Open-access Iniquidades e Doenças Crônicas Não Transmissíveis no Brasil

Inequidades y Enfermedades Crónicas No Transmisibles en Brasil

O Brasil apresenta hoje um cenário epidemiológico com predominância de doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), como hipertensão, diabetes mellitus e cânceres, que têm fatores de risco bem conhecidos, entre os quais se incluem o tabagismo, a alimentação não saudável, o consumo abusivo de bebida alcóolica, além da baixa prática de atividade física. Em 2017, cerca de três em cada quatro mortes foram atribuídas às DCNTs no Brasil.1 Por mais que essa mortalidade proporcional seja elevada, de 1990 a 2017 houve uma redução de 35% nas mortes por DCNTs no país.1 Porém, estimativas nacionais de indicadores em saúde podem esconder importantes desigualdades.

Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), pactuados em 2015, estabelecem como alvo, além da redução global de mortalidade por DCNTs, a redução das desigualdades associadas a estas mortes.2 Apesar do bom resultado na redução de mortalidade por DCNTs no país, nas quase três décadas citadas, com perspectivas de se atingir a meta dos ODS,3 essa redução foi de 48,9% (IC95% -50,8;-46,8) no Distrito Federal, enquanto no Rio Grande do Norte foi observada estabilidade (-2,8%; IC95% -8,3;3,2).1

Frente a este cenário, é fundamental destacar a relevância do monitoramento, seja dos desfechos em saúde ou de suas desigualdades. Nesse contexto, o Brasil possui tradição tanto na coleta de informações em desfechos relacionados à saúde através de inquéritos, quanto por meio dos seus sistemas de informação em saúde. Um exemplo disso é a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), um inquérito de base populacional aplicado pela primeira vez em 2013. No módulo de doenças crônicas, uma série de informações sobre doenças crônicas, agravos à saúde e utilização de serviços em saúde são coletadas. Estas informações fornecem um panorama muito abrangente e fidedigno da saúde da população brasileira. Utilizando dados dos dois anos da PNS, um estudo sobre multimorbidade em pessoas de 18 a 59 anos de idade mostrou que a presença de duas ou mais morbidades aumentou no país e esteve inversamente relacionada com a escolaridade: menos escolarizados apresentam prevalência de multimorbidade cerca de 10 pontos percentuais maior do que os mais escolarizados.4 Ainda cabe ressaltar que as desigualdades não estão relacionadas somente a determinantes individuais (por exemplo: idade, raça/cor da pele, escolaridade e riqueza), mas, em um país como Brasil, com dimensões continentais, a região e a área de residência dos indivíduos, assim como o contexto em que estes vivem, podem revelar diferenças importantes nas estimativas de saúde. Ainda, dependendo do indicador estudado, a abordagem de interseccionalidades (sobreposição de estratos sociais) pode destacar grupos em maior vulnerabilidade.

A Figura 1 mostra desigualdades na prevalência de hipertensão arterial e diabetes mellitus, por escolaridade, em idosos (≥ 60 anos) residentes em cada uma das cinco macrorregiões brasileiras. Nessa ilustração, podemos ver a aplicação da abordagem de interseccionalidade -, neste caso específico, a combinação dos estratos de região e escolaridade. Em linha gerais, para todas as regiões e para ambas as doenças, é observado um padrão em que os menos escolarizados são mais afetados pelas doenças do que os mais escolarizados, e esse tipo de visualização permite monitorar as mudanças ocorridas na prevalência de hipertensão e diabetes com um maior foco em padrões de desigualdade.

Figura 1
Prevalência de hipertensão arterial e diabetes, em idosos brasileiros com idade ≥ 60 anos, por região e escolaridade, Pesquisa Nacional de Saúde 2013 e 2019

Em relação especificamente à interseccionalidade, o exemplo mais evidente de aumento nas desigualdades nestas doenças pode ser visto na região Sudeste. A prevalência de hipertensão arterial, por exemplo, se manteve estável, entre 2013 e 2019, nos indivíduos mais escolarizados, ao redor de 44%, enquanto, entre os menos escolarizados, ela evoluiu de 56% para 65%. Este incremento no grupo mais vulnerável acarretou um aumento substancial das desigualdades observadas. Cabe salientar que o mesmo padrão é observado para o diabetes mellitus, tanto pontual quando ao longo do tempo para a região Sudeste. Por outro lado, nas regiões Norte e Nordeste, há indícios de que uma diminuição das diferenças entre indivíduos mais e menos escolarizados tenha ocorrido, apesar do aumento da prevalência do desfecho. Portanto, esse tipo de abordagem revela não só em quais grupos está ocorrendo um aumento/redução do indicador de saúde de interesse, mas se essa mudança é uniforme em toda a população, ou se alguma camada apresenta importante desvantagem social. A observação destes padrões de desigualdade permite aos gestores um melhor planejamento e monitoramento de ações e políticas públicas voltadas justamente para o enfrentamento das DCNTs.

Outro aspecto importante no estudo de desigualdades é sua relação com as iniquidades. Enquanto a desigualdade é a parte mensurável das disparidades entre grupos populacionais, ou seja, aquilo que conseguimos medir a partir de informações de inquéritos em saúde ou pela utilização de sistemas de informações em saúde, a iniquidade é um conceito teórico, de difícil mensuração e sujeita a juízo de valor.2,5,6

Para a caracterização de uma iniquidade em saúde, deve-se atentar para alguns aspectos. O primeiro é identificar uma sistematização nos padrões de desigualdades. No exemplo da Figura 1, com algumas poucas exceções, em todas as regiões, tanto diabetes mellitus quanto hipertensão arterial foram mais prevalentes nos menos escolarizados. O segundo aspecto é aquele relacionado a como tal padrão foi produzido. Há padrões que são biologicamente produzidos, enquanto outros têm forte determinação social. Neste exemplo, os menos escolarizados tendem a possuir piores condições de moradia e trabalho, assim como são mais expostos a fatores de risco para doenças crônicas, como inatividade física, alimentação inadequada, consumo abusivo de álcool, uso de tabaco, entre outros. Por fim, além desses dois aspectos, considerada-se a desigualdade uma iniquidade quando é entendida como injusta e, também, evitável. Àqueles que se interessam pelo tema de desigualdade, cabe um julgamento de valor, para se entender se o que está sendo observado pode ser caracterizado como uma iniquidade.

O monitoramento de indicadores em saúde, sejam de doenças ou cobertura de saúde, é essencial para o acompanhamento da saúde da população. É evidente que estimativas agregadas têm seu valor, porém acabam por esconder importantes desigualdades nos subgrupos populacionais. Além do óbvio investimento constante em pesquisas e na melhoria dos sistemas de saúde, deve-se estimular que inquéritos e serviços de saúde coletem informações sobre diferentes dimensões de desigualdade: cor da pele, etnia, gênero, situação de migração, região de residência, entre tantas outras possibilidades. Os próprios ODS já sugerem que estejam disponíveis dados confiáveis, atuais e que permitam um olhar mais amplo para as desigualdades em saúde.

No cenário atual da saúde brasileira, com as políticas de austeridade fiscal estabelecidas em 2016 e os problemas no enfrentamento de crises sanitárias, como a pandemia de COVID-19, a pesquisa em saúde com foco na identificação daqueles que estão sendo "deixados para trás" se torna ainda mais relevante. Um olhar cuidadoso é fundamental para que possamos enfrentar coletivamente a grande carga que as DCNTs impõem à sociedade e aos serviços de saúde. Este esforço poderá ser mais efetivo se todos os atores envolvidos, como políticos, gestores, pesquisadores e sociedade civil, adotarem ações conjuntas e coordenadas visando não só à redução das DCNTs, mas também à redução de desigualdades associadas a estes desfechos em saúde.

Referências

  • 1 Malta DC, Duncan BB, Schmidt MI, Teixeira R, Ribeiro ALP, Felisbino-Mendes MS, et al. Trends in mortality due to non-communicable diseases in the Brazilian adult population: national and subnational estimates and projections for 2030. Popul Health Metr. 2020; 18(Suppl 1): 16.
  • 2 United Nations. Sustainable development goals 2021. Available from: https://sdgs.un.org/goals
    » https://sdgs.un.org/goals
  • 3 Malta DC, Andrade S, Oliveira TP, Moura L, Prado RRD, Souza MFM. Probability of premature death for chronic non-communicable diseases, Brazil and Regions, projections to 2025. Rev Bras Epidemiol. 2019; 22: e190030.
  • 4 Delpino FM, Wendt A, Crespo PA, Blumenberg C, Teixeira DSdC, Batista SR, et al. Ocorrência e desigualdades por escolaridade em multimorbidade em adultos brasileiros entre 2013 e 2019: evidências da Pesquisa Nacional de Saúde. Rev Bras Epidemiol. 2021; 24(supl 2). doi: 10.1590/1980-549720210016.supl.2
    » https://doi.org/10.1590/1980-549720210016.supl.2
  • 5 Silva I, Restrepo-Mendez MC, Costa JC, Ewerling F, Hellwig F, Ferreira LZ, et al. Measurement of social inequalities in health: concepts and methodological approaches in the Brazilian context. Epidemiol Serv Saude. 2018; 27(1): e000100017.
  • 6 World Health Organization. State of inequality: reproductive maternal newborn and child health: interactive visualization of health data. Geneva: World Health Organization; 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022
location_on
Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente - Ministério da Saúde do Brasil SRTVN Quadra 701, Via W5 Norte, Lote D, Edifício P0700, CEP: 70719-040, +55 (61) 3315-3464 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revista.saude@saude.gov.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro