Open-access A ASSEMBLEIA PROVINCIAL DE MINAS GERAIS E O TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVIZADOS (1839-1845)

THE MINAS GERAIS PROVINCIAL ASSEMBLY AND THE ILLEGAL SLAVE TRADE (1839-1845)

Resumo

Nas primeiras décadas do século XIX, Minas Gerais possuía a maior população escravizada do Império do Brasil. A diversificação econômica e a desconcentração da propriedade de cativos ajudam a explicar esse quadro. Partindo da análise das atas das sessões da Assembleia Provincial mineira e de alguns periódicos, além do suporte bibliográfico, pretendemos: 1) apresentar brevemente o clássico debate historiográfico sobre a economia e a sociedade mineira; 2) discutir as conexões entre o projeto que pretendia criar uma escola de agricultura na capital da província, Ouro Preto, e o regresso conservador; 3) debater as representações enviadas pelos deputados à Assembleia Geral solicitando a revogação da lei antitráfico de 1831 e, finalmente, 4) defender que a discussão sobre a abolição do imposto da meia sisa pretendia escamotear o contrabando travestindo de legalidade o “infame comércio”. As representações e as manobras feitas na legislação para diminuir o impacto da lei de 1831 revelam a força da escravidão em Minas Gerais.

Palavras-chave: Assembleia provincial de Minas Gerais; Lei antitráfico de 1831; Escravidão; Tráfico ilegal; Representações

Abstract

In the first decades of the 19th century, Minas Gerais had the largest enslaved population in the Empire of Brazil. Economic diversification and the decentration of enslaved ownership help understand this picture. By analyzing the minutes of the sessions held at the Minas Gerais Provincial Assembly and the press, together with academic sources, this paper seeks to 1) briefly present the classical historiographical debate on Minas Gerais economy and society; 2) discuss the connections between the project intended to install an agricultural school in the capital, Ouro Preto, and the return to conservatism; 3) debate the representations sent by deputies to the General Assembly requesting the repeal of the anti-trafficking law of 1831; and 4) argue that the discussions on the abolition of the meia sisa tax intended to cover up smuggling by legalizing the ‘vile trade.’ The representations and legislative maneuvers done to mitigate the impact of the 1931 law reveal the strength of slavery in Minas Gerais.

Keywords: Minas Gerais provincial assembly; Anti-trafficking law of 1831; Slavery; Illegal traffic; Representations

1. Apresentação

Este artigo pretende discutir as estratégias utilizadas pelos deputados reunidos na Assembleia Provincial mineira para assegurar a continuidade do tráfico ilegal de africanos escravizados. A força da escravidão em Minas Gerais, província que mais importou cativos no século XIX, pode ser explicada pela própria característica da economia mineira, uma economia bastante diversificada na qual predominava um padrão de desconcentração da propriedade mancípia. Para além dos termos econômicos, não se deve desconsiderar que existia também um certo ethos aristocrático que balizava a defesa do tráfico como condição essencial para a reprodução da escravidão em Minas. Em outras palavras, essa economia de base escravista engendrou uma elite dominante que pensava o mundo a partir de valores escravistas.

Partindo das considerações citadas acima, optamos por dividir este artigo em quatro partes distintas, porém articuladas. A primeira delas é um esforço de síntese de um debate historiográfico clássico sobre a economia e a sociedade mineira cujo cerne são as teses de Roberto Martins e Robert Slenes. Essa discussão nos oferece elementos importantes para compreendermos os motivos pelos quais os deputados provinciais reivindicaram junto à Assembleia Geral a revogação da lei antitráfico de 1831 e, ao não lograrem êxito, buscaram meios legais de dar continuidade ao tráfico ilegal.

A segunda seção discute a criação de uma escola de agricultura no Jardim Botânico da cidade de Ouro Preto, capital da província de Minas Gerais. A proposta de compra de escravos para o estabelecimento gerou um caloroso debate na Assembleia mineira, revelando a força da escravidão na província. A discussão vinculou, sob a tópica da necessidade, tráfico e escravidão, sem os quais a economia mineira, uma economia escravista, estaria arruinada. Coube a Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos, irmão de Bernardo Pereira de Vasconcelos, a defesa mais enérgica do uso da mão de obra africana na agricultura e na mineração. Os irmãos Vasconcelos foram os baluartes do regresso, sistema político comprometido com a defesa da centralização política, da escravidão e do tráfico. É por esse motivo que este texto também trata, em linhas gerais, do regresso conservador.

Na terceira e quarta seções discutimos, de fato, o cerne do artigo: as representações enviadas à Assembleia Geral. Esses documentos deixaram evidentes duas questões: os argumentos favoráveis à revogação da lei de 1831 e a inclinação ao contrabando. Por fim, a última parte deste texto é dedicada à análise de manobras legislativas dos deputados. Uma vez que não conseguiram revogar a lei antitráfico encontraram meios legais de burlá-la, é o que nos mostra, por exemplo, a proposta de abolição do imposto da meia sisa. Extinguindo-o, estava assegurada a posse ilegal de africanos escravizados. A Assembleia Provincial de Minas, assim como o próprio Estado brasileiro, foi conivente com o tráfico ilegal de africanos, conforme veremos neste artigo.

2. A historiografia sobre Minas, a escravidão e o tráfico: breves considerações

Na década de 1980, a discussão sobre a sociedade e a economia de Minas Gerais no século XIX foi redefinida. Roberto Martins foi decisivo nesse debate ao refutar a tese da crise econômica mineira após a decadência da produção aurífera3. O trabalho de Martins revelou, então, que Minas não era apenas o ouro, mas também a agricultura e a pecuária e, justamente por isso, possuía unidades agrícolas diversificadas e uma economia dinâmica. Constatou, ainda, que a mão de obra escrava era destinada à produção para subsistência, dissociando assim escravidão de plantation. Defendia, por fim, que em Minas Gerais as atividades produtivas não eram orientadas para o mercado externo e que, sobretudo, não se inseria no comércio. Nesse ponto específico Roberto Martins discordou de Alcir Lenharo4, para este existia uma relação complexa entre a produção de subsistência e a grande lavoura exportadora, constatando, ainda, o caráter mercantil da produção de subsistência no sul de Minas no século XIX.

A tese de Martins ajudou a suplantar de vez antigas interpretações sobre a economia mineira oitocentista, apontando, ainda, a necessidade de estudar a relação do trabalho escravo em outra configuração econômica cuja produção não visava à exportação. Minas Gerais, província que importou muitos cativos no século XIX (em 1870 eles eram, aproximadamente, 370 mil) os teria destinando para o setor de subsistência e, ainda segundo o autor, a população escrava em Minas era fruto unicamente do tráfico. Para Martins, o que explicaria o apego à escravidão em Minas seria a abundância de terras. Em sua interpretação, não houve lugar para a reprodução natural. O debate que daí adveio contribuiu de forma decisiva para a compreensão da economia mineira do século XIX. Robert Slenes5, apesar de concordar que se tratava de uma economia dinâmica, criticou o cerne da tese de Martins:

como explicar que uma economia que possui vínculos estritamente locais possa participar de um mercado internacional de escravos? Ao que respondeu, sem pestanejar: a produção em Minas não era destinada unicamente ao mercado externo, no entanto, ela abasteceu áreas que produziam para ele. Ainda acrescentou que a “força da escravidão” em Minas podia ser explicada pelo baixo custo do escravo (até 1850) aliado à dificuldade e custos da importação de alimentos, o que teria dificultado a formação de um mercado de trabalho livre. Criticou, assim, a tese central de Martins, para quem a economia mineira possuía um baixo grau de mercantilização, afinal a ideia de uma economia pouco afeita ao comércio não explica a presença do grande plantel escravista que Minas Gerais detinha. Não era, por tudo isso, uma economia unicamente de subsistência.

Os estudos de João Fragoso6 confirmaram algumas teses de Martins. De fato, Minas Gerais importou grande parte dos escravos despachados da Corte. Entre 1822 e 1833, a província teria absorvido 48,4%, enquanto áreas cafeeiras do Vale do Paraíba e Norte Fluminense juntas detinham 36,5% do total de cativos. Para Fragoso, o porto do Rio de Janeiro e a Província de Minas Gerais teriam continuado a experimentar a entrada maciça de africanos ao longo das décadas de 30 e 40. Esses dados ajudam a corroborar a interpretação de Douglas Libby, para quem havia uma percentagem considerável de africanos em Minas no século XIX7.

Segundo Libby, em 1831, ano em que entrou em vigor a lei que tornava o tráfico ilegal, os africanos eram maioria em algumas regiões de Minas Gerais. Apesar disso, havia se constituído um núcleo formado por escravos crioulos capaz de contribuir para o crescimento da população mancípia. Libby acrescentou um outro ponto ao debate sobre a escravidão em Minas: a reprodução natural que esteve ausente nas teses de Martins. Assim, quando o comércio de africanos foi definitivamente extinto em 1850, a população escrava tornara-se progressivamente capaz de reproduzir-se naturalmente.

Conclusão semelhante chegou Bergad8, para quem, ao longo do oitocentos, Minas, como o Sul dos Estados Unidos, teria testemunhado o aumento de seu contingente mancípio quase que exclusivamente via reprodução natural. Segundo Bergad, o crescimento da população escrava de Minas Gerais foi acompanhado de um processo contínuo e estável de “crioulização/nacionalização”. Se para Martins o aumento da população escrava em Minas se deu em razão do tráfico, para Bergad teria sido via reprodução natural. Coube a Libby o meio termo desse debate. Para ele, tráfico e reprodução não são excludentes e ambos, em ritmos diferentes, foram importantes para o aumento da população escrava em Minas. Além disso, não há um padrão para toda a província, regiões de alto desenvolvimento econômico como a Zona da Mata e Diamantina eram dependentes do tráfico de escravos. Mesmo assim, segundo Libby, depois de 1830 o tráfico internacional para Minas foi reduzido drasticamente. Não é essa a realidade, contudo, que nos mostram os dados do tráfico ilegal e a ação dos deputados provinciais mineiros.

Se até 1835 o tráfico de africanos para o Império do Brasil sofreu baixas consideráveis, a partir de 1836 assistiu-se ao maior contrabando de escravizados já visto na história do país. Minas Gerais foi o destino de muitos deles. O tráfico internacional era tão essencial para os mineiros que em nome dele deputados reunidos na Assembleia Provincial, sobretudo a partir de 1839, defenderam a revogação da lei de 1831. Interessava a eles a manutenção a qualquer custo da economia escravista, fosse ela ligada ao abastecimento ou à grande lavoura, deixando claro, portanto, que a força da escravidão em Minas passava pela defesa do tráfico de africanos, o que reforça as teses de Slenes e as conecta às interpretações de Lenharo, autor de “As tropas da moderação”: de fato, existia uma relação complexa entre a produção de subsistência e a grande lavoura exportadora.

Mas não era só isso. Em Minas Gerais predominava a desconcentração da propriedade cativa, o que significa que a escravidão estava disseminada por toda a província. Assim, a dependência do tráfico era generalizada: dele dependiam pequenos, médios e grandes proprietários. É o que nos mostra, por exemplo, Carlos Malaquias9. Para esse autor, a dependência do tráfico era ainda mais sensível entre os pequenos (artesãos, pessoas envolvidas com a mineração, com a produção de fumo, algodão, aqueles que alugavam cativos etc. ) e os de maiores fortunas, sem dúvida, ligados ao abastecimento de mercados distantes, o que, definitivamente, suplanta as teses de uma economia unicamente de subsistência, autossuficiente. Polêmicas historiográficas à parte, é importante considerar que se trata de economias escravistas que participaram do tráfico e, portanto, cabia também aos deputados garantir essa economia que, como já dito, podia estar associada ao abastecimento ou vinculada ao mercado internacional. Nossa hipótese é de que foi para garantir essa economia escravista que os deputados mineiros pediram a revogação da lei antitráfico de 1831.

3. O Jardim Botânico, a escravidão e o tráfico

Em 1840, os deputados reunidos para a terceira legislatura (1840-1841) da Assembleia Provincial de Minas Gerais discutiram um projeto que previa a criação de uma escola de agricultura no Jardim Botânico de Ouro Preto, capital da província10. A proposta não era nova e, desde pelo menos 1838, havia aparecido no relatório do presidente de província José Cesário de Miranda Ribeiro, para este seria “um dos principais benefícios feitos aos fazendeiros de Minas por seus dignos representantes”11. Segundo Francisco Iglésias, a escola tinha o objetivo de desenvolver o melhor método de plantação, cultura e fabrico do chá12. Mas não apenas. Há registros, segundo Mirian Lott13, de que o Jardim Botânico também criou abelhas europeias para a produção de mel e cera, produtos que alcançaram altos preços no mercado. A autora ainda destacou a criação do bicho-da-seda, que levou a uma larga plantação de amoreiras no local14.

Se a necessidade de criar uma escola de agricultura era consenso entre os deputados, o sexto artigo, do referido projeto, dividiu opiniões. Nele estava previsto que “logo que o estado dos cofres provinciais o permita, irá comprando para o estabelecimento alguns escravos, segundo as exigências do serviço, mas nunca excederão o número de vinte”15. O debate que esse artigo suscitou é revelador da força da escravidão e do apelo ao tráfico de africanos escravizados em Minas Gerais. O médico e deputado José Agostinho Vieira de Matos foi o primeiro a impugnar o artigo porque ele se opunha “ao pensamento dos homens mais ilustrados, que se pronunciam contra o emprego de braços escravos como menos produtivo do que o dos braços livres”16. Além disso, continuava o deputado, “tendo acabado o comércio livre da escravatura parece que o legislador não deve, por uma disposição legislativa, dar incentivo ao contrabando e, bem ao contrário, deve ser ele o primeiro a dar o exemplo de respeitador da lei”, promovendo o emprego de braços livres nos estabelecimentos públicos. Vieira de Matos propôs, então, uma emenda: “em lugar de ‘irá comprando’ diga ‘irá engajando trabalhadores livres e idôneos, o mais como está no artigo’”17.

O posicionamento do deputado Vieira de Matos escancarou a política do contrabando negreiro realizada pelo Estado brasileiro. Mais do que fomentar o trabalho livre, para o qual chineses foram considerados uma alternativa possível18, os legisladores não deveriam favorecer o contrabando. Discordou dele o deputado e magistrado Luiz Antônio Barbosa, advertindo: “a transferência dos escravos de uns para outros possuidores não está proibida, o que é proibido é que pessoas que não são escravas sofram cativeiro”19. Afirmava, portanto, que não se tratava da compra de africanos. Refutando as alegações de imoralidade perpetradas por Vieira, Barbosa asseverou “enquanto não se considerar ser imoralidade a existência de escravos no Brasil, também não se pode ser julgado imoralidade o autorizar-se a sua compra para um estabelecimento público”20.

Para Barbosa, não havia dúvida de que as “circunstâncias do país” ainda exigiam a manutenção do trabalho escravo, o que podia ser “comprovado pelo fato de se pedir a revogação da lei que proibiu o tráfico da escravatura”. Se, de fato, o artigo do projeto não fazia alusão aos africanos, na prática todos pareciam saber do comércio ilegal, afinal, a referência utilizada pelo deputado foi justamente a lei antitráfico de 1831, legislação que incidia diretamente sobre o tráfico atlântico de cativos, e não sobre o tráfico interno. Barbosa não parecia ignorar que a designação “escravos” poderia abarcar africanos escravizados ilegalmente. Para encerrar o assunto, Barbosa ponderou: “isto [a compra de escravos], porém, só terá lugar quando o serviço não possa ser convenientemente feito por homens livres”21.

Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos foi o deputado mais enfático no debate. Para ele, o artigo devia passar tal qual havia sido proposto. Admitia com franqueza

[…] que sem escravos o Brasil não pode prosperar; e que a agricultura se tem muito arruinado por falta de escravos. As representações dirigidas à Assembleia Geral por todas as províncias do Brasil é disso uma prova incontestável, uma demonstração conveniente de que o emprego de braços livres não é proveitoso no emprego da agricultura […].22

Utilizando um argumento semelhante ao de Barbosa, Francisco Diogo associou o tráfico à escravidão, parecendo indicar que a lei de 1831 poderia ser o começo do seu fim e a consequente ruína da agricultura. O regresso não poderia ter melhor representante em Minas Gerais. Conivente com o tráfico e defensor da escravidão, Francisco Diogo, irmão de Bernardo Pereira de Vasconcelos, foi a voz do Centro na província.

O regresso foi arquitetado por Bernardo Pereira de Vasconcelos e seu objetivo era barrar os excessos de um liberalismo entendido como radical, propondo uma política da prudência corporificada na centralização da política e da justiça. Para ele, era preciso interromper a “revolução” iniciada com o 7 de abril; logo o regresso teria sido uma reação à revolução. Mas nem por isso pode ser caracterizado como contrarrevolucionário no sentido miguelista ou carlista do termo, como já discutido por Lynch ao estudar a utilização do termo na Câmara dos Deputados23. No Brasil, o “sistema” não ousou propor a supressão da Constituição e a extinção das Assembleias Provinciais, para ficarmos em apenas dois exemplos. Assim, apesar de conservador, o regresso não foi reacionário. Nesse sentido, não pode ser caracterizado como contrarrevolucionário, sendo mais apropriada a designação antirrevolucionário, para usarmos a distinção estabelecida por Ivana Frasquet24. Afinal, não se tratava de uma política avessa à mudança, típica da contrarrevolução, mas uma política defensora de mudanças lentas, realizadas por meios menos radicais e, sobretudo, capaz de manter a ordem. Bernardo Pereira de Vasconcelos, buscando se defender das acusações que lhe foram feitas por questionar o Ato Adicional, afirmou:

[…] a diferença que há entre o ministro da justiça de hoje e o deputado em outro tempo é que a experiência, a observação de alguns atos para que ele contribuiu, algumas ideias mais que com os estudos tem granjeado, o tem convencido que tem que proceder como aconselhava Washington, autor sem nota - com pé firme, mas lento […]25

As pesquisas sobre o regresso poderiam ser adensadas se se observasse os usos que foram feitos dos termos regresso/regressismo/regressista em outras instituições para além da Câmara dos Deputados26. Na Assembleia de Minas, por exemplo, durante 1838, os deputados opositores ao governo podiam eles próprios se assumirem regressistas, bem como acusar outros de regressismo. Nesses termos, a discussão estava para além de uma formulação pautada em uma política do regresso, e sim caracterizada pela defesa da centralização, do tráfico e da escravidão, tão bem discutida por Tâmis Parron27.

Alianças conjunturais e posicionamentos circunstanciais podiam descrever formas distintas de adesão ao regresso. Não foram raros os momentos em que aliados políticos se acusaram de regressistas. Em alguns momentos, podia-se assumir essa alcunha, sempre reforçando que seu regresso era o verdadeiro progresso. Em termos gerais, na Assembleia mineira, foi acusado de regressista todo aquele que questionasse as atribuições da instituição para legislar sobre cargos públicos e empregados provinciais e, sobretudo, aquele que defendeu a revisão do Ato Adicional28. Nesse sentido, Francisco Diogo, sem dúvida, “marchava no regresso”, como comumente se referiam os deputados.

É importante ponderar que, se por um lado, houve consenso em torno do regresso pela abertura do tráfico, não podemos desconsiderar que algumas lideranças regressistas também a questionaram. Foi o caso de Bernardo Jacinto da Veiga. Em relatório enviado à Assembleia Provincial, na abertura de sua sessão, em 1839, Veiga defendeu a necessidade de se enfrentar o tráfico ilícito de africanos. Dizia saber que, para os fazendeiros e “mineiros” (possivelmente mineradores) da província, a utilização do trabalho cativo, “por força de um longo hábito”, era um fato quase inquestionável. Mesmo assim, Jacinto da Veiga apontou outras possibilidades, segundo ele, já praticadas por países que estavam “fazendo rápidos progressos na carreira na civilização”, quais sejam: a importação de braços livres, a introdução de novas máquinas e o incentivo à reprodução interna da escravidão por meio dos casamentos, do melhor tratamento dos recém-nascidos etc.29 Esta não parecia ser, contudo, uma opinião compartilhada por Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos.

Voltando ao projeto de criação da escola de agricultura, ao defender que o Brasil não podia prosperar sem o braço escravo, Francisco Diogo justificava a compra de escravizados ilegalmente comercializados. Não era só a defesa da escravidão, era defendê-la com o máximo de lucro possível, afinal o investimento na reprodução natural não geraria retorno a curto prazo. Era pelo mesmo argumento que Francisco Diogo defendia que homens livres não eram proveitosos na agricultura. Resumindo, era menos custoso investir no tráfico ilegal, ainda mais se se podia contar com “disposições legislativas” para travesti-lo de legalidade30.

A despeito da consideração importante de Roquinaldo Ferreira31, para quem o aumento dos números do tráfico ilegal de africanos, a partir de 1837, não foi resultado da política do regresso, mas consequência da fraqueza institucional do Estado que não pode realizar medidas efetivas no seu combate porque precisou desviar muitos de seus navios de guerra para pacificar as províncias, rebeladas de norte ao sul, é inegável a conivência das instituições políticas do Estado brasileiro com o contrabando. A discussão suscitada pelo projeto que pretendia criar a escola de agricultura em Ouro Preto é reveladora não só da força da escravidão em Minas, mas também demonstra o incentivo de alguns deputados provinciais ao tráfico ilegal de escravizados. Nas páginas que se seguem pretendemos discutir as alternativas encontradas pelos deputados para contornar a lei de 1831.

4. “Os justos clamores do povo mineiro”: representando contra a lei 7 de novembro de 1831

A partir de 1839 parece ter ficado claro com quais setores econômicos da sociedade mineira os deputados provinciais se comprometeram. Sem desconsiderar que o fortalecimento da escravidão em Minas também pode estar relacionado à reprodução de um ethos aristocrático, a economia foi o argumento decisivo para a reabertura do tráfico ilegal de escravizados, afinal nada era mais lucrativo, em uma sociedade escravista, do que a compra de cativos. Em nome da prosperidade da agricultura e da mineração, fazendeiros, comerciantes e proprietários rurais pressionaram as instituições do Estado, a exemplo da Assembleia mineira, para revogar a lei antitráfico de 1831. Não podemos nos esquecer que Minas se destacava no comércio de abastecimento interno. As representações encaminhadas para a Assembleia Geral foram o resultado imediato dessa pressão. Mas, se de um lado, havia pressão interna pela revogação da lei, do outro, havia também pressão externa pela sua manutenção.

A Inglaterra, por meio de acordos internacionais, pressionou, primeiro Portugal e depois o Brasil pelo fim do tráfico de africanos. Em 1810, determinou que os portugueses não podiam mais se engajar no tráfico em territórios africanos fora de seu controle; em 1815 ficou proibido o comércio de escravizados ao norte da linha do Equador; em 1826, o Brasil acordou, em reconhecimento de sua Independência, o compromisso de abolir o tráfico nos próximos três anos. A diplomacia inglesa foi tão decisiva que em 1831 o parlamento brasileiro elaborou a Lei 7 de Novembro de 1831, que determinou o fim do tráfico atlântico de escravos32.

A referida lei determinava, em seu primeiro artigo, que todos os escravos que entrassem no país seriam declarados livres (e não libertos). O terceiro artigo afirmava que cabia repressão a mestres e contramestres das embarcações, seus financiadores e ajudantes, além dos compradores. Os infratores seriam multados e seus delatores gratificados. Ao prever punição para todos os envolvidos no tráfico, a lei foi duramente criticada. Na Assembleia Provincial de Minas, os deputados afirmavam que a compra de cativos não podia ser feita sem uma “horrorosa inquisição”. Não obstante à proibição legal e à diminuição dos números do tráfico na primeira metade da década de 1830, o comércio negreiro clandestino assumiu grandes proporções impulsionado pela demanda por trabalhadores para as fazendas de café. Mas não apenas para elas; Minas Gerais também foi o destino de muitos deles.

A entrada de cativos ilegais em Minas Gerais foi justificada pelos deputados provinciais pela necessidade dos “braços africanos” na agricultura e na mineração, sem os quais a economia mineira estaria arruinada. Em Minas, como vimos, a economia não era unicamente voltada para o mercado externo, mas possuía forte ligação com áreas que exportavam, a exemplo da província do Rio de Janeiro. Acreditamos que o maior dinamismo da economia de abastecimento causado pela cafeicultura nos ajuda a explicar as representações dos deputados mineiros pela revogação da lei de 1831. Ajuda a explicar também porque muitos liberais, a despeito da política inicial de combate ao tráfico, aderiram ao regresso a partir de 1837. Nesse ano, segundo Chalhoub (2012), quase 57 mil africanos entraram no país ilegalmente.

Antes de discutirmos as representações pela revogação da lei, é preciso nos determos em um ponto importante. Se os regressistas, segundo Tâmis Parron33, consolidaram a política da escravidão no Brasil ao construir alianças políticas e sociais em benefício dos interesses das classes senhoriais e do tráfico de escravos, os liberais, hegemônicos até por volta de 1836 usaram meios reais para coibir o tráfico ilegal34. Logo, a velha máxima, já convertida em dito popular, de que não há nada mais conservador do que um liberal no poder, precisa ser matizada. O esforço dos liberais não se circunscreveu ao âmbito parlamentar, a imprensa também foi um importante meio de divulgação de sua política antitráfico, como estudado por Alain Youssef35.

O liberal moderado Evaristo da Veiga, no Rio de Janeiro, fez campanha contra o tráfico nas páginas de seu Aurora Fluminense indicando que “a opinião pública” também era chave importante no combate ao tráfico de africanos. Montezuma, no Ministério da Justiça, Veiga, na Imprensa e Feijó, no Governo: os moderados concertavam ações para combater o tráfico de cativos. Mesmo em 1837, marco que Tâmis Parron estabeleceu como início da política de contrabando do regresso, foram apreendidos 9 navios negreiros, em 45 dias. Não eram, portanto, uníssonas as vozes pró-tráfico. No entanto, com a pressão cada vez mais forte da Inglaterra para colocar termo ao tráfico, e a despeito das revoltas escravas, os liberais uniram-se aos conservadores pela manutenção do comércio de africanos, muito possivelmente pressionados pelos setores econômicos daquela sociedade.

A abertura do comércio clandestino de escravizados foi impulsionada pelos mineiros Bernardo Pereira de Vasconcelos e Honório Hermeto Carneiro Leão, juntamente com seus aliados fluminenses Joaquim José Rodrigues Torres e Paulino José Soares de Souza. Em 1837, Vasconcelos assumiu o Ministério da Justiça e, segundo Tâmis Parron, pôde colocar em prática sua política do contrabando, afrouxando, por exemplo, a repressão exercida pela Marinha Imperial até aquele momento, também usou a imprensa para divulgar as novas medidas, passos que, como bem apontou Alain Youssef, eram fundamentais para a realização da política do tráfico internacional de cativos.

Em Minas Gerais foi a pressão dos setores escravistas, pequenos, médios e grandes proprietários de cativos, fossem eles ligados ao mercado de subsistência ou de abastecimento de mercados distantes - aliado à mentalidade mercantil-escravista (que também associa a defesa do tráfico à manutenção de um ethos aristocrático), da qual compartilhavam muitos deputados, desejosos de ganhos imediatos, que o incentivo à reprodução natural não lhes daria - que abriu a campanha pela revogação da lei antitráfico de 1831 na Assembleia Provincial, precisamente, em 1839. Nesse ano, legislavam uma maioria esmagadora de liberais, muitos dos quais articuladores do Ato Adicional. Convencidos dos “justos clamores do povo mineiro”36, enviaram para a Assembleia Geral um pedido de revogação da lei antitráfico de 1831. Na prática, a petição era uma carta de apoio ao contrabando e incentivou seu pleno funcionamento. Assinaram-na o magistrado Pedro de Alcântara Cerqueira Leite, o advogado Bernardino José de Queiroga e o negociante Pedro Dias de Carvalho, todos eles ligados ao futuro Partido Liberal.

A defesa do interesse da classe proprietária ligada, sobretudo, ao comércio parecia estar acima da “causa dos partidos” como muitas vezes repetiram os deputados mineiros. Dizendo-se “órgão fiel das justas reclamações dos seus comprovincianos”, a Assembleia mineira registrou a necessidade que a província ainda tinha da força de trabalho dos africanos, uma vez que “a mineração e a agricultura do seu fertilíssimo solo carecido de suficiente população muito retrogradará do estado em que se acha, até definhar inteiramente, se por ventura continuar a faltar o auxílio dos braços africanos”37. A esse “inconveniente” somava-se outro:

[…] a crítica situação em que se acham colocados aqueles que (sic) em conservar e aumentar a sua fortuna compraram africanos importados depois da promulgação da dita lei, supondo-os em boa-fé escravos desses a quem a imoralidade levou a um tráfico ilícito, a despeito da proibição legal, vendo-a hoje vacilante e ameaçada de completa ruína, se acaso não levardes em consideração os sérios resultados que deverão seguir-se, se continuarem a subsistir as disposições da mesma Lei tais quais agora existem.38

Em nome daqueles que haviam comprado escravos de outros (esses, sim, para os peticionários, implicados no ato ilegal e imoral), cujas fortunas estavam ameaçadas, os deputados solicitavam mudanças na lei. Para uma província como Minas Gerais, uma das que mais importou escravos no oitocentos e cujo setor mais dinâmico da economia era o escravista, a legislação antitráfico feria de morte aquilo que a sustentava economicamente: a mão de obra cativa. Feria, ainda, o padrão aristocrático de uma pequena parcela da população acostumada a viver do trabalho alheio, para quem manter essa estrutura era condição de existência. Os mineiros de “boa fé”, representados na Assembleia, não desejando participar do “infame comércio” reivindicaram a revogação da lei. Utilizavam a tópica da moralidade para praticarem livremente a ilegalidade. Afinal, diziam eles, sem a força de trabalho dos africanos e africanas a economia mineira estaria arruinada.

Em 1840, a Assembleia de Minas Gerais representou novamente o Poder Central. Se o conteúdo da representação não apresentou novidades em relação à solicitação feita no ano anterior, a legislatura era completamente distinta. Ocupavam as cadeiras do legislativo provincial uma maioria de políticos engajados na causa do regresso. Reforçando a necessidade dos braços africanos para a agricultura e para a mineração, a representação insistia que a lei não poderia ser executada na província “porque encontrando decidida resistência nos costumes e nos interesses de todas as classes da população a força da autoridade é pouca para fazê-la respeitar”39. O Brasil havia se tornando o maior produtor de café do mundo, com uma safra anual superior a 70 mil toneladas métricas, como nos mostram Marquese e Tomich40. A Assembleia mineira tinha motivos para representar a Corte. A crescente necessidade do trabalho dos africanos, continuava o documento, “convida mais os cidadãos a um tráfico que é criminoso, porque uma Lei o proíbe, e cada vez a experiência lhe faz melhor conhecer a impossibilidade de demorar-se a torrente do mal e o perigo de ser executada a Lei que o causa, se fosse possível sua execução”41.

O texto da representação é bastante curioso, pois, ao mesmo tempo que tem legitimidade porque parte da iniciativa de uma instituição representativa, também a deslegitima, em certa medida, ao evocar o costume em detrimento da lei. Para aqueles que viviam da exploração do trabalho dos africanos a lei era inexequível. Assim, o melhor era sua revogação, assegurando a manutenção dos costumes e o respeito às leis. Enquanto ela subsistisse, subsistiria também “o infame comércio” (infame, diga-se, porque ilegal). A prática de contrabando que adveio daí não encontrou resistência para expandir. Foi mesmo incentivada, afinal a prática legislativa esbarrava nos direitos julgados adquiridos, amparados no costume, na experiência de escravizar africanos. Enquanto as representações não encontravam acolhida no seio da Assembleia Geral, os deputados mineiros criaram alternativas para lidar com a lei de 1831 de outra maneira, descumprindo-a.

5. A meia sisa e o contrabando

Na representação que a Assembleia mineira enviou para a Assembleia Geral do Império em 1840, tratada acima, os deputados solicitaram a revogação da lei antitráfico de 1831 para que as fortunas dos cidadãos fossem asseguradas e que “não sirva mais de estorvo ao desenvolvimento da grandeza de que é capaz a rica província de Minas Gerais”42. No entanto, não tiveram suas súplicas atendidas, e a pressão inglesa era cada vez mais intensa. Encontraram, então, no poder Legislativo que lhes cabia os meios para amenizar o impacto da Lei. Foi o que deixou entrever a discussão do orçamento provincial, em 1843. Considerando o imposto da meia sisa43, 5% sobre a compra e a venda de escravos, “qualquer que fosse sua nacionalidade”, muito “gravoso à agricultura” e que “pouco produzia pela imoralidade dos seus compradores”, a Assembleia provincial aprovou, sem discussão (ao menos não a registrou o taquígrafo), sua abolição44.

O Ato adicional deu às Assembleias o poder de legislar sobre as imposições internas e, por consequência, sobre a meia sisa dos escravizados. Com base nessa determinação, os legisladores mineiros encontraram subterfúgios que, sem enfrentar diretamente o Poder Central, deixaram a cargo da província o encaminhamento da questão. Assim, a abolição do dito imposto sugeriu maquinações pró-escravistas, uma vez que, não taxando a compra e a venda dos escravos, “qualquer que fosse sua nacionalidade” (o que incluía os africanos), não haveria registros de posse. Assim, frente à ausência de posicionamento da Assembleia Geral do Império, os deputados mineiros encontraram subterfúgios na lei do orçamento que lhes permitiram facilitar o acesso aos “braços africanos” ilegais. Estava, pois, traçada a cumplicidade entre traficantes, senhores de escravos, comerciantes e poderes públicos em torno do contrabando.

Por razões que a documentação não nos dá a conhecer, o imposto da meia sisa foi restabelecido em 1844. Sem registrar as discussões que teriam levado ao seu restabelecimento, o taquígrafo apenas mencionou uma declaração de votos contrária à medida:

Declaramos que votamos contra o imposto da meia sisa sobre compra e venda dos escravos, abolido no ano passado, e que esta assembleia neste ano reclama por ser nossa profunda convicção que a restauração dessa imposição, além de vexatória, pois que sua cobrança não pode ser feita sem uma horrível inquisição, é eminentemente prejudicial aos interesses da agricultura e indústria da província, que tão oneradas como estão com os numerosos impostos já aprovados recebem um golpe mortal com a restauração da dita meia sisa.45

Assinado por Francisco de Paula Santos, Jacinto José de Almeida, Marçal José dos Santos e José Inácio Nogueira Penido, o documento frisava que o retorno do imposto vinha a somar entre tantos outros já existentes, onerando ainda mais a agricultura e a indústria. Além disso, votavam contra o retorno do imposto da meia sisa porque ele não podia ser cobrado sem uma “horrível inquisição”. Sem desconsiderar o peso dos tributos46, a declaração de votos confirma nossa hipótese de que a abolição do imposto era um meio de amenizar o impacto da lei de 1831. Não era somente mais um imposto, mas sim incidia sobre a venda e a compra de cativos. Uma breve análise do perfil do deputado Francisco de Paula Santos pode nos oferecer indícios importantes para pensarmos na sua defesa da abolição do imposto. Um perfil bastante representativo, aliás.

Francisco de Paula Santos foi um dos deputados que mais energicamente defendeu a abolição do imposto da meia sisa. Foi também o deputado que criticou abertamente os tratados antitráficos feitos com a Inglaterra, sobretudo o de 1826:

Quem ignora que esse tratado de cessação à introdução de braços africanos foi a sentença de morte que astutos negociantes lavraram contra a prosperidade de nossa agricultura, e que inexpertos ministros brasileiros assinaram? Quem ignora que a honra da bandeira nacional geme nos mares sob a terrível inquisição marítima alcunhada de - visita - que com tanto rigor exerce o estrangeiro e que a primeira necessidade pública é nos libertarmos dessa opressão?47

Proprietário de escravos e envolvido no setor mercantil, o deputado Paula Santos tinha motivos pessoais para condenar o tratado que levou à lei de 7 de Novembro de 1831. Paula Santos possuía fortes vínculos comerciais com o Rio de Janeiro, onde tinha lojas. Além disso, concedia empréstimos a fazendeiros e políticos. Importou da Corte para Ouro Preto escravos e fazendas secas, exportava gêneros como salitre, café, além de atuar no comércio de ouro. Segundo Leandro Braga48, ele foi, ainda, um dos principais fornecedores de crédito em Ouro Preto. Apesar da diversidade de transações, Leandro Braga afirmou que elas tinham algo em comum: a constância na utilização de escravos como garantia de pagamento ou simplesmente hipoteca.

Seus negócios também envolviam mineração, crédito e escravos. Quando faleceu, em 1880, Paula Santos tinha 414 escravos alugados para a Saint John El Rey Mining Company, num valor estimado em 341:136$000 (trezentos e quarenta e um contos e cento e trinta e seis mil réis). Paulo Santos é um bom representante da mentalidade mercantil escravista citada acima. Possivelmente, sabia que a reprodução era uma alternativa para sustentar o trabalho escravo. Mas os custos envolvidos dariam retorno a médio e longo prazo. Importar africanos dava resultados imediatos.

Paula Santos, portanto, tinha razões pessoais para fazer da tribuna um espaço onde poderia ampliar seus negócios (além de representar os interesses de outros). E os ampliava de duas maneiras. A primeira era simbólica: visibilidade e reconhecimento, inerentes a quem exerce um cargo público. A segunda, prática: pela atribuição que lhe fora conferida para legislar. Como deputado, portanto, ele tinha o poder, que lhe fora assegurado legitimamente pelo voto, para agir diretamente sobre o destino de questões fundamentais naquela sociedade, como era o caso do tráfico. Aliou a política à defesa do tráfico revelando, ainda, o caráter profundamente patrimonial do exercício político no Brasil oitocentista.

A ata de 11 de abril, na qual registrou-se a declaração de votos contrários ao restabelecimento da meia sisa, não anotou quantos deputados estavam presentes, apenas foi mencionando que “havia número suficiente para formar Casa”. Supondo-se que se reuniram 19 deputados (quórum necessário para ter sessão), a declaração foi assinada por quatro deles, um número baixo diante da importância da matéria. Parece que para a grande maioria não era viável a abolição do imposto. Respeitar os acordos internacionais e garantir a receita provincial parecem ter sido uma solução mais apropriada.

Isso reforça a nossa hipótese,de que a abolição do imposto da meia sisa visava o acesso aos escravizados ilegalmente, conforme a fala do presidente da província de Minas Marechal d’Andrea, em 1844. No relatório daquele ano, apresentando à Assembleia Provincial no início de seus trabalhos, D’Andrea afirmou que o imposto da meia sisa era pago em todo Império e acrescentou: “e pode mesmo tomar-se como um meio de moralidade […] e muito particularmente sobre escravos é indispensável que cada um possa a todo tempo mostrar a legitimidade com que os possui e nenhum modo é mais seguro do que pelo pagamento do imposto”49. Para o presidente de província, pagar o imposto era um meio de garantir a propriedade. Outra questão também se colocava, como sugere a locução “e pode mesmo tomar-se como meio de moralidade”, isto é, poderia coibir o contrabando.

Alguns pesquisadores tenderam a ler o retorno do imposto da meia sisa em 1844 como resultado da fala do presidente de província indicando que havia “harmonia” entre o legislativo e o executivo50. Assim, a “declaração de votos” contrária ao seu restabelecimento expressaria a resistência de deputados liberais em uma legislatura majoritariamente conservadora. Em primeiro lugar, os signatários da dita declaração eram ligados ao Partido Conservador, Paula Santos, por exemplo, já havia dito em outros momentos que se ligava ao partido daqueles que assumiram a política em setembro de 1837, os baluartes do regresso. Por fim, não se tratava unicamente de cumprir a fala do presidente da província, a questão era muito mais ampla e podia chocar-se com a pressão que a Inglaterra vinha exercendo contra o tráfico ilegal de escravos.

A pressão inglesa pelo fim do tráfico ficaria ainda mais forte depois da declaração brasileira de uma política aduaneira autônoma, em 12 de agosto de 1844. A chamada tarifa Alves Branco elevou as taxas de importação numa clara medida protecionista. Atitudes como essa chocavam-se com a política de livre mercado britânico. Além disso, o Brasil ameaçou romper o tratado antitráfico, o que gerou, em contrapartida, em agosto de 1845, a aprovação pelo parlamento de Londres do Bill Aberdeen, que deu ao comércio clandestino o caráter de pirataria, à Royal Navvy autorização para abordar navios brasileiros e aos tribunais do Almirantado Britânico a permissão para julgá-los. A decisão teve o apoio de Portugal e da França, como já discutido por Tâmis Parron. Assim, não se deve perder de vista o que se passava com o Império britânico, pois a condução de sua política econômica impactava rapidamente o mercado brasileiro. Cabia também às Assembleias Provinciais a administração daquela pressão, afinal este era um Império de Províncias51.

A abolição do imposto da meia sisa foi uma tentativa de aliviar o impacto da lei antitráfico, assegurando a posse ilegal de escravos e garantindo a “fortuna dos cidadãos”52. Essa questão específica dá a medida da dificuldade dos construtores do Império, aqueles para os quais a centralização era o único caminho possível para garantir a unidade, para conciliar interesses locais. Questões como essa reforçaram argumentos como o de Visconde de Uruguai, para quem era preciso rever a autonomia tributária das Assembleias provinciais.

Em 1845, novamente durante a discussão do projeto de orçamento para o ano futuro, a questão retornou. O deputado Francisco de Paula Pereira e Souza propôs a supressão do artigo que estabelecia a taxa de 5% sobre o valor dos escravos, a meia sisa. No sentido oposto, se posicionou o deputado Teixeira53: além de sugerir a continuidade, propôs uma emenda para que fosse multado quem se recusasse a pagar o imposto. Com esse objetivo, informou a Assembleia que na Corte havia se adotado o Regulamento Geral de 11 de abril de 1845, que estabelecia duras penas aos sonegadores54 e aconselhava que a Casa fizesse igual. De forma geral, podemos resumir todos os argumentos apresentados sobre o imposto da meia sisa em um único ponto: garantia da propriedade privada. Porém, para os que defenderam a imposição, ela estaria assegurada somente mediante uma atividade regulada. Para os outros, a garantia estava na autogestão, em outras palavras, no livre mercado que, em última análise, favorecia o comércio ilegal.

Há elementos para supor que as manobras feitas na lei do orçamento visavam garantir, sobretudo, a livre circulação de mão de obra escravizada ilegalmente. Contudo, elaborar uma legislação que abrisse brecha tão clara ao “infame comércio” era gerar prova contra si mesmo, o que não convinha. Enfim, nos dois casos (abolindo ou mantendo o imposto), o contrabando subsistia, afinal havia meios de driblar a “horrorosa inquisição” - falsear a origem e a idade dos escravos era um deles55. Evidentemente, a existência da lei colocava embaraços àqueles que praticavam o tráfico, na medida em que transferia a questão do campo da moralidade para o da legalidade.

As duas emendas (de Teixeira e de Pereira e Souza) foram rejeitadas - manter o imposto era aceitável, punir os sonegadores já era demais. Em 1845, na quinta legislatura provincial, a Assembleia mineira era majoritariamente conservadora. E foram, justamente, os conservadores que mantiveram o imposto, assim como seriam eles que assinariam, definitivamente, em 1850, a cessação do tráfico internacional de cativos aprovando, ainda, algum tempo depois, a Lei de Terras. Ao cativeiro do escravo seguiria outro cativeiro: o da terra, para usarmos os termos de José de Souza Martins56.

Na década de 1840, ao intensificar as forças no combate ao tráfico ilegal, a Inglaterra não apenas desencadeou ações políticas que a desafiaram - caso da Assembleia mineira com a abolição do imposto da meia sisa - como gerou um longo debate na Câmara dos Deputados e nas Assembleias Provinciais sobre a necessidade de incentivar a colonização como alternativa ao trabalho cativo. Os deputados repetiam quase que em uníssono: o Brasil, em geral, e Minas Gerais, em particular, eles ainda precisavam da mão de obra africana para suas lavouras e mineração. Colocados entraves para isso, foi necessário elaborar outras possibilidades. Em âmbito nacional, o debate sobre o fim do tráfico negreiro foi ao mesmo tempo um debate sobre a colonização e a propriedade fundiária. Em Minas Gerais, o fim do tráfico internacional abriu espaço para a discussão sobre o aproveitamento da mão de obra nacional, além da escrava via reprodução endógena ou tráfico interno. Mas isso é tema para outro momento.

6. Considerações finais

Em Minas Gerais, deputados reunidos na Assembleia inscreveram a instituição nos quadros do tráfico ilegal. Os proprietários de escravos, ligados à produção para o mercado externo ou que atuavam no mercado interno abastecedor e de subsistência, todos eles ligados ao comércio, à mineração e à agricultura, podiam se considerar representados na Assembleia Provincial. Mesmo para deputados, a exemplo do médico José Agostinho Vieira de Matos, que apontaram suas preferências pelo emprego de homens livres em estabelecimentos públicos, para o qual sugeriram, inclusive, o emprego de chineses, ainda não era possível dispensar a mão de obra escrava.

“Órgão fiel das justas reclamações de seus comprovincianos”, entenda-se, representante dos médios e grandes proprietários de escravos, a Assembleia Provincial de Minas Gerais participou do contrabando massivo de africanos, ajudando a reinventar a escravidão oitocentista e revelando, ao mesmo tempo, seu apego a essa instituição. O estudo da Assembleia mineira é um bom exemplo de como as províncias poderiam fortalecer a política escravista do Império do Brasil. Importante seria mapear os impactos da política do regresso nas demais províncias desse vasto império, sobretudo em regiões em que a configuração econômica não pressupunha o mercado externo.

Por fim, os deputados mineiros participaram da elaboração da política do contrabando negreiro, assegurando aos proprietários a posse ilegal de cativos. Não eram apenas cidadãos agindo às margens das leis. Eram políticos que agiam com brechas ou manobras para atender às demandas de suas bases sociais de apoio. Sustentaram o tráfico até quando já não era mais possível. E, por terem expandido a grandes proporções o comércio de pessoas, refundaram a instituição da escravidão. Eles foram, nesse sentido, muito mais construtores do que herdeiros57, ou seja,.construtores de um Império de províncias, erigido às custas da exploração do trabalho de seres humanos feitos escravos.

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  • 3
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  • 4
    LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil, 1808-1842. São Paulo: Símbolo, 1979.
  • 5
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  • 6
    FRAGOSO, João L. R. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
  • 7
    LIBBY, Douglas Cole. O “grande plantel mineiro” do século XIX: origens e posses. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage; VILLALTA, Luiz Carlos (org.). A Província de Minas. Autêntica: Belo Horizonte, 2013.
  • 8
    BERGAD, Laird. W. Slavery and the Economic and Demographic History of Minas Gerais, Brazil, 1720-1888. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
  • 9
    MALAQUIAS, Carlos Oliveira. Os senhores de poucos escravos em Minas Gerais: escravarias e tráfico negreiro em São José do Rio das Mortes, 1795-1831. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 10, n. 1, 2017.
  • 10
    A terceira legislatura da Assembleia mineira reuniu, em 1840, deputados, em sua grande maioria, ligados à política centralista da Corte e defensores da revisão do Ato Adicional. Os deputados liberais, engajados na manutenção da reforma de 1834, a exemplo de Teófilo Otoni, padre Marinho, Joaquim Antão, Fernandes Torres etc. não foram eleitos. Alijados da Assembleia Provincial eles entenderam que a revolução (liberal de 1842) era o único meio capaz de deter o regresso. Para uma discussão mais aprofundada sobre o assunto, cf.: OLIVEIRA, Kelly Eleutério M. A Assembleia Legislativa de Minas Gerais e a formação do Estado Nacional brasileiro (1835-1845). 2018. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2018.
  • 11
    ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. SGP. PP. Fala 03. Dirigida à Assembleia provincial pelo presidente José Cesário de Miranda Ribeiro. Ouro Preto, 1o fev. 1838, p. 23.
  • 12
    IGLÉSIAS, Francisco. Política econômica do governo provincial mineiro (1835-1889). Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1958. p. 139.
  • 13
    LOTT, Mirian Moura. Sob o badalar dos sinos, o ar da modernidade: Ouro Preto. População, família e sociedade, 1838-1897. 2009. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009. p. 182.
  • 14
    Sônia Mendonça, avaliando o contexto da Primeira República, entendeu que a defesa da diversificação agrícola era uma tendência de áreas periféricas, isto é, áreas que estavam fora do mercado exportador de café. Cf.: MENDONÇA, Sonia Regina de. O ruralismo brasileiro (1888-1931). São Paulo: Hucitec, 1997.
  • 15
    ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. AL001. Anais. 37a sessão em 16 de março de 1840, p. 304.
  • 16
    Ibidem, p. 304.
  • 17
    Ibidem, p. 304.
  • 18
    Os chins possuíam experiência no cultivo do chá. É preciso, contudo, registrar que a mão de obra chinesa não foi destinada apenas à agricultura. Há registros de chins trabalhando na construção de estradas, por exemplo, além da colonização do Mucuri levada a cabo pelo deputado Teófilo Otoni. O incentivo à imigração chinesa não apenas agradava a Inglaterra (experiente no trato com os chineses no Oriente) como foi incentivada por ela. Sobre o uso do trabalho dos chins, no Brasil, cf.: SANTOS, Marco Aurélio dos Santos. Chineses no Vale do Paraíba cafeeiro: projetos, perspectivas, transições e fracassos - século XIX. Almanack, Guarulhos, n. 25, p. 1-41, 2020.; CHINS. In: VAINFAS, Ronaldo; NEVES, Lúcia Bastos P. (Org.). Dicionário do Brasil Joanino, 1808-1821. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. p. 80-83; PERES, Victor Hugo Luna. “Os Chins” nas sociedades tropicais de plantação: estudos das propostas de importação de trabalhadores chineses sob o contrato e suas experiências de trabalho e vida no Brasil (1814-1878). 2013. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pernambuco, Recife, 2013.
  • 19
    ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. AL001. Anais. 38a sessão em 17 de março de 1840, p. 305.
  • 20
    Ibidem, p. 305.
  • 21
    Ibidem, p. 305.
  • 22
    Ibidem, p. 305.
  • 23
    Os miguelistas, defensores de D. Miguel, irmão mais novo de D. Pedro I, defendiam a supressão da Constituição e o retorno ao absolutismo. Eles eram, necessariamente, antiliberais. Essa defesa não se colocava aos regressistas brasileiros. LYNCH, Christian Edward Cyril. Modulando o tempo histórico: Bernardo Pereira de Vasconcelos e o conceito de “regresso”no dabate parlamentar brasileiro (1838-1840). Almanack, Guarulhos, n. 10, p. 314-334, 2015.
  • 24
    FRASQUET, Ivana. Restauración y revolución en el Atlántico hispanoamericano. In: RÚJULA, Pedro; RAMÓN SOLANS, Javier (org.). El desafio de la revolición: reaccionarios, antiliberales e contrarrevolucionarios (siglos XVIII y XIX). Comares: Granada, 2017.
  • 25
    VASCONCELOS, Bernardo Pereira. Discurso na Câmara dos Deputados apud CARVALHO, José Murilo de. Bernardo Pereira de Vasconcelos. São Paulo: Editora 34, 1999. p. 253. Argumento muito semelhante ao de José Cesário de Miranda Ribeiro, um dos maiores defensores do projeto de reforma da Constituição de 1824, mas que, como Bernardo Pereira de Vasconcelos, retrocedeu e passou a questioná-lo: “julguei político o projeto de reformas, votadas pela Câmara temporária, hoje porém por serem diversas as circunstâncias, entendi que era desnecessário [...] naquele tempo ao aspecto da revolução, que presenciamos, e por entre clamores, que manifestavam por toda parte pretensões de reformas já e já, foi mister empregar um meio, capaz de suspender sem forças os golpes, com que era ameaçada a Constituição do Império”. Cf.: RIBEIRO, Cesário de Miranda. Proposição justificativa do procedimento do deputado José Cesário de Miranda Ribeiro sobre as reformas da Constituição. Rio de Janeiro: Typografia de Seignot-Plancher, 1832. Disponível em: https://bit.ly/3wiJ91V. Acesso em: 20 jul. 2017. Luisa Rauter Pereira defende que a década de 1830 foi marcada por uma mudança nas percepções e representações do tempo. Temas como “circunstâncias”, “necessidades do país” ficaram cada vez mais acentuados. As referências clássicas teriam sido subsumidas em favor da experiência atual. A complexidade social e política da década de 1830 teria, então, criado um novo espaço de experiência nacional. Cf.: PEREIRA, Luisa Rauter. “Ao ponto em que as necessidades públicas exigem”: experiência política e reconfiguração do tempo no debate político brasileiro da década de 1830. Almanack. Guarulhos, n. 10, p. 302-313, 2015. DOI: https://doi.org/10.1590/2236-463320151005.
  • 26
    Algumas considerações iniciais nesse sentido foram feitas por OLIVEIRA, Kelly Eleutério M. As províncias do Império: a Assembleia Legislativa de Minas Gerais e o regresso conservador (1835-1842). Outros Tempos: Pesquisa Em Foco - História, v. 16, n. 27, p. 186-207, 2019.
  • 27
    PARRON, Tâmis Peixoto. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. 2009. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
  • 28
    Para as diferentes interpretações sobre o Ato Adicional (1834) e a criação das Assembleias Provinciais, cf.: OLIVEIRA, Kelly Eleutério M. “O tempo da província”: revisão bibliográfica crítica da política imperial no Brasil oitocentista. CLIO: Revista de Pesquisa Histórica, v. 38, p. 136-161, 2020.
  • 29
    ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. SGP. PP. Fala 04. Dirigida à Assembleia provincial pelo presidente da província Bernardo Jacinto da Veiga, 1839, p. 38.
  • 30
    É importante mencionar que há registros, na década de 1840, do ministro da justiça Bernardo Pereira de Vasconcelos encaminhando para o Jardim Botânico de Ouro Preto africanos livres. Naquela época, o diretor do estabelecimento era seu irmão, Fernando Antônio Pereira de Vasconcelos. Ao que parece, a utilização do trabalho dos africanos livres também foi uma das alternativas encontradas. Trabalhadores que acabaram vivendo em situações análogas à escravidão. Agradeço a Télio Cravo as considerações que me permitiram elaborar essa nota. Sobre os africanos livres, cf.: MAMIGONIAN, Beatriz. Africanos livres: a abolição do tráfico no Brasil. Companhia das Letras: São Paulo, 2017.
  • 31
    FERREIRA, Roquinaldo. O tráfico de escravos para o Brasil, de Jaime Rodrigues. São Paulo: Ática, 1997. Resenha. História Social. Campinas, n. 4/5, p. 187-192, 1997/1998.
  • 32
    Cf., entre muitos outros: CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão. Ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras. 2012.
  • 33
    PARRON, Tâmis Peixoto. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. 2009. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
  • 34
    LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil, 1808-1842. São Paulo: Símbolo, 1979.
  • 35
    YOUSSEF, Alain El. Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850). 2010. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
  • 36
    ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. AL 2. Correspondências expedidas. Cx. 1. Pc. 4, p. 2.
  • 37
    Ibidem, p. 2.
  • 38
    Ibidem p. 2.
  • 39
    ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Assembleia Legislativa. Projetos, resoluções e decretos (3a legislatura). Projeto 35, p. 140.
  • 40
    MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. O Império do Brasil (1808-1889), volume II: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 339-374.
  • 41
    ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Assembleia Legislativa. Projetos, resoluções e decretos (3a legislatura). Projeto 35, p. 140.
  • 42
    ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Op Cit. p. 2
  • 43
    De acordo com Miriam Dolhnikoff, impostos como a dízima sobre os gêneros (café, açúcar etc.), a décima urbana, a meia-sisa sobre os escravos ladinos e a décima de heranças e legados foram criados a partir de 1808 e seus rendimentos eram destinados ao governo central. Com o Ato Adicional esses impostos foram transferidos para o cofre provincial. Cf.: DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005, p. 450. Especificamente sobre a meia sisa, cf.: COSTA, Wilma Peres. Estratégias ladinas. O imposto sobre o comércio de escravos e a “legalização” do tráfico no Brasil (1831-1850). Novos Estudos, São Paulo, v. 3, n. 67, p. 57-74, 2003.
  • 44
    ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Leis Mineiras. Lei n.251. Lei do orçamento para o ano financeiro 1843/1844. 20 jul. 1843, p. 52.
  • 45
    ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. JM. Assembleia Legislativa provincial. Declaração de votos. O Compilador. Edição 45, 8 jun. 1844, p. 4.
  • 46
    Vale mencionar ainda que a arrecadação do imposto da meia sisa era uma importante fonte de receita para os cofres provinciais. Sobre esse assunto, cf.: OLIVEIRA, Kelly Eleutério M. A Assembleia Legislativa de Minas Gerais e a formação do Estado Nacional brasileiro (1835-1845). 2018. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2018, p. 138.
  • 47
    ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. 40a sessão ordinária, em 26 de março de 1844. Cf.: ASSEMBLEIA Legislativa provincial. O Compilador da Assembleia, Ouro Preto, edição 37, 21 maio 1844, p. 4.
  • 48
    ANDRADE, Leandro Braga de. Um representante da “classe dos homens práticos”: negócios e política na trajetória do comendador Francisco de Paula Santos durante o Império. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA ECONÔMICA, 11, 2015, Vitória. Anais... Vitória: UFES, 2015. p. 1-33.
  • 49
    ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Secretaria do Governo da Província (SGP). Fala 10. Fala dirigida à Assembleia provincial de Minas Gerais pelo Marechal Francisco José de Souza Soares d’Andréa. 3 fev.1844, p. 58.
  • 50
    Um exemplo é o trabalho de VENÂNCIO, Anderson Luís. A força do Centro: a influência conservadora na província de Minas Gerais, 1844-1853. 2005. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Franca, 2005.
  • 51
    GOUVÊA, Maria de Fátima. O Império das Províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
  • 52
    É impressionante como essa lógica permeou a construção do Estado nacional brasileiro. Segundo Beatriz Mamigonian, avançado o século XIX, a matrícula dos escravos, determinada pela Lei do Ventre Livre (1871), visava justamente legalizar a propriedade sobre os africanos trazidos por contrabando. É o mesmo argumento que embasou os debates sobre a abolição do imposto da meia sisa. Tratava-se de fortalecer o Estado nacional mantendo a escravidão em detrimento da liberdade dos africanos. MAMIGONIAN, Beatriz. O Estado nacional e a instabilidade da propriedade escrava: a lei de 1831 e a matrícula dos escravos de 1872. Almanack, Guarulhos, n. 2, p. 20-37, 2011. DOI: https://doi.org/10.1590/2236-463320110203.
  • 53
    Não conseguimos identificar quem é o deputado Teixeira. Há duas possibilidades: Antônio Francisco Teixeira Coelho e Manoel Teixeira de Souza (futuro Barão de Camargos).
  • 54
    BIBLIOTECA NACIONAL. Hemeroteca Digital. Assembleia Legislativa provincial. 32a sessão ordinária de 3 de abril de 1845. O Compilador. Edição 47. 04 jun. 1845, p. 3.
  • 55
    Isso também ajuda a explicar o aumento no tráfico de crianças para Pernambuco, como discutido por Marcus Carvalho. Segundo o historiador, pesquisas têm apontado que depois de 1831 aumentou a vinda de cativos africanos, entre 5 e 20 anos, para o Brasil. Além de serem mais indefesas e, portanto, menos capazes de se rebelar, as crianças custavam menos no litoral africano e comiam e bebiam menos também. Apesar de tudo isso, a principal hipótese para o tráfico de crianças é que ele era uma estratégia para aumentar a longevidade da escravidão no Brasil. Mesmo com esses dados, jovens entre 12 e 20 anos eram mais “rentáveis”, na linguagem fria e insensível do tráfico, e, por isso, preferíveis. Especificamente em Pernambuco, o autor acredita que o fato de a classe senhorial da província ser menos capitalizada (em comparação com as do Rio de Janeiro, Bahia ou Cuba) contribuiu para o processo de importação de crianças. Lembremo-nos de que os pequenos ainda não haviam sido inicializados em ritos de passagem nas comunidades de origem e, portanto, não tinham “marcas de nação”, passando mais facilmente por crioulos. CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. A rápida viagem dos “berçários infernais” e os desembarques nos engenhos do litoral de Pernambuco depois de 1831. In: XAVIER, Regina Celia Lima; OSÓRIO, Helen (org.). Dó tráfico ao pós-abolição: trabalho compulsório e livre e a luta por direitos sociais no Brasil. São Leopoldo: Editora Oikos, 2018. p. 126-164.
  • 56
    MARTINS, José de Sousa. O cativeiro da terra. São Paulo: Editora Ciências Humanas, 1979.
  • 57
    Referência ao texto: MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Editora Hucitec, 2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2021
  • Aceito
    03 Fev 2022
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