O alentado livro, organizado por Pedro Luiz Moreno Martínez, não é apenas uma homenagem, mas um balanço historiográfico dos mais profícuos da História da Educação recente, desde o ponto de vista dos pesquisadores espanhóis. Com a competência e seriedade que lhe é peculiar, o autor-organizador passa a limpo a produção historiográfica espanhola a partir do diálogo de 16 historiadores da educação com o legado de Antonio Viñao. Justa homenagem nascida a partir da aposentadoria deste autor das suas funções junto ao ‘Departamento de Teoria e Historia de la Educación’da Universidad de Murcia, no sudeste espanhol.
A obra oferece ao leitor interessado nos estudos historiográficos uma constelação de temáticas desenvolvidas por diferentes historiadores, em diálogo rigoroso e criativo com a obra do homenageado. Iniciando com um olhar de Dollores Garrillo Gallego e Damián Lópes Martínez, professores da Universidad de Murcia, para a trajetória de Viñao quem, formado no campo do Direito converteu-se em uma referência nos estudos em história da educação não apenas na Espanha. Na sequência, é analisadoo lugar ocupado pela Universidad de Murcia na reconfiguração e renovação do campo a partir da década de 1980, em um capítulo assinado por María José Martinez Ruiz-Funes e Ana Sebastián Vicente, professoras da mesma universidade. Aquela renovação, da qual fizeram parte vários dos autores presentes na coletânea, demarcaria a independência dos estudos históricos da educação em relação ao campo pedagógico. Por certo isso contribuiu para que dali surgisse um dos mais vigorosos veios de estudos históricos sobre os fenômenos educativos, reconhecido em praticamente todo o mundo pela força dos seus pressupostos empíricos, teóricos e metodológicos.
Nesse sentido, partindo da experiência murciana, a obra serve como um mapa da produção historiográfica espanhola das últimas três décadas, ao mesmo tempo queajuda a inquirir o constante desenvolvimento do campo. Parte desse percurso nos é oferecido pela pena de Antón Costa Rico, pesquisador da Universidade de Santiago de Compostela, quando trata da ‘responsabilidade moral do historiador’ percorrendo traços de biografia e do (s) contexto (s) que permitiram a renovação da historiografia espanhola em diálogo com outras tradições nacionais, processo no qual Antonio Viñao teve grande participação. O autor lembra um postulado de Viñao, para quem ‘o historiador leva a cabo uma atividade de reorganização criadora e interpretativa’, o que implica pensar criticamente tanto os seus pressupostos quanto os fins que pretende alcançar.Nessa perspectiva de tentar romper os códigos disciplinares da tradição da história da pedagogia, novas fontes emergiram a partir de novos olhares que articulam rigor metodológico e analítico, o que confere um estatuto também político ao labor do historiador, contribuindo para desmistificar o passado.
Em relação aos estudos sobre a ‘alfabetização e a cultura escrita’, escrutinados por Narciso de Gabriel, da Universidade da Coruña, ou em relação à ‘história das disciplinas escolares e dos manuais escolares’, abordados por Gabriela Ossembach Sauter, pesquisadora do Centro de Investigación MANES e da Universidad Nacional de Educación a Distancia, os historiadores da educação brasileiros sempre tiveram no labor de Antonio Viñao um incentivo dos mais estimulantes. No primeiro caso, Gabriel mostra como parte significativa do trabalho do autor foi dedicada a essa senda de estudos, sempre em relação com a oralidade, quando eles ainda eram muito incipientes. Já, no que concerne aos estudos sobre dimensões do currículo, Gabriela Ossembach reconhece que a contribuição mais contundente de Viñao para o campo talvez tenha sido justamente aquela que se refere à história das disciplinas escolares, sobre a qual publicou também no Brasil um texto que é referência para o debate. O mesmo se pode dizer do trabalho em relação à história dos ‘espaços e tempos educativos’, no livro abordado por Agustín Escolano Benito, parceiro de Viñao em muitas iniciativas, mas que atribui a ele o pioneirismo na definição de uma agenda de investigações sobre o tema mesmo em nível global. Tal ênfase provavelmente tenha decorrido da sua experiência no âmbito político-administrativo anterior à sua carreira acadêmica, uma vez que trabalhou com o planejamento e a gestão de construções escolares e as suas relações com a urbanização em diferentes regiões da Espanha. Não é demais lembrar que o debate sobre o conceito de ‘cultura escolar’, chegado até nós na década de 1990 vindo da tradição francesa a partir das propostas de Andre Chervel e Dominique Juliá, mas com grande desenvolvimento pela análise arguta de Viñao. Conceito, aliás, que o autor segue refinando em publicações recentes, problematizando a sua potência. No volume analisado o mesmo é tratado por Alejandro Tiana Ferrer, também professor da Universidad Nacional de Educación a Distancia, em articulação com a ‘história dos sistemas educativos e suas reformas e inovação educativa’.
Se é de potência historiográfica que se trata, o livro organizado por Pedro Luiz Moreno Martinez segue oferecendo verdadeiros achados empíricos e analíticos. É o caso do capítulo de Maria del Mar de Pozo Andrés, da Universidad de Alcalá, sobre a ‘historiografia da escola graduada em perspectiva internacional’, ou das fissuras entre a retórica e a realidade quando se trata de interrogar a ‘política educativa’, na perspectiva de Juan Manuel Fernández-Soria, da Universidad de Valencia. No caso de Pozo Andrés, a autora mostra como se constituíram as preocupações com a história da escola graduada nos idos da década de 1980, uma vez que ela se convertera em um dos principais marcos do regeneracionismo pedagógico espanhol, bandeira de muitos reformadores e signo de uma Espanha que almejava modernizar-se. Aquela ênfase dada pelo primeiro livro de Antonio Viñao sobre o tema teria, segundo a autora, definido uma virada na forma de compreender a história dos processos de escolarização para além das fronteiras da Espanha. Em relação às políticas educativas, sobre a qual Viñao publicou entre nós pela SBHE uma indagação sobre o seu fracasso, Fernandez-Soria, percorre um amplo leque de questões presentes na historiografia espanhola: o direito à educação e à liberdade de ensino, o desmantelamento da educação como bem público, com o rebaixamento da noção de ‘público’, a perda do valor da democracia entres outros. Temas por demais atuais na realidade dos pesquisadores brasileiros.
Manuel de Puelles Benítez, professor emérito da Uned, oferece um bonito paralelo entre a sua trajetória e a de Viñao, com foco nos estudos sobre os ‘antecedentes ideológicos da educação moderna e os seus efeitos para a criação e consolidação do que se constituiria como Educação Secundária’, devedora dos ventos renovadores que fundariam a educação primária no século XVI. Esse é um veio apenas recentemente perseguido pelos historiadores da educação brasileiros e muito pode ser apreendido daquilo que o autor denomina ‘o caso espanhol’. Também são potentes contribuiçõesos capítulos sobre a ‘estatística escolar e o processo de escolarização’ entre os séculos XVIII e XX, autoria de Jean-Louis Guereña, pesquisador da Université Fraçois-Rabelais, Tours, o qual inquire ‘a verdade das cifras’ e problematiza o ‘conhecimento estatístico como instrumento de uma política educativa eficaz’, mostrando comovem, já do começo dos anos 1980, a preocupação dos historiadores espanhóis com o tema. Assim, o autor deslinda os diálogos estabelecidos por aquela geração com as realizações de outros países no âmbito educativo. Em Pensamiento pedagógico, Bernat Sureda Garcia, da Universitat de lesIlles Baleares, coloca em diálogo com a história social da educação e com a história conceitual a ‘pretensamente esquecida’história da pedagogia. Autor da mesma geração que o homenageado, explicita como aquelase deparou com o desafio de reorganizar a educação espanhola na democracia pós-franquista, com todo o peso político-ideológico que o debate apresentava. Dali emergiram as preocupações dele e de seus pares com as ideias, os indivíduos, grupos e redes de sociabilidade. Um dos resultados daquele tipo de inquirição na renovação historiográfica observada no país foia preocupação com a história do professorado a partir da análise de ‘autobiografias, memória e diários’, discutida por Aida Terrón Bañuelos, da Universidad de Oviedo. Ali se observa uma tensão entre a dimensão política e a dimensão profissional dos professores, que definiria muito do que viria a ser o estudo sistemático das suas memórias e dos seus lugares de organização gremial. Sujeitos ‘de’ e sujeitados ‘por’ toda lógica de poder que amiúde desafia os imperativos da política institucional.
O capítulo final é do organizador da obra, Pedro Luiz Moreno Martinez. Não por acaso, sendo ele parceiro de longa data de Antonio Viñao, trata da memória escolar e do patrimônio educativo, um dos veios nos quais a Universidad de Murcia mais se destacou no movimento de renovação da historiografia espanhola. Além de produzir reflexões bastante estimulantes sobre a memória como objeto histórico educativo, o autor ilustra as suas reflexões com os exemplos do Museo Virtual de Historia de la Educación [MUVHE] e o Centro de Estudios sobre la Memoria Educativa [CEME], daquela universidade. Nos seus exemplos empíricos discorre sobre os usos dos cadernos escolares e dos cartões postais como fontes e patrimônio documental.
O volume é encerrado com um longo ‘apartado’, intitulado ‘Publicaciones de y sobre Antonio Viñao’, que percorre o vasto interesse do autor de livros, capítulos, artigos em periódicos, organizador de edições especiais, conferências, entrevistas, inclusive aqueles publicados ou realizados no Brasil (Taborda De Oliveira, 2010Taborda de Oliveira, M. A. (2010). Entrevista. Siete preguntas a Antonio ViñaoFrago. Revista Brasileira de História da Educação, 22, 199-212. ; Taborda de Oliveira & Faria Filho, 2011Taborda de Oliveira, M. A., &Faria Filho, L. M. (2011). Antonio Viñao Frago: a crítica da educação como crítica cultural. In T. C. Rego (Org.), Memória, história e escolarização (1a ed., Vol. 3, p. 93-124, Coleção Pedagogia contemporânea). São Paulo, SP.; Bastos, 2017Bastos, M. H. C. (2017). A pesquisa em história da educação, testemunho de um autor: entrevista com AntonioViñao Frago. História da Educação, 21(51), 15-31.)
A obra no seu conjunto permite uma mirada prosopográfica que articula a trajetória pessoal de um importante historiador como é Antonio Viñao, sem perder-se nas minucias do memorialismo laudatório. Ainda que se trate de uma obra que assumidamente homenageia essa personagem singular, ela articula autores e temas em torno do passado recente e do futuro da pesquisa em história da educação. Para nós pode soar estrangeira a princípio, ou endógena a sua análise, pois tem o seu foco no que podemos denominar de uma tradição espanhola de história da educação. Mas seja pelos autores que se reúnem para apresentar e problematizar a contribuição intelectual do homenageado, sendo que muitos deles se tornaram referência importante no debate internacional do campo ou, ainda, porque os temas ali abordados estão entre alguns dos mais desenvolvidos nas últimas décadas, trata-se de uma obra que transcende as fronteiras espanholas e interessa pelo menos a todos aqueles que têm a historiografia como uma das suas preocupações.
No Brasil, visto que pouco são os que se dedicam ao estudo da historiografia da educação, o valor da obra está em permitir que possamos contrapor perspectivas teóricas, metodológicas e empíricas com aquelas oferecidas pelos colegas espanhóis, sobretudo se considerarmos o estreitamento das relações bilaterais estabelecidas e fortalecidas nos últimos anos na forma de missões de pesquisa, publicações conjuntas e eventos organizados, além da voga dos estudos que miram as histórias transnacionais.
A pluralidade e complexidade cultural e linguística da Espanha lança desafios estimulantes para aqueles que desejam conhecer os processos educativos em chave histórica. O mesmo se pode dizer de uma longa e obscura aventura ditatorial que solapou algumas das mais inovadoras experiências culturais, científicas e educativas espanholas com a vitória dos nacionalistas capitaneados por Franco na Guerra Civil da segunda metade da década de 1930. Guardadas todas as particularidades e o risco da transposição indevida, há muito o que compartilhar sobre a arte e a ciência de escrever a história entre os dois países. Afinal, considerada a diversidade e a polifonia de um país como o Brasil, também sangrado por uma tradição autoritária que frequentemente pretende anular o comum, o livro de Pedro Luiz Moreno Martínez muito tem a dizer sobre as possibilidades da escrita da história para a compreensão dos fenômenos educativos como potência emancipatória ou caminho de conformação de corpos e consciências diante de constrangimentos político-ideológicos de cariz autoritário.
As muitas facetas de Antonio Viñao, como historiador, pululam no rico manancial de possibilidades investigativas oferecidas pelos colegas espanhóis, expressa nessa estimulante obra. Todos os capítulos são pródigos em oferecer referências bibliográficas, teóricas ou documentais, muitas delas desconhecidas dos pesquisadores brasileiros, além de reflexões acuradas sobre o passado e o futuro da história da educação, campo com o qual Viñao se confunde, seja na realidade espanhola ou mundial. Não poderia ser mais acertada a proposta de Moreno Martinez. Criador e criatura, Antonio Viñao e a sua trajetória, generosa e criticamente tratada na polissemia desse volume, representam a redefinição das formas de fazer da história da educação um domínio de reflexão no qual sociedade, cultura e política não podem ser desconectadas.
Referências
- Bastos, M. H. C. (2017). A pesquisa em história da educação, testemunho de um autor: entrevista com AntonioViñao Frago. História da Educação, 21(51), 15-31.
- Taborda de Oliveira, M. A. (2010). Entrevista. Siete preguntas a Antonio ViñaoFrago. Revista Brasileira de História da Educação, 22, 199-212.
- Taborda de Oliveira, M. A., &Faria Filho, L. M. (2011). Antonio Viñao Frago: a crítica da educação como crítica cultural. In T. C. Rego (Org.), Memória, história e escolarização (1a ed., Vol. 3, p. 93-124, Coleção Pedagogia contemporânea). São Paulo, SP.
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Como citar esta resenha: Oliveira, M. A. T. (2022). As muitas facetas de um historiador da educação. Revista Brasileira de História da Educação, 22. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e206
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Dez 2021 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
06 Jul 2021 -
Aceito
21 Set 2021 -
Publicado
24 Dez 2021