Resumo:
Este artigo pretende discutir a teoria do reconhecimento de Axel Honneth e suas mudanças ao longo das últimas duas décadas. Para isto, serão analisados a fundamentação de sua teoria e os desdobramentos que Honneth deu ao modelo original apresentado em 1992 no livro Luta por reconhecimento. Estes desdobramentos, que nos últimos anos levaram-no a reflexões sobre o conceito de reificação e a sociologia do trabalho serão apresentados aqui e submetidos ao processo de crítica a partir dos objetivos da própria teoria do reconhecimento a fim de neles buscar alternativas frutíferas para o desenvolvimento desta teoria.
Palavras-chave: Axel Honneth; Teoria Crítica; Reconhecimento; Reificação; Trabalho; Integração social
Abstract:
The subject of this article is Axel Honneth’s theory of recognition. Here it shall be discussed how Honneth have build a new paradigm for his theory and how he has developed it since its original publication in Struggle for recognition, in 1992. These developments, that have lead him to reflect on the concept of reification and on the sociology of work will be discussed in light of the idea of recognition itself, so that it becomes possible to see if they show any fruitful path for the development of this theory.
Keywords: Axel Honneth; Critical Social Theory; Recognition; Reification; Tork; Social integration
INTRODUÇÃO
No modelo de teoria apresentado em Luta por reconhecimento (Honneth, 2003a), Axel Honneth pretendia formular uma teoria dos conflitos sociais cujo pano de fundo seria a necessidade moral do indivíduo de obter reconhecimento de suas expectativas quanto à sua personalidade. Este processo, no entanto, não era entendido por ele como um processo puramente psíquico, mas também como fruto de interações intersubjetivas necessárias à formação pessoal. Daí que sua formulação pretende ser um modelo teórico que evita os déficits sociológicos das teorias normativas por meio da remissão dos padrões normativos à dimensão da interação.
Ao longo dos últimos vinte anos, porém, Honneth tem submetido sua teoria a reformulações constantes, além de tê-la debatido com outros teóricos e teóricas que compartilham da análise quanto à importância do conceito de reconhecimento na teoria social contemporânea. Ao longo deste processo, contudo, ele tem oscilado entre contribuições mais centradas na dimensão psicológica do conceito de reconhecimento e outras em que parece procurar avançar sobre temas mais especificamente sociológicos. Desta maneira, o papel da sociologia na teoria do reconhecimento parece balançar entre a necessidade de explicitação e sua diluição em um quadro moral amplo cujo objeto central é a análise dos processos bem-sucedidos de formação da personalidade individual. Esta questão ganha especial relevância se for lembrado que um dos primeiros trabalhos de Honneth foi justamente uma crítica da tradição fundada por Max Horkheimer e seus colaboradores em Frankfurt na década de 1930. Assim, a necessidade de assegurar um lugar distinto à sociologia na teoria do reconhecimento é fundada em dois aspectos básicos: primeiro, foi esta disciplina, ou sua ausência, que serviu de acesso à crítica de autores anteriores; segundo, como não abandona a necessidade de que a teoria deva ter um momento transcendente junto ao seu momento imanente, Honneth atribui a processos sociais de integração uma carga normativa.
No entanto, como dito, o autor parece não conseguir se definir entre qual o tipo de apresentação que deve prevalecer para seu modelo teórico, se uma, que privilegie a dimensão formativa psíquica, ou se outra, em que a interação ganhe destaque. A hipótese aqui levantada é a de que não se trata de um simples problema de apresentação, mas da impossibilidade de conjugar processos intersubjetivos de formação com análises sociológicas tradicionais. Em vez de levar a teoria do reconhecimento a investigar contextos sociais específicos como o mundo do trabalho, por exemplo, parece ser um caminho mais produtivo o de buscar no próprio modelo que Honneth apresentou em Luta por reconhecimento os elementos de uma sociologia que ressalta a dimensão intersubjetiva da integração social, de modo que esta integração mesma se revista de um caráter normativo. Este passo implica uma crítica aos desenvolvimentos recentes da teoria do reconhecimento à luz de seus próprios pressupostos, a fim de ressaltar a importância da sociologia para a construção deste modelo. Para realizar esta tarefa, antes de mais nada, será descrito o processo de crítica da Teoria Crítica e de formulação da teoria do reconhecimento (I), seguindo-se uma análise dos debates e alterações da teoria do reconhecimento posteriores a Luta por reconhecimento (II). Somente após estes passos poderá ser retomado o modelo original de uma teoria do reconhecimento como parâmetro de comparação com os objetivos recentes de Honneth (III). Por fim, feita esta comparação, será realizada a tentativa, como conclusão, de esboçar uma alternativa que integre as preocupações empíricas de uma teoria do reconhecimento com seus pressupostos teóricos.
I - CRÍTICA E RECONHECIMENTO: O DÉFICIT SOCIOLÓGICO DA TEORIA CRÍTICA DA SOCIEDADE
A Teoria Crítica da sociedade, tanto em sua primeira geração, aquela em que Horkheimer e seu círculo de colaboradores (autores como Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse, Friedrich Pollock, Erich Fromm e outros) desenvolveram teses sobre a dominação capitalista e a impossibilidade de superação desta dominação, quanto na geração seguinte, cujo autor central é Jürgen Habermas, que procurou rebater o diagnóstico de fechamento das possibilidades emancipatórias por meio da formulação de um paradigma comunicativo para esta teoria, foi objeto de crítica de Honneth por, em ambos os momentos, não apresentar uma capacidade efetiva de analisar as dinâmicas sociais de conflito. A tese do “déficit sociológico” da Teoria Crítica é exposta por Honneth em The critique of power (Honneth, 1991) como uma inaptidão de ambas as gerações de autores para acessar teoricamente os domínios da ação social porque em seus diferentes modelos eles mantiveram-se presos a noções unilaterais de dominação. No caso de Horkheimer e Adorno, a presença de uma filosofia da História centrada na noção marxista de trabalho como apropriação da natureza às finalidades humanas (Honneth, 1991: 29) e, no caso de Habermas, a separação estanque entre lógicas finalista e comunicativa (Honneth, 1991: 268) impediam que estes autores observassem, na própria ação dos sujeitos, potenciais normativos de superação das situações de dominação diagnosticadas.
Para Honneth, o modelo de Horkheimer estaria fadado ao fracasso desde o começo porque haveria uma disparidade entre “sua caracterização epistemológica e a filosofia da História que a sustenta” (Honneth, 1991: 15).1 Isso ocorreria porque Horkheimer permaneceria preso a uma visão da filosofia da História em que o desenvolvimento das forças produtivas conteria o potencial de emancipação da humanidade, pois o processo civilizatório se expressaria por uma contínua dominação sobre a natureza (Honneth, 2001: 11). Isto significa, segundo Honneth, que a atividade social cotidiana, que é onde poderia ser encontrada uma práxis crítica, é reduzida por Horkheimer ao trabalho social (Honneth, 1991: 29). A implicação de uma redução da atividade crítica humana ao trabalho sobre a natureza é, então, a de que todas as atividades nas quais os indivíduos agem criticamente com relação a si mesmos, isto é, as atividades interativas, são reduzidas a funções da dominação do mundo externo. Neste sentido, as disposições intersubjetivas e as atividades coletivas que não se referem àquela esfera são ignoradas ou vistas como elementos do trabalho. É justamente esta separação que Habermas pretendia ressaltar ao desenvolver uma perspectiva alternativa de racionalidade: para ele, a atividade comunicativa possui um status tão fundamental quanto a ação material nos processos de formação da sociedade. Este modelo bidimensional está exposto na Teoria da ação comunicativa (Habermas, 1984: 1987), onde a distinção entre um domínio regido pela racionalidade sistêmica e um domínio regido pela racionalidade comunicativa expressa a existência de duas lógicas concorrentes da ação social. Segundo Honneth, entretanto, ainda que esta seja uma distinção importante, Habermas acaba por abrir mão do acesso ao domínio da ação social possibilitado pelo conceito de racionalidade comunicativa na medida em que realiza uma espécie de reificação da distinção analítica. Diz Honneth que mais que uma distinção entre duas lógicas de ação, Habermas as toma como constituintes de esferas de ação nas quais cada uma delas predomina (Honneth, 1991: 256-257). Assim, o sistema seria expurgado de processos comunicativos, e o mundo da vida resistiria aos esforços finalistas da lógica oposta, como se após sua constituição, na qual ambas as lógicas teriam atuado, a sociedade fosse cortada em duas esferas separadas e concorrentes (Honneth, 1991: 262-263).
Longe, porém, de abandonar os desenvolvimentos anteriores desta tradição, Honneth aponta, no posfácio que escreveu para o livro em 1988, que um modelo de análise do conflito social pode ser desenvolvido a partir das ideias de Habermas desde que a lógica comunicativa consensual, que orientaria a integração no mundo da vida no modelo habermasiano, fosse substituída por uma teoria da integração em que os contatos entre sujeitos são concebidos como uma luta pelo reconhecimento de suas identidades, de modo que o conflito social remeta a demandas morais dos sujeitos (Honneth, 1991: xvii-xviii). Esta opção é a que Honneth entende que Habermas abandonou ao tentar explicar o processo de racionalização humana como um processo dual entre um sistema finalista e um mundo da vida comunicativo. Em vez disso, seria possível optar por um segundo desenvolvimento da teoria da comunicação, no qual o conceito de ação comunicativa representaria um “indicador para os mecanismos pelos dos quais a organização de todos os domínios sociais de ação são regulados” (Honneth, 1991: 276). Isto é, Honneth aposta que o caminho efetivamente mais frutífero para uma teoria crítico-comunicativa seria aquele que identifica o papel da interação dos sujeitos como um elemento organizador da vida social que estaria presente tanto nos processos macrossociais quanto nos processos internos aos grupos e comunidades. Neste sentido, também ocorreria uma mudança quanto ao destinatário da Teoria Crítica, já que Habermas centrava sua teoria na análise de lógicas de ação e Honneth, ao contrário, trata da interação dos sujeitos determinados, atores que organizam comunicativamente os domínios de ação social. Por isso, a teoria do reconhecimento é também uma teoria que diz respeito antes a grupos que buscam o respeito à sua personalidade do que a macrossujeitos:
Os atores coletivos que se relacionam coletivamente uns com os outros não precisam ser entendidos como macrossujeitos; eles podem ser entendidos como grupos sociais cuja identidade coletiva em si mesma é um frágil e sempre ameaçado produto do processo de socialização realizado entre os indivíduos (Honneth, 1991: 275).2
Com isso, já é possível identificar que a crítica de Honneth à Teoria Crítica serve de entrada à construção de um modelo teórico do reconhecimento que se sustente nos avanços propostos por Habermas à ideia original de Horkheimer. Estes avanços seriam representados de modo privilegiado na constatação de que a “identidade coletiva é um [...] produto do processo de socialização realizado entre os indivíduos”, uma vez que aí está expressa a importância da interação comunicativa para a Teoria Crítica. Diferentemente de Habermas, contudo, Honneth não se limita a tomar esta relação como uma lógica universal abstrata, mas a toma como um elemento efetivo da vida social. Ou seja, a interação no seu modelo é muito mais determinada do que no modelo habermasiano. Ela é um procedimento presente na vida individual e sem o qual a formação da identidade não pode ser bem-sucedida. A interação, então, assume o posto de um campo de experiência intersubjetivo, enquanto no modelo habermasiano ela seria um tipo universal de ação. Ocorre que nesta valorização da teoria da intersubjetividade encontram-se, ainda que apenas esboçados, os elementos ausentes nas gerações anteriores da Teoria Crítica que Honneth viria a desdobrar em uma teoria do reconhecimento: o conflito intersubjetivo, a formação social da personalidade e o reflexo de ambos na integração social. Estes elementos servem, por um lado, para sustentar a crítica do déficit sociológico e, por outro lado, para indicar que uma teoria moral da formação da personalidade deveria tratar da integração social como uma questão normativa. Isso ocorre porque já nestes três elementos é possível notar, como um traço comum, o esforço para estabelecer uma relação formal entre as dimensões psíquica e social, relação esta que representaria não apenas a passagem entre esferas, mas também o fato de que as expectativas sociais dos indivíduos quanto ao seu reconhecimento, isto é, quanto ao reconhecimento que esperam receber, possuem caráter normativo. O tipo de filosofia na qual Honneth se apoia aqui é a herança da filosofia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, quando este esteve em Jena e expôs pela primeira vez o conceito de reconhecimento. Nesta tradição, o fundamento normativo do reconhecimento que os indivíduos esperam receber se deve à realização de uma formação bem-sucedida da personalidade porque esta formação ocorre por meio de conflitos intersubjetivos que, quando socializados, passam a ser conflitos entre grupos pela obtenção de reconhecimento para suas especificidades.
Ao contrário, então, das teorias políticas do reconhecimento, o modelo de Honneth preocupa-se, em primeiro lugar, a com a integridade da personalidade individual que se forma em meio a processos sociais e com sua contrapartida negativa, o desrespeito (ver Honneth, Integrity and disrespect, 1995). Estas duas relações, reconhecimento e desrespeito, são tomadas por Honneth como sentimentos que decorrem da existência de autorrelações que, por sua vez, se desenvolvem através de relações sociais, que são responsáveis tanto pela formação de expectativas normativas e sentimentos individuais quanto de sentimentos de desrespeito e opressão. No modelo de Honneth, baseado nos estudos de Hegel e George Herbert Mead, estas autorrelações são a autoconfiança, o autorrespeito e a autoestima, que representam, respectivamente, três esferas de reconhecimento (ou de desrespeito social, em suas versões negativas): o amor, o direito e a solidariedade (Honneth, 2003, ver quadro na página 211). Enquanto na primeira esfera de relações interpessoais, a do amor e das relações pessoais, o reconhecimento se liga ao desenvolvimento psíquico da personalidade, nas duas outras esferas, do direito e da solidariedade, a ideia de reconhecimento liga-se à participação na vida cultural de uma comunidade, seja por meio das reivindicações de grupos particulares junto às esferas jurídicas, seja quanto às suas reivindicações que remetem à esfera da sociedade civil. Honneth preocupa-se, pois, antes, com a fundamentação de uma teoria baseada em um monismo moral e não em uma política cultural. Seu projeto é o de atualizar a ideia hegeliana de um sistema de eticidade ao mesmo tempo em que procura abarcar, com seu modelo teórico, as esferas individual e social do desenvolvimento pessoal. O sentido crítico desta teoria seria, então, o de observar na relação entre as expectativas normativas dos indivíduos e as estruturas de integração a possibilidade de superação de situações de desrespeito e a construção de um sistema de eticidade (Honneth, 2007).
A teoria do reconhecimento de Honneth, então, procura transformar o modelo habermasiano da teoria da comunicação consensual em uma teoria intersubjetiva do conflito pela integração e pelo reconhecimento de demandas morais de grupos de indivíduos, tanto por meio de demandas positivas quanto por meio de conflitos pela superação de situações de reconhecimento denegado. Nesta proposição nota-se que a dimensão psíquica do conceito de reconhecimento possui uma relação formal com os motivos de ação. Esta relação é sintetizada na ideia de que as expectativas normativas do sujeito quanto à sua identidade são os motivos para a luta por reconhecimento quando desrespeitadas. Mais importante, contudo, é o fato de que estas expectativas dizem respeito à participação dos sujeitos na vida comunitária, de modo que a dimensão psíquica normativa possui um reflexo sobre as organizações sociais existentes ou, pelo menos, sobre as demandas das lutas sociais por esta organização. Esta é a solução que Honneth parece ter encontrado, em um primeiro momento, para a superação do “déficit sociológico” das teorias normativas. Surpreendentemente, porém, na tentativa de ampliar o escopo de seu modelo teórico, este ponto parece, por vezes, ter sido relegado a um plano inferior. É o que será exposto a seguir.
II - CONJUGAÇÕES IMPROVÁVEIS: RECONHECIMENTO, REIFICAÇÃO E TRABALHO
Depois da publicação, em 1992, de Luta por reconhecimento, Honneth tem tido sua atenção chamada para diversos pontos críticos em sua tentativa de formular um modelo teórico com ambições tão amplas quanto a de lidar com a tradução dos processos de formação psíquica em motivos para os conflitos sociais a partir do conceito-chave de reconhecimento. Se em algumas das respostas Honneth precisou deixar claro quais são as dimensões conceituais de seu modelo (Honneth, 2002, 2008a), partindo, nestas explicações, para aprofundamentos quanto ao caráter central da formação intersubjetiva da personalidade, em outros trabalhos ele precisou responder a questões mais diretamente ligadas à relação entre sua teoria do reconhecimento e emergência de conflitos sociais, dentre as quais seu debate com Nancy Fraser é a peça mais famosa (Fraser & Honneth, 2003). Mais recentemente, na linha temática já presente no debate com Fraser, Honneth buscou incorporar à sua teoria um tipo de análise da integração social que ponha em relevo aspectos específicos do mundo do trabalho (Honneth, 2008b), operando, desta maneira, uma espécie de guinada em direção à sociologia empírica. Antes de mais nada, então, é preciso relembrar que a teoria do reconhecimento pretende relacionar-se a ambas as dimensões da formação psíquica e da análise do conflito coletivo. Com isso, seria de se esperar que os trabalhos de Honneth em defesa de seu modelo de Teoria Crítica pudessem manter a articulação entre ambas esboçada no primeiro livro, mas é exatamente o contrário o que ocorre: enquanto nos esclarecimentos sobre a conceitualização do reconhecimento como um processo de formação bem-sucedida da personalidade a ênfase na dimensão psicanalítica de sua teoria parecia indicar um abandono das dimensões sociais desta formação, no caso da tentativa de retomar elementos empíricos de crítica às relações capitalistas o que parece perdido é a dimensão intersubjetiva que sustentara sua teoria no livro de 1992. Esta dificuldade, entretanto, joga luz sobre um ponto interessante:3 se no momento em que formulara sua crítica das gerações anteriores de teóricos críticos e constituíra uma teoria do reconhecimento Honneth apoiara-se em uma herança hegeliana da fase de Jena, nos dois momentos posteriores de sua obra, o aprofundamento da análise do conceito de reconhecimento e os debates sobre seu valor empírico como ferramenta de compreensão dos conflitos sociais, Honneth passa a operar com duas novas lógicas de análise. No primeiro caso trata-se de uma teoria da ontologia social em que ecos da obra de Adorno estão presentes, enquanto no segundo caso as referências passam a ser o Hegel tardio, da Filosofia do Direito, e Émile Durkheim e sua teoria da divisão social do trabalho. Na medida em que opera com dois novos registros, então, ele parece ter dificuldades em passar da psicanálise à teoria dos conflitos, por um lado, e, por outro lado, ao tratar das esferas empíricas não parece haver espaço para o aparecimento de sentimentos coletivos intersubjetivos de injustiça e sofrimento como impulsos ao conflito social, ou seja, a passagem de uma linha argumentativa na qual os conflitos sociais carregavam potenciais normativos para outras lógicas parece colocar em questão exatamente a articulação entre o ancoramento empírico e o horizonte normativo da teoria do reconhecimento.
Quanto aos trabalhos que lidam com a dimensão epistemológica do reconhecimento, talvez aquele em que a apresentação do conceito como um processo bem-sucedido de formação intersubjetiva venha à tona de modo mais notável é a leitura sobre a reificação. Ali, Honneth procura desenvolver a tese de que, para além da tentativa de Georg Lukács de demonstrar que a lógica racionalizada do fetichismo se torna a segunda natureza dos seres humanos na medida em que a mercadorização da produção se expande para todas as relações de produção, há também no capítulo “A reificação e a consciência do proletariado” indicações que permitem leituras alternativas. Daí que Honneth nota que:
ele [Lukács] afirma que a práxis genuína, verdadeira, possui precisamente as mesmas características do relacionamento empático e do interesse que foram destruídos pela expansão do comércio de mercadorias. Aqui, Lukács não contrasta prática reificante com a produção de um objeto por um sujeito coletivo, mas com uma outra atitude de parte do sujeito, intersubjetiva (Honneth, 2008a:27).
O interesse de Honneth, então, é o desenvolvimento de uma ideia de reificação como forma de esquecimento das relações interpessoais que sustentam o reconhecimento. Em outras palavras, para Honneth é possível entender a reificação como um bloqueio do reconhecimento. Para isto, porém, o aprofundamento epistemológico deste conceito se dá através das teorias do relacionamento de Martin Heidegger e John Dewey, que lidam primariamente com a constituição do ser humano em meio a relacionamentos intersubjetivos. Assim, toda a tentativa esboçada por ele nesta leitura é a de “justificar a hipótese de que a posição de reconhecimento possui uma prioridade genética e categorial sobre todas as outras atitudes direcionadas ao self e ao mundo” (Honneth, 2008a: 36), algo que, posteriormente, o autor relaciona à teoria da mimese, de Theodor W. Adorno. A tese central deste trabalho é a de que a retomada do conceito de reificação torna-se possível apenas se for abandonada a noção de uma totalidade da reificação em favor da ideia de que reificação se refere a uma espécie de esquecimento das relações primordiais entre os indivíduos que seriam, segundo esta leitura, relações de reconhecimento. Esta forma de reificação como esquecimento da instância de reconhecimento é o equivalente à incapacidade de perceber que em relações interpessoais os parceiros de interação não têm apenas os seus interesses em jogo, mas também uma demanda básica da outra pessoa, que é o reconhecimento de sua condição de parceiro. A reificação como esquecimento do reconhecimento, diz Honneth, é esta tendência a “perceber outras pessoas como meros objetos insensíveis” (Honneth, 2008a: 57). Esta constatação leva-o a procurar na formulação da teoria da prioridade categorial, social e genética do reconhecimento um contraponto à reificação das relações com o outro, e também da autorreificação. Isto porque a prática reificada que renega a instância primordial do reconhecimento, aquela na qual, seguindo Adorno, Honneth afirma que as relações entre os indivíduos e dos indivíduos com a natureza baseiam-se no reconhecimento de que as pessoas e objetos são representantes de um desejo de aproximação por parte do primeiro, são “pessoas ou coisas amadas” (Honneth, 2008a: 57), a prática que renega estas relações resulta de um processo que separa os objetivos cognitivos da interação de seu contexto original ou de uma negação do reconhecimento em favor de um estereótipo (Honneth, 2008a: 60). Neste sentido, segundo Honneth, a teoria de Adorno sobre a mimese remete ao estabelecimento de relações iniciais, constitutivas, de valorização de objetos em múltiplas facetas, relações que Honneth chama de reconhecimento (Honneth, 2008a: 62-3). Ao contrário do que expusera em Luta por reconhecimento, pois, Honneth adota aqui uma posição segundo a qual não são os conflitos, mas a aproximação afetuosa, a mimese, que contém o potencial normativo de formação da personalidade.
Se, porém, seu trabalho remete a importantes áreas da teoria psicanalítica, em particular ao ressaltar o caráter primário da intersubjetividade, aqui os problemas sociais são afastados, uma vez que aparecem apenas como remissões a uma lógica de abandono da intersubjetividade. O abandono mesmo da teoria do conflito em função da teoria do reconhecimento como imitação e afeto parece contradizer sua formulação inicial. E, com isso, as questões políticas e sociais que motivaram o debate com Nancy Fraser são relegadas a um plano secundário no que diz respeito à epistemologia do reconhecimento.
Por outro lado, no recente artigo “Trabalho e reconhecimento”, Honneth realiza um retorno um tanto quanto surpreendente ao mundo do trabalho, dada a sua histórica filiação a uma tradição habermasiana de filosofia social que se constituiu justamente na crítica à sobrevalorização da esfera do trabalho na teoria social. Neste texto suas preocupações são motivadas pelo fato de que:
Apesar de todos os prognósticos nos quais se falou do fim da sociedade do trabalho, não se verificou uma perda de relevância do trabalho no mundo socialmente vivido: a maioria da população segue derivando primariamente sua identidade do seu papel no processo organizado do trabalho (Honneth, 2008b: 47).
Ao que tudo indica, então, Honneth considera que o mundo do trabalho é uma esfera privilegiada de crítica imanente à sociedade capitalista, ainda que neste movimento ele seja levado a aceitar que, por um lado, qualquer imagem utópica de superação das relações sociais deva ser abandonada e, por outro lado, mesmo a imagem de uma atividade integral também deva ser abandonada. Desta maneira, o que Honneth toma como uma crítica imanente à divisão do trabalho social é a busca por “normas morais que sejam inerentes à própria troca social de realizações enquanto exigências da razão” (Honneth, 2008b: 51). Assim, seria possível superar a dicotomia entre esferas da vida social regidas por imperativos sistêmicos e esferas da vida social regidas por imperativos morais, éticos ou comunicativos. Ao diagnosticar a presença ainda importante do mundo do trabalho na vida individual, Honneth assume que dentro deste contexto a superação da dicotomia entre sistema e mundo da vida, ou entre integração sistêmica e integração social, pode ser alcançada por meio desta instância de formação de valores e discursos internos à própria relação em questão - neste caso, as relações de trabalho.
Tal intenção, aliás, remonta não apenas às suas referências centrais no artigo, Hegel e Durkheim, mas também à sua própria crítica à tradição da filosofia social que se ocupara com o problema da dominação sistêmica sobre a vida social, seja sob a forma de uma indústria da cultura, de uma sociedade repressiva ou de uma colonização da lógica sistêmica sobre a lógica comunicativa. Em The critique of power ele já buscara demonstrar que as gerações anteriores de teóricos críticos falharam em compreender a reprodução da vida social porque não haviam dado a devida atenção às instâncias de formação de poder e ação nas esferas de interação interpessoal. Lá, no entanto, a crítica de Honneth desenvolvera-se em um caminho consequente ao apontar para o processo de interação como um elemento central na constituição das relações de poder em uma sociedade. Este desenvolvimento seria, mais tarde, aprofundado através do diálogo de Honneth com as teorias psicanalíticas de Donald Winnicott e Jessica Benjamin e da elaboração de um modelo tripartite de formação da personalidade em que as relações intersubjetivas estão normativamente conectadas a esferas de reconhecimento público. A tipologia apresentada em Luta por reconhecimento parece ser, pois, o lugar onde Honneth lida de modo mais coerente com a tentativa de ligar os processos de formação individual com a emergência de conflitos pela instituição de um horizonte normativo ampliado para a sociedade em questão. Este manejo concomitante das esferas individual, intersubjetiva e pública, porém, não é repetido no artigo sobre Trabalho e reconhecimento, como também não o fora no trabalho sobre a reificação.
Emil Sobottka (Sobottka, 2009), apesar disso, reconhece que “a tentativa de reconstruir critérios éticos a partir do próprio trabalho para, com eles, possibilitar a crítica social no marco de uma teoria crítica do reconhecimento é sem dúvida um passo importante” (Sobottka, 2009: 9), mas nota também que o que há de mais importante é a afirmação de Honneth de que o tema da crítica do mundo do trabalho deve ser feito tendo por base os impulsos éticos daqueles que sofrem com suas normas e desenvolvem formas de resistência e sociabilidades internas, assumindo-se a perspectiva da integração social ao invés da sistêmica. Aqui talvez seja válido lembrar a distinção proposta por David Lockwood antes de analisar de modo mais atento o que tal proposição significa no âmbito da teoria do reconhecimento. Segundo Lockwood,
Enquanto o problema da integração social foca sua atenção sobre as relações ordenadas ou conflituosas entre os atores, o problema da integração sistêmica foca nas relações ordenadas ou conflituosas entre as partes de um sistema social (Lockwood, 1992: 400).
Tendo a definição de Lockwood em vista, então, é preciso chamar a atenção para o fato de que, com sua tentativa de buscar critérios ético-normativos internamente ao mundo do trabalho, Honneth parece preocupar-se, antes, com a afirmação de estratégias de resistências do que com problemas normativos de ordenação e conflito entre atores envolvidos nestas lutas. De fato, a própria existência do conflito parece diluída em meio à capacidade de solidariedade e comunicação dos atores, de modo que - lembrando o que havia de mais original em seu modelo teórico - também os processos de formação de demandas por reconhecimento, que funcionavam como impulsos para uma dinâmica histórica de ampliação das relações de reconhecimento, são perdidos. Se, como afirma Lockwood, as teorias da integração social devem preocupar-se com as relações entre atores, e se este for um assunto especificamente sociológico, parece um retrocesso que Honneth abandone sua teoria da relação entre formação intersubjetiva e horizonte normativo em favor de uma sociologia mais imediata das relações de trabalho.
Não se trata aqui de negar o valor da tentativa do autor de fugir à distinção estática entre esferas de integração social e sistêmica. O próprio Lockwood considera em sua conclusão que apenas lidando com os objetos de ambas as correntes o sociólogo pode formar uma visão não parcial da integração e/ou da mudança social (Lockwood, 1992: 412). Como já dito, quando desenvolvida de modo consequente, como o foi na passagem da crítica a Horkheimer, Adorno e Habermas à teoria do reconhecimento, a ambição de lidar com os processos formativos e os conflitos que ampliam as relações de reconhecimento pode ser bastante frutífera, ainda que alguns autores considerem que a teoria do reconhecimento de Honneth falhe justamente no caminho inverso, o de enfrentar de modo adequado as questões de integração sistêmica e institucional, devido a uma super ênfase prestada pelo autor a uma antropologia da confiança que não a toma como um aspecto culturalmente produzido e institucionalmente regulada, mas como um elemento de interações individuais (Alexander & Lara, 1996: 131). No entanto, esta proposição de uma teoria da ação social em que a dimensão normativa se encontra nas próprias demandas dos sujeitos pelo seu reconhecimento social parece preocupar-se com estas esferas de produção cultural de significados e institucionalização da participação social na medida em que a esfera da solidariedade representaria o espaço no qual as expectativas normativas dos indivíduos seriam confrontadas com o mundo social, de modo que a formação da personalidade somente seria completa através da vida coletiva. Esta passagem é o que Honneth parece ter abandonado em ambos os trabalhos aqui citados. Se no trabalho sobre a reificação as preocupações de Honneth limitam-se à esfera do contato intersubjetivo entre participantes da interação, deixando de lado os efeitos da demanda por reconhecimento para a ampliação das relações de reconhecimento, isto é, para a luta por reconhecimento, na tentativa de formular uma sociologia do trabalho baseada no reconhecimento, as estratégias de solidariedade e resistência perdem aquilo que Christopher Zurn caracteriza como o objeto primeiro das teorias do reconhecimento: o fato de que os indivíduos sentem ferimentos devidos ao não reconhecimento de suas expectativas mesmo em situações de normas e regras estruturadas institucionalizadas (Zurn, 2003: 534). O tema da passagem de uma formação intersubjetiva para o de lutas pelo reconhecimento coletivo de diferentes valores éticos desaparece - de modo diferente, é verdade - nestas duas formulações. E aqui se diz que ele desaparece porque a ligação entre a teoria normativa e a sociologia motivara a crítica de Honneth à tradição da Teoria Crítica e esta ligação não se realiza nestes dois trabalhos mais recentes.
III - INTEGRAÇÃO COMO NORMATIVIDADE: O MODELO ORIGINAL DO RECONHECIMENTO
De modo bastante interessante, contudo, no próprio Luta por reconhecimento parece haver elementos de uma teoria da integração social sustentada pelas exigências normativas presentes nos conflitos por reconhecimento, de forma que a ligação entre o bem-estar individual e as normas sociais poderia ser tratada de modo diferente da busca por critérios éticos internamente a uma relação específica do mundo da vida. Naquele livro, Honneth pretendera diferenciar o paradigma do conflito moderno pautado em interesses coletivos de um paradigma alternativo cujas sementes remontam à noção exposta por Hegel de uma luta por reconhecimento social da personalidade dos indivíduos, pois ainda que a história dos conflitos sociais mostre que muitos deles tinham por orientação a própria sobrevivência ou a segurança dos grupos envolvidos, e estes fossem conflitos que se mantivessem presos à luta em defesa de interesses daqueles grupos, estudos como os de Edward P. Thompson ou Barrington Moore demonstram que por trás dos conflitos existem também sentimentos de desrespeito que
formam o cerne de experiências morais, inseridas na estrutura das interações sociais porque os sujeitos humanos se deparam com expectativas de reconhecimento às quais se ligam condições de sua integridade psíquica; esses sentimentos de injustiça podem levar a ações coletivas, na medida em que são experienciadas por um círculo inteiro de sujeitos como típicos da própria situação social (Honneth, 2003a: 260).
Com isso, seria possível postular que a motivação moral dos conflitos sociais estivesse relacionada tanto à dimensão do bem-estar individual quanto à aceitação das demandas deste grupo por instituições reguladoras da vida social. No entanto, ainda não haveria uma relação estabelecida entre a dimensão conflituosa e política dos grupos desrespeitados e a ampliação das normas de integração social propriamente ditas, isto é, ainda não estaria claro como os sentimentos coletivos de injustiça e desrespeito poderiam se tornar momentos de reconhecimento público da identidade destes grupos e porque esta integração social de demandas diferenciadas seria positiva. Para resolver tal problema Honneth sugere que a capacidade de uma sociedade em garantir a integridade coletiva dos atores de que se compõe está ligada a uma “lógica universal da ampliação das relações de reconhecimento” (Honneth, 2003a: 265). O que parece haver de criativo nesta formulação é que, sendo os conflitos por reconhecimentos formas de protesto típicas das sociedades ocidentais modernas, que foram aquelas onde o processo histórico levou à diferenciação e individualização dos membros do corpo social, uma teoria do reconhecimento que lidasse com esferas de integração social considerando-as intersubjetivamente formadas, como é o caso do modelo apresentado em Luta por reconhecimento, teria a capacidade de observar na expansão das instituições reguladoras à inclusão de novas identidade diferenciadas a lógica deste processo moral de ampliação das relações de reconhecimento enunciado por Honneth. Ou seja, a integração social e a luta por reconhecimento estariam intimamente ligadas e sua articulação se daria em torno de concepções de bem-estar individual e coletivo reconhecidas por outros membros da sociedade nas esferas jurídica e da solidariedade. Neste modelo são tratados de maneira interdependente os conflitos entre atores de um sistema social e a dinâmica de relações de poder que remetem a uma noção de bem-estar que diz respeito a atores coletivos e individualizados.
Com isso, o que há de especificamente sociológico na teoria do reconhecimento começa a aparecer no fato de que nela está esboçado um tipo de análise do conflito em que tanto a dimensão formativa individual quanto a dimensão interativa da identidade se relacionam ao estabelecimento de padrões normativos de socialização que, por sua vez, remetem à relação entre estes processos. É possível perceber aqui uma espécie de dialética positiva entre o reconhecimento e a diferenciação de identidades que leva àquela ampliação das relações de reconhecimento, isto é, com a possibilidade de diferenciação individual possibilitada pela forma de interação moderna, também aumenta a possibilidade de ampliação das relações de reconhecimento. Seria desnecessário dizer que este processo está sendo tratado aqui apenas enquanto possibilidade normativa, mas que, empiricamente, os conflitos sociais são a forma mais comum pela qual se dá a ampliação destas relações; também não precisaria ser dito que este processo está sujeito a momentos regressivos, dependendo de como se desenvolve a luta política que lhe dá vida.
O que é possível notar, entretanto, é que na teoria do reconhecimento de Honneth existe um elemento que pode ser tratado como especificamente referido à esfera da integração social, que é a relação entre as esferas de reconhecimento jurídica e social e o estabelecimento de novos horizontes de sociabilidade. No caso do desenvolvimento desta perspectiva, a crítica das relações de trabalho deveria ser feita como uma teoria da integração social não porque há elementos normativos ali, mas porque o que deveria interessar a uma teoria do reconhecimento é a integração social dos indivíduos. Este parecia ser o caminho adotado por Honneth em seu debate com Fraser, quando ele procurou responder à crítica de que sua teoria deslocava os conflitos materiais afirmando que mesmo estes conflitos poderiam ser lidos pela ótica de conflitos cujo fundamento é uma crítica moral à lógica desigual do reconhecimento.
Honneth não parece satisfeito, contudo, nem com a elaboração de um modelo crítico que trate de questões referentes a esferas sociológicas apenas em nível normativo, nem com a trilha de desenvolvimento de sua teoria proposto acima. É o que se depreende de sua tentativa de buscar elementos éticos e morais internamente a esferas de integração sistêmica, imaginando que assim seja melhor justificada uma crítica imanente. É este, então, o pano de fundo de sua tentativa de analisar o mundo do trabalho, onde ele imagina que
se fosse possível mostrar que também a capacidade de funcionamento do mercado capitalista de trabalho está vinculada a pressupostos de um corolário completo de normas morais [...] então não apenas desapareceria a contraposição categórica entre “sistema” e “mundo da vida”, mas também seria possível assumir a perspectiva de uma crítica imanente face às relações de trabalho (Honneth, 2008b: 53-54).
Esta tentativa de superar a distinção entre as esferas sistêmicas e sociais, aliás, é o que dá origem a um novo desdobramento da obra de Honneth na qual ele procura delinear uma teoria da justiça a partir dos pressupostos estruturais da sociedade contemporânea, algo que ele chama de “teoria da justiça como análise da sociedade” e que repousa na pressuposição de que a reprodução da sociedade se baseia em condições de orientação comuns quanto a ideais e valores, em vez de imaginar que esta reprodução seja produzida por meio de direcionamentos sistêmicos e institucionais. Isso implica que as ações institucionais são fruto também de uma aproximação dos modos de vida sociais do espaço institucional, esfumaçando, assim, a distinção entre sistema e mundo da vida (Honneth, 2011: 18).4 Este movimento de ampliação, no entanto, quando aplicado a uma situação empírica como o mundo do trabalho, revela que, a despeito de sua força para tratar da formação de momentos éticos de integração, desloca o conflito por reconhecimento da formação da personalidade para a resistência a situações sociais. Com isso, a solidariedade que aparecia em um primeiro momento como a finalidade e o parâmetro para a vida social passa a ser um pressuposto da interação cujo parâmetro passa a ser, por um lado, o mérito e, por outro, o desenvolvimento de estratégias de participação.
Frente à postura anterior, então, este trabalho mais recente parece apenas uma imersão em uma esfera particular da vida social cuja realização leva Honneth a abandonar completamente aquela possibilidade anteriormente esboçada, na qual a integração social remetia antes à capacidade dos membros de uma sociedade de reconhecerem intersubjetivamente o valor e as contribuições de outros membros da comunidade para a vida social - ainda que através de conflitos sociais - do que à capacidade de grupos determinados de indivíduos de criarem coletivamente normas e padrões éticos e morais de sociabilidade, isto é, a capacidade de desenvolvimento da solidariedade é substituída pela sua pressuposição.5 O movimento de Honneth é de duplo afastamento: abandona ao mesmo tempo a constituição intersubjetiva das esferas de integração e a importância atribuída a estas esferas mesmas. Com isso, o que há de especificamente sociológico em sua teoria, que é a relação entre esferas de integração e ampliação dos padrões de reconhecimento, é abandonado em favor de um aprofundamento particular em uma das relações sociais - o trabalho - contida nas esferas de integração social que, além disso, passa a tratar a formação de normas e valores de modo externo.
CONCLUSÃO
Estas mudanças realizadas por Honneth em seu modelo impõem dois problemas teóricos. O primeiro remonta à ideia de um sistema de eticidade, uma vez que este não poderia ser regulado por uma entidade como o mercado de trabalho, mas sim por um ente universal como o Estado, que deveria servir à garantia de possibilidades de desenvolvimento de distintas identidades dos grupos que formam uma sociedade. Um princípio de realização individual mensurado pelo trabalho caminha na direção oposta à da universalização das possibilidades, dada a natureza excludente do mercado de trabalho. O segundo ponto, decorrente deste primeiro, remete ao modelo original de Honneth, no qual as três esferas de reconhecimento (amor, direitos e solidariedade) são esferas de relacionamento intersubjetivo. A ideia de uma teoria em que os momentos individual e social da formação do sujeito estavam conectadas pela importância das relações intersubjetivas fica deslocada nesta teoria do reconhecimento pelo trabalho, justamente porque o índice do reconhecimento no mercado prescinde do momento intersubjetivo, já que é a realização pública de uma atividade reconhecida o que passa a ser valorizado. Um princípio de realização ou mérito (Leistungsprinzip) é incapaz de preencher o imperativo intersubjetivo do reconhecimento, bem como é incapaz de oferecer as garantias necessárias ao desenvolvimento satisfatório de um sistema de eticidade.
Assim, parecem apresentarem-se dois caminhos diferentes para o desenvolvimento da teoria do reconhecimento: a crítica imanente a partir do mundo do trabalho em busca de elementos de solidariedade ou uma teoria da integração social baseada no modelo da eticidade. O primeiro destes caminhos talvez seja mais propício a debater a questão das desigualdades materiais; o segundo estaria mais apto a aprofundar o tema da construção de um paradigma renovado para as teorias da justiça. No entanto, é possível visualizar também um terceiro caminho no qual a teoria da reificação ocuparia o lugar da sociologia do trabalho. Neste possível modelo poderia ser realizado um retorno a um tema levantado por Honneth no debate com Fraser: as desigualdades materiais podem ser tratadas dentro da esfera da solidariedade, desde que tanto o trabalho quanto a solidariedade fossem tratados como problemas de integração social, cujo impedimento residiria em estruturas reificadas presentes nesta esfera. Esta seria uma alternativa para se traçar uma teoria da eticidade que não estaria presa nem à sociologia do trabalho, nem à teoria da participação, mas sim à integração. Seria possível, portanto, observar um potencial crítico na teoria da integração social se o processo social de desenvolvimento da personalidade e de seu reconhecimento puder fazer das desigualdades existentes motivos para as lutas por reconhecimento.
É preciso ainda tocar rapidamente em dois outros pontos. Primeiro, há um movimento positivo nos esforços de Honneth em buscar formas ético-discursivas de interação dentro de esferas específicas da vida social. O problema está no abandono de um modelo no qual seria possível tratar do tema de forma mais ampla no que diz respeito à relação entre crítica, norma e transcendência. Além disso, um retorno à pesquisa empírica sobre o mundo do trabalho que ignora as teorias da crise destas relações arrisca-se a sobrevalorizar a importância deste universo a despeito de trabalhos que demonstram evidências contrárias ou propõem alternativas à afirmação de que a identidade social ainda é constituída primariamente pela posição ocupada pelo indivíduo no mercado de trabalho. Em segundo lugar, deve-se lembrar que, por mais que um desenvolvimento da teoria do reconhecimento em direção a uma teoria da integração normativa dos indivíduos pareça promissor, a teoria do reconhecimento terá que se preocupar com outros tipos de críticas que não poderão ser tratadas aqui, das quais pelo menos duas devem ser anunciadas: por um lado, a questão da exploração interna às relações sociais, como colocada por Marx, volta a perder relevância, uma vez que as lutas por reconhecimento surgem como processos políticos; por outro lado, a tripartição de Seyla Benhabib entre crítica, norma e utopia poderia cobrar de Honneth uma teoria mais substancial sobre a emancipação, para além de uma ampliação das relações de reconhecimento, sugerindo que seu modelo de Teoria Crítica não parece apontar de forma consistente para o momento da transcendência. Estes problemas, porém, são temas mais cabíveis a uma teoria intersubjetiva do reconhecimento e da luta por ele do que uma sociologia do trabalho, por mais original que esta seja.
NOTAS
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1
Todas as citações de trechos em língua estrangeira foram feitas por mim.
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2
Sobre a questão dos destinatários da Teoria Crítica, ver também o capítulo 2, “Reflexões sobre o destinatário de um discurso” do livro Trabalho, cidadania e reconhecimento, de Josué Pereira da Silva (Silva, 2008).
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3
Agradeço, aliás, ao parecerista anônimo a sugestão para que este ponto fosse explicitado.
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4
O mesmo texto, com algumas alterações, apareceu como a introdução ao livro Axel Honneth. Gerechtigkeit und Gesellschaft, organizado por Christoph Menke e Juliane Rebentisch em 2008. As edições foram comparadas e concluiu-se que existem poucas alterações.
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5
Para outra leitura sobre qual a importância do conceito de solidariedade na teoria do reconhecimento, ver Mathias Richter (2008). Ali o autor afirma que este conceito deveria preencher as três esferas do reconhecimento descritas por Honneth (amor, direitos e solidariedade).
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2012
Histórico
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Recebido
Mar 2011