RESUMO
Este artigo é uma primeira abordagem das diferentes modalidades e relações de trabalho que se instituíram no Reino de Angola e na América portuguesa, nos séculos XVII e XVIII. A ênfase recai sobre as possibilidades de comparação das estratégias de domínio, controle e exploração da mão de obra das populações locais nos dois lados do Atlântico. Interessa-nos também compreender as formas de organização do trabalho de indígenas e africanos, ou seja, o próprio conceito de trabalho e sua relação com os demais âmbitos da vida social, os ritmos e tempos de trabalho, conhecimentos e técnicas, padrões de disciplina no cotidiano dos trabalhadores, antes das políticas de controle coloniais e as mudanças que elas causaram após sua implementação. Por outro lado, pretende-se conhecer como trabalhadores de variada origem e condição social vivenciaram modalidades diferentes de trabalho (não-escravo e compulsório), e elaboraram formas de resistência, negociação, (re)inventaram novas práticas culturais e de trabalho e criaram soluções para conflitos.
Palavras-chave: Angola; América portuguesa; trabalho; legislação; conexões atlânticas
ABSTRACT
This article is an initial look at the different labor modalities and relationships that characterized the Kingdom of Angola and Portuguese America in the 17th and 18th centuries. It emphasizes the possibilities for comparing strategies of dominion, control and exploitation of local populations on both sides of the Atlantic. The paper discusses the forms of labor organization of Indigenous and African people, such as the concept of labor and its relationship with other areas of social life, the rhythms and times of work, knowledge and techniques, and patterns of discipline in workers’ daily lives, both before and after colonial control policies. It also examines how workers of various origins and social conditions experienced different types of labor (enslaved or free), developed forms of resistance and negotiation, (re) invented new cultural and work practices, and created solutions for conflicts.
Keywords: Angola; Portuguese America; labor; law; Atlantic connections
RESUMEN
Este artículo es un primer abordaje de las diferentes modalidades y relaciones de trabajo que se instituyeron en el Reino de Angola y en la América Portuguesa en los siglos XVII y XVIII. El énfasis recae sobre las posibilidades de comparación de las estrategias de dominio, control y explotación de la mano de obra de las poblaciones locales en los dos lados del Atlántico. Nos interesa también comprender las formas de organización de trabajo de los indígenas y africanos, es decir, el propio concepto de trabajo y su relación con los otros ámbitos de la vida social, los ritmos y tiempos de trabajo, conocimiento y técnicas, normas de disciplina en lo cotidiano de los trabajadores, antes de las políticas de control coloniales y los cambios que ellas causaron después de su implementación. Por otro lado, se pretende conocer cómo los trabajadores de diversos orígenes y condición social experimentaron modalidades diferentes de trabajo (no esclavo y obligatorio), y elaboraron formas de resistencia, negociación, (re)inventaron nuevas prácticas culturales y de trabajo, y crearon soluciones para conflictos.
Palabras clave: Angola; América portuguesa; trabajo; legislación; conexiones atlánticas
Em 7 de dezembro de 1770, o governador de Angola, Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, lançou uma portaria estabelecendo como se daria o “pagamento dos negros” ou dos “pretos trabalhadores” do Reino de Angola. Eles trabalhavam na construção de igrejas, fortalezas, casas de feitoria, casas dos capitães-mores, prisões públicas, servindo a missionários, produzindo e transportando azeite para os corpos da guarda, conduzindo cartas, carregando os mantimentos e apetrechos das tropas e provendo palha e milho para cavalos. Serviços como esses foram considerados pelo governador como os que as populações locais se obrigavam ao reconhecerem a vassalagem ao rei de Portugal, ou que foram impostos pelos capitães-mores em uma tradição inventada que se constituiu como prática costumeira presente “desde a fundação do Reino”.1
Outros trabalhos teriam sido acrescidos “arbitrariamente”, não tendo “origem justa”: a construção de obras da Capital “com servidores” vindos de lugares muito “distantes” e “sem o necessário alimento”, o “trabalho quase gratuito nas minas” e o roubo de ferramentas para as obras reais (“tomadas por força”). Soma-se a isso os serviços realizados em prol dos capitães-mores, soldados e sertanejos classificados pelo funcionário régio como “filhos do abuso”.
O objetivo principal dessa determinação era dar fim aos comportamentos considerados abusivos, estipular remuneração e garantir que o recrutamento, a condução e a execução dos serviços ocorressem sem “violência”. Os carregadores que eram imprescindíveis para qualquer expedição aos sertões, seja militar, comercial ou religiosa, deveriam ser pagos pela Fazenda Real ou pelos soldados e demais oficiais. Especial menção também foi feita aos que serviam no mar, “marinheiros forros” ou os Mixiluanda (sic)2, cujo estatuto de servidores condenados a uma “escravidão perpétua” por traírem os portugueses durante a ocupação holandesa foi contestado. Para tarefas menos especializadas como a condução de palha para os cavalos definiu-se um jornal “módico”. Há ainda determinações de como empacaceiros e “negros armados”, que compunham as tropas portuguesas, seriam sustentados e da compensação via espólio de guerra.
O contexto de elaboração da norma descrita é o da revisão das modalidades de trabalho dos súditos dos líderes africanos (os sobas) que haviam jurado vassalagem ao rei luso, tendo em vista conquistar uma maior colaboração, que se tornara cada vez mais intermitente diante de condições precárias de trabalho e diversas de seus modos de viver e fazer. Um caso central que sustenta a argumentação da norma é o dos Axiluanda que, em razão de sucessivas fugas, teriam desamparado a Ilha de Luanda e se recusavam a trabalhar.
O processo começou três anos antes com uma súplica das lideranças locais enviada ao governador pedindo isenção dos dízimos em troca do envio de trabalhadores para uma fundição de ferro, projeto central da administração régia.3 A petição dos sobas deu origem à revisão de todas as categorias de trabalho dos súditos dos líderes vassalos desde os primeiros autos de vassalagem, examinando como ocorria o recrutamento, o sustento, a remuneração e as punições. Após intensa incursão pelos arquivos, consulta a historiadores e a outros funcionários da Coroa, os resultados foram algumas portarias como a supracitada e inventários que contavam os “filhos4 capazes para o trabalho” dos sobas.
As normas legais são elementos intrínsecos aos conflitos sociais, o próprio cenário de seu desdobramento e, ao mesmo tempo, um campo de defesa de costumes e conquista de direitos (THOMPSON, 1987, p. 358; THOMPSON, 1998). As tensões que permearam as tentativas de ordenar o trabalho no Reino de Angola são fruto de estratégias de exercer um maior controle colonial do trabalho, das reivindicações dos líderes africanos que procuravam defender o domínio sobre seus súditos e dos próprios dependentes dos sobas, que, recusando as condições precárias de trabalho e modos de fazer e produzir diferentes dos seus, fugiam em busca da proteção de outro líder, escondiam-se em fazendas ou juntavam-se às muitas comunidades de fugitivos (FERREIRA, 2014) que existiam em Angola.
Característica específica da constituição do Reino de Angola é sua conexão estreita com a América portuguesa, que se fortalece no século XVIII, com a expansão do tráfico transatlântico de escravizados. Há motivos para pensar que as normas e as experiências de trabalho dessas duas localidades tenham igualmente se conectado, tanto pelas iniciativas coloniais de controle do trabalho quanto pelas ações dos trabalhadores. No Atlântico Sul existiu uma evidente circulação de informações, culturas, produtos e, sobretudo, pessoas - funcionários régios, missionários, traficantes, comerciantes, trabalhadores, viajantes, de variada procedência e condição social, escravizados, forros e livres. No que tange às relações de trabalho, aventa-se que as estratégias de domínio das populações locais foram difundidas, comparadas e mutuamente influenciadas no mundo atlântico de modo a configurar a experiência de administradores coloniais, missionários, moradores, colonos, lideranças locais, e a orientar sua atuação quando formulavam políticas de controle e exploração da mão de obra dos habitantes das terras do ultramar. Algo relacionado ao que Luís Felipe Alencastro chamou de aprendizado da colonização, ou seja, as estratégias e experiências acumuladas nas duas margens do Atlântico pelos conquistadores ibéricos que lhes permitiram “assegurar o controle dos nativos e do excedente econômico das conquistas” (ALENCASTRO, 2000, p. 11). Porém, foi Silvia Lara quem melhor indicou o caminho que queremos seguir ao considerar as políticas de domínio para além de lógicas apenas econômicas. A autora chamou de aprendizado da dominação “as políticas de dominação adotadas pelos portugueses nas terras ultramarinas” e atentou para “o modo como os habitantes desses territórios ocupados reagiram a elas, ajudando a constituir o que genericamente é chamado de processo da colonização” (LARA, 2008, p. 12).
Enquanto eram estabelecidas reformas na ordenação do trabalho em Angola, na América portuguesa instituiu-se o Diretório dos Índios (1755/7-1798), legislação que, embora não tratasse apenas do trabalho, fez uso dele como instrumento de assimilação e incidiu diretamente sobre os temas da condição jurídica e social dos trabalhadores indígenas, já que reconhece a inegável dependência da mão de obra indígena para quaisquer empreendimentos da sociedade colonial, prevê formas de remuneração e proíbe a escravidão indígena.5
De forma esquemática, antes do Diretório, os indígenas podiam ser considerados livres ou escravos. Os índios aldeados eram livres, haviam sido cooptados por missionários a deixar os sertões e viver em aldeias próximas às povoações dos portugueses. Essa prática era conhecida como “descimento” e tinha por objetivo “tanto a civilização dos índios quanto a utilização de seus serviços” (PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 115). As aldeias eram habitadas apenas pelos clérigos, que as dirigiam, e os índios. Os moradores das proximidades poderiam alugar o serviço de índios, que desde o início era remunerado: “sejam as aldeias administradas por missionários ou por moradores, as leis preveem o estabelecimento de taxa, os modos de pagamento e o tempo de serviço” (PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 129). A forma como o tempo de trabalho era divido visava possibilitar que os indígenas cuidassem de seu sustento nas roças das aldeias. O “bom tratamento dos índios” (“bondoso e pacífico”) era sempre recomendado, embora raramente cumprido, já que os moradores dos sertões tentavam manter os indígenas aldeados como escravos.
Com o Diretório esse quadro mudou, nos sertões da América portuguesa, indígenas foram declarados livres e as aldeias transformadas em vilas. Ainda assim, eles eram obrigados ao trabalho, contudo sob outras regras. A mediação dos missionários já não existia, os indígenas deveriam ser “governados no temporal pelos juízes ordinários, vereadores, e mais oficiais de justiça” (SOUZA JÚNIOR, 2013, p. 173-211).
Há algumas pistas que permitem pensar que autoridades coloniais de Angola estavam inseridas nas principais discussões sobre como efetivar um maior controle sobre as populações locais na margem brasílica do Atlântico.
Quem implementou as normas legais do Diretório na Amazônia foi Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do marquês de Pombal e um dos principais interlocutores do citado governador de Angola, Francisco de Sousa Coutinho (1764-1772). Mendonça Furtado foi secretário de Estado durante o governo de Sousa Coutinho, porém, antes de assumir a pasta da Marinha e Ultramar (1760-1769), foi governador da província do Grão-Pará e Maranhão (1751-1759), quando instituiu o Diretório.
Como aponta Mauro Cézar Coelho (2005, p. 37), o Diretório foi uma lei nascida na América portuguesa, “em resposta aos conflitos vividos durante o governo de Francisco Xavier de Mendonça Furtado”, de modo que sua forma final não foi prevista pela política metropolitana. Furtado soube associar interesses da Coroa e dos colonos, que disputavam o “controle e a distribuição da população nativa”. Note-se que tal experiência seria útil para administrar embates semelhantes em Angola. Coelho aponta, ainda, o acesso à mão de obra indígena como determinante dos lugares sociais, o “mote da vida política no Vale Amazônico”. O Diretório também incluiu indígenas nos quadros da administração colonial, tornando-os ativos na disputa pela mão de obra indígena.
Tal como ocorreu com os sobas e seus dependentes em Angola, os líderes indígenas e seus súditos tiveram atuação fundamental para redimensionar medidas régias. A resistência ao descimento, a deserção em massa dos aldeamentos, a defesa de modos de vida, costumes e ritmos de trabalho são expressões dos conflitos que permearam a faces normativa e prática da lei.
Um outro bom exemplo das similaridades entre os textos legais é uma informação que se repete no Diretório e nas portarias do governo de Angola. De acordo com o Diretório, todos os índios maiores de 13 anos deveriam ser anualmente matriculados como “capazes para o trabalho”. Exatamente a mesma expressão utilizada nos inventários em que constavam os “filhos capazes para o trabalho” dos sobas. Outrossim, nos sertões da América portuguesa e nos do Reino de Angola, as disputas pelo trabalho das populações locais entre moradores, missionários e autoridades coloniais eram reiteradas, bem como os abusos e maus-tratos tanto junto às obras públicas, quanto nos serviços prestados a particulares.6
Para além da figura-chave de Francisco Xavier de Mendonça Furtado e das tentativas do governo de Angola de promover reformas, por meio do estabelecimento de povoações civis e da regulamentação do trabalho, há ao menos mais duas citações sobre as mencionadas conexões atlânticas.
O ouvidor-geral do Reino de Angola, Joaquim Manoel Garcia de Castro Barbosa, em 1778, escreveu um parecer sobre o “estado da religião”. Entre as disposições propostas para enraizar valores religiosos, elenca a necessidade de uma reforma dos “costumes e polícia”, observando o “Diretório de 3 de maio de 1757”, “para os Índios do Pará”. O plano era que como foi previsto para os indígenas da Amazônia, se mandasse “civilizar os pretos e ajuntar em povoações pelos sertões, e abrindo-os [...]”.7 Logo, um importante administrador local, que compôs, em 1782, um triunvirato para governar Angola, fez uma referência direta ao Diretório, mais um indício que o modo como aquele documento previa a civilização das populações originárias da Amazônia foi uma inspiração para elaborar projetos para os africanos.
Outra referência ao Diretório, mais afinada com as questões apresentadas neste artigo, é a que fez um degredado da Inconfidência Mineira, o naturalista José Álvares Maciel, que propôs que em Angola se instituísse uma “Aldeia de pretos ferreiros”.8 Maciel reconhecia a centralidade dos ferreiros para quaisquer empreendimentos e queria atraí-los “por sua livre vontade”, evitando “a menor sombra de força ou violência” para que não “desamparasse[m] suas casas fugindo para o gentio como ordinariamente costumam”. Depois da experiência na fundição de ferro de Nova Oeiras, marcada pelo recrutamento forçado e castigos físicos, os ferreiros locais relutavam em colaborar com os planos coloniais. Ainda assim, continuavam a reivindicar a isenção dos dízimos que eles mesmos ou seus antepassados conquistaram - “privilégio que eles prezam sobre todas as coisas e que foi concedido em outro tempo à Fábrica de Oeiras”.
Para o naturalista, uma nova fábrica só seria possível se um “inspetor” fosse o “juiz privativo” para resolução de contendas, “bem como no Brasil cada Aldeia de Índios tem seu diretor”. A alusão ao cargo de diretor criado pelo Diretório é significativa, pois substituíram os padres em sua administração temporal e eram os responsáveis por fiscalizar a ordenação do trabalho indígena. Houve numerosas acusações contra a má conduta desses funcionários. A citação a um juiz pode referir-se ao “juiz conservador dos índios”, fundamental para mediar conflitos entre indígenas, moradores e autoridades (ALMEIDA, 2013, cap. 3).
Maciel queria esvaziar a autoridade do capitão-mor (como se quis com os padres, na América portuguesa), personagens que conquistaram grande autonomia nos sertões e que foram alvo de críticas da administração régia por promover abusos contra as populações locais. No caso, eram acusados de sobrecarregar os ferreiros com muitos serviços, roubar seus mantimentos e criações. Civilizando os africanos, cedendo privilégios - “que muito prezam”, Maciel esperava fazer dos “pretos” “sem maior dificuldade homens tão destros e tão capazes como os melhores fundidores da Europa”.9 O padrão de um trabalhador eficiente que produziria as quantidades de ferro esperadas pela Fazenda Real era o europeu. Estava em jogo ali o controle do processo e dos ritmos de trabalho e os africanos foram hábeis em defender seus modos de vida e técnicas (ALFAGALI, 2018, p. 329-360).
Ambas as legislações seguiram determinações locais, frutos de confrontos entre agentes sociais diversos (líderes locais, seus súditos, colonos, funcionários régios) que tinham como um de seus principais objetivos a disputa pelo controle da mão de obra indígena e africana. Não parece infundado imaginar que esses elementos informaram a experiência de administradores, naturalistas, degredados e quiçá dos trabalhadores que cruzaram o Atlântico Sul neste período.
Escravidão, liberdade e trabalho no Atlântico Sul
Há uma série de questões que ultrapassa a aparente oposição entre trabalho livre e escravo e que se volta para as experiências dos sujeitos históricos.10 Nesta seção, é importante sublinhar que a escravidão não pode ser definida apenas pela maneira como os escravizados eram tratados ou pelos trabalhos que realizavam. Portanto, a distinção entre relações de trabalho e estatuto jurídico (livre, escravo, liberto, penhorado, coartado) é válida para iniciar a reflexão sobre regimes compulsórios de trabalho. A liberdade determinada pelo Diretório foi uma conquista das populações indígenas que souberam reivindicar como direito para denunciar a escravização ilegal e construir uma vida livre. Entretanto, suas histórias comprovam que ser considerado livre nem sempre garantiu condições de trabalho sem qualquer tipo de coerção. Por outro lado, tampouco ser escravo representou uma experiência única de trabalho (há contextos urbanos e rurais, diferenças entre experiências de homens e mulheres que precisam ser levados em conta, por exemplo).
Na América portuguesa, o controle e a exploração da mão de obra indígena foi uma preocupação contínua do século XVI ao XVIII. O trabalho indígena passou por uma “variedade de sistemas laborais” (SCHWARTZ, 2003) que iam da escravização, escambo, trocas de mercadorias por dinheiro, até modalidades de trabalho obrigatório mais ou menos reguladas que permitiam certa autonomia. A escravização se relacionava aos conceitos de conversão, resgate (compra de venda de prisioneiros indígenas) e guerra justa11 e estava prevista na legislação portuguesa até a incorporação de todos os índios como “vassalos” a partir do Diretório.
A obrigação de prestar serviços aos moradores, à Coroa (como nas construções de obras públicas), aos missionários ou nas aldeias nunca deixou de ser regulada pelas normas legais portuguesas que procuraram estabelecer como se daria a remuneração, o tempo de trabalho, as punições aceitas ou não (PERRONE-MOISÉS, 2000, p. 118-121). Os aldeamentos surgiram para garantir a conversão, fornecer trabalho e ocupar e defender o território, e se fizeram presentes em toda a América portuguesa. Por conseguinte, existiram brechas legais que submeteram indígenas livres ao trabalho compulsório. Assim, desde antes da primeira norma sobre o cativeiro indígena (1570), passando pelo Diretório até após a Carta Régia de 12 de maio de 1798 - que aboliu o Diretório e transferiu o domínio dos índios para as câmaras - moradores, autoridades régias, missionários (os jesuítas, em especial), “principais da terra” se encontravam em um intenso jogo político de forças, uma disputa acirrada pela tutela e o emprego da mão de obra indígena. É preciso sublinhar, como já alertamos, que as normas legais também se modificaram ao longo do tempo de acordo com as múltiplas táticas de resistência indígena (CHAMBOULEYRON, 2010; MONTEIRO, 1994, p. 36-51 e 141-147).
A temática da arregimentação de trabalhadores indígenas vem sendo retomada pela historiografia, ampliando as categorias de trabalho a que os índios foram submetidos.12 A condição jurídica favorecia a indefinição das condições do trabalho indígena. Os índios eram descritos como “aldeados”, “administrados” (a administração particular, os índios moravam com os moradores e não nas aldeias e trabalhavam para eles), “forros”. Os “escravos de condição” eram aqueles prisioneiros injustamente cativados que deveriam permanecer escravizados por um período de cinco anos, e ao fim desse período deveriam ser incorporados às aldeias (DIAS, 2017, p. 242).13 Assim, conhecemos melhor como as políticas indigenistas procuraram exercer o domínio sobre as populações ameríndias e as inúmeras modalidades de trabalho e condição jurídica a que os índios foram submetidos.
O mesmo não pode ser dito sobre as relações de trabalho nos sertões da colônia de Angola, por isso nos demoraremos mais na explicação dessa lacuna historiográfica. Apesar de algumas referências indiretas e esparsas sobre a história das populações dos sertões angolanos, permanece na bibliografia acadêmica a imagem de Angola como um grande porto fornecedor de braços para o tráfico. Pesquisas mais recentes lançam luz sobre os processos de escravização e a luta dos líderes locais e de seus súditos contra a escravização ilegal na justiça (FERREIRA, 2012; CANDIDO, 2013; DOMINGUES, 2017). Um capítulo menos investigado dessa história é a exploração local das terras das autoridades africanas, seus recursos naturais e humanos e as resistências a ela. As populações dos sertões do Reino de Angola, que estavam sob a tutela de sobas ou colonos, eram alvo do tráfico, porém também geravam riquezas no contexto africano e nem sempre enquanto escravas. Ainda que o tráfico e a escravidão estivessem profundamente arraigados na estrutura da sociedade do Reino de Angola, os africanos foram empregados em diversos serviços compulsórios, em condições precárias de trabalho, em Luanda e seu hinterland, ou nos sertões mais distantes, desde o início da conquista.
Os súditos, ou como chamam as fontes os “filhos”, que estavam sob a tutela dos sobas eram chamados de “negros habitantes”, “negros lavradores”, “pretos trabalhadores”, “servidores”, “negros tecelões”, “pretos cultivadores”, “ajudatários” (sic), “serventes”, “filhos capazes para o trabalho”.14 De imediato sua identidade está relacionada ao trabalho: lavram, tecem, cultivam, são “capazes de trabalhar”, geram riqueza. Aparecem nas fontes como dependentes, súditos e como disse Vansina, “com demasiada frequência, as sociedades rurais africanas são consideradas como se fossem apenas uma parte da paisagem” (VANSINA, 2005, p. 3).
Para compreender quais foram as normas que regulavam as relações de trabalho nos sertões angolanos, faz-se necessário compreender o chamado “sistema de amos”. Quando da conquista portuguesa, o capitão donatário Paulo Dias Novais recebeu, pela Carta de Doação, a prerrogativa de doar terrenos (as sesmarias) com a condição de serem lavrados. Os beneficiados da Sociedade de Jesus foram os mais favorecidos na divisão das terras doadas. Essas porções do território do antigo Reino do Ndongo englobavam “chefados inteiros com suas fronteiras próprias e incluíam todos os seus habitantes e respectivos bens” (HEINTZE, 2007, p. 251), inclusive rios que eram usados para os mais diversos fins: irrigação, moinhos, entre outros. Como as fortunas dos portugueses passaram a depender cada vez mais do tráfico de escravos, a doação passou a ser conhecida como “doação de sobas” ou “repartição de sobas”. Em síntese, assim ocorreu a formação do “sistema de amos”, como eram chamados os religiosos ou seculares que se tornavam donos das terras e das gentes que nelas habitavam (HEINTZE, 2007, p. 255).
Na vigência desse sistema podem ser encontradas as primeiras pistas sobre a prestação de serviços por parte dos sobas. Além dos tributos em gêneros diversos, os portugueses exigiam escravos e, por motivos “ad hoc inventados”, como diz Beatriz Heintze, os sobas eram obrigados a diversos trabalhos, “entre os quais o trabalho nos campos, a construção de casas e o serviço de carregadores” (HEINTZE, 2007, p. 262). Logo, a obrigação de trabalhar gratuitamente nas terras do amo não foi algo expresso por qualquer legislação, antes uma “invenção” dos missionários, moradores, autoridades régias que disputavam a mão de obra dos súditos dos sobados.15 Cadornega, escrevendo no século XVII, afirmou que desde a chegada dos primeiros conquistadores, os dependentes dos sobas os serviam “na fábrica de suas casas e lavouras”, na construção de fortificações e trincheiras (CADORNEGA, 1972, v. I, p. 45; v. II, p. 67).
Assim como ocorria com os indígenas na margem brasílica, a condição jurídica dos súditos dos sobas não aparece determinada nas fontes e vigora a indefinição das formas de trabalho a que foram submetidos.
Para elucidar melhor a questão, pode-se tomar o caso da fábrica de ferro de Nova Oeiras, no século XVIII (ALFAGALI, 2018). Na fábrica, dividiam o mesmo espaço de trabalho e por vezes as mesmas condições de vida, artesãos livres, degredados, escravos ao ganho, os “filhos” dos sobas vassalos, europeus, brasílicos, homens e mulheres. Os súditos dos sobados que trabalhavam na fábrica, tal como determinaram as normas analisadas no início deste texto, eram considerados livres pelo governador de Angola, que dizia que assim o eram porque recebiam uma parca remuneração, alimentação e deveriam ser isentos de castigos físicos (o que nunca ocorreu). Já os comerciantes e colonos reconheciam que esses trabalhadores não eram cativos, no entanto, os empregavam aos mais diversos serviços em igualmente variadas condições sem qualquer compensação.16
Agora, se nos voltarmos para os sentidos da escravidão dentro dos sobados, para os que viviam sob a jurisdição do soba, segundo um outro sistema legal e costumeiro, entender se os “filhos” que serviam em Nova Oeiras e que eram obrigados, ou como as fontes registram, “constrangidos” ao trabalho eram escravizados ou não é um desafio ainda maior. Isso implica entrar nos melindres que definem a chamada escravidão interna e como ela se alterou no decorrer da colonização.
A escravidão no continente africano foi definida principalmente pela noção de pertencimento, os passíveis de escravização eram os “de fora” da comunidade, os estranhos, que não tinham vínculos com sistemas de parentesco. O principal debate historiográfico gira em torno de saber até que ponto os escravizados permaneciam como forasteiros, ou seja, se gradualmente eram absorvidos nas sociedades escravizadoras, incorporados nos laços de parentesco. E, portanto, a escravidão não era o oposto da liberdade ou de pertencer a um sistema de parentesco, antes era semelhante a outras instituições que criavam laços de dependência (como o casamento e a paternidade, que estaria no outro extremo do pertencimento), que ofereciam controle sobre os “direitos sobre as pessoas” (MIERS; KOPYTOFF, 1977).
Muitos estudiosos criticaram a visão incorporada da escravidão africana porque elide mecanismos de exploração (política, econômica, social e sexual) e a luta contra a escravidão. Para estes (LOVEJOY, 2002; MEILLASSOUX, 1986), o estatuto de escravo era permanente e diferente de todos os tipos de dependência, era a antítese do parentesco.
Embora seja preciso evitar noções modernas sobre trabalho, liberdade e individualidade e, assim, contextualizar as ideias e visões de escravidão e liberdade, é fundamental admitir que os africanos na maioria das regiões e temporalidades viam os estatutos de livre e escravo como opostos (STILWELL, 2014). Há profundas distinções entre os que pertencem moral, política e socialmente e aqueles que não pertencem, e a liberdade pode ser entendida como o direito ou a capacidade de pertencer, de estar envolvido em sistemas de obrigação recíprocos organizados em torno do parentesco e da descendência.
Havia distinção entre livres e escravos para a maioria das pessoas que moravam em Angola e que são descritas nos estudos acadêmicos como povos Mbundu (etnônimo que oblitera os variados grupos socioculturais da localidade). Desde muito cedo, os agentes coloniais souberam identificar quem, entre os africanos, segundo as “leis dos sobas”, era livre. No reino do Ndongo, no século XVI, os jesuítas portugueses registraram que os prisioneiros de guerra e os escravizados comprados eram chamados de “mobicas” (do kimbundu mubika, pl. abika). Já os Mbundu escravizados eram conhecidos por “quisicos” (do kimbundu kijiku, pl. ijiku). A escravização era uma pena imposta a criminosos. O termo “quisico” era empregado pelos colonizadores para designar a “totalidade da população escravizada por oposição aos ‘morinda’ (kimbundu: murinda, pl. arinda), os Ambundos livres”. Com o passar do tempo, em algumas povoações, os escravizados ganharam marcas de propriedade com a finalidade de impedir que fossem trocados por outros de menor valor (HEINTZE, 2007, p. 486).
Havia ainda gradações entre a condição de livre e de escravizado. O penhor é o melhor exemplo; consistia na condição da pessoa livre que poderia ser penhorada em troca de um empréstimo ou como pagamento de dívida, mas permanecia livre e poderia ser remida pelos seus parentes. Para Vansina, a grande mudança em relação aos penhorados é que, no século XVIII, os penhorados passaram a ser fornecidos em “troca do empréstimo de bens equivalente ao valor de um escravizado”, como uma resposta à demanda crescente de “produzir escravos” da economia atlântica. O autor considera que a prática se tornou comum devido à concentração de poder em “matrilinhagens corporativas”, governadas pelos “mais velhos” da linhagem que passaram a dispor de seus dependentes como forma de eles próprios escaparem da escravidão (entregando o penhorado em seu lugar) ou para pagar dívidas e obter bens e riquezas, uma vez que estavam envolvidos em uma ampla rede de endividamento em torno das mercadorias que circulavam no âmbito do tráfico transatlântico (VANSINA, 2005, p. 18).
Essas poucas linhas são suficientes para evidenciar que a escravidão não foi uma instituição monolítica, em Angola, tampouco permaneceu a mesma ao longo do tempo. A escravidão atlântica transformou as regras do pertencimento e os súditos dos sobas, no século XVIII, estavam em uma condição de vulnerabilidade diante da escravização ainda maior dado este contexto. A própria desobediência aos mais velhos da linhagem poderia ser uma forma de desonra e ser penalizada com a escravização. As redes de solidariedade e a capacidade de afirmar o pertencimento à linhagem, a uma associação religiosa, guerreira ou ocupacional foram importantes nesse tempo de incertezas, de expansão dos mecanismos de escravização legal e ilegal.
Em vista disso, é difícil afirmar que os “filhos” dos sobas que foram cooptados como trabalhadores pelos portugueses eram escravizados ou não, de acordo com as “leis dos sobas”, que também se achavam condicionadas a esse contexto de produção de escravizados. Certo é que o momento em que as normas aqui descritas foram criadas era favorável a um maior controle sobre seu trabalho, pois encontravam-se mais vulneráveis ou dependentes em relação a quem lhes era superior, que detinha direitos sobre as suas pessoas.
Apresentação de casos e possibilidades de pesquisa
Como vimos, para a América portuguesa, há estudos específicos sobre o cotidiano de trabalho indígena17, para o Reino de Angola não há discussões a respeito da ordenação e organização do trabalho africano para os séculos XVI ao XVIII.
Outra temática a que precisamos estar atentos diz respeito ao papel das lideranças locais, sobas (Angola) e “principais da terra” (América portuguesa), na intermediação entre trabalhadores e a administração colonial. Patrícia Sampaio cita um caso para a Capitania de São José do Rio Negro (Estado do Grão-Pará e Maranhão), no contexto da implementação da Carta Régia de 12 de maio de 1798, que aboliu o Diretório dos Índios e transferiu o domínio dos índios para as câmaras. O governador, de acordo com uma ordem vinda de Lisboa, deveria dar baixa a oficiais cujas patentes não possuíssem confirmação régia. O problema é que se executasse a ordem, não haveria oficias habilitados na capitania. Sampaio demonstra que por trás dessa situação estava o controle da mão de obra indígena disputado entre os moradores e demais autoridades régias e os “principais da terra”, que a essa altura também engrossavam as fileiras da administração lusa: cerca de um terço dos ocupantes dos postos de capitães, tenentes e alferes da capitania eram lideranças indígenas. A ameaça da baixa causou não pequeno alvoroço; os principais ficaram insatisfeitos porque “se lhes tirou o governo dos seus súditos índios”, “magoados e desgostosos” ameaçavam retirar-se das povoações com seus súditos e passar aos domínios da Espanha (SAMPAIO, 2007, p. 41). Há, então, que se pensar sobre quais eram as estratégias de domínio dos “principais da terra” sobre seus súditos e como se instituía na relação com seus dependentes o poder de mando que lhes permitiu negociar com os agentes coloniais, manter suas prerrogativas e afirmar seu poder político.
A presença portuguesa no Reino de Angola, nos séculos XVII e XVIII, se sustentava por meio de acordos de vassalagem com os sobas vencidos em guerra ou de alianças com as chefias locais interessadas em acordos comerciais (HEINTZE, 2007; CARVALHO, 2015). Para as lideranças africanas, o estatuto de vassalo, embora marcado pela submissão e por reciprocidades assimétricas, possibilitava uma certa margem de negociação com os conquistadores. Valendo-se desse complexo jogo de poder, alguns sobados conseguiram manter sua influência política ao longo dos séculos. É preciso compreender as razões da sobrevivência política de determinados sobados em detrimento de outros. O fornecimento de força de trabalho para os portugueses é visto aqui como uma estratégia política de negociação dos sobas diante do poder colonial, a fim de manter seu poder político e proteger seu povo da completa desagregação e escravização. Contudo, as fugas dos trabalhadores das iniciativas coloniais foram motivo de desamparo de povoações, que, por sua vez, enfraquecia a autoridade do líder ante seus liderados.
Novamente, se já há trabalhos que buscam enfatizar a preeminência dos “principais da terra” e seu domínio sobre os súditos.18 Para Angola, há ainda muito o que pesquisar sobre o governo dos sobas no âmbito das relações de trabalho, na arregimentação de seus “filhos” para as empresas coloniais.
Por último, não devemos esquecer que indígenas e africanos são vocábulos insuficientes para dar conta da complexidade e heterogeneidade das sociedades que habitavam a América portuguesa e o Reino de Angola. Igualmente, é preciso lembrar que em muitas regiões de emprego de mão de obra compulsória, indígenas, africanos e seus descendentes dividiram os mesmos espaços, condições de vida e de trabalho. Além de compartilharem essas condições sob as mais variadas designações jurídicas: livres, escravizados, forros, “escravos de condição”, administrados, aldeados, “pretos trabalhadores”. Categorias que sozinhas pouco informam sobre a realidade de suas experiências no cotidiano do trabalho. Do mesmo modo, degredados europeus, brasílicos, apenados, mestres de ofício, aprendizes, compartilhavam esses espaços de trabalho e também viveram modalidades de trabalho obrigatório.
Soma-se a isso a breve menção de alguns exemplos para o Reino de Angola que têm se mostrado importantes para conhecer a face prática do cotidiano de trabalho, dos recrutamentos junto aos sobados.
O auxílio nas obras reais é uma constante no período estudado. Os edifícios públicos da cidade de Luanda e os presídios e fortalezas que se estendiam pelo corredor do rio Kwanza eram realizados por trabalhadores fornecidos pelos sobas avassalados, que passavam a ser subordinados à autoridade do capitão-mor do presídio mais próximo às suas terras. No século XVIII, ocorria o envio mensal de 200 trabalhadores dos sobas contíguos ao presídio de Ambaca para servirem nas “obras da capital”. Eram conduzidos até Luanda, escoltados por “soldados de cavalo”,19 que eram intimidantes para a comitiva de trabalhadores. Roquinaldo Ferreira comenta que, com os cavalos, os soldados podiam perseguir com mais sucesso as populações em fuga, vencidas em guerra (FERREIRA, 2003).20 Imaginamos que o mesmo se aplica em relação aos trabalhadores que tentavam fugir do trabalho compulsório. E, ainda em outro documento, há o relato de que os “serventes que conduziam materiais” nas obras reais eram mulheres,21 indicando divisões nas atividades realizadas de acordo com o gênero.
Aqueles identificados nas fontes portuguesas como Muxiluanda e Mexiluanda (entre outras variações) eram pescadores, canoeiros e marinheiros. As mulheres pescavam zimbo (moeda local) e comercializavam peixe.22 Como guias hábeis pelos rios e rotas marítimas de Angola, seu conhecimento foi apreciado pela administração régia. Junto às citadas normas de 1770, foi publicada uma portaria específica sobre eles para aumentar a remuneração daqueles que “andavam embarcados” para “animá-los” porque muitos abandonavam o trabalho por causa das situações precárias em que viviam.23 Entretanto o cenário se complica pois, de acordo com alguns registros, no período anterior às normas, os Axiluanda foram condenados a servir a Coroa portuguesa em troca de baixa remuneração ou sem nenhuma compensação. Foram penalizados porque se aliaram aos holandeses durante a ocupação holandesa (1641-1648); as fontes registraram a pena como “escravidão perpétua”.24 Tal condição foi contestada pelo governador Sousa Coutinho, que insistia em lhes garantir ao menos remuneração e sustento. Ainda assim, já no início do século XIX “Mexiluandas” foram enviados para o “serviço da lancha da Real Fazenda”, sem nenhuma menção às condições de trabalho.25
É preciso investigar como a escravização dos Axiluanda passou ser vista como legítima. Por outro lado, a experiência dos Axiluanda parece estar relacionada com conquistas de melhores condições de vida e de trabalho e permite vislumbrar como os trabalhadores agiam e mudaram as condições impostas às suas vidas. Por isso, esse é mais um excelente lócus de observação do universo do trabalho em Angola, para discutir modos de escravização, características étnicas, saberes e técnicas.
Nos documentos que reunimos, os Axiluanda aparecem em Luanda e no interior de Angola como intérpretes; trabalharam na prospecção de ouro no rio Lombige; nas naus dos governadores e provedores da Fazenda anualmente; um “negro forro Mixiluanda” foi enviado para Lisboa junto a um elefante para cuidar do animal já que o acompanhara a vida toda e sabia domá-lo; conduzem palha e água para os cavalos das tropas portuguesas; trabalhavam no palácio do governador; eram empregados nas “Embarcações de El Rei”; nenhuma embarcação de mantimentos saía da Barra do rio Bengo sem ser acompanhada por um “Muxiluanda”; são mandados para prisão pelos problemas que causam no cotidiano de trabalho. Nas ilhas de São João da Cazanga e Nambios, do rio Kwanza, eram eleitos governadores dos “pretos Maxiluandas” que podem indicar que quem organizava o trabalho desses “Maxiluanda” era um líder eleito localmente. 26 Já Cadornega (XVII) cita um “governador da Ilha de Luanda” que reivindicava domínio sobre canoeiros e pescadores, referindo-se aos Nambios (1972, v. III, p. 60).
Aqueles designados como Nambios viviam da caça e da pesca e eram grandes navegadores. No século XVII, consta que eram dependentes de um líder importante da Kisama (região ao sul do rio Kwanza), o soba Kamona Kasonga. Em um confronto entre portugueses e o soba, cuja causa era a recusa do soba em entregar escravizados que fugiram para as suas terras, 30 “monâmbios” foram aprisionados pelos portugueses (PARREIRA, 1990, p. 82).27 Portanto, há uma miríade de atividades que foram desempenhadas pelos Axiluanda e Nâmbios e pistas de como organizavam-se.
O trabalho na prospecção de ouro ao longo do rio Lombige foi impactante na experiência de todos os envolvidos. Ao dar instruções sobre as formas de recrutamento posteriores, os agentes da Coroa alertavam que era recomendável evitar os “meios de que foi assistido o serviço de Lombige”. No Lombige, foram recrutadas 170.400 pessoas durante dois anos e meio nas bateias para procurar o ouro, como carregadores e nas “mais coisas precisas”.28 O governador de então, Antônio de Vasconcelos, afirmou que o “arraial” da expedição que minerava o ouro “nunca se compunha de menos de 500 ou 400” trabalhadores. As violências (“vexações” segundo o documento) contra as populações locais foram tantas que “as fomes que padeceram foram grandes, especialmente entre os pretos pois só se lhes repartiam por mês, a cada trinta, três sacos de farinha e o terço de um de feijão”. Supridos desses poucos alimentos, os trabalhadores percorriam longas jornadas, de mais de seis dias. Isso ocasionava muitas mortes e fugas, que eram punidas pelos soldados que perseguiam os fugitivos “maltratando e afugentando tudo”.29
Apesar da riqueza de detalhes das fontes que tratam sobre o tema, não há estudos sobre essa experiência histórica. Neste exemplo temos alguma noção da magnitude da exploração e organização do trabalho nos sertões de Angola: governadores, capitães-mores, colonos, intendentes, sobas, enfim, toda uma rede hierárquica política e administrativa coordenava o trabalho. Como se pode imaginar, esses sujeitos raramente conseguiam conciliar seus interesses e isso abria margem para longos embates. Fora isso, temos mais uma vez uma brecha para sondar as condições de trabalho e a agência dos trabalhadores.
Trajetórias de vida em suas conexões atlânticas também são encontradas nessa documentação. Um exemplo é o mineiro Caetano Álvares de Araújo, que era natural do Reino de Angola, onde estudou gramática, mas viveu em Minas Gerais por dezoito anos. No Brasil, Caetano tinha um tio homônimo, morador no Serro Frio. Devido a dívidas contraídas em Minas, Caetano fugiu para sua terra natal, onde chegou em setembro de 1752. Em Angola, encontrou auxílio e proteção entre os missionários carmelitas, viveu por um tempo no hospital desta missão que se localizava nas terras do grande sobado Mbangu kya Tambwa - parada obrigatória para todos os que entravam para comerciar nos sertões do Reino de Angola. Após rumores de que Caetano descobriu ouro, o governador de Angola mandou prendê-lo para investigar a situação.30
Os exemplos acima descritos são assuntos que encontramos com frequência na documentação porque interessavam diretamente à administração colonial - o bom funcionamento do comércio marítimo e fluvial, as obras públicas, as minas. Com certeza, a análise da documentação administrativa, camarária, eclesiástica e as produzidas pelos próprios africanos em seus dembos e sobados trarão outros casos similares.
Este artigo apresentou uma primeira reflexão sobre formas de trabalho compulsório empregadas nas duas margens do Atlântico Sul e suas conexões históricas tanto do ponto de vista legislativo e da trajetória de administradores, quanto da perspectiva dos trabalhadores, de suas técnicas, habilidades e experiências cotidianas. O caso da mineração aurífera é exemplar de como podemos pensar em outras regiões americanas, pois resta conhecer as conexões históricas entre a mineração nas Minas Gerais e no Reino de Angola com as desenvolvidas na América hispânica. Do ponto de vista dos mundos do trabalho, os estudos de Rossana Barragán descortinam as conexões globais da mineração em Potosí e, ao mesmo tempo, trazem à luz os trabalhadores das minas, suas vidas e relações. Aponta que mitayo, minga e kajchas representavam diferentes modalidades de trabalho (BARRAGÁN, 2017). Portanto, há muitos ganhos em analisar a história dos trabalhadores de Angola e em buscar as conexões do continente africano com o americano a partir de suas experiências.
Fontes documentais
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- ARQUIVO Histórico Ultramarino (AHU). Conselho Ultramarino (CU), Série - Angola (001): Cx. 42, D. 3907 - 3913; Cx. 46, D. 4261; Cx. 48, D. 47; Cx. 52, D. 27; Cx. 55, D. 6 e 7; Cx. 56, D. 10 e 13; Cx. 61, D. 103,104 e 105; Cx. 93A, D.1;
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- BIBLIOTECA Nacional de Portugal (BNP). Códice 8744(Microfilme 6443).
- PROJETO Acervo Digital Angola Brasil/Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). DVD 03,16 DSC000361.
- Revista Arquivos de Angola, v. 3, n. 29, 1958-1963.
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1
Cartas e documentos que embasam a portaria sobre os jornais dos povos vassalos assinada por Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho. São Paulo de Assunção de Luanda, dezembro de 1770 e início de 1771. Arquivo Histórico Ultramarino, AHU_CU_001, Cx. 55, D. 6 e 7 (Cotação antiga, consultar novo catálogo no site do AHU para encontrar a nova identificação: http://ahu.dglab.gov.pt/fundos-e-colecoes/). Há uma cópia da portaria passada em 7 de dezembro de 1771 no Códice 8744 (Microfilme 6443), na Biblioteca Nacional de Portugal.
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2
A história dos Axiluanda (plural de muxiluanda ou mexiluanda) ainda é pouco clara e não há estudos específicos sobre esse grupo sociocultural que focalizem períodos anteriores ao século XX (CARDOSO, 1972; CARVALHO, 1989). Sabemos que eram (e continuam a ser) moradores da Ilha de Luanda e que trabalhavam com a pesca, secagem e venda de peixe, o transporte de mercadorias e pessoas em suas canoas e nas embarcações oficiais da Coroa portuguesa como marinheiros. Nas fontes administrativas são citados diferentes etnônimos para este grupo: Muxiluanda, Mexiluanda, Maxiluanda, Mixiluanda, entre outros.
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3
Cópia do Termo da Junta da Fazenda Real do Reino de Angola assinado por Manuel da Cunha e Sousa, ouvidor e provedor da Fazenda Real, João Delgado Xavier, juiz de fora e procurador da Fazenda Real e Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, governador e presidente da Junta da Fazenda Real. São Paulo de Assunção de Luanda, 20 de julho de 1767. Este termo segue anexo a uma carta para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário do Conselho Ultramarino. São Paulo de Assunção de Luanda, 22 de agosto de 1768. AHU_CU_001, Cx. 52, D. 27.
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4
Os portugueses traduziam as relações de parentesco simbólico local segundo as lógicas do parentesco consanguíneo. Os “filhos” dos sobas eram seus dependentes, ligados às lideranças por noções de linhagem e pertencimento, segundo as hierarquias locais. Sobre os inventários citados e uma análise da constituição dessas portarias, ver Alfagali (2018, p. 189, cap. 1 e 3).
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5
A bibliografia sobre o Diretório dos Índios é exaustiva, os trabalhos mais atuais vêm enfatizando a importância de estudar regiões específicas da América portuguesa e sua aplicação. Bem como considera a agência indígena como componente central das negociações e resistências na confecção e prática da lei. Em geral, tende-se a ressaltar que é uma legislação nascida na colônia, a partir de determinações locais.
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6
A concorrência pela utilização de indígenas nos serviços públicos e particulares incomodava muito os colonos. Em 1703, a Companhia de Comércio do Maranhão apresentou à Coroa portuguesa uma exposição em que protestavam contra o emprego de 400 índios no serviço do Arsenal da Marinha (SOUZA JÚNIOR, 2013, p. 178). Para o Reino de Angola, vide Alfagali (2018, cap. 1 e 3).
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7
Carta do ouvidor-geral e corregedor da comarca de Angola, Joaquim Manuel Garcia de Castro Barbosa ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro. São Paulo de Assunção de Luanda, 30 de dezembro de 1778. AHU_CU_001, Cx. 61, D. 103,104 e 105. Agradeço a Hugo Ribeiro da Silva por essa indicação.
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8
Carta de José Álvares Maciel para Miguel Antonio de Melo, governador de Angola. São Paulo de Assunção de Luanda, 1o de novembro de 1799. AHU_CU_001, Cx. 93A, D. 1.
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9
Idem.
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10
Há uma tendência historiográfica em associar trabalho não livre à escravidão para períodos anteriores ao século XIX, à época da abolição. Como explica Robert Steinfeld (1991, p. 9), a história social do trabalho e dos trabalhadores não pode ser encerrada em uma ideia simplificadora de transição ou substituição do trabalho escravo para o chamado “livre”. Essa premissa passa a ideia falseada de que não era possível existir diversos regimes de trabalho no período pré-emancipação e de que a abolição do tráfico e da escravidão extinguiram o trabalho compulsório em todas suas variantes. Pelo contrário, ao longo do tempo, vemos a substituição de um conjunto de práticas históricas de trabalho, constituído por diferentes regimes de trabalho compulsórios e não-compulsórios, por outro, igualmente formado por diferentes regimes de trabalho compulsórios e não compulsórios.
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11
Em resumo, a guerra contra aqueles que resistiam à conversão ao cristianismo. Sobre o conceito de guerra justa, ver Domingues (2000).
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12
Cito, a título de exemplo, os recentes artigos de Camila Loureiro Dias para o Estado do Maranhão: Dias (2017) e Dias e Bombardi (2016).
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13
Sobre administração particular em São Paulo, ver Monteiro (1994).
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14
Reunimos essas designações ao longo da pesquisa. Ver Silva Correa (1937, v. I e II) e Cadornega (1972, v. I, II e III).
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15
Unidades politicamente autônomas africanas.
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16
“Pois não há negociante naquela província [Ambaca] que não tenha duas e três libatas, ou povoações agregadas a si para serviços próprios, aos quais povos defendem, e patrocinam tanto como a seus escravos, pois como tais se servem deles, e o mesmo se pratica em todas as jurisdições [...]”. Carta de Joaquim de Bessa Teixeira, intendente geral da fábrica do ferro da Nova Oeiras, para Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, governador de Angola. Nova Oeiras, 28 de dezembro de 1771. Arquivos de Angola, v. 3, n. 29, 1958-1963, p. 361-393.
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17
Outro exemplo é o estudo de Isadora Lunardi Diehl (2015, p. 211-229).
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18
Ronald Raminelli (2015) alerta para levarmos em consideração a perspectiva indígena ao estudar a conformação das nobrezas do Novo Mundo. Considera que as insígnias das Ordens Militares portuguesas tinham significados diferentes para portugueses e indígenas. O autor demonstra, por exemplo, que o acesso a formas de nobilitação dos portugueses alterou o modo como as lideranças Tupi se constituíam. De acordo com a tradição, eram lideranças efêmeras e não hereditárias. A partir do acesso às hierarquias coloniais surgiu a possibilidade de uma só família controlar a mesma comunidade por gerações.
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19
Joaquim de Bessa Teixeira, intendente geral da fábrica do ferro da Nova Oeiras, para Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, governador de Angola. Nova Oeiras, 28 de dezembro de 1771. Arquivos de Angola, v. 3, n. 29, 1958-1963, p. 361-393.
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20
Em outro texto Ferreira (2014, p. 70) afirma que uma das principais razões para as fugas de cativos, em Angola, eram justamente as condições extenuantes de trabalho, afirmação que relativiza a tese de que os africanos escravizados fugiam e formavam comunidades de fugitivos apenas pelo receio de serem embarcados e acabarem nas malhas do tráfico transatlântico.
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21
Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras. São Paulo de Assunção de Luanda, 14 de maio de 1760. AHU_CU_001, Cx. 46, D. 4261.
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22
Sobre as atividades e técnicas de pesca utilizadas, ver Venâncio (1996, p. 95-103) e Parreira (1997, p. 51-52). Ainda sobre as peixeiras e os mercados em Luanda, conferir Suely Almeida (2013, p. 207-227).
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23
Portaria para se acrescentar o soldo aos Mexiluandas que andarem embarcados. São Paulo de Assunção, 7 de setembro de 1770. Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), Códice 8744, Microfilme 6443, fl. 21 e ss.
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24
Carta de Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, governador de Angola, ao rei de Portugal. São Paulo de Assunção de Luanda, 10 de janeiro de 1771. AHU_CU_001, Cx. 55, D. 6 e 7.
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25
Portaria. Luanda, 23 de agosto de 1813. Arquivo Histórico Nacional de Angola (AHA), Códice 277, fl. 84.
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26
Entre outros: AHU_CU_001, Cx. 48, D. 47; AHU_CU_001, Cx. 56, D. 10, 13; Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC), Coleções Condes da Cunha, Livro VI; Projeto Acervo Digital Angola Brasil/IHGB, DVD 03,16 DSC000361.
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27
PADAB/ IHGB, DVD 03,16 DSC000361. Constam estar também sob a autoridade dos sobas Mani Quanza e Mani Quivinji.
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28
O número salta aos olhos, mas é o que foi registrado pelo autor do documento; lembrando que valiam-se do regime de recrutamento parcial, ou seja, essa é a quantia de pessoas que trabalharam durante dois anos ali, não necessariamente ao mesmo tempo. Nas Minas Gerais, durante o auge da mineração aurífera, a média aproximada de escravizados na região era de 100.000 pessoas (LIBBY, 2007, p. 407). Carta de Antonio de Vasconcelos, governador de Angola, para Tomé Joaquim da Costa Corte Real. São Paulo de Assunção, 6 de janeiro de 1759. Arquivo das Colônias, v. V, n. 30, 1930, p. 148. Este e outros documentos sobre o assunto podem ser encontrados em: AHU_CU_001, Cx. 42, D. 3907 - 3913.
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29
Arquivo das Colônias, v. V, n. 30, 1930, p. 148.
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Relatório elaborado por Antonio Álvares da Cunha e dirigido ao presidente do Conselho Ultramarino sobre sua administração em Angola, de 1753-1758. Belém, s/d. AU), ACU, Coleções Condes da Cunha, Livro VI - III - 1-2-13, documento 128.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Ago 2021 -
Data do Fascículo
May-Aug 2021
Histórico
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Recebido
13 Abr 2020 -
Aceito
10 Set 2020