Resumo:
O artigo objetiva pensar a existência de um corpo feio como insurreição curricular frente às estratégias de embelezamento capitalísticos e aposta na possibilidade de indagar as belezas. Apesar de toda uma política organizacional curricular que enaltece o corpo asséptico, belo e convidativo, propõe-se pensar o corpo para além da servidão estética capitalística. Se o imperativo é estético, ela faz zombaria na feiura.
Palavras-chave: Currículo; Insurreição; Beleza; Capitalismo; Corpo Feio
Résumé:
Cet essai vise à penser l’existence d’un corps laid comme une insurrection curriculaire contre les stratégies capitalistiques d’embellissement et parier sur la possibilité de questionner la beauté. Malgré les politiques curriculaires organisationnelles qui louent le corps aseptique, joli et séduisant, cette écriture propose de penser le corps au-delà de l’esthétique servitude capitaliste. Si c’est un impératif esthétique, le corps se moque de la laideur.
Mots-clés: Curriculum; Insurrection; Beauté; Capitalisme; Corps Laid
Abstract:
The essay aims to think the existence of an ugly body as a curricular insurrection against the embellishing capitalistic strategies and take bets on the possibility of questioning the beauty. Despite of an organizational curriculum policy that praises the aseptic, pretty and seducing body, this writing proposes to think the body beyond the aesthetics capitalistic enslavement. If it is an aesthetic imperative, the body mocks on ugliness.
Keywords: Curriculum; Insurrection; Beauty; Capitalism; Ugly Body
Vida Smart, Vida Fit
As dinâmicas do corpo vêm sendo reduzidas aos termos de um império da carne estética, da aparência saudável e de uma saúde alegre. Por todos os lados, os corpos são convidados a se explorarem, a se fazerem mais belos, mais felizes, mais vigorosos, mais enérgicos, mais funcionais. E o que pode as aparências em um corpo em vias de desaparecer? O que pode um corpo em suas rebeliões? As aparências produzem carne que gruda em um corpo? Todo corpo importa e se torna digno de humanidade? Existem corpos precários? Ou é justamente a precariedade que lhe torna alvo de investimento e interpelações curriculares? Deslocamos por meio de perguntas que nos fazem querer compreender as rasuras que alguns corpos podem assumir ao se deparar com os agenciamentos da estética e da saúde que se gruda a uma forma-corpo.
Nessa obsessão por uma forma-corpo não apenas mais academias são criadas em cada esquina de ruas e mesmo em bairros periféricos, mas academias smart voltadas para “[...] uma geração composta por pessoas que se identificam por escolhas inteligentes, que valorizam seu tempo e dinheiro, cuidam de sua saúde e, ao mesmo tempo, se divertem” (Propmark, 2017, s. p.). Não apenas mais salões de beleza, mas clínicas estéticas com seus múltiplos “[...] profissionais que exercem atividades de higiene e embelezamento capilar, estético, facial e corporal dos indivíduos” (Brasil, 2012, s. p.). Não apenas mais dietas, mas jejuns intermitentes, alimentações saudáveis, balanceadas e ricas de bionutrientes.
Para cada forma-corpo uma promessa à altura das mãos, dos olhos e do estômago! E a máxima você é o que consome comparece como desejo binário que permanentemente afirma inclusões e exclusões. Sem essa lógica, a estética da forma-corpo que se deseja na produção de desejos não se sustenta. Aniquila-se. Os currículos escolares - alvo pretendido nesta escrita - afirmam permanentemente uma forma-corpo ideal, disso não temos dúvidas. Olhamos imagens didatizadas nos livros escolares e elas nos mostram, sem muita dificuldade, o corpo que se busca curricularizar. Não é mais só o corpo do bom soldado esguio que está em pauta! No funcionamento das biopolíticas da população1 em suas relações com o capital e as estruturas de saúde, um corpo gordo tenderá a produzir prejuízos nas agências de governo (Sant’Anna, 2016). Dizem por aí que um corpo gordo vive menos!
As aferições de peso, as olhadelas nos espelhos e as páginas de estética tornam-se nossa constante companhia. Balanças individuais se popularizaram e estão por todos os lugares - em nossas casas, nos consultórios e nas farmácias que se multiplicam incessantemente. Comidas balanceadas são distribuídas em todas as escolas, acompanhadas, de perto, por nutricionistas e, às vezes, por psicólogos. A escola assume para si a tarefa de ensinar a boa alimentação, de ensinar as estéticas do corpo. Nutricionistas com seus cardápios se espalham pelos sistemas de educação e entram em nossas casas de diferentes maneiras. Pelos programas de televisão com seus gurus da boa forma, suas combinações balanceadas e suas poções mágicas, nos dizem o que devemos comer e ser, comer e viver. Açúcar, lactose, glúten e carboidratos tornaram-se substâncias tóxicas. Pera, uva, maçã, salada mista deixa de ser brincadeira de crianças espertas para se tornar cartilha da boa alimentação e de economia dos corpos.
O corpo, Denise Bernuzzi de Sant’Anna (2014) sugere em seu estudo sobre a história da beleza no Brasil, tem sido cada vez mais marcado pela naturalização das estéticas da carne e afirmado em um tripé de beleza, felicidade e saúde. E, diante de tamanha força, de tamanha melhoria do corpo, quem ousaria dizer-se contra esses ideais? Como a própria autora sugere, intensificam-se as políticas de beleza e, com isso, uma frase passa a ter peso central: só é feio quem quer.
E, talvez, essa seja justamente a questão.
A propaganda da maior rede de academias da América Latina, a Smart Fit, fala, sem qualquer pudor, do corpo bem cuidado como um corpo inteligente, do corpo “que prefere suar na bicicleta ao invés de suar no trânsito”, e que, assim, pouco se importa com a localização ou a era do nascimento do corpo. É preciso, antes - como afirma a propaganda -, fazer unir uma geração e convidar todos os corpos a se pensarem integrantes de uma geração smart, não em termos de nascimento, mas de preocupação com o lazer, a saúde e o cuidado do corpo. “Porque a gente acredita que escolhas inteligentes podem e devem ser feitas por todo mundo” (#GeraçãoSmart, 2017, s. p.).
E porque a propaganda visa um todo tão indistintamente - “escolhas inteligentes podem e devem ser feitas por todo mundo” -, não poderia, de modo algum, deixar de fora os corpos curricularizados, os corpos inseridos nas lógicas e espaços escolares.
E com essa tarefa estamos nós na escola! Não podemos deixar que as crianças e os jovens se descuidem de uma forma-corpo fabricada pela atenção medida em quilos, beleza e bem-estar, não podemos deixar que se esqueçam ou negligenciem a função do corpo. Os corpos escolarizados, curricularizados, desfilam sob uma pretensa equidade pelas escolas. Ensinamos em nossas aulas a fazer a contabilidade do corpo. Isso mais isso é igual a isso. A partir da década de 1990, o índice de massa corpórea (IMC) aliou-se ao peso e à numeração da roupa, “transformou-se em mais um dado numérico inventado para integrar a identidade pessoal” (Sant’Anna, 2016, p. 141). Bom lembrar que, nessa lógica perversa da inclusão sem limites, os corpos belos - criados no exercício de conversão e de embelezamento - sempre serão a referência daquilo que se deve ser ou se tornar. É preciso convencer e converter o corpo feio, o corpo-carne, corpo-disforme; e, quando nada mais afetar esse corpo disforme, convoquemos, via biopolíticas, os riscos da feiura, da obesidade, da tristeza. Não se sentir bem com seu próprio corpo é o risco o qual a maquinaria produtivista do capitalismo não pode arcar, pois, então, que sejam tomadas medidas para enaltecimento de uma felicidade corporal.
Mas o corpo disforme, com suas peles que desgruda da carne, estará lá. Alvo de atenção, vigilância e eterno reparos. E, ainda assim, produzindo viandas, no conceito deleuziano, desgrudando-se do osso, ainda que sob a forma de uma testemunha. Nesse sentido, propomos pensar o corpo curricularizado e as evidências de um cuidado que não passa de outra coisa além daquilo que Lazzarato (2014) chamou de servidão maquínica, mas, ao mesmo tempo, também pensar os corpos insurrecionais que despontam em meio às estéticas capitalísticas que nos arrastam. Como Deleuze (2016, p. 19) ponderava:
Uma formação social qualquer tem sempre o ar de estar dando certo. Não há razão para que não dê certo, para que isso não funcione. E, no entanto, há sempre um lado pelo qual isso foge e se desfaz. Nunca se sabe se o mensageiro vai chegar. E, quanto mais se aproxima da periferia do sistema, mais os sujeitos se encontram tomados numa espécie de tentação: ou submeter-se [...] ou então ser arrastado alhures, para além, vetor louco.
Também na escola o corpo é convidado às lógicas da vida smart, vida fit imperial. O lema é da Smart Fit, mas não diz apenas de uma rede de academias, de um conjunto de legislações estéticas ou do barateamento dos tratamentos de beleza. Deparamo-nos, simplesmente, com uma ampliação sem limites das políticas do corpo - que sempre estiverem aí - mas que, agora, na era smart, articula a inteligência à beleza, à saúde e ao corpo, isto é, articula à carne o fator marcante da era smart, da dita geração smart.
É assim, portanto, que entramos em uma escola da rede pública municipal de Viana, no estado do Espírito Santo (ES), e colocamos as estéticas da carne em conversa com professoras e professores. Metodologicamente, realizamos uma pesquisa a partir de redes de conversações2 com professoras e professores, colocando como temática central as discussões sobre o corpo. As reuniões foram gravadas e transcritas e, após, analisadas3 em conjunto a partir da relevância para o recorte aqui apresentado, isto é, a relação com o que começamos a denominar por corpo feio. Visávamos, simplesmente, dar-nos à experiência de pensar as produções do corpo na escola e, no limite, provocar a existência de corpos quase antiestéticos, ou, como aqui pensamos, de corpos feios. E, com força sobrepujante, professoras - e, indiretamente, alunas e alunos - atiraram-nos, também, a infinitos outros corpos viralizados na onda dos memes. Uma professora, logo que se coloca a conversar conosco sobre beleza, faz uma reticência em tom de falsete e brinca: “É bonitinho mas...”.
Imediatamente, a partir da referência aos memes que se espalharam com o lema “É bonitinho mas...”, o quadripé da geração smart retoma e seus limites parecem confusos com o tom de voz da professora. Uma vez borrados esses limites entre saúde, beleza, corpo e inteligência, não nos interessa outra coisa senão perguntar pelas rebeldias que o corpo faz a essas maquinações. Para além do corpo belo e inteligente, fazemos nascer o corpo feio como uma afirmação. Só é feio quem quer!, gritam as propagandas de modo genérico.
Diante da imputação de uma ou mais culpas internalizadas no enunciado genérico Sou feio porque quero, ou seja, porque fui relapso, preguiçoso ou descuidado, emerge uma pequena insurreição: quero ser feio. Certamente há, na relação com a feiura, um querer indizível e insurrecional. Mas, afinal, por que rejeitar a beleza?
Da Beleza como Grande Agenciamento Maquínico Servil: capitalismo estético
“O capitalismo não goza da melhor das imagens”, é o que Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2015, p. 11) insinuam logo na primeira página do livro A estetização do mundo. De modo quase consensual, as esquerdas - sejam elas situadas em quaisquer pontos - tendem a apontar para as atrocidades da máquina capitalística e, consequentemente, para sua depreciação. Não dizemos o contrário, que fique registrado, todavia, há algo que nos incomoda nesse prelúdio genericamente aceito: o capitalismo não goza da melhor das imagens. E questionamos, junto aos autores, a premissa de que a máquina Capital é, irrevogavelmente, uma máquina que destrói as estéticas do mundo. Fazendo valer uma pergunta que os autores se fazem, o capitalismo efetivamente “[...] se reduz a essa máquina de decadência estética e enfeamento do mundo?” (Lipovetsky; Serroy, 2015, p. 13).
E, em forma de curto-circuito, é-nos imperativo dizer um sonoro não.
Ser-nos-ia muito fácil tomar a máquina capitalística como uma máquina do esvaziamento das belezas, como uma máquina que destituí os sentidos do sensorial e da felicidade em prol de uma moral rígida e ogra. A máquina Capital não visa a destituição, mas, antes, o controle completo, a servidão maquínica para além do corpo individual, do corpo meramente assujeitado. “Os códigos não agem primeiro através da linguagem verbal e de suas funções de representação”, antes, as produções operam para além e aquém do indivíduo justamente para produzir o corpo. “A eficácia semiótica do discurso não verbal é formidável, porque afeta e se dirige primeiramente ao corpo” (Lazzarato, 2014, p. 113-114).
Jaz aí, justamente, o princípio do que Lipovetsky e Serroy (2015) denominariam de capitalismo transestético, isto é, a força produtora de semióticas não verbais como princípio operante do Capital tal qual o enfrentamos hoje. A estética, os autores lembram, sempre esteve atrelada à produção de uma vida bela, de um modo de viver que extrapole o mais imediato da vida. A estética, destacam, tem a ver com a vida e, em dada medida, é também com ela confundida. O curioso é que, no modo como a Máquina Capital hoje opera, não há mais limite entre arte, estética e vida sob qualquer aspecto: se em algum momento a arte se afastava do corpo para se fazer presente em rituais, com o imperativo produtivo do Capital esse afastamento parece sumir. Ou, como destacam sem pudores, “[...] com o capitalismo criativo e transestético o que se instala é menos o recuo do belo do que um excesso de arte, uma animação estética sem fronteiras, uma cosmetização ilimitada do mundo” (Lipovetsky; Serroy, 2015, p. 33).
Assim, vamos afirmar, no diálogo entre Maurizio Lazzarato (2014) com Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2015), que não apenas a Máquina Capital trabalha assiduamente na estetização do mundo, mas também propõe o belo como semiótica assignificante, isto é, como uma linguagem para além e aquém de qualquer enunciação verbal, e, portanto, como um limiar bem definido do que pode ou não funcionar.
Eis, justamente, o belo como agenciamento maquínico.
Se nos encontramos, hoje, em um modo de funcionamento do Capital em que as estéticas são produzidas em larga escala e integram a tudo e a todos, o belo é ensejado nas produções capitalísticas a todo o vapor. Não apenas consumimos objetos estéticos, como também imagens, vidas, e, como nos interessa aqui ressaltar, corpos. Se o Capitalismo atual se estabelece em “[...] uma economia centrada nas novidades perpétuas do bem-estar, da moda, do lazer, do divertimento” (Lipovetsky; Serroy, 2015, p. 328), ele também faz com que nossas vidas sejam afetadas por essa economia.
E, muito antes de dizermos de modos de vida, dizemos do que há de mais palpável na vida - o corpo. “Pela primeira vez, as massas têm acesso a um tipo de consumo mais lúdico e mais individualizado, a um modo de vida mais estético (moda, gadgets, lazer, jogos, músicas gravadas, televisão, férias) outrora privilégio das elites sociais” (Lipovetsky; Serroy, 2015, p. 328), mas, também pela primeira vez, foi-lhes cobrado um corpo condizente com essas marcas estetizantes da carne. O cinema não deixa nenhum detalhe de fora; as capas de revistas não apenas exibem o corpo decente como também ajudam a produzi-lo; os livros didáticos ressaltam, juntamente às manchetes jornalísticas, sua importância à saúde, à vida - quiçá - eterna.
Nesse sentido, portanto, a beleza - o belo em sua marca final da estética da carne - se torna um fator importante para a produção capitalística, mas não por um tipo específico de beleza. Aos modos das semióticas a-significantes, o belo e a beleza agem “[...] diretamente sobre fluxos materiais [...] independentemente de significarem algo para alguém ou não” (Lazzarato, 2014, p. 40). Em suma, o belo é retirado de qualquer necessidade tátil para se tornar um signo multifuncional.
É engraçado que a gente nunca sabe o que tá falando quando fala do belo, né? As meninas podem falar do gatinho da sala delas, eu, como professora de artes, posso falar de alguma pintura, de algum trabalho que conheço... esses dias, inclusive, eu tava combinando com a turma da gente assistir um filme... e qual foi a pergunta que fizeram? ‘É bonito, professora?’. Bonito! Até os filmes entram nisso, vê? Não é só corpo não! (Fala de uma professora, acervo pessoal de pesquisa).
E, por se apresentar em um ponto de abstração sem limite, a beleza é, também, uma das maiores forças da/na produção do corpo. Nessa abstração sem limite sobre a forma-corpo idealizada na beleza que se vende em cada esquina e que não se reconhece em espelhos comuns, todo investimento e esforço pessoal fica relegado à incapacidade de alcançar a terra prometida. Quanto mais se caminha nessa direção, num investimento sem fim, mais a distância é ampliada, impossibilitando a conquista da terra prometida. A Madrasta de Branca de Neve bem sabe da insatisfação com o que se vê, ou não, refletido no espelho. Mas, não só. Narciso acha feio qualquer superfície não espelhada! Exemplos de corpos que se deformam, de peles e máscaras que desgrudam de um sujeito sem forma - nada disso nos falta. Com bons bisturis o corpo é recortado e fabricado em clínicas de estéticas, corpos-Barbie, corpos-misses etc. Vendem-se corpos belos que garantem felicidades e prometem, dada sua disposição, as pazes com o espelho. O grande poder desse espelho é que ele trabalha com um único objetivo: te fazer feliz com prazos de validade.
A professora - talvez porque de arte - nos lembra da força desejante das belezas. A turma não vê problema em assistir a um filme para o que quer que seja, mas, antes, devem indagar: ‘É bonito, professora?’. E, nessa indagação, há toda uma produção infinita de uma estética comercial, de um belo que anestesie, que produza os efeitos necessários para a felicidade momentânea. Afinal, como o próprio Lipovetsky (2016, p. 10) cita noutro trabalho, o conceito de felicidade ainda se relaciona em muito com o de amor, com o de paz e com a relação que se tem com a vida. A questão, hoje, segundo aponta, é que há “uma oferta acelerada de instantes fugitivos de felicidade”.
Daí, talvez, a questão seja mais huxleyiana do que orwelliana: há, sim, um controle sem fim, mas, antes da máquina Capital ensejar o medo do grande olho, ela enseja a felicidade do belo anestesiante.
Ano sim, ano não a prefeitura muda o design do uniforme daqui da rede... a gente fica se questionando para que, sabe? Poxa, tem tanta coisa que precisa ser melhorada, que podia ser comprada... Mas, não, o prefeito acha melhor garantir o visual. Pode ver, nossa escola tá com tinta novinha do lado de fora, uniforme novinho das crianças esse ano, com visual diferente do último que foi mandado... mas vai nas salas. Tem quadro branco que dá nem mais para chamar de branco! O prefeito só quer saber das aparências... (Fala de uma professora, acervo pessoal de pesquisa).
Ora, é, portanto, articulando esse controle visual do mundo que pensamos, também, o corpo na escola. Como a professora marca, parece haver, em grande medida, uma preocupação focada no exprimível aos olhos. Ao alcance dos olhos, os investimentos são válidos, compreensíveis e necessários.
Ou, nos dizeres de uma leitura de Deleuze (2013), a beleza tornou-se uma cifra necessária para que o corpo consiga circular nas sociedades de controle. A beleza - e um ideal de beleza produzidos pelas mais diferentes redes de saberes e poderes biomédicos - transformam-nos em mocinhos e/ou bandidos. Há uma geometria do corpo com suas senhas numéricas. Querem-nos magros, sadios, responsáveis por todas as ações sobre nosso corpo, querem-nos ocupados com as práticas corporais. Não somos, sequer, poupados desse culto ao corpo ao nascer. Bebê bochechudinho não é mais sinônimo de saúde! A revista Pais & Filhos, numa edição de 2013, estampava, em sua capa, a chamada Meu filho não come nada! (2013) e, em suas matérias, um monte de dicas sobre o problema de relacionar a alimentação ao prazer, à diversão. Uma mãe grávida, hoje, não apenas deve preocupar-se com a aparência de seu corpo - o discurso não é mais apenas para elas, não é mais uma questão de correr riscos com estrias. Não. Espera-se, hoje, uma preocupação ainda mais precoce com o corpo que está por nascer. Criam-se medidas de controle do peso quando o corpo ainda está no útero de sua progenitora. Um bebê gordinho pode ter dificuldades para nascer, para respirar, para se exercitar; pode ter, no futuro, problemas cardiovasculares, complicações com o sistema respiratório e, obviamente, estar inserido em algum problema social. Os bebês na atualidade, obrigatoriamente, precisam nascer magros e permanecer magros. Uma professora evoca, em sua fala, um medo contemporâneo:
Uma menina que saiu daqui da escola há pouco tempo tá grávida e ela já tem medo disso... encontrei ela na rua e perguntei se já sabia se era menino ou menina. E ela disse que não quis saber, está preferindo não procurar saber o sexo da criança por enquanto... mas ela já sabe o peso da criança, já está conversando com os avós dela para ajudarem a colocar a criança na natação logo que nascer porque ela viu que faz bem... (Fala de uma professora, acervo pessoal de pesquisa).
Em jogo, o inevitável: à mãe e às figuras parentais cabe a efetivação das regras do corpo servil. A Máquina Capital coloca todas as engrenagens para funcionar em torno desse controle do corpo; simples assim, eis um agenciamento maquínico. Nada deve ficar de fora! Qualquer gramas a mais, um alerta de perigo já é acionado; qualquer risco à saúde, todos os mecanismos de segurança são postos a trabalhar sobre o corpo. Importam-lhes a plena saúde de um corpo esteticamente saudável.
Temerosa de todos os corpos, a máquina capitalística fragmenta a estetização do mundo em partes minúsculas e aparentemente desconexas. Mas, ali, olhando seus funcionamentos, damo-nos conta do quão bem arquitetado é esse agenciamento.
Seguindo os rastros de Denise Bernuzzi de Sant’Anna (2014) sobre a história da beleza no Brasil, encontramos, facilmente, uma distinta concepção de beleza que em muito se distanciava da nossa atual. Não que, para eles, o belo fosse outro corpo radicalmente diferente de como o concebemos hoje. Nossa própria incapacidade de definir o belo nos dificultaria isso, apenas para começo de conversa. Contudo, há algo de muito perceptível concernindo às belezas que nos diferenciam: a in natura e a contranatura.
Um médico brasileiro, Hernani de Irajá, em escritos das décadas de 1920 e 1930, aconselhava a mulheres, avidamente, que não fizessem “mudanças profundas e irrevogáveis” (Sant’Anna, 2014, p. 52), visto que embelezar servia “para prescrever e realçar os traços originais, ou ainda, os dons naturais” advindos no corpo. Ora, em questão está, claramente, uma concepção de beleza que pode apenas ser natura, isto é, de nascença. Como Denise Sant’Anna insinua em seu livro, existiriam, então, artifícios para a formosura que, entretanto, não poderiam ser usados exageradamente porque, afinal, a beleza era da ordem do divino ou da genética e, portanto, incompreensível ou inalterável. Por esse mesmo motivo é que, a partir do ápice do cinema, por exemplo, a beleza começa a se propagar em larga escala, mas, ainda, “[...] como um ‘talisman’ poderoso para obter prestígio, status e riqueza” (Sant’Anna, 2014, p. 66).
Todavia, não tardaria muito para que a diferenciação entre beleza in natura e contranatura fosse rompida. Apontando para o início do apogeu da indústria farmacêutica, Denise Sant’Anna (2014; 2016)4 destaca uma virada linguística para fazer da beleza não apenas um artifício - ou, nos termos de Lazzarato, a beleza deixa de ser apenas uma prática de assujeitamento - para se tornar ela própria um modus operandi. Para convidar o corpo a embelezar-se, nada mais justo que, inclusive, embelezar os convites. Assim, ainda que emagrecer e embelezar-se fosse “[...] um objetivo presente sobretudo entre os jovens abastados do meio urbano” (Sant’Anna, 2016, p. 69, grifo nosso) nos anos 1930, aos poucos as narrativas das propagandas passaram a atribuir aos corpos sua própria possibilidade de liberdade. Explicitamente, “[...] os cuidados com o corpo pessoal - incluindo seu peso, sua saúde e aparência - tornaram-se a comprovação de suas autonomias, adquiridas ou que precisavam sê-lo” (Sant’Anna, 2016, p. 78).
Sem mais delongas, eis a afirmação smart do corpo bem cuidado, do corpo embelezado: sua perfeita autonomia articulada à constante busca do prazer e da felicidade.
Com as mudanças paradigmáticas em torno da beleza - que, antes, marcava um artifício para esconder as feiuras -, o corpo passa a ser, paulatinamente, convidado a embelezar-se. A própria natureza do corpo requer o embelezamento! As propagandas, na virada linguística e ontológica, não apenas passaram a ser convidativas como, também, passaram a assumir, para o corpo, o caráter de ressaltar suas máximas potencialidades. “As marcas de cosméticos gabam sua eficácia sob o signo do prazer. O ditado ‘é preciso sofrer para ser bela’ já perdeu sua aura de verdade, cedendo lugar à exaltação da qualidade das sensações, da volúpia de cuidar de si mesmo” (Lipovetsky; Serroy, 2015, p. 349).
Raramente cruzamos caminho com quem lute contra princípios básicos de higiene e, entretanto, a supervalorização da cultura higiênica marca sua intensificação com o eugenismo de Renato Kehl (Silva, 2012). Lutamos sem poderes contra os eugenismos, porém, de algum modo, o imperativo da beleza continua a passar sossegadamente por nós sem nos incomodar. Há uma eugenia, como André Luiz Silva (2012, p. 216) insinua, na “[...] cultura fitness que revela um fascínio sobre belos corpos e, ao elegê-los como símbolos da saúde - expressão máxima do autocontrole, da disciplina e do empenho - posiciona à margem aqueles outros não tão belos, não tão magros e não tão jovens”.
Há, segundo dizem, um prazer inominável em cuidar do corpo, em fazer academia, em alimentar-se de modo saudável, e, quando o prazer não é o suficiente, os ditames da boa saúde emergem. Ou, como Débora Coelho e Tânia Mara Fonseca (2007, p. 67) falam, a partir de Deleuze, quando a felicidade não é o suficiente, entra em ação uma saúde dominante e controladora5 que “além de viscosa, gruda em nossa pele” e ajuda “a manter um certo controle sobre o devir da vida”.
Afinal, sobre o que agem os exames laboratoriais senão sobre as próprias moléculas?
Em miúdos: em prol de uma saúde infinita e de uma felicidade imperativa, o corpo pode pouca coisa além de deixar-se guiar por esses dois benfeitores mundiais, dos números e das cifras da saúde, da grande indústria farmacêutica, cosmética e laboratorial. Quem ousa não querer ceder à saúde plena, ao bem-estar constante, à felicidade infinita? Quem não quer manter o corpo saudável e viver a longevidade máxima de um corpo funcional?
Um certo cuidado com o corpo assume o lugar prioritário nas conversas.
Eis que o corpo perfeito da grande máquina capitalística nada mais é que o corpo belo, magro, saudável e ávido por mais. O corpo já não é mais subalterno, mas, sim, um corpo smart (Comitê Invisível, 2016) que participa ativamente de sua própria produção, que não é imposto - no sentido dolorido da palavra -, mas convidado a gerar ideias, serviços e soluções para aquilo que lhes é caro, isto é, o próprio corpo.
Que nos perdoem, todavia, é preciso um certo ceticismo quando pensamos nas produções das belezas e seus cultos. A professora nos conta da aluna corpo-de-academia e, quando termina, sua postura de desafio diz mais do que a fala que se deixa morrer em um tom escusável: ela desafia a própria lógica embelezante. E é um pouco disso que tomamos aqui.
A estética capitalística reina na produção incessante do belo. A beleza, antes de dizer de ritos, de passagem por modos de vida, tem, cada vez mais, falado sobre uma regra única a qual deve ser seguida. A beleza, com a ajuda da cosmética, da medicina e de uma saúde utópica, já foi, antes, um artifício ou parte de um ritual, de uma prática de existência, e, hoje, coloniza corpos.
Chegamos ao limite de dizer, Denise Sant’Anna (2016) destaca em seus estudos, que o obeso é o antiético - um comensal além dos limites dos recursos disponíveis! - e que o feio deve ser punido por sua existência. Afinal, como Berilo Neves, na década de 1930 já salientava (apud Sant’Anna, 2014, p. 74), “Nada mais natural [...] que a feiura pague imposto”.
O mais curioso é que, nessa colonização, cada corpo ainda se enxerga um feliz corpo livre. Alimentamos, continuamente, a expectativa de exterminar todo e qualquer resquício de feiura, de carne sobressalente e malcuidada.
Insurreições Curriculares
Ora, é também nesse grande agenciamento maquínico servil do capitalismo estético que os currículos são produzidos. Se nos é impossível pensar uma política sem corpo (Safatle, 2016), igualmente impensável é falar de currículos que não se materializam nos corpos, de currículos que não produzem uma estética da carne.
Jogos educativos reafirmam personagens lindos, corpos magros, e, inclusive, processos de estetização da pele sob a lei das maquiagens, da limpeza de pele, da remoção de cravos e na demonização das espinhas; filmes de escola seguem, quase sempre, ideais do corpo impecável ou, então, em vias de se tornar impecável após um bom banho e um retoque no cabelo para se tornarem legítimas beldades; murais de escola contam histórias de corpos saudáveis formidáveis, cheios de aventuras para contar porque, afinal, foram sempre corpos aptos à boa alimentação. Um professor de história, em dado momento da conversa, solta uma exclamação gargalhante - dessas bem estrondosas - e ficamos todos lhe olhando. “Já repararam como todos os supostos heróis nacionais são pintados? Ou, pior ainda, como os anti-heróis aparecem nos livros didáticos? Hitler vai ter, eternamente, aquela cara de velho safado!” (Fala de um professor, acervo pessoal de pesquisa).
E, em uma época que o nazismo é atribuído às esquerdas, ao comunismo e a Marx6, possivelmente, também qualquer corpo não capitalisticamente idealizado vai sofrer em sua estética tátil.
De certo modo, é colocado em jogo justamente as possíveis estéticas. Não é preciso dizer como se deve parecer ou o que é preciso evitar. Do mesmo modo que a propaganda do início do século XX, os livros didáticos e infinitas outras imagens pedagógicas aprenderam a vincular a estética do corpo à felicidade ou à depravação, ao anti-herói.
Engraçado que, quando você fala do Hitler e aquele bigodinho nojento dele, eu lembrei aqui da minha época de criança lá em 1900 e idade da pedra... lembro que o Zumbi não era bonito, era um negro com bochechas estranhas, com olhos caídos, cara de poucos amigos. Aí, hoje, você olha como ele está sendo trabalhado para crianças... tem até um livro infantil muito bonito, às vezes o olho dele é desenhado com uma aura mais feliz. E quem tem um pouco mais de idade acaba por se perguntar, né? Por que uma mesma pessoa é embelezada em uma época e tornada tão feia em outra? (Fala de uma professora, acervo pessoal de pesquisa).
E, de modo bem simples, talvez possamos nos lembrar que os currículos, aos modos de sua organização, dizem de projetos de nação (Cóssio, 2014), dizem de negociações permanentes no próprio âmbito do financeiro, da financeirização da educação e de seus embates econômicos, como Nilda Alves (2014) propõe ao falar da disputa financeira em torno da regulação curricular.
Na sagacidade da sua pergunta, a professora rememora os anti-heróis e lhes indaga pelo corpo, mas, ao mesmo tempo, indaga os projetos de nação atrelados às propostas curriculares genericamente produzidas.
Vocês já viram o filme O menino do pijama listrado? Tem o livro também, mas o filme é mais fácil de ver... os judeus aparecem e qual a reação dos alemães diante da imagem deles? ‘O judeu nos destruiu! O judeu acabou com o nosso povo!’. E, o Bruno, o menino alemão, estranha o quê? As caricaturas do professor dele! ‘Mas os judeus não são todos assim, são?’. É engraçado você falar de Hitler e vocês perguntarem quais são os corpos estampados nos currículos porque está bem às claras, né? (Fala de uma professora, acervo pessoal de pesquisa).
Por essa lógica, Carvalho (2016, p. 27), lembra que “[...] currículos escolares lidam com grandes agenciamentos sociais definidos por códigos específicos que se caracterizam por uma forma relativamente estável e por um funcionamento reprodutor”, todavia, como a autora também propõe, sempre nos é preciso (e possível) “[...] romper com as ilusões apaixonadas que nos remetem à imagem moralmente constituída do belo”.
Apostamos justamente nisso, nessa possibilidade de indagarmos as belezas.
Apesar de toda uma política organizacional curricular que enaltece o corpo asséptico, belo e convidativo, apesar das infinitas imagens de belíssimas crianças estampando livros na educação (sejam eles didáticos, acadêmicos ou mesmo literários), ainda podemos pensar no corpo para além da vil maquinaria da servidão. Se tudo “[...] o que existe no presente não é senão a realização de uma das possibilidades preexistentes” (Carvalho, 2009, p. 66), é certo que o corpo belo (regido pela estética capitalística) está além e aquém do próprio corpo, todavia, ao mesmo tempo, também o corpo feio está muito antes ou depois das formações individuais. Apesar de dizerem, sim, de projetos de nação maquinados em um plano organizacional, currículos são, ao mesmo tempo, comunalizados (Carvalho, 2009; 2015) em um tempo que não é outro senão o da própria vida.
Num texto em que todas as forças parecem se encontrar na coação do corpo, no massacre de suas possibilidades de existir, ali, nas últimas páginas, os autores colocam o riso e a conversa a desserviço de todo o imperativo correcional, de todo o reinado do corpo correto (Carvalho; Roseiro, 2015). Onde, antes, víamos um corpo ser constantemente penalizado para adequar-se às lógicas do corpo-aluno, vemos, também, o ruir de um corpo-coordenadora, corpo-professora que mostram, justamente, por onde os corpos vazam e fazem insurreições.
Breves insurreições, bem verdade, mas concisas.
Diante dessa aposta com um leve ar insurrecional é que voltamos nosso olhar e escuta à própria escola. “Por paradoxal que pareça, a resistência antecede o poder”, já falaram Michael Hardt e Antonio Negri (2016, p. 99), e, com isso, nada mais está em jogo que o próprio medo das máquinas reguladoras. Não é o comum, o caótico, o aberto ou o infinito que resistem - no sentido estrito da palavra, isto é, de reagir - ao controle; antes, é o controle que, temendo essa força que verte por todos os poros, tenta limitar suas possibilidades.
No que nos interessa, não somos nós, corpos feios, que tentamos afirmar nossa existência. A bem da verdade, estamos pouco - ou nada - preocupados com isso. Sabemos que, na onda da inclusão, ser reconhecido é ser contabilizado, medido, controlado e, por isso, agir comedidamente. As propagandas e os convites curriculares são tão intensos porque eles - os reguladores curriculares - sabem disso, sabem existir corpos que simplesmente passam sem muito se preocuparem com a sedução da saúde infinita, da felicidade sem limites e da beleza magistral.
À produção incessante da beleza como regra da existência de um corpo, outros corpos fazem insurreição. Corpos inoperantes à lógica embelezante levam, para a escola, comidas diminutas que passam despercebidas diante dos olhos da professora que não deixa comer durante as aulas; um rapazola, no auge das erupções vulcânicas epiteliais, não apenas faz pouco caso de sua pele como, ainda, atormenta crianças mais novas com a ameaça de contágio; uma menina, pequena, diz, claramente, saber estar fedida mas que pouco pode fazer porque, afinal, ela não gosta de tomar banho de manhã antes de ir para a escola. Os corpos se proliferam. As máquinas os encontram, no medo de uma diferença infinita, correm para controlá-los, ameaçam-lhe de inexistência, de não registro, e, de algum modo, o corpo ri e segue sendo um ponto paradoxal.
No limiar de uma possibilidade insurrecional, os currículos não dão conta de serem apenas um projeto de nação. Do mesmo modo como a feiura coexiste às maquinações do capitalismo estético - ou antecedem e inexistem ao mesmo tempo -, também insurreições curriculares acompanham esses movimentos. De alguma forma, as feiuras e as insurreições curriculares fazem guerra pelo simples fato de saberem que, ali onde querem tanto a paz convidativa, há, na verdade, uma anestesia da própria vida (Comitê Invisível, 2016), há, simplesmente, a reafirmação de uma paz interior que nos quer de acordo com as referências globais.
A epígrafe deste texto parece sempre voltar com mais força: “[...] quanto mais se aproxima da periferia do sistema, mais os sujeitos se encontram tomados numa espécie de tentação: ou submeter-se [...] ou então ser arrastado alhures” (Deleuze, 2016, p. 19). E, contra o império da beleza, da gorda saúde dominante, da felicidade sem limites, da ordem de paz mundial e dos projetos de nação curriculares, o corpo feio deixa-se arrastar por forças outras.
O corpo feio certamente existe e, a todo o momento, ele coloca em xeque a existência da beleza capitalística. E é por isso que as propagandas e os projetos curriculares são tão efetivos - eles não se dirigem aos já belos, mas, antes e sempre, aos feios. Os agenciamentos da máquina embelezante querem nos desarticular na qualidade de corpos feios, querem-nos belos e invisíveis, belos e governáveis.
Acho que agora a provocação que você fez começa a fazer sentido, sabe? Na hora que você falou ‘Mas e aí? Cadê a criança feia?’, eu já fiquei com uns três pés atrás, mas acho que tem isso mesmo... se querem tanto que todos sejam bonitos, tem alguma coisa errada, né? Nunca fomos iguais, meu aluno que vem lá do buraco mais longe daqui, que só vem porque um tio dele traz ele quando vai trabalhar, não é igual a nenhuma das crianças daqui do bairro, daqui do ‘centro’. Mas ele também conhece o desodorante Axe que os meninos gostam, também quer um perfume caro desses daí, também quer começar a trabalhar para comprar uma roupinha de marca... aí eu repito a pergunta para vocês agora: cadê a criança feia? Ela existe ou já se foi? (Fala de uma professora, acervo pessoal de pesquisa).
A professora reitera: “Cadê a criança feia? Ela existe ou já se foi?”. Sem rodeios, respondemos: sim, ela existe, ela está ali, aqui, acolá. Ainda persiste, ainda luta. Ela faz do próprio corpo um modo de enfrentamento à servidão maquínica. Se o imperativo é estético, ela faz zombaria na feiura. Por baixo dos tecidos, maquiagens, plásticas e operações de beleza, o corpo feio borra os limites de sua existência.
Para Fazer Nascer o Corpo Feio
Em um trabalho primoroso, Suely Rolnik (2016) marca a existência de um saber-do-corpo que rompe com qualquer aprendizagem imediata, que extrapola as experiências da ordem social. Na ordem do saber-do-corpo, o que se conhece, o que se percebe e se deixa afetar, é a própria dimensão viva do mundo. “O mundo ‘vive’ efetivamente em nossos corpos” (Rolnik, 2016, p. 11), e, por isso mesmo, vamos perseguindo os liames de seus entrelaçamentos, de seus funcionamentos. Aos modos de David Lapoujade (2015), esse corpo, porque vivente, deixa-se ser empurrado para o fundo e lá encontra um propósito claro: fazer o próprio fundo ruir.
Talvez aí - no limite duma fundura - encontremos o corpo feio.
Perdido em meio a tantas regras convidativas, o corpo feio encanta-se com a vida mundana e permanece “[...] fiel à valorização de certo ócio, pouco submisso ao pretenso adestramento da ginástica” (Sant’Anna, 2014, p. 65). E o ócio, já lembravam Jan Masschelein e Maarten Simons (2014), é a criação própria da escola que a todo o momento tentam regular, tentam erradicar. O ócio fere a beleza déspota, fere o corpo que deve manter-se ocupado para ser bem-cuidado.
O ócio, temem os especialistas, far-nos-ia a todos um bando de corpo que consegue se alimentar sem sentir remorsos, olhar-se no espelho sem procurar os mais ínfimos defeitos, conversar com o outro sem esperar dos corpos um afastamento sepulcral.
Frente aos corpos que encontram felicidade no consumo de um corpo ideal, o corpo feio encontra no riso gargalhante uma possibilidade de insurreição. Frente aos corpos que tomam o Eu como ordem imperial e ignoram todo o resto, outros, porque feios, dão-se às amizades, a uma ocupação sem precedentes da própria vida. “Habitar plenamente é tudo o que podemos opor ao paradigma do governo” (Comitê Invisível, 2016, p. 197).
Comecemos, pois, por habitar nossos corpos e fazer deles carne.
E, como Michael Hardt e Antonio Negri (2005) sugerem, a carne é elementar, ou seja, uma força informe da vida que, do ponto de vista da ordem e do controle políticos, apresenta-se como algo desesperadamente fugidia, pois não pode ser inteiramente enfeixada. Um ou mais corpos feios - corpos que não formam povos, nações ou mesmo comunidades - são sintomas de uma insegurança e de uma desordem que se apresentam ao poder como monstros. A carne monstruosa, por sua vez, dá testemunho de que somos todos singulares, de que não podemos ser reduzidos ao belo corpo unitário.
A fala inicial de uma das professoras volta a nos assombrar com inquietações e condições paradoxais do corpo. Perguntamos sobre como as marcas da beleza se alastram na escola e - como dissemos antes - uma professora brinca: “É bonitinho mas...”.
E talvez com isso, justamente com esse paradoxal mas da frase é que os corpos feios encontrem meios de fazer ruir as certezas do imperativo da beleza.
As meninas que começaram com isso... eu nem conhecia isso, nem sabia o que era um meme, eles que me falaram. Mas aí tá... eu pergunto para lá, pergunto para cá... tô vendo que elas estão rindo quando o guarda foi embora e eu tive que perguntar, né? ‘Então, gente, qual é a boa?’. E elas riram mais. Eu tentei de novo: ‘Gatinho ele, né?’. Aí elas não aguentaram e falaram rindo: ‘Gaaaato... mas é aquele negócio, né ‘fessora, é bonitinho mas...’. Foi só então que eu fui entender (Fala de uma professora, acervo pessoal de pesquisa).
Como a própria professora deixou claro, não interessava saber o que vinha depois do mas. Ela não se atentou a isso, as meninas não quiseram dar razão. As causas, inclusive, poderiam ser infinitas. “É bonitinho mas...”, brincam os memes que viralizaram na internet e na escola entre alunas e alunos, professoras e professores. “É bonitinho mas...” ‘fala errado’, ‘é machista’, ‘abre a boca e deixa de ser’, ‘curte orgulho de ser hetero’, ‘acha que a culpa é da vítima’, ‘sensualiza na foto e filosofa na legenda’...
Uma professora grita: “Gente, essa moda pegou mesmo! Até eu me peguei falando isso com meu marido em casa!” (Fala de uma professora, acervo pessoal de pesquisa).
E há um ar de insurrecional, de aberrante nisso. “É a marca própria dos movimentos aberrantes: saltar como um demônio para além dos limites que o juízo designa aos seres” (Lapoujade, 2015, p. 63).
Se nos cabe aceitar que os memes fazem o real surtar7 e acabam por declarar guerra contra a imagem estática da vida, é também possível pensar o corpo feio como esse simulacro que mina subterraneamente os agenciamentos servis do capitalismo estético.
Acho que tem um perigo nisso daí, né? De dizer que todo mundo é bonito, que todos podem ser lindos... eu sempre fui gorda, sempre tive dificuldade de arranjar roupa para mim. Mas aí agora tem a tal moda plus size e é ótimo poder encontrar roupa com menos dificuldade, mas o engraçado é: já viram como o preço subiu? Não é mais uma roupa qualquer, agora é roupa de moda! (Fala de uma professora, acervo pessoal de pesquisa).
Junto às docências, colocamo-nos não à parte das produções da maquinaria capitalística, mas, pelo menos, desfocados. Aos modos de Deleuze (2007) ou de Francis Bacon (o pintor), pensamos em estéticas da carne, isto é, do corpo desfigurado, do corpo que, talvez, ainda ocupe o centro, mas o faz como uma vianda, como uma carne que se solta de sua estrutura significante. “A vianda é esse estado do corpo em que a carne e os ossos se confrontam localmente, em vez de se comporem estruturalmente” (Deleuze, 2007, p. 30).
Carne acrobata, corpo feio aberrante.
Tudo foge.
Uma professora fala: “Acho que a questão é como driblar a beleza em jogo...”.
Nada poderia nos deixar mais à flor da pele, ou, talvez, à feiura da carne.
Referências
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- CARVALHO, Janete Magalhães. O Cotidiano Escolar como Comunidade de Afetos. Petrópolis: DP et Alii; Brasília: CNPq, 2009.
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- CARVALHO, Janete Magalhães. Práticas Discursivas sobre Currículo da Comunidade Acadêmico-Científica Vinculada às Associações do Campo e Veiculada em Periódicos Nacionais e Internacional. Vitória: CNPq, 2016. (Projeto de Pesquisa).
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1
O conceito de biopolítica, cunhado por Michel Foucault a partir de seus trabalhos genealógicos, faz referência às estratégias de governamento da população. A biopolítica, em seu sentido mais prático, diz justamente das políticas sobre a vida, de políticas que ditam como corpos podem e devem viver.
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3
Ao longo do texto, os recortes das falas são apresentados sem qualquer modo de identificação, seja ele nominal (fictício ou não) ou ordinal. Optamos por esse modo de apresentação de falas por acreditarmos que os enunciados não são referentes a uma identidade, mas a uma formação discursiva, como propunha Foucault. Há sempre a possibilidade de um enunciado ser dito por outra pessoa e, assim, apostamos na pesquisa com essa possibilidade cambiante. Importam os lugares do discurso, importam as práticas que possibilitam esses enunciados, mas também nos interessa a possibilidade de uma enunciação cabível a outros corpos.
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5
O termo cunhado por Gilles Deleuze é o de Gorda Saúde Dominante, implicando, nisso, em uma saúde que se espalharia para todas as direções, aos modos do que Michel Foucault também trabalhava com a história da medicina e com a expansão sem limites desse saber na medicalização. Todavia, visto que o corpo gordo é quase uma lástima à saúde, optamos por alterar o termo e manter seu sentido de saúde dominante e controladora.
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6
A partir do movimento neonazista realizado em Charlottesville, na Virgínia (EUA), as redes sociais retomaram discussões sobre a relação entre nazismo e movimentos de esquerda e, de algum modo, algumas páginas de internet e figuras públicas conseguiram aproximar o nazismo e o comunismo, gerando, como era de se esperar, uma grande quantidade de memes e de discussões no Twitter e no Facebook.
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7
E, a esse respeito, nenhum exemplo é tão evidente quanto o vivido por nós, brasileiros, em maio do ano de 2017, quando a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República enviou um e-mail à página de humor Capinaremos proibindo “[...] a divulgação de imagens do presidente [Michel Temer] para fins que não sejam jornalísticos sem autorização prévia” (REVISTA FÓRUM, 2017).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jun 2018
Histórico
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Recebido
23 Ago 2017 -
Aceito
02 Jan 2018