolar não seja confundida com a sua utilização como fonte historiográfica, o autor informa, em outro trabalho (Magalhães, 2008), que essas investigações têm se cruzado. Sobre isso, ele inclui uma breve, mas importante observação: mesmo portador de normalização didático-pedagógica e de regulação política, o manual permanece sendo foco de estudos que privilegiam seus estatutos ideológicos.
No Brasil, até o início da década de 1990, grande parte dos trabalhos acadêmicos que tematizavam o livro escolar tendia a abordá-lo a partir da denúncia de seu caráter ideológico, como mencionaram Munakata e Bittencourt3. Análises mais circunstanciadas só foram impulsionadas com a entrada de discussões em torno do currículo, das disciplinas escolares, da cultura escolar, da história cultural, da história do livro e da leitura, referenciadas em Andre Chervel, Alain Choppin, Yvor Goodson e Roger Chartier.4
Justino Magalhães articula o manual no processo de composição do saber escolar:
Como transformação dos conteúdos, teorias e conceitos de uma matriz científica pura e ampla em matéria escolar, os manuais representam, sobretudo, uma adaptação científica, cognitiva e curricular, incorporada em distintos registros materiais e textuais, e são também uma forma de acesso às práticas de ler e dar a ler, pelo que constituem um contributo fundamental, senão único, para a história cultural. No interior da cultura escolar e da cultura escrita, a história do manual permite uma aproximação à ordem do conhecimento e às práticas pedagógicas, bem como a projecção e a inferência de distintas formas de aculturação e sociabilidade. (p. 20)
É possível questionar a maneira pela qual esta definição do lugar do manual escolar no processo de composição das disciplinas escolares se relaciona com a tese clássica de Chervel (1990), no que diz respeito à autonomia desse gênero de saber em relação às chamadas ciências de referência. De todo modo, o que Justino deixa evidente é que investigar a história do livro escolar passa por indagar a sua gênese, sua natureza, suas simbolizações e significações mais profundas com relação ao saber e ao conhecimento: a abordagem serial na longa duração visa a perscrutar a origem e a evolução dessa relação entre saber e conhecimento.
Segundo o autor, o estudo da regulação sobre o livro escolar ressalta os diferentes aspectos da racionalidade educativa subjacente e determinada por ele, visto que em todas as fases de sua materialidade, configuração e uso esteve presente um quadro educativo. Integrado na cultura escrita, o livro escolar incorporou uma orientação ideológica e comportou uma pragmática voltada para o progresso e construção do coletivo nacional que se tornou objeto de regulamentação, controle e censura em diversos âmbitos, como o cultural, o curricular e o didático-pedagógico.
O ideal de nação esclarecida, ordeira e hierárquica - que a partir do século 18 dirigiu o Estado no controle pela ordem moral, cívica e ética - orientou uma ação pedagógica baseada na censura prévia, preventiva, e posterior, ostensiva. O autor salienta que além dos normativos gerais em torno da circulação de ideias e dos domínios autoral e editorial, foram criados órgãos de fiscalização e, ao mesmo tempo, constituídos mecanismos e sistemas de controle e de punição. O manual escolar esteve sujeito não apenas aos condicionamentos de qualquer texto escrito, mas a preceitos especificamente escolares: seja pela definição prévia dos planos de estudo e das matérias a incluir em cada segmento de ensino e em cada disciplina, geralmente acompanhado de orientações metodológicas, seja pela promoção de concursos e produção de listagens de livros recomendados ou simplesmente autorizados ou excluídos.
Do estudo desta regulamentação e das listas de livros aprovados e adotados na virada do século 19 para o 20, Justino concluiu que o campo do livro escolar, isto é, de todos os materiais impressos não necessariamente elaborados para o espaço escolar mas assim empregados, foi muito mais amplo que o do compêndio e do manual. A normalização pedagógica e didática e a organização do currículo em uma hierarquia de ciclos escolares, conferiu mais consistência ao manual, incluindo a sua nacionalização fortalecida pela uniformização do livro. Ainda assim, manteve-se a tradição da diversidade bibliográfica e, em virtude da massificação escolar, as políticas relativas ao livro e à leitura sofreram mudanças.
Houve uma crescente preocupação com o rigor textual, nos aspectos de conteúdo e forma, bem como uma intensificação do livro enquanto suporte do texto escrito e da razão escolar. Ele também cumpriu a função de testemunho e memória sobre as matérias e os conhecimentos programados e ensinados, bem como se conformou em uma ferramenta de consulta para além da sala de aula. As bibliotecas escolares surgiram como destino para os compêndios e impressos afins, servindo à comprovação pedagógica e à exemplificação e normalização didática.
Para Justino, o livro estruturou o pensamento pedagógico, a ação didática, o conceito de escola, o método de transmissão e a apropriação do conhecimento. Essa aproximação entre o mundo do livro e o mundo escolar balizou e intensificou a prevenção, a advertência e a negociação entre as diversas partes envolvidas. Assim, autores, editores e leitores permaneciam previamente informados sobre a natureza dos objetos culturais, ideológicos e educacionais legitimados e autorizados, da mesma maneira que conheciam os campos de liberdade e os níveis e mecanismos de punição. Por outro lado, censores e avaliadores também tendiam a justificar suas decisões de modo a prevenir reclamações, mas igualmente a incorporar uma função pedagógica a seus pareceres.
Dessa forma, a censura deu lugar a um regime de educabilidade, visto que o objeto cultural era investido de uma função educativa desde sua produção, como em sua recepção. A generalização e formalização desse processo implicaram que as matérias culturais se transformassem em currículos. Justino ainda aponta que, na medida em que foram correspondendo às necessidades, às prerrogativas e às circunstâncias históricas da cultura escolar e da pedagogia em geral, os diversos ramos do saber se estruturaram em disciplinas curriculares e a mesma operação envolveu o livro escolar.
Censurar e regularizar o livro, da configuração até a demarcação de matérias, passando pela orientação ideológica e as formas de uso e de acesso era, para o autor, assegurar uma normalização escolar e, consequentemente, prevenir e disciplinar os leitores. Em última instância, regular a sociedade. A liberdade de interpretação não é admitida, a priori e a posteriori, para o livro escolar. Suas variações de leitura são entendidas como incapacidade ou condicionalismo do leitor, ou ainda como atos perversos e ideológicos. É exatamente nesse aspecto que o manual escolar se distingue de outros livros, visto que apresenta orientações e ingerências explícitas em relação ao comportamento do leitor, instaurando uma ordem de leitura.
Finalmente, sendo memória da ação e da cultura escolar, o manual foi um instrumento do porvir. Comportou em si uma memória do futuro, prevenindo-o e normatizando-o, visto que foi um fomentador e organizador da mudança. As comissões de promoção de concursos, de aprovação e mesmo as comissões escolares de seleção desses livros agiam por antecipação. O livro foi adotado a partir do princípio de um amanhã desejado e projetado. Ele acolheu e deu forma a um ideário educativo; "reificou, deu configuração, ordem e significado à cultura escolar e fez da escolarização o caminho do futuro" (p. 265).
Referências
- BITTENCOURT, Circe. Livro didático e conhecimento histórico: uma história do saber escolar. Tese (doutorado em História Social). São Paulo: USP, 1993. 369f. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
- BITTENCOURT, Circe. Produção didática de história: trajetórias de pesquisa. Revista de História, São Paulo, n. 164, 2011, p. 487-516.
- CHERVEL, Andre. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, Porto Alegre, n. 2, 1990, p. 177-229.
- CHOPPIN, Alain. Prefácio. In: BITTENCOURT, Circe. Livro didático e saber escolar (1810-1910). Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 9-12.
- MAGALHÃES, Justino. O manual escolar como fonte historiográfica. In: COSTA, Jorge Vale; FELGUEI-RAS, Margarida; CORREIA, Luís Grosso (coord). Manuais escolares da biblioteca pública municipal do Porto.Porto: Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação / Faculdade de Letras, 2008, p. 11-15.
- MAGALHÃES, Justino. O manual escolar no quadro da história cultural: para uma historiografia do manual escolar em Portugal. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, n. 1, 2006, p. 5-14.
- MAGALHÃES, Justino. O mural do tempo: manuais escolares em Portugal. Lisboa: Colibri/Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, 2011.
- MUNAKATA, Kazumi. O livro didático: alguns temas de pesquisa. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 12, n. 3, 2012, p. 179-197.
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1 Ver Choppin (2008, p. 9-12).
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2 Justino faz referência aos trabalhos desenvolvidos por Alain Choppin na França, a partir da Rede Ema-nuelle, assim como o de Anne-Marie Chartier, e do espanhol Augustín Escolano Benito. Na América hispânica destaca a atuação da Rede Manes. No caso brasileiro, o autor cita o banco de dados de livros escolares do programa Livres, do Centro de Memória da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, o projeto Memória de Leitura, ligado ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, e o Livro didático e saber escolar 1810-1910, de Circe Bittencourt, publicado pela Editora Autêntica em 2008. Fornece, ainda, os endereços eletrônicos das bases e catálogos sobre manuais escolares destas e de outras iniciativas dentro do campo.
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3 Segundo Munakata (2012), esse tipo de abordagem caracterizou o livro escolar como "um simples conjunto de ideias e valores que deveriam ser condenados (ou aprovados) segundo certa ortodoxia" (p. 183). Em outro trabalho recente, Bittencourt (2011) destaca que isso foi uma "tendência nas demais áreas da educação, inspiradas nas concepções de Althusser e Establet sobre o papel da escola no mundo capitalista" (p. 487).
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4 Um trabalho pioneiro no Brasil, que Munakata utiliza como referência desta renovação temática e histo-riográfica no campo da História da Educação, foi a tese de doutorado de Circe Bittencourt (1993).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
May-Sep 2015
Histórico
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Recebido
20 Ago 2014 -
Aceito
25 Jan 2015