Resumo
Objetivo Caracterizar as tentativas de suicídio e automutilações por adolescentes e adultos, notificadas em Santa Catarina, Brasil, de 2014 a 2018.
Métodos Estudo transversal descritivo, com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação. Compararam-se características sociodemográficas, clínicas e do tipo de violência autoprovocada, entre adolescentes e adultos.
Resultados Nas 8.859 notificações analisadas, as tentativas de suicídio predominaram em relação à automutilação; as violências autoprovocadas foram mais frequentes no sexo feminino, raça/cor da pele branca e presença de transtorno mental; e sua ocorrência foi maior na residência, para ambas as idades. Nos adolescentes, destacou-se a automutilação de repetição (83,3%); e nos adultos, as tentativas de suicídio de repetição (50,6%) e a suspeita de uso de álcool no momento da violência (18,3%).
Conclusão Identificou-se altas prevalências de tentativa de suicídio entre adolescentes e adultos; as características das violências foram semelhantes entre as faixas etárias analisadas.
Palavras-chave: Tentativa de Suicídio; Automutilação; Comportamento Autodestrutivo; Adolescente; Adulto; Violência; Estudos Transversais
Resumen
Objetivo Caracterizar los intentos de suicidio y automutilaciones por adolescentes y adultos, reportados en Santa Catarina, Brasil, de 2014 a 2018.
Métodos Estudio transversal descriptivo con datos del Sistema de Información de Agravamientos de Notificación. Se compararon las características sociodemográficas, clínicas y del tipo de violencia autoinfligida entre adolescentes y adultos.
Resultados Entre las 8.859 notificaciones, predominaron los intentos de suicidio en relación a la automutilación; la autolesión fue más frecuente en mujeres, de piel blanca, con trastornos mentales y ocurrieron en domicilio, en ambas edades. En los adolescentes se destacó la automutilación repetida (83,3%) y en los adultos, los intentos de suicidio repetidos (50,6%) y la sospecha de consumo de alcohol (18,3%) en el momento de la violencia.
Conclusión Se identificó una alta prevalencia de intento de suicidio entre adolescentes y adultos, las características de la violencia fueron similares entre los grupos de edad.
Palabras clave: Intento de suicidio; Automutilación; Autolesión; Autoagresión; Adolescentes; Adultos; Violencia; Estudios transversales
Abstract
Objective To characterize adolescent and adult suicide attempts and self-harm reported in Santa Catarina, Brazil, from 2014 to 2018.
Methods This was a cross-sectional descriptive study with data from the Notifiable Health Conditions Information System. The sociodemographic, clinical and type of self-inflicted violence characteristics among adolescents and adults were compared.
Results Among the 8,859 notifications analyzed, suicide attempts predominated in relation to self-mutilation; self-inflected violence was more frequent in females, those of white skin color and with mental disorders; it occurred more at home, in both age groups. Among adolescents, repeated self-mutilation (83.3%) stood out, while among adults, repeated suicide attempts (50.6%) and suspected alcohol use (18.3%) at the time of violence stood out.
Conclusion We identified high prevalence of attempted suicide among adolescents and adults; the characteristics of violence were similar between the age groups analyzed.
Keywords: Attempted Suicide; Self-mutilation; Self-injury; Self-aggression; Adolescents; Adults; Violence; Cross-sectional Studies
Introdução
A violência autoprovocada é aquela em que o indivíduo inflige a si mesmo, e pode ser classificada em ‘comportamentos suicidas’ (ideação suicida, tentativa de suicídio e suicídio) ou ‘automutilação’ (autoagressão, como cortes, arranhões e queimaduras na própria pele).1 A automutilação é conduzida sem a intenção de morrer, enquanto a tentativa de suicídio demonstra clara intenção disso.2
Estudo com adolescentes coreanos, realizado em escolas, no período de 2007 a 2012, identificou prevalência de tentativa de suicídio de 5,6% no sexo feminino e de 4,2% no masculino.3 Entre estudantes canadenses, um estudo realizado no período de 2009 a 2013 identificou uma prevalência do evento de 3% para ambos os sexos.4 Um estudo conduzido com estudantes taiwaneses encontrou uma prevalência de tentativa de suicídio de 1,5% no período entre 2008 e 2012.5
No que se refere à automutilação, segundo outro estudo com estudantes taiwaneses, este realizado entre 2008 e 2010, a prevalência dessa forma de violência autoprovocada foi de 4,0%. Entretanto, a mesma prevalência de automutilação por adolescentes apresenta variações bastante acentuadas, segundo nações e culturas. Adolescentes jordanianos, por exemplo, apresentaram uma prevalência de automutilação de 22,6%, conforme estudo publicado no ano de 2015 e realizado em escolas.5,6
Em adultos, observou-se prevalências de tentativas de suicídio de 14% em canadenses, de 3,9% em coreanos e de 6,5% em norteamericanos.7-9 A automutilação foi responsável por 4,3% das apresentações em serviços de saúde canadenses.9 A automutilação foi responsável por 4,3% dos atendimentos em serviços de saúde canadenses.9 Em amostra de 231 estudantes universitários norte-americanos, 33,8% relataram pelo menos um incidente de automutilação.8
No Brasil, a taxa de internação de indivíduos com nove anos ou mais de idade e que tentaram suicídio, foi de 5,6 para cada 100 mil habitantes, entre 2000 e 2013.10 O VIVA-Inquérito - pesquisa de 2014, em serviços de saúde sentinelas de urgência/emergência de capitais e municípios brasileiros, para levantar informações sobre vítimas de violências - registrou 477 (9,5%) atendimentos decorrentes de violências autoprovocadas, das quais 18 (2,9%) cometidas por crianças, 94 (18,8%) por adolescentes, 348 (74,6%) por adultos e 16 (3,7%) por idosos.11 No Brasil, estudo de coorte com pessoas atendidas em ambulatório de psiquiatria, publicado em 2016, revelou que, dos indivíduos com comportamento de automutilação, 30% apresentavam idade inferior a 18 anos e 85% eram do sexo feminino.12
A literatura relaciona os problemas de saúde mental estão entre os fatores associados às tentativas de suicídio e automutilações, tanto em adolescentes como em adultos.5 A automutilação pode ser um importante fator de risco de suicídio, pois aumenta o desejo e habilidade suicida;13 em adolescentes, ela pode estar associada a fatores como problemas familiares e na escola,14 enquanto entre os adultos, tem-se observado sua associação com história de abuso na infância, transtornos de ansiedade, transtorno depressivo maior, agressividade e impulsividade.9
No Brasil, desde 2014, a notificação dos casos de violência autoprovocada é compulsória, utilizando-se da Ficha de Notificação Individual de Violência Interpessoal/Autoprovocada. Obrigatoriamente, a notificação é de responsabilidade do profissional de saúde ou responsável pelo serviço assistencial que prestar o primeiro atendimento ao indivíduo.15
As tentativas de suicídio são de comunicação imediata, com o objetivo de garantir a intervenção e o encaminhamento oportuno de prevenção. Os profissionais de saúde, portanto, devem estar atentos e capacitados para identificar e encaminhar os casos de violência autoprovocada.15
Diante do contexto apresentado, o objetivo deste estudo foi caracterizar as tentativas de suicídio e automutilações por adolescentes e adultos, notificadas no estado de Santa Catarina, no período de 2014 a 2018.
Métodos
Trata-se de estudo transversal descritivo, com dados secundários de violência autoprovocada, cadastrados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), referentes a residentes em Santa Catarina, região Sul do Brasil, entre 2014 e 2018.
O estado de Santa Catarina é composto por 295 municípios e uma população total, estimada para 2018, de 7.075.494 hab., dos quais 870.738 (12,3%) adolescentes e 4.211.439 (59,5%) adultos. Entre os estados brasileiros, Santa Catarina é o que apresenta melhor qualidade de vida e menor índice de desigualdade, a segunda menor taxa de mortalidade infantil (9,49 por 1.000 nascidos vivos) e a maior expectativa de vida (78,7 anos, em 2015).16
As variáveis incluídas no estudo foram extraídas da Ficha de Notificação Individual de Violência Interpessoal/Autoprovocada. Foi utilizado o programa Tabwin para extração e exportação dos bancos de dados do Sinan, disponibilizado pela Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina, por meio de sua Diretoria de Vigilância Epidemiológica, setor de Sistemas de Informação: http://tabnet.dive.sc.gov.br/ (dados extraídos em 31/10/2019).
Foram consideradas como variáveis de desfecho do estudo os tipos de violência autoprovocada registrados na ficha de notificação, quais sejam: (i) a tentativa de suicídio e (ii) a automutilação. Ambas as variáveis foram estratificadas, por faixa etária, em adolescentes e adultos. Considerou-se as notificações de violência autoprovocada por adolescentes e adultos residentes em Santa Catarina e que, no período de estudo, apresentavam, no campo 56 da ficha de notificação, a opção ‘Outros’ devidamente preenchida. O preenchimento dessa opção permite definir o tipo de violência autoprovocada, classificada como ‘tentativa de suicídio’ (em que há intenção de morrer) ou ‘automutilação’ (em que não há intenção de morrer). As instruções de preenchimento orientam que, ao preencher o campo 54 ‘1- Sim’ para violência autoprovocada, o campo 56 deve ser preenchido como ‘1- Sim’ na opção ‘Outros’, devendo-se especificar se a violência autoprovocada representa uma automutilação ou tentativa de suicídio.1 Foram incluídas no estudo as notificações em que, no campo 56, opção ‘Outros', foi devidamente preenchida a opção ‘Tentativa de suicídio’ ou ‘Automutilação’. As notificações excluídas foram aquelas em que a opção ‘Outros’ do campo 56 permaneceu em branco ou foi preenchida incorretamente, sem referir o tipo de violência autoprovocada.
As variáveis de exposição referiram as características dos indivíduos que praticaram a violência autoprovocada, bem como as características dessa violência. Com relação às características pessoais, foram avaliados: sexo (feminino; masculino); raça/cor da pele (branca; parda/preta; amarela/indígena); tipo de deficiência (física; intelectual; visual; auditiva) ou transtorno (mental; de comportamento); situação conjugal (solteiro; casado ou vivendo em união consensual; separado; viúvo); e escolaridade (sem escolaridade; ensino fundamental incompleto; ensino fundamental completo; ensino médio completo; ensino superior completo).
Quanto às características das tentativas de suicídio e automutilação, verificou-se: ocorrência anterior da mesma violência (sim; não); meio utilizado para cometer a violência autoprovocada (envenenamento; enforcamento; objeto perfurocortante; objeto contundente; arma de fogo); local da ocorrência (residência; escola; habitação coletiva; via pública; comércio; outros); e suspeita de uso de álcool no momento da violência (sim; não). Destaca-se que as informações sobre a variável ‘suspeita de uso de álcool’ foram coletadas durante o atendimento do indivíduo em situação de violência.
As análises dos dados foram apresentadas segundo o tipo de violência autoprovocada (tentativa de suicídio; automutilação) e estratificadas de acordo com as faixas etárias correspondentes a adolescentes (10 a 19 anos) e adultos (20 a 59 anos). Para a definição das faixas etárias, adotou-se como critério incluir os grupos reconhecidamente mais expostos a situações de violência autoprovocada, conforme aborda a literatura.11 As características dos indivíduos e da violência autoprovocada foram apresentadas por meio de estatística descritiva, em frequências absoluta e relativa (%), com os respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). A significância estatística foi verificada pelo teste qui-quadrado de Pearson: considerou-se o p-valor inferior a 0,05 (p<0,05) como estatisticamente significativo. O teste qui-quadrado foi empregado para comparar as proporções de tentativa de suicídio e de automutilação entre adolescentes e adultos. Utilizou-se o programa estatístico Stata, versão 14.0.
O projeto do estudo foi dispensado de submissão à avaliação de um comitê de ética em pesquisa, por se tratar de banco de dados secundário de acesso público e sem identificação dos indivíduos investigados.
Resultados
Foram identificadas, entre as 45.854 notificações de todos os tipos de violências ocorridas em Santa Catarina no período de 2014 a 2018, 17.387 (37,9%) que referiam a violência autoprovocada: 13.387 (77,0%) cometidas por adultos e 4.000 (23,0%) por adolescentes. Das notificações envolvendo adultos, 6.934 (78,2%) atenderam aos critérios de inclusão e foram analisadas neste trabalho, enquanto das notificações de violência autoprovocada por adolescentes, 1.925 (21,8%) também foram incluídas. Foram excluídas 8.525 (49%) notificações que, apesar de o campo 56 estar preenchido como ‘Outros’, não referiam os tipos de violência autoprovocada. Entre as notificações de violência autoprovocada por adolescentes, 1.788 (92,8%) foram tentativas de suicídio e 137 (7,2%) automutilações; quanto aos adultos, foram 6.879 (99,2%) tentativas de suicídio e 55 (0,8%) automutilações.
A maior parte dos adolescentes que tentaram suicídio eram do sexo feminino (73,4%), da raça/cor da pele branca (90,0%), solteiros (92,4%) e com ensino fundamental incompleto ou completo (80,8%). Entre os adolescentes que apresentaram deficiência ou transtorno, 96,8% foram caracterizados como portadores de transtornos mentais. De sua parte, a maioria dos adultos que tentaram suicídio eram predominantemente do sexo feminino (68,1%), brancos (89,0%), casados ou vivendo em união consensual (49,8%), e tinham ensino médio completo (37,9%). Os transtornos mentais apareceram em 98,5% dos adultos (Tabela 1).
Ao se comparar os adolescentes com adultos que tentaram suicídio, foi maior a proporção de adolescentes do sexo feminino (73,4%; p<0,001), solteiros (92,4%; p<0,001) e com ensino fundamental (39,9%; p<0,001); além disso, 3,2% desses adolescentes (p=0,005) apresentaram alguma deficiência (auditiva, física, intelectual ou visual). Os transtornos mentais foram mais frequentes nos adultos do que nos adolescentes, com diferença estatisticamente significativa (p=0,005) (Tabela 1).
No que tange às características das tentativas de suicídio entre os adolescentes, predominaram as notificações em que esse tipo de violência tinha ocorrido uma única vez (54,2%). O principal meio utilizado, entre os adolescentes, foi o envenenamento (64,0%), e o principal local de ocorrência, a residência (91,9%). A suspeita de uso de álcool aconteceu em 8,8% das tentativas de suicídio por adolescentes. Entre os adultos analisados, as características das tentativas de suicídio apresentaram, como principal meio utilizado, o envenenamento (64,4%), e coincidindo com os adolescentes, a residência como principal local de ocorrência (92,4%). Apresentaram suspeita de uso de álcool 18,3% dos adultos que tentaram suicídio, proporção duas vezes maior que a dos adolescentes (Tabela 2).
Adultos e adolescentes apresentaram diferenças estatisticamente significativas quanto às características das tentativas de suicídio, estimando-se valor de p<0,001 para as variáveis descritas a seguir. Embora o envenenamento tenha sido o meio de agressão mais comum em ambos grupos, o uso de objeto perfurocortante foi mais frequente nos adolescentes (16,0%), frente aos adultos (9,0%); nestes, a tentativa de suicídio por enforcamento foi o meio mais frequente (7,3%), superior ao percentual do uso desse instrumento nas tentativas entre adolescentes (4,8%). A tentativa repetida de suicídio predominou nos adultos (50,6%), em relação aos adolescentes (45,8%) (Tabela 2).
Ao se analisar as características dos adolescentes que cometeram automutilação, observou-se predomínio do sexo feminino (79,6%), da raça/cor da pele branca (85,4%), ser solteiro ou solteira (98,2%) e referir ensino fundamental incompleto ou completo (96,5%). Dos que possuíam deficiência/transtorno, 99,0% tinham problemas mentais (Tabela 3).
Os adultos que cometeram automutilação também foram, majoritariamente, do sexo feminino (68,5%) e brancos (73,1%). Dos adultos que possuíam deficiência/transtorno, 97,0% tinham transtornos mentais. Ainda, entre os que praticaram automutilação, verificou-se maior proporção, com significância estatística (p<0,001), de adolescentes solteiros (98,2%), relativamente aos adultos solteiros (51,0%). A escolaridade também apontou diferenças: o ensino fundamental completo foi o nível de ensino cursado mais frequente observado entre adolescentes (40,9%), enquanto o ensino médio completo foi majoritário entre adultos (52,5%) (p<0,001) (Tabela 3).
O principal meio utilizado pelos adolescentes para automutilação foi o objeto perfurocortante (92,7%), e sua residência o principal local de ocorrência (91,9%). Em 83,3% das notificações de adolescentes, havia ocorrência anterior de automutilação. No momento da automutilação, 9,5% dos adolescentes notificados pelo ato se encontravam sob suspeita de uso de álcool (Tabela 4).
Entre os adultos, a automutilação ocorreu repetidas vezes em 69,6% dos casos; objeto perfurocortante foi o principal meio utilizado por eles (72,2%), e o principal local da ocorrência sua residência (92,4%). No momento da automutilação, 22,7% dos adultos apresentaram suspeita de uso de álcool. A automutilação de repetição (83,3% versus 69,6%; p=0,047) e a autoagressão mediante uso de objeto perfurocortante (92,7% versus 72,2%; p<0,001) foram mais frequentes entre os adolescentes, comparados aos adultos, ao passo que a suspeita de uso de álcool no momento da violência foi mais frequente entre os adultos, comparada à mesma suspeita sobre os adolescentes (22,7% versus 9,5%; p=0,031) (Tabela 4).
Discussão
O presente estudo demonstrou que, em Santa Catarina, as tentativas de suicídio predominaram entre adolescentes e adultos quando comparadas às automutilações nos mesmos segmentos etários. Embora com menor frequência, a automutilação foi relevante em adolescentes. Foram encontradas características comuns para as tentativas de suicídio e automutilações entre adolescentes e adulto: sexo feminino, raça/cor da pele branca, presença de transtorno mental, e a residência como principal local de ocorrência. Porém, algumas características apresentaram-se de forma distinta, conforme as idades consideradas: (i) a maior parte dos adolescentes que tentaram suicídio eram solteiros, enquanto a maioria dos adultos eram casados ou viviam em união estável; (ii) a escolaridade dos adolescentes que tentaram suicídio ou cometeram automutilação era mais baixa que a dos adultos; e (iii) a automutilação de repetição apresentou importante frequência entre adolescentes.
Apesar da porcentagem baixa, quando comparada às tentativas de suicídio, a automutilação teve maior frequência nos adolescentes, um resultado a requerer atenção. A automutilação em adolescentes apresenta-se como um fator associado às tentativas de suicídio e, também, aos transtornos psiquiátricos.17 Ademais, é preciso ter cautela ao relacionar a automutilação a um estágio natural da adolescência, ou seja, como uma fase caracterizada pela falta de limites, desrespeito às regras e imposição dos hormônios. Tal relação implica encaminhamentos meramente burocráticos e assim, reduz a importância do fenômeno no âmbito da saúde.18
A predominância das tentativas de suicídio no sexo feminino é corroborada por estudo brasileiro realizado em 2011, conduzido em hospitais de Arapiraca, estado de Alagoas, onde 55% das pessoas que tentaram suicídio também eram do sexo feminino.19 Compreende-se que as mulheres são as que mais tentam suicídio porque se utilizam, na maioria das vezes, de métodos menos efetivos, diferentemente dos homens, nos quais os óbitos por suicídio prevalecem.20 Ainda, as mulheres tendem a ter maior ocorrência de problemas relacionados à saúde mental, o que ocasiona maior vulnerabilidade em relação à violência autoprovocada.11
Sobre os achados de raça/cor da pele, os indivíduos classificados como brancos apresentaram maior proporção de tentativa de suicídio e de automutilação, um resultado justificável pela composição étnica do estado de Santa Catarina: enquanto no Brasil, 47,7% da população se refere de raça/cor da pele branca, em Santa Catarina esse percentual sobe a 83,9%, conforme dados da fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.16 Outro estudo, conduzido em 24 capitais brasileiras no ano de 2014, constatou predomínio dos indivíduos de raça/cor da pele preta/parda nas tentativas de suicídio, representados em 62,4% dos casos atendidos.11 É de se esperar que esse resultado seja fiel à composição étnica da sociedade geral brasileira.
As tentativas de suicídio e as automutilações predominaram em adolescentes solteiros e no nível de ensino fundamental, respectivamente. Estes achados associam-se às características culturais brasileiras de cada ciclo de vida analisado. Além disso, destaca-se que frequentar a escola pode se apresentar como um fator de proteção às tentativas de suicídio e automutilações, para adolescentes. Em 26 de abril de 2019, foi sancionada a Lei nº 13.819,21 que instituiu a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, que recomenda: estabelecimentos de ensino, públicos e privados deverão informar e capacitar os profissionais atuantes nessas instituições sobre os procedimentos de notificação da violência autoprovocada.
Em contraste com o presente estudo, que identificou maior proporção de tentativas de suicídio em adultos com ensino médio completo, estudos internacionais apontaram que indivíduos com rendas mais baixas, menor escolaridade e desempregados apresentaram taxas significativamente mais altas de tentativa de suicídio.7 Na Coreia do Sul, por exemplo, identificou-se associação entre baixo nível de educação formal e aumento do risco de suicídio, sugerindo mais atenção aos indivíduos com ideação suicida que possuam baixa ou nenhuma escolaridade.22
Ao se considerar que o principal local de ocorrência das tentativas de suicídio e automutilações foi a residência, dado encontrado em mais de 90% dos casos, enfatiza-se a importância da rede familiar e social para o indivíduo, principalmente no que toca ao apoio, monitoramento e prevenção da reincidência dos atos de violência autoprovocada. A interação positiva nas relações pessoais pode ser útil, no sentido de manter o bem-estar emocional e minimizar o efeito dos estressores; ou seja, provocar um efeito positivo na saúde mental, independentemente dos fatores estressores envolvidos. Em contrapartida, a ausência de relações de confiança entre o indivíduo e sua família ou comunidade pode aumentar o risco de tentativas de suicídio.23
A violência autoprovocada de repetição requer igual atenção, com destaque para a automutilação em adolescentes. Estudo qualitativo realizado em 2018, com adultos brasileiros assistidos em serviço de saúde mental, identificou que as tentativas de suicídio eram praticadas com o objetivo de aliviar o sofrimento, e a sobrevivência a elas era profundamente dolorosa. As tentativas de suicídio eram motivadas, principalmente, pela vontade de provocar a própria morte, eliminar a dor ou modificar situações vivenciadas.24 Vale ressaltar que muitas tentativas de suicídio podem não chegar aos serviços de saúde, por serem de baixa complexidade, dificultando a identificação da ocorrência ou sua recorrência, e logo sua notificação.
Estudo internacional apontou que a automutilação de repetição surge, muitas vezes, como uma resposta habitual à angústia intrapessoal e interpessoal, enquanto a tentativa de suicídio pode, gradualmente, tornar-se um método no repertório de estratégias de resposta às recorrentes automutilações.2 Repetidos episódios de automutilação também podem habituar os indivíduos ao medo e à dor associados ao envolvimento em tentativas de suicídio.14 A reincidência de tentativas de suicídio indica maior risco para o suicídio.25
Em consonância com a presente pesquisa, que identificou o envenenamento como principal meio utilizado para as tentativas de suicídios, um estudo nacional, sobre dados extraídos do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde, referentes ao período 2002-2013, identificou, como principal meio utilizado para a violência autoprovocada que levou à internação, a autointoxicação por medicamentos e substâncias biológicas.10 A intoxicação exógena chega a ser responsável por, aproximadamente, 70% dos casos de tentativas de suicídio notificados no país. Evidenciou-se uma possível facilidade de acesso a esses produtos farmacêuticos, o que, possivelmente, contribui para uma maior ocorrência de tentativas de suicídio por intoxicação.20
O principal meio utilizado para a automutilação por adolescentes e adultos foi o objeto perfurocortante. Normalmente, esse instrumento apresenta-se acessível, como mostra pesquisa com adolescentes brasileiros sobre alguns meios utilizados na automutilação: mãos, unhas, facas, estiletes, dentes, vidros, pedras, cachecol, canetas, grampos e escova de dente.12 No presente estudo, também se observou alta frequência de deficiências ou transtornos nos adolescentes que tentaram suicídio. A saúde mental dos indivíduos pode, outrossim, influenciar no meio escolhido para as tentativas de suicídio: aqueles que apresentam algum transtorno diagnosticado, geralmente, têm acesso à medicação para agravos desse tipo, prescrita pelo médico. O Ministério da Saúde orienta, como forma de prevenção, impedir que a pessoa em risco de suicídio tenha acesso a meios como armas, facas, cordas e medicamentos.26
Dos adolescentes que tentaram suicídio, 8,8% haviam consumido bebida alcoólica; nos adultos, esse percentual foi de 18,3%. O álcool pode facilitar todo o processo de suicídio (ideação, método selecionado etc.).27 As estimativas nacionais demonstram que a cada dez tentativas de suicídio, mais de duas têm relação com o uso do álcool.28 Apresentaram suspeita de uso de álcool 9,5% dos adolescentes que se automutilaram. Entre os adultos, esse dado chamou a atenção: quase 1/4 deles apresentava suspeita de uso de álcool no momento da automutilação. De acordo com estudo internacional, pessoas que cometem automutilação também são mais propensas a apresentar transtornos por uso de álcool e drogas, em comparação àquelas que não se automutilam.9
Analisar a violência autoprovocada por tipo, com os dados do Sinan, mostrou-se como um desafio. O campo de registro referente à tentativa de suicídio ou automutilação é aberto, ou seja, o profissional de saúde deve escrever por extenso o tipo de violência autoprovocada. Diante disso, sugere-se que, em uma próxima atualização da Ficha de Notificação Individual de Violência Interpessoal/ Autoprovocada, sejam incluídos campos fechados para os tipos de violências autoprovocadas, com opção para ‘Tentativa de suicídio’ e ‘Automutilação’, habilitando-a ao registro da relevante informação.
A completude dos dados nas fichas de notificação é de extrema importância para a análise dos fatores associados às violências. Nesse sentido, cumpre chamar a atenção e sensibilizar os profissionais de saúde sobre a relevância das notificações, e promover sua capacitação continuada nesse sentido. Informações qualificadas trazem subsídios ao desenho e implantação de ações, programas e políticas públicas em saúde, contribuindo para a prevenção e o enfrentamento da questão em tela.
Sobre as limitações deste estudo, aponta-se a subnotificação dos casos de violência autoprovocada. Segundo a Organização Mundial da Saúde, existem evidências de que apenas 25% das pessoas que tentam suicídio entram em contato com hospitais; estima-se, inclusive, que há subnotificação desses casos em países com bons sistemas de informações.11 A falta de informações sobre o tipo de violência autoprovocada, evidente em um percentual considerável das fichas de notificação, e a presença de profissionais de saúde com dificuldade no preenchimento dessas informações também foram limitações para o estudo, embora não invalidem seus achados. Logo, exige-se cautela com os resultados apresentados, haja vista a possibilidade de estarem subestimados.
Entre os pontos fortes deste trabalho, está a relevância das informações sobre a violência autoprovocada por adolescentes e adultos de Santa Catarina. Notificadas nos serviços de saúde, tendo como base o banco de dados do Sinan, essas informações permitem o reconhecimento dos tipos de violência autoprovocada e as características das pessoas que a cometem.
Em relação ao tipo de violência autoprovocada, foram mais frequentes as tentativas de suicídio em ambas as faixas etárias analisadas. A automutilação predominou em adolescentes; e o sexo feminino, raça/cor da pele branca, transtornos mentais e ocorrência na residência, apresentaram maiores proporções para ambos desfechos e estratificações adotadas. As diferenças entre os dois grupos etários concentraram-se na escolaridade e no estado civil, conforme esperado, considerando-se as diferentes fases do curso da vida e suas características específicas. Sobre violência de repetição, a automutilação foi mais predominante em adolescentes, e a tentativa de suicídio, em adultos.
Concluiu-se que o presente estudo, ao destacar as características da violência autoprovocada por tipo - tentativa de suicídio e automutilação - e faixa etária - adolescentes e adultos -, pode contribuir para o planejamento de ações de prevenção e enfrentamento direcionadas a cada tipo de violência observada nessas idades, em Santa Catarina.
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Artigo derivado de dissertação de mestrado acadêmico intitulada ‘Tentativas de suicídio e automutilações de adolescentes e adultos notificadas em Santa Catarina - Brasil’, defendida por Thayse de Paula Pinheiro junto ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina, em dezembro de 2020.
Editado por
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Editora associada
Thaynã Ramos Flores - 0000-0003-0098-1681
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
03 Dez 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
30 Abr 2021 -
Aceito
05 Out 2021