Em 25 de maio de 2020, a morte de George Floyd, um homem negro, em Minneapolis, por um policial branco, reascendeu uma onda de protestos trazendo novamente à tona questionamentos sobre como se dá a atuação das forças policiais contra a comunidade negra. Episódios como este têm sido recorrentes nos últimos anos: em 2014, em Ferguson, no Missouri, um policial branco matou o jovem de 18 anos, Michael Brown, e em 2015, em Baltimore, Freddie Gay, de 25 anos, também foi assassinado por um policial branco. Tal contexto nos faz indagar: quais são os fatores que levam a uma crescente violência contra as comunidades negras estadunidenses? O livro Ghetto: the invention of a place, the history of an ideia de autoria de Mitchell Duneier, de 2016, nos mostra que qualquer tentativa de compreensão desse fenômeno desassociada de uma análise de longa duração terá seu objetivo frustrado.
Professor de Sociologia da Universidade de Princeton, Duneier é autor de livros como Slim’s Table: Race, Respectability, and Masculinity, que venceu em 1994 o prêmio de melhor publicação acadêmica da American Sociological Association, e de Sidewalk, de 1999, que ganhou o prêmio de melhor livro pelo jornal Los Angeles Times. Formado em Direito pela Universidade de Nova Iorque, Duneier obteve seu doutorado pela Universidade de Chicago em 1992, tendo como objeto de estudo a etnografia urbana dos anos de 1920. Em Ghetto, o autor historiciza a construção desse conceito, mostrando como sua utilização foi mobilizada em diferentes contextos em virtude de questões sociais e políticas específicas. O livro abrange uma temática atual, uma vez que grande parte dos pontos abordados ao longo de seus seis capítulos permanece ainda hoje manifesto, e assistimos a uma retomada desses mesmos discursos no cenário político.
Ao selecionar quatro acadêmicos negros para apresentar como essa discussão foi desenvolvida entre os anos de 1940 e 2000, Duneier evidencia uma complexa rede intelectual com circulação de informações, destacando a recepção de alguns livros e a articulação desse debate com propostas políticas, indicando que a problemática tratada em Ghetto ocupou um papel central na consolidação do campo sociológico estadunidense e na formação da identidade nacional do país.
As figuras-chave apresentadas nos capítulos dedicados a elas retornam à sua análise em outros momentos, demostrando o desafio que é propor um estudo que objetive compreender como se dá a inserção do negro no espaço urbano dos Estados Unidos. Em seu prefácio, o autor indica quais foram os fatores que o levaram a desenvolver sua reflexão, em especial, mostrar a validade de um conceito que hoje é associado a uma imagem estigmatizada e estereotipada das comunidades afro-americanas. Ao questionar seus alunos sobre o que eram os guetos, muitos se surpreenderam que as primeiras comunidades que viviam nesses locais eram judias e não negras, algo que o levou a perceber que o conceito original dessas formações urbanas havia sido esquecido (DUNEIER, 2016DUNEIER, Mitchell. Ghetto: the invention of a place, the History of an idea. Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux, 2016., p. X).
No primeiro capítulo “Nazi Deception” é apresentada a trajetória de W. E. B. Du Bois, enquanto estudante de Filosofia na Universidade de Berlim nos anos de 1890, e seu estranhamento com o fato de que, naquele país, as questões raciais não estavam restritas a cor, experiência que foi explorada por este autor no livro The Negro and the Warsaw Ghetto. Utilizando esse episódio para demonstrar como a condição dos judeus na Alemanha se inseria em uma longa tradição de isolamentos em toda a Europa, que remontava à Veneza quando, em 1516, foi determinado o isolamento desta população na ilha de Cannaregio, o autor demonstra que o isolamento se tornou parte constitutiva do que era ser judeu, e sua segregação era atribuída a fatores religiosos, lógica que foi alterada no regime nazista. Duneier considera que os guetos nazistas representavam o exercício máximo do poder de Estado, e apesar de retomarem a tradição da Idade Média, a prática que consolidaram era completamente nova, especialmente por evidenciarem a possibilidade de controle total sob uma população e por justificarem o isolamento pautado na raça e não em questões religiosas. Sendo assim, dadas essas diferenças, o autor manifesta estranheza pelo fato de Louis Wirth, no World Book Encyclopedia, de 1947, utilizar o termo que já existia para se referir a esse fenômeno, sem criar um conceito que opusesse a prática veneziana, que permitia o florescimento de uma cultura própria apesar do isolamento, às circunstâncias criadas pela experiência nazista (p. 24).
O capítulo dois “Chicago, 1944: Horace Cayton” retrata a contradição que envolveu a luta dos negros estadunidenses pela libertação dos judeus na Alemanha, gerando uma crescente analogia nos periódicos da época sobre as condições similares dos grupos (p. 28). Assim, o termo gueto passou a ser utilizado para se referir à segregação em que viviam sob os Race Restrictive Convenant, que foram abolidos apenas nos anos 1950. Os acordos eram dispositivos legais que criavam um zoneamento racial, que anteriormente já haviam sido usados para barrar a mobilidade de asiáticos e judeus. Eles determinavam que vizinhos pudessem estipular que nenhum deles venderia, alugaria ou doaria sua propriedade para não caucasianos, e assim foi estabelecida a restrição territorial que levou ao superpovoamento nos bairros negros (p. 29).
Cayton estudou na Universidade de Chicago, e lá travou contato com Robert Ezra Park, que incentivava os estudos produzidos a partir da observação das comunidades, e Louis Wirth, seu mentor e autor de The Ghetto, que propunha que esses locais, apesar de serem espaços de controle e isolamento, permitiam expressões culturais e religiosas daquela minoria. Contudo, Wirth era partidário de um processo assimilatório, pontuando que o isolamento criava marcas raciais nos indivíduos (p. 39). Para Duneier a razão pela qual tantos sociólogos assumiram a leitura de Wirth sobre esse fenômeno, foi motivada por questões políticas, uma vez que muitos eram favoráveis aos projetos assimilacionistas (p. 43). Contudo, o autor pontua que ao considerar que os imigrantes seriam assimilados conforme sua vontade, esses autores não levavam em consideração o racismo que circulava pela sociedade (p. 47).
Duneier destaca como An American Dilema, pesquisa desenvolvida pelo economista Gunnar Myrdal, ocupou um espaço central nas questões raciais até os anos de 1970. Patrocinado pela Carnegie Corporation, o suíço foi escolhido por representar um “olhar neutro” para a compreensão da situação do negro nos Estados Unidos (p. 53). Myrdal contratou inúmeros pesquisadores brancos e negros para comporem seu projeto, entre eles, Kenneth Clark. Porém, suas tratativas para incluir Cayton em sua equipe e seus dados sobre Chicago não foram bem-sucedidas, prejudicando a abrangência de sua análise, que se restringiu às questões do Sul. Isto gerou limites em sua compreensão e, segundo Duneier, a maior fragilidade de seu trabalho, concluir que a solução para a segregação e exclusão viria dos próprios brancos, naturalmente, que não conseguiriam coexistir com esse sistema opressivo.
Em contraposição, Cayton e Drake publicaram, em 1945, Black Metropolis, frisando as particularidades dos bairros negros, caracterizados como locais de repressão externa, com instituições inferiores às de outras localidades (p. 66). Além de contradizerem o argumento da Escola de Chicago de que a distribuição dos indivíduos no espaço urbano era natural, os autores destacavam que não ocorreriam mudanças nessas condições apenas pela vontade dos homens brancos, uma vez que estes estavam mais preocupados com a manutenção de seus privilégios do que com a manutenção dos valores democráticos, uma clara contraposição ao trabalho de Myrdal. Embora abordem os problemas desses territórios, ao recuperarem a história do bairro Bronzeville, em Chicago, Cayton e Drake propõem que, apesar de ter sido fundado com uma forma de manutenção da pureza racial dos brancos, o local permitiu o florescimento de uma cultura negra (p. 82).
No terceiro capítulo, “Harlem, 1965: Kenneth Clark”, é revelada a trajetória do pesquisador que se tornou um expoente para o movimento dos direitos civis. Tanto Kenneth, quanto sua esposa Mamie obtiveram seus mestrados pela Universidade de Howard, e foram os primeiros negros a se doutorarem em Psicologia na Universidade de Columbia. Juntos criaram uma organização para auxiliar os jovens do Harlem. O doutorado de Kenneth Clark e seu experimento certificou que crianças negras tendiam a preferir as bonecas brancas, demonstrando como as crianças que cresciam em comunidades segregadas se tornavam conscientes de sua negritude e introjetavam sentimentos de inferioridade. Seu trabalho foi utilizado na disputa Brown vs. Board of Education, de 1954, responsável pelo fim da segregação escolar (p. 88-89).
Clark foi um dos primeiros pesquisadores a identificar que as pautas do movimento pelos direitos civis do Sul não seriam suficientes para o Norte, que enfrentavam a segregação na moradia e um grande abuso policial (p. 90). Em Dark Ghetto, publicado em 1965, o autor propõe que o gueto era uma colônia que promovia o enriquecimento de pessoas que viviam fora dele e era o governo quem criava esses espaços de pobreza, produtos do capitalismo (p. 134-135). Apesar de testemunhar os avanços do Fair Housing Act (1968), que proibia qualquer discriminação na venda, aluguel ou financiamento de casas pautada em raça, cor ou religião, no mesmo ano em que Martin Luther King foi assassinado, Clark continuou a manter sua opinião de que a discriminação era fruto do sistema capitalista. Duneier destaca que é nesse contexto que vemos o fim dos possíveis pontos em comum com outras experiências de isolamento que permitiam o florescimento de uma cultura negra.
No quarto capítulo, “Chicago, 1987: William Julius Wilson”, é possível distinguir a importância que este sociólogo da Universidade de Chicago desempenhou no debate racial, especialmente após ser contratado para lecionar na Universidade de Massachusetts, e se tornar colega de Milton Gordon, um especialista em imigração que defendia que o espaço social era uma intersecção entre raça e etnia com a classe social (p. 142). Em 1978, ao publicar Declining Significance of Race, Wilson argumentou que, após uma reformulação nos conflitos econômicos, a questão central passou a ser de classe, uma vez que a ascensão econômica de alguns negros havia decretado o fim da “comunidade negra” (p. 143). Para Duneier, possivelmente o autor percebeu que, em um governo como o de Ronald Reagan, em que havia um crescente questionamento a respeito da necessidade de gastos com programas sociais, propor iniciativas que também contemplassem a população branca poderia ser um caminho viável (p. 153).
Em resposta a essa análise, Kenneth Clark escreveu um artigo pontuando que a raça continuava a ser o fator preponderante para pensar a inserção do negro na sociedade americana, e pressupor que a classe média negra possuía à época as mesmas oportunidades de trabalho que os brancos significava ignorar o crescimento do preconceito racial (p. 145). As críticas também destacavam que os motivos que geravam os guetos persistiam, e que a pobreza desses locais não poderia ser atribuída à ascensão do negro, mas sim à persistente segregação racial, com pouca mobilidade residencial, uma vez que o mercado imobiliário continuava a gerar vantagens para brancos (p. 159). Contudo, em 1996, quando Wilson publicou When Works Disappears - The World of the New Urban Poor, vemos a manutenção do argumento de que o gueto está associado à classe, significando qualquer área em que 40% dos moradores vivam em pobreza, independentemente da raça. Para Duneier, é retomado o sentido atribuído pela Escola de Chicago, em que não há a referência a uma força externa fazendo o controle daquele espaço (p. 168).
No capítulo “Harlem, 2004: Geoffrey Canada”, é apresentado o projeto criado como uma alternativa ao crescente investimento no encarceramento e no sistema punitivo. Após crescer no Harlem e ter aprendido o “código da rua” para a sobrevivência no gueto, o educador Canada acreditava que as soluções não viriam de uma mudança macroeconômica, mas sim de ações na escala microscópica, algo que coadunava com a agenda neoliberal do período. Sendo assim, criou o Harlem Children Zone, que contou com o financiamento dos bilionários de Nova Iorque. Sua instituição conseguiu demonstrar como o aprendizado desde anos iniciais era capaz de promover uma mudança na vida dessas crianças, fazendo com que o governo de Barack Obama considerasse sua implantação em todo o país. Contudo, pesquisadores logo demonstraram os limites dessa iniciativa, que não conseguiu promover mudanças substanciais no modo de vida do Harlem, tendo um impacto restrito apenas às crianças atendidas pelo programa (p. 210). Duneier concebe uma continuidade entre a proposta do casal Clark e o que foi realizado por Canada e relata que Wilson apoiou o programa em virtude da ampliação no acesso a oportunidades de trabalho, ressaltando que, assim como Wilson foi usado pelos liberais para minimizar a importância da questão racial, Canada foi instrumentalizado para propor que a solução para a pobreza residia em parcerias público/privadas, não sendo necessárias mudanças estruturais (p. 216).
Em seu último capítulo, “The Forgotten Ghetto”, o autor faz um balanço de todas as questões propostas ao longo de seu livro, indicando que, se em um primeiro momento o gueto negro encontrava similaridades com a experiência veneziana, havendo o florescimento cultural, tal como a Bronzeville de Cayton e Drake, já no início dos anos 1960, especialmente nas análises de Clark, vemos que esse sentimento foi substituído pelo entendimento daquele espaço como foco de patologias e controlado por agentes externos. Para Wilson, o gueto se tornou o símbolo do desemprego, da violência, um local despovoado pela classe média, algo que promoveu um grande isolamento social com relação ao resto da sociedade e, por fim, Geoffrey Canada tentou lidar com esses estigmas criando a Children Zone.
Para o entendimento do que é o gueto negro nos dias atuais o autor levanta pontos importantes, relatando que os negros sempre viveram em isolamento, seja por questões raciais, seja por questões financeiras, e o cenário hoje só é menor porque os latinos também residem nesses locais e este isolamento no espaço aconteceu e acontece sem prejuízo para outras parcelas da população que habitam a cidade. Apenas conseguimos compreender esses locais se o considerarmos como um fenômeno intergeracional, isto é, fruto de sucessivas políticas deletérias acumuladas por várias gerações, que tentaram apenas modificar o espaço físico, sem resolver as questões responsáveis por criá-lo.
Duneier destaca que o conceito continua a possuir validade, contanto que possamos ao utilizá-lo compreender as várias nuances de controle e a possibilidade de florescimento de uma cultura própria (p. 220), ainda que ao longo das páginas da obra não fique claro quais são essas expressões e o que caracterizaria esse florescimento. Ao criar uma contraposição do gueto negro dos anos de 1940, com o que passou a existir posteriormente, o autor parece corroborar a ideia de que, em virtude da pobreza, esses locais não puderam criar manifestações culturais. Sendo assim, parece haver uma associação entre a saída da classe média desse espaço e o fim da possibilidade de efervescência cultural, algo que não abrangeria a criação do Hip-hop e do Rap, para citar alguns exemplos. Dessa forma, seu estudo se restringe a analisar a atuação de figuras proeminentes na academia, porém não questiona algumas de suas construções retóricas, uma delas poderia ser uma visão sobre o que é cultura. Ainda assim, seu estudo consegue sintetizar esse dilema com uma narrativa fluida, que permite inúmeras entradas e desdobramentos para esse objeto, oferecendo uma chave de compreensão dessa trama.
Referência
- DUNEIER, Mitchell. Ghetto: the invention of a place, the History of an idea. Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux, 2016.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
26 Ago 2022 -
Data do Fascículo
May-Aug 2022
Histórico
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Recebido
09 Out 2020 -
Aceito
08 Mar 2021