Em reflexão bastante conhecida pelos historiadores, Certeau (2007) afirmou que a produção historiográfica aconteceria sob controle de uma comunidade de especialistas reunidos em um “lugar social” que autoriza e interdita temas e abordagens. Toda historiografia chancelada como profissional seria resultado de dispositivos de poder que nem sempre explícitos e por vezes manifestados na forma de “não ditos” condicionariam o trabalho dos historiadores. Esse lugar social é a universidade moderna, centro de produção do conhecimento científico, dotada de autonomia institucional e reconhecida como espaço de autoridade intelectual.
Essa teoria do conhecimento histórico ainda é válida hoje, quando os saberes circulam e são consumidos nas mídias digitais, com autoridades disciplinares constantemente desafiadas em um debate público superampliado pela tecnologia? Como a tecnologia digital impactou a “operação historiográfica”, tanto naquilo que se refere à produção do conhecimento histórico como em relação ao seu consumo? O livro Lembrança do presente (2021), escrito por Mateus Pereira, nos ajuda a refletir sobre essas questões. Meu objetivo nesta resenha é discutir com o autor, apresentando seus argumentos, apontando o que, na minha avaliação, são suas potencialidades e fragilidades.
Inspirado em Henri Bergson, Pereira formula a ideia de “lembrança do presente” como categoria heurística capaz de definir aquela que seria a principal característica da cultura histórica contemporânea. Talvez já vacinado pelas críticas direcionadas ao “Regime de Historicidade” de François Hartog1, Pereira deixa claro que não existe uma única “experimentação do tempo”, mas sim várias, indo das “mais passageiras” até as “mais estáveis” experimentações do tempo e da história. Feitas essas ressalvas, o autor assume como premissa a ideia de que a “interdição do futuro” é o sentimento que estrutura as atuais percepções de tempo. A proposta do livro é “(re)articular memória, ética, escrita da história e experiência do tempo, tomando a sério um dos principais acontecimentos da nossa época: a internet” (PEREIRA, 2021, p. 14).
O argumento central afirma que, com o advento da internet, as percepções coletivas do tempo foram impactadas, alterando as relações entre historicidade, memória coletiva e historiografia. O livro está dividido em quatro ensaios: no primeiro, o autor desenvolve conceitualmente seu argumento central, interrogando qual seria o “lugar da disciplina História em um tempo que flerta com a sedução de uma história on-line” (p. 19). No segundo, retoma a análise já desenvolvida em artigo publicado em 2015, a respeito das “batalhas de memória” envolvendo o tema da ditadura militar brasileira, que teriam servido como identidade ideológica para uma “nova direita” em ascensão no país. No terceiro, a Wikipedia é tomada como objeto de análise, considerada prática de popularização da história e de construções de práticas coletivas de autoria historiográfica. No quarto, a cena política brasileira contemporânea é trazida ao primeiro plano, no que se refere à guerra de informações travada na internet na conjuntura da crise democrática em curso no país. Nem todos os argumentos são originais, pois em vários momentos das 140 páginas, Pereira retoma reflexões já conhecidas para o leitor familiarizado com sua obra. Isso não chega a ser um problema, pois Lembrança do presente cumpre bem a função de reunir em um só volume as reflexões de um dos mais produtivos e criativos historiadores brasileiros, atento observador da contemporaneidade.
A relação entre tecnologia digital, historicidade e historiografia vem sendo explorada há algum tempo por uma ampla e variada bibliografia, com a qual Lembrança do presente se soma, no conjunto dos textos incontornáveis sobre a questão. São seminais os trabalhos de Gumbrecht (2015) e do já citado Hartog. Em livro assinado com Valdei Araujo (2018), Mateus Pereira reconhece a dívida com esses autores, fundamentais para a teorização da temporalidade “atualista”. Em Atualismo: como a ideia de atualização mudou o século XXI, Mateus Pereira e Valdei Araujo deixam claro que suas reflexões a respeito do “atualismo” bebem nos argumentos de Gumbrecht e Hartog que, cada um a seu modo, definem o presente como estrato de tempo hegemônico na historicidade contemporânea. Porém, os historiadores brasileiros argumentam que não se contentam em, simplesmente, dar continuidade a essas análises. A pretensão é mais ambiciosa: propor uma teoria original (ambição rara entre intelectuais do sul global) para a semântica contemporânea dos tempos históricos. A temporalidade “atualista” consiste nos impasses da historicidade contemporânea, característicos da “era digital”. Em um mundo que se expressa em linguagem computacional, onde as expectativas progressistas da modernidade foram esvaziadas em função da busca pela eficiência atualista no processamento de dados (e aqui a “condição pós-moderna”, de Lyotard, também é referência importante), a constante “atualização” se torna imperativo de época. Em diversos aspectos, Lembrança do presente aprofunda e sustenta empiricamente hipóteses que Mateus Pereira desenvolveu em parceria com Valdei Araujo no Atualismo. Recomendo a leitura articulada dos dois livros, que se complementam, explorando o mesmo universo de preocupações. Já figuram entre os mais importantes textos da historiografia brasileira contemporânea.
Essa temporalidade atualista impactou diretamente o ofício do historiador, a produção e o consumo do conhecimento histórico. É nessa discussão que o livro de Mateus Pereira apresenta sua principal contribuição, não apenas aos estudos especializados na teoria da história e da história da historiografia, mas também à história política da crise democrática brasileira. Ao implodir as fronteiras cronológicas delineadas pela tradição historicista e que permitiram que o presente tomasse o passado como objeto de estudos de uma ciência autônoma, a temporalidade atualista coloca o historiador em outra posição que não somente a do cientista especializado. Hoje, os historiadores não tratam o passado apenas como objeto de investigação, mas também como parte das disputas ético/políticas do tempo presente, nas quais os próprios historiadores são atores engajados. Impossível não perceber aqui os ecos das discussões a respeito do “engajamento ético/político” da historiografia contemporânea, de Marcelo Rangel (2015). É nesse sentido que, ao discutir o necessário combate aos negacionismos históricos, Pereira se afasta da agenda proposta por Vidal-Naquet na década de 1980, que sugeriu a afirmação do método histórico como meio de enfrentar os negacionistas. Seria necessário, para usar as palavras de Naquet, “pisar no terreno da história positiva” e, “rankeanamente”, provar que os revisionistas estavam mentindo (NAQUET, 1988, p. 35). Pereira tem outra proposta, bem mais adequada ao enfrentamento da negação nas “disputas de memória” travadas na arena da tecnologia digital. Se o sentido histórico não é produzido unicamente pela comunidade profissional e pelas instituições que autorizam a historiografia especializada, não há razão para acreditar que o combate à negação pode ser feito apenas no plano metodológico. O enfrentamento deve acontecer, também e fundamentalmente, no plano da “interpretação engajada do ponto de vista ético, político e existencial” (PEREIRA, 2021, p. 91). Esse engajamento ganha dimensão concreta no texto, principalmente quando o autor afirma que os historiadores brasileiros do tempo presente não deveriam limitar suas preocupações à cronologia da ditadura militar. Pereira sugere a ampliação dessas pretensões para a prática da “historicização de eventos e estruturas que se produzem na esfera da visualização imediata comum aos autores e aos leitores do discurso” (p. 29). O historiador do tempo presente precisaria ter como agenda intelectual e política a produção de sentido histórico para consumo imediato nos termos de uma intervenção pública comprometida com os valores democráticos e com os princípios dos direitos fundamentais, entre os quais estaria o direito de ter acesso ao conhecimento histórico produzido por profissionais especializados. Lembrança do presente convida os historiadores profissionais a se engajarem, a serem, também, militantes, no melhor sentido que as palavras “engajamento” e “militância” possam ter. Essa dimensão programática é o grande mérito do livro de Mateus Pereira.
Há, por outro lado, argumentos que considero problemáticos e dos quais discordo desde que os vi sendo formulados pelo autor em trabalhos anteriores. Me refiro especialmente à afirmação de que a “comunidade de memória”, que nega os crimes praticados pela ditadura militar, não existiria se o Brasil, a exemplo do que fizeram outros países latino-americanos, tivesse feito a “justiça de transição”, com a punição dos agentes públicos que naquele período cometeram crimes contra os direitos humanos.
Nossa primeira hipótese é que o revisionismo e a negação brasileira são alimentados, em grande medida, pela impunidade (ausência de justiça, muito em função da permanência da Lei da Anistia) e pela ausência de arrependimento, remorso ou culpa por parte dos algozes diretos e indiretos e dos apoiadores de ontem e de hoje (PEREIRA, 2015, p. 865).
Em grande medida, a impunidade em relação aos crimes praticados pelo Estado durante o período de 1964-1985 é o principal motor que faz com que essa comunidade de memória persista, cresça, transforme-se e, sobretudo, que não sinta ou manifeste remorso ou culpa e, por consequência, não aceite nem reconheça qualquer tipo de erro. (…) Nessa perspectiva, essa comunidade de memória luta contra qualquer inscrição da experiência autoritária. (PEREIRA, 2021, p. 51)
Seis anos separam as duas citações. A primeira pode ser encontrada no já citado artigo publicado em 2015. A segunda foi extraída do livro Lembrança do presente. Como podemos perceber, o argumento se mantém intacto, com a diferença de que, no texto de 2021, Pereira chega a dizer que se o país tivesse realizado ainda nos anos 1980 a justiça de transição “talvez Bolsonaro pudesse não ter sido eleito, em especial depois de ter homenageado o torturador Carlos Brilhante Ustra em seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff” (PEREIRA, 2021, p. 52). A projeção pública do negacionismo e a própria vitória eleitoral de Bolsonaro em 2018 são explicadas por aquilo que seria o erro capital da “Nova República brasileira”: a ausência de uma justiça de transição que levasse os agentes da ditadura ao banco dos réus. Antes de formular minha crítica, desejo deixar claro que concordo plenamente que o país deveria, sim, ter feito a justiça de transição. É inadmissível que agentes públicos pratiquem crimes bárbaros e imprescritíveis e, simplesmente, se aposentem de suas funções, vivendo tranquilamente com a integralidade de seus proventos. Minha inquietação, portanto, é de ordem moral. Minha discordância com Pereira é de ordem analítica. Penso que o autor exagera ao explicar os dilemas contemporâneos da democracia brasileira de forma monocausal, como se nossos males tivessem origem única. Trata-se de uma leitura que desconsidera as particularidades do Brasil, supervaloriza a esfera do direito penal e ignora a capacidade do negacionismo histórico em produzir sentido histórico. Explico melhor.
Em diversos aspectos, o Brasil é singular no conjunto das nações latino-americanas. Mais de 5.500 municípios, mais de 200 milhões de habitantes, grotões de miséria no interior de um território continental. Extrema dificuldade para universalizar políticas públicas que garantam o acesso da população ao ensino básico de qualidade. Questiono, então, se a violência política perpetrada pela ditadura contra intelectuais, sindicalistas e ativistas políticos, quase todos vivendo em grandes cidades, se configurou mesmo como trauma orgânico para a totalidade da população. Em palavras mais diretas: talvez, para a maioria da população, sem acesso à educação de qualidade e convivendo diariamente com extremas dificuldades materiais, os crimes da ditadura, simplesmente, não tenham dimensão de trauma, talvez não sejam sequer conhecidos. É como se, por uma espécie de resiliência mórbida, cuja razão de existir se encontra na pobreza estrutural que acomete a maior parte de nosso povo, os traumas coletivos tenham dificuldade de se inscreverem na memória nacional. Acredito, portanto, que, por si só, a justiça de transição não impediria a projeção dos negacionismos históricos e a vitória Bolsonaro em 2018. Sem a universalização do ensino básico de qualidade, sem a consolidação de uma situação de bem-estar social mínimo para a totalidade da população, sem a real concretização dos preceitos da Constituição democrática de 1988, é impossível enterrar os entulhos autoritários que herdamos da ditadura. “Democracia” não é valor abstrato e precisa ser pensada como experiência concreta, na forma de acesso a direitos sociais básicos.
Outro aspecto que é ignorado na discussão de Pereira refere-se à capacidade da narrativa negacionista em produzir sentido histórico, no significado que Jörn Rüsen atribui ao termo. Como já mostraram alguns pesquisadores2, o discurso negacionista é dotado de capacidade semântica. Acionando, por exemplo, o recurso da síntese explicativa, os negacionistas apresentam o ordenamento das experiências sociais em uma totalidade processual, estabelecendo nexos e relações de causalidade que vindos do passado chegam até o presente, prometendo explicar, à luz da história, por que chegamos até aqui. Por mais que seja necessário denunciar a dimensão eticamente repulsiva do negacionismo histórico, a denúncia, por si só, não basta. É fundamental tomar a questão como problema teórico e historiográfico, analisando as especificidades dos tipos de negacionismo histórico existentes na cena pública contemporânea, buscando compreender seus dispositivos discursivos e, a partir disso, traçar estratégias de enfrentamento. Ao dizer que “certamente o melhor caminho para o Brasil, no atual momento, é transformarmos alguns tipos de negacionismo em crime” (PEREIRA, 2021, p. 52), Pereira reduz o problema à esfera do direito penal. Ao concentrar seus esforços no lamento pela não realização da justiça de transição e pela reivindicação de punição penal aos que negam os crimes cometidos pela ditadura, o autor pouco avança na apreciação teórico/política daquele que, hoje, talvez seja o principal desafio para os historiadores brasileiros.
Retomando as questões que apresentei no início, concluo dizendo que a teorização realizada por Certeau não é adequada aos nossos dias. A internet demoliu a concepção cartesiana de autoridade epistemológica, fazendo-o não apenas nas ciências humanas, mas também nas ciências “exatas”. Nesse sentido, Lembrança do presente apresenta uma discussão “atualizada” (com o perdão do trocadilho) sobre os dilemas que envolvem o fazer historiográfico num mundo onde qualquer pessoa com um smartphone conectado à internet consegue reivindicar para si a condição de produtor do conhecimento histórico. Essa diluição da autoridade disciplinar é algo positivo ou negativo? Mateus Pereira não apresenta resposta definitiva. Faz algo ainda mais importante: inventaria dilemas, leva seu leitor a perceber as particularidades e os desafios do fazer historiográfico na nova situação imposta pelo advento da internet. Lembrança do presente é leitura de formação para aqueles que fazem, ou pretendem fazer, do estudo do passado uma prática profissional.
Referências
- ARAUJO, Valdei; PEREIRA, Mateus. Atualismo: como a ideia de atualização mudou o século XXI. Mariana: Ed. SBTHH, 2018.
- CERTEAU, Michel de. A escrita da história Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
- GUMBRECHT, Hans Ulrich. O nosso amplo presente: o tempo e a cultura contemporânea. São Paulo: Ed. Unesp, 2015.
- HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
- NAQUET-VIDAL, Pierre. Os assassinos da memória Campinas: Papirus, 1988.
- NICOLAZZI, Fernando. Brasil paralelo: restaurando a pátria, resgatando a história: a Independência entre memórias públicas e usos do passado. SEMINÁRIO 3x22: INDEPENDÊNCIA, MEMÓRIA E HISTORIOGRAFIA, 24-28 maio 2021.
- NICOLAZZI, Fernando. A História entre tempos: François Hartog e a conjuntura historiográfica contemporânea. História: Questões e Debates, Curitiba, n. 53, p. 229-257, jul.-dez. 2010.
- PEREIRA, Mateus Henrique Faria. Lembrança do presente Belo Horizonte: Autêntica , 2021.
- RANGEL, Marcelo de Mello. Teoria e história da historiografia: do giro linguístico ao giro ético-político. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 17, p. 318-332, abr. 2015.
- PEREZ, Rodrigo. Por que vendem tanto? O consumo de historiografia comercial no Brasil em tempos de crise (2013-2019). Revista Transversos, Rio de Janeiro, n. 18, p. 64-85, 2020.
- PIMENTA, João Paulo. História do presenteísmo, história presentista? A propósito de Regimes de Historicidade, de François Hartog. Revista de História, São Paulo, n. 172, p. 399-404, 2015.
- RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. História da Historiografia, n. II, mar. 2009.
-
1
O historiador francês teria universalizado a ideia de “presentismo”, sem a devida sustentação empírica, subestimando, assim, experiências subalternas/alternativas do tempo. A crítica foi desenvolvida, de modos distintos, por Fernando Nicolazzi (2010) e João Paulo Pimenta (2015).
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2
Destacamos os trabalhos de Nicolazzi (2021) e Perez (2020).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Ago 2023 -
Data do Fascículo
May-Aug 2023
Histórico
-
Recebido
06 Jun 2022 -
Aceito
24 Out 2022