Resumo
Este trabalho procura reconstruir a história da revolta de pacientes que se deu no Hospício Nacional de Alienados (HNA) do Rio de Janeiro, no dia 27 de janeiro de 1920. A partir de uma análise de jornais contemporâneos, de registros do HNA e de tribunais da então capital, além dos diários escritos pelo autor Lima Barreto - internado no hospital durante a Revolta -, procuramos entender as dinâmicas internas e externas que levaram mais de 40 pacientes, principalmente da Seção Lombroso (considerados “insanos criminosos”), a se rebelarem no hospital, queimarem colchões e clamarem pela morte do diretor. Além disso, e apesar do aparente fracasso do movimento, ao destacarmos diferentes protagonistas da rebelião e seu suposto chefe, Roberto Duque Estrada Godfroy, como também o testemunho de Lima Barreto, buscamos entender as experiências dos pacientes e suas estratégias de insubordinação dentro da instituição.
Palavras-chave: Psiquiatria; Loucura; Hospício; Medicina legal; Brasil
Abstract
This study reconstructs the history of a patient revolt that took place on January 27, 1920, at the National Hospital for the Insane in Rio de Janeiro, Brazil. By analyzing contemporary newspapers, hospital and court records, and the diary of the author Lima Barreto-institutionalized at the time of the Revolt-we seek to understand the internal and external dynamics that led over 40 patients, mostly from the Lombroso Section (for the “criminally insane”), to march through the hospital, set fire to mattresses, and call for the death of the hospital director. Furthermore, despite the ostensible failure of the Revolt, we highlight the experiences of different protagonists (including the Revolt’s apparent leader, Roberto Duque Estrada Godfroy), as well as the testimony of Lima Barreto, as a means of understanding patients’ experiences and strategies of insubordination within the institution.
Keywords: Psychiatry; Madness; Asylum; Legal medicine; Brazil
“Não há espécies, não há raças de loucos; há loucos só”1.
(Lima Barreto, 2017: 55)
INTRODUÇÃO: A REVOLTA DOS LOUCOS
Noite de terça-feira, dia 27 de janeiro de 1920; Hospital Nacional de Alienados (HNA). O hospício, como era chamado popularmente, era o mais antigo do Brasil. Localizado na Praia Vermelha, área inicialmente afastada do centro do Rio de Janeiro, ele havia sido instalado ali justamente para se situar fora da cidade. A ideia era propiciar o contato com uma natureza idílica e a calma necessária para que os alienados voltassem a se equilibrar. Todavia, com o crescimento da então capital do país, a instituição acabou ficando deslocada, o que pode ser provado pela existência de uma série de movimentos que pediam pela retirada do hospital daquele lugar, uma vez que não combinava com a “paisagem” que mais se parecia com um cartão postal (Facchinetti, 2022; Moraes, 2020; Ribeiro, 2016). Em um dia regular, bem no meio da semana, e com as pessoas indo e voltando do trabalho, a “revolta” estourou, envolvendo os supostos “loucos criminosos” da cidade.
Quinze anos depois da Revolta da Vacina, nove anos depois da Revolta da Chibata, dois anos e meio depois da Greve Geral e dois anos antes da Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, dessa vez mais de 40 pacientes da Seção Lombroso - nome dado em homenagem ao “pai” da antropologia criminal, cuja teoria justamente condenava os povos mestiços como degenerados sociais - viraram mesas e cadeiras, colocaram fogo nos colchões, atiraram telhas nos pedestres e alguns deles juraram de morte o administrador do hospital, dr. Eusébio de Queiroz Mattoso Maia, e o diretor da instituição, o famoso médico Juliano Moreira.
É nesses termos dramáticos que a Gazeta de Notícias narra o episódio: “...enquanto alguns, sempre aos gritos de sedição, lutavam com os guardas, - em número de 8 homens para uma turma de mais de 40! - outros arrastavam os colchões para o meio do salão, ateando-lhes fogo! … Dentro da seção, no meio de fumarada que se escapava da palha dos colchões incendiados, as figuras dos dementes corriam e saltavam como tipos satânicos …”2
Segundo as notícias que chegavam, várias enfermeiras, guardas e médicos, com a intenção de reprimir os pacientes, acabaram feridos. Nesse meio tempo, foi convocado um contingente de bombeiros, soldados e policiais, mais de 40 praças, para acabar com o movimento, sinalizando o tamanho e a importância com que o levante foi recebido. Era o pânico instalado em uma instituição que deveria tornar silenciosos e alienados (no sentido de separados) os loucos da cidade. Não demorou para que uma turba curiosa se formasse nos arredores do hospital, ao mesmo tempo em que os bombeiros e a polícia militar chegavam para conter o tumulto e deter os pacientes indicados como líderes da rebelião - cerca de 15 internos seriam encaminhados para a Casa de Correção.
Chamado às pressas para o HNA, o diretor logo avisou o Ministro da Justiça, dr. Alfredo Pinto, e o Desembargador Geminiano da França, que se dirigiram ao local. Um grupo composto por alguns médicos e administradores do estabelecimento saiu às ruas, tentando acalmar a população, alardeando controle. Mas a notícia surtiu pouco efeito, uma vez que, a essas alturas, a boataria andava solta. Logo no dia seguinte, os jornais foram inundados por manchetes: “A revolta dos loucos!”, “Uma revolta de doidos no Hospital Nacional de Alienados”, “O Hospício Nacional agitado por uma rebelião!”. Nada mais temeroso no já conturbado contexto da Primeira República, cujos governos lutavam para controlar uma série de rebeliões a base da mão firme. Todavia, por mais que as autoridades procurassem abafar o movimento, os jornais já haviam alcunhado o levante como uma “revolta” ou “rebelião” e apontado seu chefe: Roberto Duque Estrada Figueiredo Godfroy3, que se encontrava em quarto isolado quando foi colocado em liberdade pelos próprios presos que “arrebentaram as portas das grades” (Gazeta de notícias, 28 jan. 1920, p. 1)4.
O conhecido escritor Lima Barreto, que estava então internado no local - embora em outra seção, na Calmeil -, aproveitou a confusão para deixar o Hospital. No seu Diário do hospício, ele relata um movimento que estourara uma semana antes no HNA, bem no dia de São Sebastião: 20 de janeiro. O escritor reserva sua atenção ao paciente “D.E.” - Duque Estrada (Roberto), figura das elites cariocas, conhecido enquanto um ébrio arruaceiro. Para Lima, “D.E.” era a “imagem da revolta”, subindo no telhado do hospício “como equilibrista” e de lá, “seminu”, entre “goles de cachaça”, atirando telhas e indo à “borda da cimalha falar à multidão”. Para controlar a situação, alguns “bombeiros fingiram que iam estender a mangueira e obrigá-lo a descer com jatos d’água”, enquanto outros subiram pelo outro lado “e, surpreendendo-o, amarraram não sem tenaz defesa dele a unhas e dentes” (Barreto, 2017: 80-81, 99).
O episódio fazia parte de uma série de “ligeiros levantes, protestos e abusos” que ocorreram dias antes da rebelião (Engel, 2001: 298). Lima destaca como Roberto era “simpatizado, e muito, pelo pessoal subalterno” do hospital (Barreto, 2017: 80). Interessante o escritor usar o termo “subalterno”, que poderia servir tanto como referência, nos termos de época, para definir os enfermeiros e ajudantes como para implicar, possivelmente, os companheiros de Godfroy - vocábulo esse que ganharia importância mais recentemente. É digno de monta também o autor destacar a solidariedade intraclasses existente no ambiente do HNA, pois esses vários episódios de insurreição, descritos pela imprensa como irracionais, quando lidos na contramão, se revelam bem mais organizados. Já naquele primeiro momento, Lima nota: “Doentes lá de baixo e outros com os quais vim a conversar depois, disseram-me que sim, que ele [D.E.] tinha feito veladas ameaças do que ia fazer” (Barreto, 2017: 80).
Os poucos pesquisadores que estudaram a Revolta destacaram sua importância para a formação do primeiro manicômio judiciário no Brasil, exclusivo para “criminosos insanos”, que seria inaugurado logo em 1921, coincidindo com o fechamento da Seção Lombroso (Carrara, 1998: 192-194, 2010: 26; Dias, 2017: 78-79; Engel, 2001: 295-302; Maciel, 1999: 99-110). Aliás, desde a primeira década do século XIX, uma série de documentos internos no HNA vinha alertando acerca do crescimento do “perigo” que a Seção Lombroso representava - seção fundada precisamente para aliviar problemas causados pela mistura de alienados “comuns” com os que haviam cometido algum crime, mas que foi se tornando cada vez mais problemática aos olhos dos médicos e gestores do HNA. A Revolta, segundo esses estudiosos, seria a última gota d’água. A ideia era agora separar os pacientes criminosos não só em outra seção, mas em outra instituição, buscando estancar, assim, a propagação desse tipo de episódio.
Outros estudiosos, em particular Magali Gouveia Engel, se dedicaram à biografia de Roberto Duque Estrada Godfroy. Contudo, não existem pesquisas dedicadas exclusivamente ao levante. Por isso mesmo, um número importante de questões permanece em aberto, sobretudo os motivos que levaram ao movimento. Também restou obscurecida por conta do local onde foi deflagrada e da população majoritariamente pobre nela envolvida; silêncios recorrentes nas narrativas brasileiras.
Contudo, rastreando a história que aparece nos jornais, documentos oficiais, registros manicomiais e escritos de Lima, é possível chegar a uma imagem mais complexa desse movimento insurrecional, que pode ser incluído entre as rebeliões da Primeira República - que reagiam às falsas promessas de inclusão social do novo regime. Os alienados representavam a base da pirâmide em um momento que prezava a ciência determinista como o verdadeiro mito de seu tempo.
NO MANICÔMIO
A criação do Hospital Nacional de Alienados remonta ao ano de 1841, com o nome de Hospício Pedro II, quando José Clemente Pereira, provedor da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, iniciou campanha pública em favor da criação de um hospício de alienados na corte. A necessidade de uma instituição que separasse “os alienados” dos demais doentes era justificada não só por causa da recém-reconhecida especificidade da moléstia, como pela falta de condições para tratá-la dentro do lar. Afastar o “louco” podia ser, então, terapêutico, uma vez que o ambiente de vivência era entendido como um dos causadores da perda da razão. Ao mesmo tempo, vigia certa orientação de que era preciso, também, cuidar da saúde da própria sociedade. Por isso, médicos e especialistas preconizavam agora o isolamento da loucura como medida preventiva (Engel, 2001; Ribeiro, 2016).
Aprovado o projeto, foi logo selecionado pela mordomia do Império um edifício, que começara a ser construído em 1842. Em 1852, no dia da Sagração de Pedro II, foi inaugurado o imponente prédio de arquitetura neoclássica, localizado em lugar muito especial; de lá se observava a Baía de Guanabara, a Serra dos Órgãos, as montanhas de Niterói, o Pão de Açúcar e a Urca. Assim, seguindo modelos de instituições alienistas europeias e teorias que preconizavam o afastamento das cidades e das famílias como elemento necessário à cura, buscava-se o idílio da natureza.
Anos depois, a arquitetura do Hospital seria criticada, uma vez que, segundo as concepções da ciência da época, o edifício era mais apropriado para um Paço do que para uma instituição de alienados. Grandes arquitetos foram chamados para realizar melhorias no edifício - o que só atesta a relevância do projeto nos planos do Império, cuja política científica voltava-se para a aplicação das novas tecnologias; símbolos da “civilização” e do “progresso”. A princípio, o muro do hospital era totalmente devassado, expondo o cotidiano dos pacientes nesse que era um ponto frequente de visitação aos domingos. Entretanto, a partir de 1855, um gradil separou os loucos do restante da sociedade (Engel, 2001: 201-203). Não por acaso, Lima Barreto, em Cemitério dos vivos, descreve o hospício como “frio, severo, solene, com pouco movimento nas massas arquiteturais” (2017: 170-171) - sua melhor parte era a vista externa5.
Com a chegada dos primeiros pacientes, transferidos em sua maior parte da Santa Casa da Misericórdia, o cotidiano passa a se estruturar. A organização da construção separava, em primeiro lugar, os homens das mulheres. Além do mais, os pacientes eram divididos a partir de sua origem social: indigentes, escravizados e marinheiros eram geralmente admitidos gratuitamente, compondo a maioria dos internados. Já os pensionistas dividiam-se entre três classes, com direito a tratamentos especiais dependendo de quanto dinheiro a família conseguia pagar. Os internos eram também diferenciados pelo comportamento: tranquilos, agitados, imundos, afetados por moléstias acidentais ou crônicas (Ribeiro, 2016: 34-36).
O hospício tinha como objetivo a cura, mas suas possibilidades eram limitadas; faltavam médicos, enfermeiros e tratamentos apropriados. Não existia, em primeiro lugar, uma distinção clara entre punição e tratamento, e, de maneira indiscriminada, ministravam-se banhos como terapia, mas também para controle de pacientes “nervosos”. Substâncias farmacológicas (como o ópio) e sangrias eram aplicadas de forma indiscriminada. Ainda na época da Revolta, as anamneses do Pavilhão de Observação que consultamos indicam que a maioria dos pacientes recebiam purgativos: remédios que induziam à diarreia e/ou ao vômito. Além do mais, como a loucura era considerada uma doença moral, o trabalho cumpria função primordial. As mulheres costuravam, lavavam e engomavam roupas, enquanto os homens se dedicavam à limpeza, atuando como serventes nos jardins, refeitórios e enfermarias; faziam as camas, limpavam e lustravam os assoalhos (Engel, 2001: 212-214).
A despeito das tantas precariedades, a instituição passaria a representar um dos orgulhos do modelo civilizatório preconizado pelo Império, afeito a todo tipo de novidade que prometesse a “elevação moral” que o Estado gostaria de representar. Machado de Assis, em Dom Casmurro (1899), narra de forma irônica quando o imperador Pedro II, saindo da Faculdade de Medicina, construída junto ao hospital, explica ao protagonista do romance: “Nunca foi à nossa Escola? É uma bela Escola. Já temos médicos de primeira ordem, que podem ombrear com os melhores de outras terras. A medicina é uma grande ciência; basta só isto de dar a saúde aos outros, conhecer as moléstias, combatê-las, vencê-las…” (Assis, 1988: 72-73).
Com a chegada da República, não apenas o regime iria mudar, como se procedeu a alteração acelerada de nomes, títulos e emblemas. E o “Pedro II” logo em janeiro de 1890 seria rebatizado como Hospício Nacional de Alienados, e, em 1911, como Hospital Nacional de Alienados (HNA). Por outro lado, novos modelos entravam em voga, sobretudo a “teoria da degenerescência” elaborada por Morel, e emergia a predominância dos elementos biológicos aos sociais. Eles levariam a uma mudança de enfoque com relação à loucura e à importância das determinações hereditárias, que podem ser físicas, mas morais também. A essas novas conclusões correspondiam novas terapêuticas, uma medicalização crescente e um aprimoramento desse tipo de instituição asilar.
Mesmo assim, as críticas ao hospital se acumulavam, destacando desde o caráter inapropriado de sua arquitetura até a falta de médicos e a superlotação. Em 1890 é criada a Assistência Médica e Legal dos Alienados, que administraria o HNA e as colônias de Alienados da Ilha do Governador (Mesquita e São Bento). Aumentava-se, ainda, a autoridade do médico, que teria tutela sobre seus pacientes, desbancando o poder familiar. Sob a gestão de Juliano Moreira (1903-1930), o hospício passaria por uma série de reformas robustas e modernizadoras - paralelas à Reforma Pereira Passos que ocorria na capital nessa mesma época - que visavam a reformulação de algumas edificações antigas, a construção de novos prédios e, sobretudo, a criação de serviços voltados para o atendimento mais especializado para a doença mental. Já nos primeiros anos do novo diretor, foram inaugurados, por exemplo, pavilhões para crianças, epiléticos e tuberculosos, um Laboratório Anatomopatológico, bibliotecas para funcionários e enfermos, serviços fotográficos, oftalmológicos e odontológicos, entre várias outras mudanças (Facchinetti et al., 2010: 745-747). Era uma tentativa de reinventar o Hospício para “se adequar aos novos parâmetros republicanos de assistência, ciência e modernidade urbana” (Venâncio & Saiol, 2017: 200).
Nesse contexto que foi fundada a Seção Lombroso. Já havia algum clamor pela criação de uma seção dedicada aos alienados “criminosos”, em particular a partir de 1896, com a fuga de Custódio Alvez Serrão. Havendo disparado um tiro contra a criada da casa, Custódio foi detido quando andava “desvairadamente” pelas ruas da cidade, e logo declarado louco - fato “comprovado” por antecedentes pessoais: a mãe e a irmã eram histéricas; o irmão já fora internado uma vez no HNA. Pouco depois da internação de Custódio, na manhã de 26 de maio de 1896, ele se libertou do quarto-forte, galgou o muro do hospício e tomou o bonde para casa. No dia seguinte, ele teria chamado o chefe da polícia para pedir sua transferência à Casa de Detenção, usando a fuga enquanto prova da sua sanidade. Para o delegado responsável pelo caso, porém, significou o oposto, e Custódio foi logo reinternado. Dentro do hospício, não obstante, o evento inspirou um debate sobre a necessidade de separar os “criminosos” dos “alienados comuns”, ideia só realizada em 1903 com a criação da Seção Lombroso (Engel, 2001: 293-297).
Mas todo esse ambiente seria muito balançado pelo novo contexto de início do século. Já os anos que antecederam a “Revolta dos Loucos” haviam sido marcados pelo contexto da Primeira Guerra Mundial, que alterou o balanço político na Europa e o papel de países como o Brasil, que se beneficiaram com a nova “substituição de importações”. Internamente, esse é um momento de grandes agitações sociais com a eclosão das revoltas anarquistas - das quais Lima Barreto tomaria parte se não como artífice, ao menos como entusiasta -, dos movimentos tenentistas e das primeiras greves de trabalhadores. Toda essa agitação alcançaria também o ambiente dos hospitais psiquiátricos, que, conforme já detalhamos, passaram por anos de modernização. Não é por acaso que, durante a brevíssima passagem de Albert Einstein pelo Brasil, em 1925, o físico alemão foi levado a visitar o HNA, símbolo dos avanços científicos brasileiros. Ao mesmo tempo, as queixas de superlotação e de maus-tratos continuavam. Mesmo depois de duas décadas de reforma, “a imagem do grande laboratório de cura foi cedendo lugar para a imagem de uma instituição cada vez mais decadente” (Facchinetti, 2022: 62).
É esse tipo de estabelecimento que recebe Lima Barreto, em agosto de 1914 e em dezembro de 1919, e onde Roberto Duque Estrada Godfroy deu entrada 14 vezes, entre 1900 e 19206. No caso de Lima, e diferentemente do que defendia o escritor, a instituição procurava demonstrar que a história pessoal dele confirmava o que as teorias raciais e os prognósticos deterministas indicavam: que indivíduos miscigenados carregariam “vícios” das raças que as formavam, estabelecendo uma correlação direta entre raça e doença mental. E se a loucura não atingia uma única raça, negros e mestiços estariam mais predispostos a ela.
Lima não gostava de Henrique Roxo, médico do Hospital que asseverara, em pronunciamento no 2o Congresso Médico Latino-Americano (1904), que negros e pardos deveriam ser considerados “tipos que não evoluíram”7. Segundo o cientista, ainda, se cada um carregava uma “tara hereditária”, no caso desses grupos ela era “pesadíssima”. O médico não deixava de incluir argumentos sociais, culpando a abolição “repentina”, assim como o crescimento das cidades, por tal situação de descontrole.
Uma vez que a criminalidade era entendida como degeneração provocada pela mestiçagem racial, é no mínimo uma coincidência, de mau gosto, a Revolta ter ocorrido na Seção Lombroso do HNA, nomeada em homenagem ao cientista italiano Cesare Lombroso, que cunhou o conceito do “criminoso nato”. Pode-se imaginar, pois, o temor que as notícias devem ter gerado no público curioso ao relatarem que “loucos delinquentes”, alguns deles presos como homicidas, haviam fugido de suas celas. O próprio Lima é um sinal desse temor generalizado. O medo que sentiu “dentro” do hospital deve ter sido maior do que aquele que imaginava sofrer “fora” dele. O autor já estava de alta, mas andava procrastinando sua saída. Achou, porém, que era chegada a hora.
LIMA BARRETO, UM ESCRITOR NO HOSPÍCIO
Naquele dia, Lima Barreto, que fora internado como ébrio, mas recebera um diagnóstico de “neurastenia”, como seu pai, resolveu deixar o hospital.
Ninguém escapa, porém, da sombra da avaliação de uma instituição como o HNA. Na anamnese de entrada do autor, o relator anotou as seguintes informações: “O inspetor desta Seção conheceu seu pai, que era administrador das colônias de Alienados da Ilha do Governador, São Bento e Conde Mesquita. Informa que este senhor fazia uso excessivo de bebidas alcoólicas, apresentando humor irascível e taciturno. Consta-nos ainda que o progenitor do observado se acha agora em avançado estado de demência”. Lima, que se encontrava internado pela segunda vez, era mais uma vítima das teorias do determinismo racial, tanto que o funcionário introduziu a situação do pai do paciente como forma de diagnosticar a carga da hereditariedade negativa do filho.
Interessante, porém, como o segundo parágrafo da anamnese desmente o primeiro, com observações atestando o fato de o paciente ser escritor: “O observador goza nos meios literários da reputação de um escritor talentoso e forte, cheio de mordacidade. Aliás, alguns de seus trabalhos evidenciam esses méritos de escritor”8. Tudo indica que escrever bem representava um diferencial importante no meio dos internos, em sua maioria analfabetos.
Para além das páginas do inquérito, restaria a foto de Lima e de tantos outros internos desconhecidos. Prática logo associada à identificação de criminosos e doentes mentais, a fotografia ganhava lugar como registro das gentes, da paisagem e do cotidiano, mas também da contravenção. Relatórios dos primeiros anos do século XX se referem à criação de um laboratório fotográfico no HNA, cujo objetivo era registrar sistematicamente os novos pacientes que ingressavam na instituição. Essas fotos às vezes iam além dos livros de observações, circulando em revistas médicas - contribuindo para a “credibilidade científica” de estudos sobre certas patologias, por exemplo - e até aparecendo nos jornais mais populares do país, como vemos no caso dos protagonistas da Revolta de 1920 (Capela, 2021: 21-22). Já no seu diário, Lima anotaria a “humilhação” que sentiu no hospital ao “perder sua identidade” e se ver transformado em um “mulato”, desses “que tantas vezes manifestavam a fraqueza da loucura mestiça - a psicose dos degenerados” (Barreto, 1998: 15). Se não restam muitas fotos de Lima, nessa, reproduzida na Figura 4, porém, a expressão revela certa tristeza daquele que se vê flagrado em situação vexatória9.
As oscilações presentes no Diário de Lima, as tentativas de sair do círculo vicioso da bebida e de se afastar da “herança” dos pais, parecem ser denunciadas por meio da câmera, que pretende revelar uma imagem científica, que adiciona elementos à anamnese. Se qualquer fotografia busca fixar o tempo, nesse caso o resultado é perverso. Todos aqueles que surgem nas fichas do hospício parecem semelhantes por causa do uniforme que são obrigados a usar e pela situação incômoda em que se encontram.
Lima se queixou das humilhações sofridas no hospital (exposição pública, duchas coletivas, quartos superlotados), mas também de seus “colegas”. Ora taciturnos, ora agressivos; por vezes calados, em outros momentos loquazes; humildes ou com mania de grandeza. Boa parte deles encontrava-se na instituição pelos mesmos motivos de Lima: o álcool. Os casos eram tão majoritários que o diretor defendia a criação de asilos especiais apenas para “bebedores”, ainda sem sucesso. Mesmo assim, Lima descreve com pesar sua difícil socialização.
Todo esse mal-estar é flagrante na personagem ficcional de Vicente Mascarenhas, de O cemitério dos vivos. No capítulo em que o personagem dá entrada no HNA, Lima descreve o Pavilhão de Observação, assim como emite juízos sobre as práticas de aprisionamento: “A polícia, não sei como e por quê, adquiriu a mania das generalizações e as mais infantis. Suspeita de todo o sujeito estrangeiro com nome arrevessado, assim os russos, polacos, romaicos são para ela forçosamente caftens; todo cidadão de cor há de ser por força um malandro; e todos os loucos hão de ser por força furiosos e só transportáveis em carros blindados” (Barreto, 2017: 143-144). O pior é que, como conclui Lima, “o Destino me nivelara […] Esqueci-me da minha instrução, da minha educação, para não demonstrar com uma inútil insubordinação” (Barreto, 2017: 148).
A própria metáfora presente no título de Cemitério dos vivos descreve a situação em que o escritor estava. Lima reconhece ter encontrado o termo no livro A China e os chins (1888), escrito por Henrique Carlos Ribeiro Lisboa após a primeira missão diplomática brasileira àquele país. No relato, Lisboa descreve um lugar em Cantão onde os pobres recebiam cuidados paliativos e, ao morrer, um caixão. Para Lima, essa situação de limbo entre a vida e morte era a analogia perfeita do hospício (Barreto, 2017: 168-169; Lisboa, 2016: 249)10.
Um mergulho nos jornais da época mostra como a referência era frequente no Brasil da virada do século, sendo usada como analogia para os hospícios e colônias de alienados, e quase sempre de forma negativa. A Razão - jornal de viés espírita kardecista e racionalista cristão, fundado por Luiz de Mattos, que denunciava com frequência o HNA e a psiquiatria institucionalizada (Amaro, 2010; Moraes, 2020) - reportou em 1917 o caso de “um homem que só soube usar da sua inteligência e da sua força para o mal, ficou louco” e foi parar no “cemitério dos vivos, pagar todo o mal que fez” (A Razão, 15 dez. 1917, p. 1). Esse mesmo noticioso voltou a usar a frase em 1919, quando publicou um artigo com o subtítulo: “Sobre aquele cemitério de vivos” (25 set. 1919). Em 1920, o jornal publicou uma matéria que incluía uma carta de Roberto Duque Estrada Godfroy, contextualizando o documento dessa maneira: “um belo documento psíquico, é a prova provada da normalidade de um homem atirado à bastilha juliânica, ao cemitério dos vivos” (9 mar. 1920, p. 1).
Por sinal, a comparação entre o hospício e a Bastilha lembra O Alienista, de Machado de Assis, onde a Casa Verde aparece descrita como uma “Bastilha da razão humana”. A constatação nos remete, igualmente, à própria história da frase “cemitério dos vivos”, que já aparecia em inglês e francês no final do século XVIII para referir-se à famosa prisão francesa. Ser preso lá, no imaginário popular, era o equivalente a ser enterrado vivo11.
Mas voltemos ao caso de Lima, que deixou claro como o HNA era um “cemitério”; um local de privação, e, ao mesmo tempo, um símbolo do descontrole da República. Representava também um laboratório desse regime que prometera inclusão, mas entregara muita exclusão social. Nesse laboratório, negros, pobres, suburbanos, ébrios e doentes permaneciam por tempo indeterminado apartados da “civilização”. E, nas palavras do escritor, tomar parte desse “grupo de alienados” era como viver “o espetáculo da loucura”, comungar do “desatino dos loucos”, ou reconhecer que no hospital “negro é a cor mais cortante, mais impressionante” por conta da “pigmentação negra de uma grande parte dos doentes” (Barreto, 2017: 167-168). Esses eram “meus tristes companheiros de isolamento e de segregação social” (Barreto, 2017: 181). Nem mortos, nem vivos.
Quando longe do hospício, Lima tentava sempre se desfazer do seu sofrimento. No conto “As teorias do doutor Caruru”, publicado na revista Careta, em 30 de outubro de 1915, um ano após a primeira internação, o escritor conta a história de um “sábio doutor”, especialista em caráteres somáticos de degenerescência, que analisa o caso de morte de “um bêbado incorrigível, vagabundo” e conclui que o indivíduo era de fato degenerado por apresentar uma perna maior que a outra. Só depois, alertado pela faxineira, se dá conta que a irregularidade não vinha da biologia, mas “de um acidente prévio que criara tal deformação”.
Antes de deixar a instituição em 1920, Lima recebeu um repórter de A Folha para uma entrevista. A matéria, publicada no dia 31 de janeiro, ganhou o título de “Lima Barreto no Hospício”, e o subtítulo: “uma interessante palestra com o notável romancista”. Diferente do que se imagina, o clima do artigo é de conversa entre colegas, com o jornalista explicando, em tom ameno, que o escritor carioca preparava um “estudo sobre loucos e manias”.
O repórter pergunta: “Como vai a vidinha?”. E Lima responde: “Boa, propriamente não direi; mas afinal a maior, senão a única ventura, consiste na liberdade, o Hospício é uma prisão como outra qualquer, com grades e guardas severos que mal permitem chegar à janela. Para mim, porém, tem sido útil a estadia nos domínios do Senhor Juliano Moreira. Tenho coligido observações importantíssimas para escrever um livro sobre a vida interna dos hospitais de loucos. Leia O Cemitério dos vivos. Nessas páginas contarei, com fartura de pormenores, as cenas mais jocosas e mais dolorosas que se passam dentro destas paredes inexpugnáveis. Tenho visto coisas interessantíssimas” (Schwarcz, 2017: 397).
Vale assinalar que, longe da rotina do HNA, Lima se torna ainda mais crítico ao manicômio ao transformar o diário em romance. O protagonista Vicente nega ter “herança de taras ancestrais”; desfaz da autoridade dos médicos que “desprezam as observações dos leigos” e exercem sua profissão nesse “vago e nebuloso céu da loucura humana” (Barreto, 2017: 192-193)12. Queixa-se ainda dos furtos frequentes que sofrera. Reclama de ser obrigado a esconder tudo - “livros, toalha, papel, sabonete, etc.” -, assim como mostra-se aflito diante da convivência forçada “com indivíduos dos quais não gostamos” (Barreto, 2017: 201-202).
No entanto, se a história de Lima com o HNA acaba nessa circunstância, outra toma volume: a narrativa interna e externa da insurreição.
A CRIMINALIDADE E A SEÇÃO LOMBROSO: OS PROTAGONISTAS DA REVOLTA
A Seção Lombroso, lugar onde ocorreu a rebelião de janeiro de 1920, concentrava, nas palavras de seu diretor, o dr. Heitor Carrilho, “indivíduos provindos de penitenciárias civis ou militares, onde cumpriam penas por crimes diversos e que enlouquecem nestas prisões; ou doentes que revelaram a sua moléstia num delito extravagante e absurdo, considerados irresponsáveis pelos tribunais” (A Noite, 28 jan. 1920, p. 1). A ideia de crime, de enlouquecimento, de instintos perversos faz parte de um jargão das ciências criminológicas e psiquiátricas da época, que cada vez mais entendiam a loucura como fenômeno instintivo e nato, enquanto as teorias tradicionais do alienismo propunham que ela se resumia à perda da razão. Já a ideia de delitos considerados “extravagantes” e até “absurdos” indica a maneira como o jornal buscava introduzir uma retórica inflamada para assim vender mais exemplares; o que não deixa de revelar o preconceito e incompreensão para com essas populações.
Médicos e jornalistas bebiam desse mesmo linguajar. O repórter que entrevistara ao dr. Carrilho se refere, por exemplo, aos pacientes como “homens de perversos instintos... capazes, pois, de todas as violências.” Para outro jornalista, de O Paíz, os pacientes rebelados eram “aqueles que a fatalidade privou da razão” (28 jan. 1920, p. 5). Razão aqui pensada como o oposto da loucura e alienação. O periódico não se pergunta pelos motivos que levaram à insurreição, apenas afirma que seus membros deveriam ser mantidos isolados da sociedade, uma vez que não tinham como perspectiva a regeneração.
A Gazeta de Notícias radicalizou ainda mais, chamando os rebeldes de “endemoniados,” “dementes” e “tipos satânicos”. Esses “demônios” teriam deixado suas celas e libertado seu líder, sob os cantos de “mata! mata!” (Gazeta de Notícias, 28 jan. 1920, p. 3). O Correio da Manhã mostrava-se igualmente escandalizado diante dos “planos diabólicos dos loucos” e, mais especificamente, de Roberto, o mandante da rebelião, definido como um “homem-fera”, com um “cérebro endemoniado”. Era o responsável por colocar a Revolta em curso: “A um grito sedicioso de Roberto, todos se puseram em movimento, aos brados de ‘mata os miseráveis’! ‘bandidos! Vão morrer agora!’ etc. A essa voz, os enfermeiros, em número aproximado de dez, tomaram a deliberação de contê-los, custasse o que custasse…” (Correio da Manhã, 28 jan. 1920, p. 3).
A cobertura jornalística, evidentemente, “tem lado”. A expressão “custasse o que custasse” sintetizava a opinião geral da imprensa, que endossava e animava com seus artigos uma grande repressão a esses indivíduos. Definia também os próprios limites mentais dos pacientes, os quais, segundo os noticiosos, não teriam direito a manifestações públicas de insatisfação. Se é certo que muitos dos pacientes internados na Seção Lombroso haviam cometido crimes considerados graves, já a conclusão dos autos e dos jornais revela os limites da compreensão do evento.
Por isso, uma das grandes dificuldades enfrentadas por aqueles que estudam a história manicomial é encontrar e “ouvir” as vozes dos pacientes. Se os relatos de Lima e de outros internos, que chegaram a escrever e publicar sobre suas experiências em hospícios brasileiros, nos dão uma visão mais completa de como era a vida nestas instituições - e aqui se destacam os exemplos de Maura Lopes Cançado, nos anos 1950 e 1960, e de Austregésilo Carrano Bueno, cujas memórias serviram de base para o filme Bicho de Sete Cabeças -, esses casos são exceções. No exemplo da Revolta, enfrentamos problema semelhante, a despeito de contarmos com as cartas publicadas do líder do movimento.
Os periódicos, como também o diário de Lima, apontam a centralidade de Roberto Duque Estrada Godfroy no levante. Ele não era um estranho no HNA, nem nas páginas dos jornais cariocas, pelos quais suas várias detenções e internações podem ser acompanhadas desde os primeiros anos do século. Nem pobre nem negro, ele fazia parte de duas famílias influentes na capital: os Deschamps Godfroy e os Duque Estrada13. Por sinal, nos relatos de Lima, o status social de Godfroy não passou despercebido. Em certo momento, é descrito como “sobrinho de um funcionário aqui” (Barreto, 2017: 98); em outro: “parente de um funcionário da casa, de real importância” (Barreto, 2017: 80). Pertencer a uma família de elite e ser branco deve ter atuado como fator de hierarquização nesse hospital, tão marcado pela pobreza e, consequentemente, pela cor negra, e que funcionava como um espelho da própria sociedade.
Mas quem eram os outros rebeldes que admiravam Godfroy? Faltando testemunhos dos demais pacientes, nos resta resgatá-los dos noticiosos que deram cobertura à Revolta. Os periódicos falam de 16 “loucos perigosos”. Um dos jornais chega a revelar os crimes desses “amotinados”, que acabaram na Casa de Detenção junto com seu “chefe”:
1o, Roberto Duque Estrada Godeffroy, alcoólatra inveterado, chefe do movimento sedicioso; conta quatorze entradas no Hospital de Alienados e uma condenação na Colônia Correcional, onde cumpriu sentença. Homem perigoso, rancoroso, ainda no dia 20 da fluente, conseguindo alcançar o telhado do estabelecimento, começou a arremessar telhas e calhaus à rua, sendo mister o Corpo de Bombeiros acudir, com escadas, sendo o alcoólatra seguro sobre o telhado pelos guardas Aleides Carvalho e Oswaldo Santos; 2o, Luiz Bizorro, criminoso de morte, parafrênico raciocinante e de instinto perverso; está condenando a 25 anos de prisão; 3o, Santiago Bandeira, assassino de um guarda noturno e condenado a 15 anos de prisão; 4o, Joaquim da Costa e Silva, delinquiu depois de internado no Hospital, tendo fraturado o braço de um companheiro e tentado estrangular o guarda Julio Reis, em 1917, o qual até hoje sofre as consequências dessa agressão; 5o, Pedro José da Silva, parafrênico, tem constantes vezes tentado agredir os guardas e os companheiros. No pátio da Secção Pinel tentou esfaquear o inspector Gustavo Sant’Anna; 6o, Oscar Manoel Pinto, não sendo delinquente, aderiu ao movimento e procurou arrastar à rebelião companheiros da Seção Pinel. Foi o que ateou fogo aos colchões; 7o, Gastão de Araújo, delinquiu depois de internado no Hospital, tentando assassinar vários companheiros. É um epiléptico; 8o, Mauricio de Alcantara, está condenado a 25 anos, por ter degolado com uma navalha, no largo do Machado, um seu cunhado. De maus instintos, raciocinante, sói procura ferir a todos os guardas os loucos que dele se aproximam; 9o, Alberto de Mello, parafrênico, assassinou com uma pá um seu companheiro de quarto, sendo condenado a 15 anos; 10o, Frederico Luiz da Silva, parafrênico, cumpre a sentença de 15 anos por crime de morte.
Além destes dez loucos delinquentes, também foram removidos para a Casa de Detenção mais os cinco seguintes: Manoel dos Santos, auxiliar de Duque Estrada na direção do levante, é criminoso de morte e cumpre pena de trinta anos de prisão; Manoel das Neves, criminoso correcional e alcoólatra; Antonio Ferreira Dias, parafrênico e perigoso; Valentim Quaresma, perigoso indivíduo, de caráter destruidor e que aderiu ao levante; e Guilherme Assumpção, louco perigoso, criminoso de morte e cumprindo sentença de 15 anos. (A Noite, 28 jan. 1920, p. 1)14
Chama a atenção, em primeiro lugar, a quantidade de vezes que esses indivíduos são caracterizados como perigosos - Roberto, por exemplo, é não só chamado de “perigoso” como de “rancoroso”. Também se destacam termos que vinculam esses indivíduos a características de “degeneração racial”: loucura, epilepsia, alcoolismo, parafrenia e a própria criminalidade. Todos esses eram estigmas que, segundo as teorias do darwinismo racial e da criminologia lombrosiana, funcionavam como sinais externos para manifestações internas de degeneração. Muitos dos indiciados também são descritos a partir de seus comportamentos violentos - atitudes que só pareciam confirmar as teorias em voga15.
Tendo chegado a esses 16 nomes foi possível levantar informações, nos arquivos do antigo HNA e do Manicômio Penitenciário, acerca de quase todos os protagonistas da Revolta: a maioria negros ou pardos. Vários tinham migrado de outras regiões do país: Espírito Santo, Alagoas, Pernambuco, participando assim das grandes levas de migrantes pobres que se deslocavam do Nordeste para o Sudeste, fugindo da seca e buscando oportunidades de inserção na capital. Além do líder da insurreição, outro era classificado como branco, e outro ainda como imigrante português16.
Os prontuários também nos dão uma ideia sobre a educação dos pacientes. Com exceção de Godfroy e de um interno declarado litógrafo, os demais são caracterizados por sua instrução “rudimentar”, “quase nula” ou “nula”. Em termos de profissão, destaca-se o grande número de participantes em cargos policiais ou militares: foguista da Armada, ex-cabo da Brigada Policial, soldado da Força Policial, grumete da Marinha Nacional17. Como fica evidente a partir de exemplos como a Revolta da Chibata, esses trabalhos constituíam uma forma de ascensão social para a população negra do pós-abolição. Por outro lado, é possível intuir a utilidade desse tipo de treinamento militar ou policial no planejamento de uma revolta, como também fica claro no caso da Chibata.
Os diagnósticos chamam igualmente a atenção: “debilidade mental”, “psicoses”, “epilepsia”, “demência precoce” e - à semelhança dos casos de Lima e Roberto - “alcoolismo”. Por fim, convém assinalar que quase todos os implicados contam com várias internações na Seção Lombroso e na Casa de Detenção.
A Revolta parece ser, pois, o laboratório dessa instituição marcada pelas tensões de um Brasil tão desigual. O contexto dos pacientes pode ser entendido como uma decorrência radical da falta absoluta de cidadania, em um cenário em que apenas alguns tinham direitos e “o povo estava literalmente excluído da organização e das decisões políticas que afetavam sua existência” (Moraes, 2020: 93). Não surpreende, então, “que as intervenções autoritárias do Estado, mesmo em nome do bem coletivo, tenham resultado em revoltas e agitações populares, alimentadas por forças políticas locais” (Moraes, 2020: 93). A “Revolta dos Loucos”, nesse sentido, não pode ser representada apenas como um movimento repentino de pessoas que mal se conheciam e pouco entendiam o poder político de um levante. Ao contrário, como Lima assinala, dias antes das ações, já corriam pelo hospício “veladas ameaças do que ia fazer”. A insurreição representava o momento mais agudo de um processo (tanto pessoal quanto político) que não começara naquela data, nem só naquela instituição, e que, como veremos, não terminaria por aí.
A QUEDA SOCIAL DE ROBERTO DUQUE ESTRADA GODFROY
Na foto acima, Roberto aparece destacado e circundado pelos demais companheiros. Esse é um retrato fiel do Brasil do início do século: o líder branco mais remediado e “seus capangas” mais vulneráveis. Um país que convivia com as tensões envolvendo a população negra e imigrante.
Roberto era conhecido naquele ambiente. Conforme Engel: “Alcoolizado crônico, Roberto Godfroy contava, em 1920, com 14 entradas no HNA, além de várias reclusões em estabelecimentos correcionais onde cumprira penas por agressões, ferimentos, capoeiragem e outros atos que nele eram determinados pela influência do álcool” (Engel, 2001: 300). Os limites entre loucura, criminalidade, vadiagem e desamparo se inscrevem no corpo desse homem de nome estrangeirado, mas de realidade bem nacional.
Ao que tudo indica, quando bebia, Roberto ficava violento e agressivo, conforme os jornais das primeiras décadas do século. Já em 1904, 16 anos antes da Revolta, lá está ele criando “desordem” nas ruas de Niterói e resistindo à prisão (O Fluminense, 31 dez. 1904, p. 1). Em 1911, aparece nova referência ao “francês Roberto Duque Estrada Godfroy”, que teria sido “preso por estar embriagado, promovendo desordem” (O Século, 29 abr. 1911, p. 3).
“Desordem” é um termo suficientemente vago. No cartão postal que se tornava a capital federal não havia lugares para “baderneiros” como Godfroy e seus colegas. Tanto que, em um inquérito policial, datado de 1906, explica-se que o motivo do encarceramento de Roberto era o fato de ele ter realizado “ofensas físicas” contra Emmerick Wuensek, gerente austríaco do Botequim da Estrada de Ferro Central do Brasil. Segundo o registro, Roberto entrou no estabelecimento e, quando não foi servido da forma como queria, começou a chamar o dono de “filho da puta, sacana e outros nomes indecentes”18. Em 1911, encontramos outro processo criminal, motivado por um ataque feito contra um guarda civil, em uma noite regada à bebida - Godfroy foi processado pelo artigo 303 do Código Penal, que designava ataques físicos menores, que não levavam a ferimentos de sangue19.
Nesse contexto, a excepcionalidade social de Godfroy era importante. Lima, por exemplo, entendeu que as origens sociais de Godfroy correspondiam a uma vantagem pessoal. Já os jornais que trataram Roberto com respeito foram, não por acaso, os que destacaram suas origens. Ao mesmo tempo, os comportamentos de Roberto o afastaram dessas mesmas origens, gerando tensões entre ele e seus parentes. Um artigo de 1912 relata:
Esteve em nossa redação o Sr. Roberto Duque Estrada Godfroy, que nos pediu [que] retificássemos a notícia que publicamos há dias, por informe do seu tio, o Sr. Dr. Leopoldo Duque Estrada de Figueiredo. Este senhor tem sido vítima de perseguição por parte de vários membros de sua família, inclusive sua mãe, por motivo do inventário de sua avó. Ele, pela precisão e pelo modo porque nos narrou o ocorrido, não nos mostra sofrer absolutamente das faculdades mentais. Há dias foi apanhado pela Polícia, que o enviou para o Hospício Nacional de Alienados de onde o Sr. Dr. Juliano o devolveu para o chefe de Polícia, dizendo no ofício que o acompanhou que ele era apenas um bebedor inofensivo. (A Noite, 10, abr. 1912, p. 2)
Não nos foi possível identificar o artigo a que Roberto se refere, mas fica evidente sua compreensão do poder da imprensa, como também sua capacidade de narrar a própria história de forma comovente e convincente. Também fica evidente o abismo existente entre Roberto e sua família. Sua avó compilou uma espécie de inventário contra o rapaz; sua mãe apoiou a iniciativa e seu tio escreveu uma nota nos jornais nada benéfica ao sobrinho. Essas tensões parecem ter produzido uma ruptura definitiva com seus parentes. No prontuário referente à sua entrada no HNA no dia 28 de agosto de 1913, encontramos a seguinte anotação: “Filiação: ignorada”20. Anos depois, na sua petição de habeas corpus de 1919, Godfroy é “interditado” por um representante da “1a Vara de Órfãos, que o qualificou de incapaz de reger sua pessoa e bens”21. Em outra petição, de 1920, datada de alguns meses após a Revolta, Roberto recebe um “curador nomeado pelo Juiz de Órfãos”22.
Alcoolismo era, como vimos, um ticket fácil de entrada nos manicômios. O próprio Lima já passara pela experiência duas vezes - em 1914 e 1919 -, e sempre pelo mesmo motivo. No caso do escritor, em uma das vezes, foi seu próprio irmão, que trabalhava na polícia, quem o levou para o manicômio. Já no exemplo das famílias Godfroy e Duque Estrada, a conduta de Roberto - como, possivelmente, sua convivência com pessoas negras e imigrantes de outra extração social - também parecia gerar desconforto.
Mas Roberto não parecia ser do tipo que ficava facilmente acuado. Esperto e proativo, em uma série de cartas escritas em 1920 para A Razão - jornal que mantinha uma querela aberta com o HNA e seu diretor, Juliano Moreira -, ele se identifica como uma “vítima da família” (16 mar. 1920, p. 2). Fica claro, também, como o paciente tinha pleno conhecimento dos seus direitos e não pretendia ser prejudicado pelos parentes. Engel, que consultou os arquivos médicos e criminais de Godfroy, cita Heitor Carrilho, nosso conhecido diretor da Seção Lombroso, que descreve Roberto como tendo “alguma inteligência, conhece a vida político-social do Rio de Janeiro, sabe de cor os artigos do Código Penal, é versado nas questões referentes a processos criminais e tira partido de sua situação de enfermo mental, para se subtrair à ação da Justiça e das leis” (Engel, 2001: 300).
Com efeito, os antecedentes individuais de Roberto - redigidos pelo dr. Carrilho e analisados por Juliano Moreira e pelo Ministro da Justiça, dr. Alfredo Pinto - destacam como se trata de um caso de “alcoolismo crônico atestado em todas as suas entradas no Hospital Nacional de Alienados e nos motivos das penas que têm cumprido em estabelecimentos correcionais (agressões, ferimentos, capoeiragem e outros atos que nele eram determinadas pela influência do álcool)”. Segundo o laudo, seus “hábitos inveterados de alcoolista” levariam a “transtornos na sua conduta, tornando-o um inadaptável às normas usuais da vida honesta”. Os médicos também destacam o que chamam de “mentalidade de degenerado”, com o álcool fazendo com que ele tivesse frequentes episódios de “escândalo”, “ameaças”, “agressões”, “lesões corporais”, o que fazia dele “um elemento negativo para si e para a sociedade”. Assinalam ainda como Roberto era capaz de “explorar sua imunidade legal”, sendo definido como “irritado, reivindicador, queixoso de tudo, ávido que por vezes comovido da sua infelicidade e da sua condição de enfermo”. Por fim, chama atenção como, “na reivindicação da sua liberdade e dos seus direitos”, o rapaz abusava “da calúnia, da maledicência e dos baixos procedimentos”, que seriam “armas que bem sabe manejar”. E assim chegavam à conclusão: “Se por tudo isto vive em contínua iminência delituosa; urge que se decida a sua permanência em um asilo de bebedores, que ainda não temos, ou em outro lugar onde pela sua sequestração, ou pela supressão do álcool, sejam proporcionados benefícios à Sociedade que o teme…”23.
Familiaridade com a lei e com a vida política e social são marcas daqueles que têm um passado privilegiado e que, nessa sociedade bastante iletrada, se diferenciam por saberem ler, estudar e se informar. Não podemos esquecer que a referência nas anamneses a “alguma inteligência” remete a indicadores de educação formal. Por fim, a iniciativa de Godfroy de ir aos jornais nos anos de 1912 e, como veremos, de 1920 demonstra como ele pretendia cuidar da imagem pública.
Nessa época, aproximadamente 60% da população brasileira era iletrada (Ribeiro & Batista, 2020), e a contraposição deveria servir como uma espécie de troféu em asilos e prisões. Internamente, porém, no convívio com os demais pacientes, a reação podia não ser previsível. Por esse mesmo motivo Lima se sentiu isolado no hospital, descrevendo em seu Diário como costumava permanecer longos períodos sozinho na biblioteca do manicômio. Já Godfroy parece ter optado pela agência oposta: criava vínculos com seus colegas de seção, a ponto de liderar uma rebelião.
Por outro lado, se no caso de Lima o fato de, na anamnese, ele ser caracterizado como descendente de raças mistas era suficiente para classificar o escritor como um “doente”, já a descendência de Roberto Duque Estrada Godfroy faria dele um caso distinto. Em abril de 1911, o jornal O Século o definia como “francês”, um forte marcador social de diferença, em uma sociedade acusada por Lima de ser bovarista: de chamar qualquer estrangeiro de doutor. Ser europeu fazia imensa diferença no país. Tanto que, após a Revolta, alguns jornais distinguiam Roberto dos demais pacientes, mesmo sendo ele internado várias vezes como alcoólatra “inveterado”. Consideremos o artigo “Duque Estrada não é tão ‘feio’ como o pintam”, do Jornal do Brasil:
Relativamente ao cabeça da última revolta, Roberto Duque Estrada Godeffroy, obtivemos interessantes informações. É um indivíduo descendente de uma família distinta, inteligente, mas que tem a infelicidade de entregar-se ao vício da embriaguez. A sua família empregou todos os meios para corrigi-lo, mas tudo tem sido em vão. É um indivíduo somente perigoso quando alcoolizado, houvesse fiscalização no hospital, não teria ele tomado parte na revolta… (Jornal do Brasil, 29 abr. 1920, p. 10)
O título da matéria se refere a um pressuposto implícito na sociedade brasileira. Que feios são os “não brancos”. O próprio Lima escreveu uma crônica incompleta chamada “Apologética do feio”, em que mostra, com ironia, como nunca se julgara “bonito” por conta de sua cor (Barreto 2010: 556-559). Também relevante é a expressão “interessantes informações”. Ela destaca uma representação contraintuitiva. Seria, para esse jornalista, pouco usual encontrar uma pessoa da elite mantida nos recintos do HNA. Por isso, munido de informações sobre a família de Roberto, o jornalista logo passa a colocar a culpa de sua internação no vício do álcool. Ele não estaria naquele local se não fosse “vítima” desse costume adquirido no convívio com as classes mais baixas. O ônus recairia na negligência do hospital, e não na “degeneração congênita” corriqueiramente atribuída às pessoas negras e mais pobres.
Resta implícita mais outra acusação: a da colaboração de pacientes negros, esses sim predispostos ao crime. Há um subtexto racial evidente na narrativa desta que seria uma “revolta inexplicável”, nos termos de um jornalista de O Imparcial: “…apesar de toda a vigilância [Roberto] consegue introduzir no Hospício, por intermédio de um pretinho, quando pode, a aguardente com que litiga o seu vício. Segundo ouvimos de alguns internos que nos denunciaram a manobra do preto, Godefroy estava ontem embriagado. O álcool concorreu para fazer explodir o acesso de loucura que o dominou e que deu princípio à inexplicável revolta” (28 jan. 1920, p. 3).
Agora a culpa do alcoolismo de Roberto recai em um “pretinho”, que trouxera a bebida e o vício para o local. O periódico insinua, pois, a existência de uma ameaça racial, com Godfroy surgindo apenas como vítima passiva. Perigosos são os “outros”, os “pretos degenerados” que teriam contaminado o paciente, ele próprio, supostamente, alheio à Revolta. A doença não seria interna para Roberto -no sentido de ele carregar qualquer determinismo racial. No fundo, o perigo implícito (e muito mais radical) seria a mistura de raças.
Essa mesma situação está também presente em outro caso legal envolvendo Godfroy, datado de junho de 1919: “Paciente requer habeas corpus por acusação de capoeiragem”24. O documento apresenta apenas a decisão final: após ser condenado a “3 anos de reclusão na Colônia Correcional como contravento do art. 402 do Código Penal” e, portanto, mantido na Casa de Detenção desde abril do mesmo ano, a liberdade é garantida a Roberto por motivos que não ficam claros. Mas o que era entendido como “capoeiragem”? Se hoje sabemos como a capoeira era uma forma de proteção, resistência e poder envolvendo redes de sociabilidade negras, já na época a prática, inicialmente associada à população escravizada e então livre, gerava um grande pânico social nas elites proprietárias e urbanas. Na virada do século, eram vários os registros de gangues de capoeiristas que atormentavam as ruas com facas e lâminas25. Os artigos 402, 403 e 404 do Código Penal de 1890 visavam diminuir o “perigo público” desses grupos.
Consideremos aqui o primeiro desses artigos, sob o qual Roberto foi processado:
Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal:
Pena - de prisão celular por dois a seis meses.
(…) É considerado circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro26.
Não foi possível encontrar comprovações da participação de Roberto na capoeira, até porque ele teve sucesso em negar esse tipo de acusação. Os jornais também não informam se o paciente se dedicava, ou não, à atividade. Porém, é digna de nota a semelhança entre a linguagem usada no Código (em particular, palavras como “tumultos e desordens”) e os termos arregimentados pelos periódicos para descrever a “desordem” causada por Godfroy. Além disso, fica evidente a imprecisão do artigo em pauta: a capoeiragem seria, ao mesmo tempo, um movimento de “agilidade e destreza”, um agrupamento de pessoas armadas e a própria agitação vigente no espaço público. Por isso mesmo, o caso de Godfroy, frequentemente incriminado pelo seu envolvimento em lutas e confusões de rua, poderia ser definido como “capoeiragem”, sem que ele, de fato, pertencesse a esses grupos.
De toda forma, motivos para revolta não faltavam. Superlotação, poucos funcionários, falta de médicos e de medicamentos, recursos muito escassos e tratamentos brutais definiam o cotidiano do hospital psiquiátrico. A perda da liberdade também causava frustração contra a administração. Segundo Saidiya Hartman, na sua análise de uma série de levantes negros, ocorridos entre 1919 e 1920, em uma prisão feminina no estado de Nova York, a privação de liberdade era sentida como uma extensão da escravidão (Hartman, 2019: 263-286). Também no Brasil, os pacientes reagiam à falta de autonomia. Passados 30 anos da abolição da escravidão, pessoas negras, pobres, jogadas nos manicômios e prisões ainda se viam privadas da liberdade - conceito tão difícil de conquistar e mais ainda de se manter.
PONDO AS CARTAS NA MESA: SOBRE A BASTILHA JULIÂNICA
Se as vozes da maioria dos pacientes que participaram da Revolta ficaram de fora dos arquivos, já Roberto deixou alguns testemunhos escritos - uma série de cartas publicadas no jornal A Razão, entre os dias 16 de fevereiro e 19 de abril de 1920, e mandadas da sua cela na Casa de Detenção27.
Embora fosse rara a publicação de cartas escritas por pacientes nos jornais locais, convém lembrar aqui que Roberto não foi o único caso de internado letrado que encontrou na imprensa um fórum para defender a sua sanidade, pedir a realização de novos exames e denunciar as condições do HNA, conforme explicam Venâncio e Saiol (2017). O caso de Roberto se distingue, porém, pela quantidade de cartas publicadas.
Por sinal, ele não poderia ter encontrado um periódico mais favorável. “O clima de revoltas dos loucos”, segundo Moraes, “forneceu a oportunidade perfeita para a campanha do Sr. Mattos” - fundador de A Razão - “contra a mais emblemática instituição psiquiátrica da cidade” (Moraes, 2020: 253). Já no dia 29, por exemplo, encontramos A Razão publicando uma matéria escrita por um jornalista que se inseriu nas dependências do HNA para documentar as condições do hospital e conversar com os pacientes. Segundo ele, a situação era tremendamente precária: faltavam alimentos e “o excesso de grades inquisitoriais”, bem como a existência de 1.470 residentes em uma estrutura que acomodava apenas 800, eram provas da falta de zelo da instituição (29 jan. 1920, A Razão, p. 4).
É nesse sentido que, após a Revolta, A Razão se comportou como o noticioso mais comprometido com os pacientes, publicando uma série de artigos dedicados ao tema. Na manhã do dia 28, um dia depois da Revolta, com frases do tipo “os rebeldes ‘querem ser ouvidos’”, “querem relatar barbaridades que afirmaram sofrer no Hospício por parte dos guardas e outros empregados”, o periódico divergia claramente das demais reportagens cariocas, mostrando para que lado pendiam suas convicções. Nesse mesmo artigo, descrevendo o evento do dia 20, quando Roberto subiu no telhado, explica o jornal: “Com a chegada do Corpo de Bombeiros foi Roberto retirado, amarrado, deixando escapar a seguinte frase, que não parece muito própria de louco: -Foi justamente neste dia que S. Sebastião se viu amarrado. Pouco me importa sê-lo também” (28 jan. 1920, p. 4). Se, para alguns jornais, Roberto era um “ser endemoniado”, aqui ele se converte em mártir perseguido por médicos laicos, lembrando assim o viés religioso do periódico28.
A Revolta e as cartas de Godfroy, então, combinavam perfeitamente com a linha editorial do jornal. O trecho abaixo é exemplar do tipo de cobertura que o periódico, que se definia como “cristão-racionalista”, passou a fazer acerca da insurreição de 1920:
...desde a fundação da A RAZÃO, afirmamos que a ciência oficial não curava loucos nem enfermidade alguma, antes que fazia loucos e desgraçava corpos, por ser baseada na matéria e haver desprezado a força, os PORQUÊS de todas as coisas. Essas nossas afirmativas são filhas da nossa experiência… nos apresentam os enfermos julgados incuráveis, mas curados em pouco tempo pela medicina astral, pelo espiritismo racional e científico. (“A ciência oficial está errada”, 11/3/1920, p. 1)
Mas se o evento virava bom pretexto para o noticioso criticar a ciência do país, já as cartas de Roberto chamavam pela curiosidade do leitor. Elas eram enviadas diretamente da Casa de Detenção, onde ele era mantido desde a Revolta. Por sua vez, o jornal usou o material para criticar a profissão médica e, sobretudo, para denunciar o que chamava da “bastilha juliânica” (em uma referência ao diretor do HNA, Juliano Moreira).
A primeira dessas missivas foi publicada em 16 de fevereiro de 1920, três semanas depois da Revolta, no artigo “Ecos da Revolta no Hospício Nacional - Uma carta de uma vítima dos psiquiatras oficiais” - título que não só “vitimiza” o líder da Revolta, como se opõe à psiquiatria praticada. Vale a pena analisar esse primeiro registro na íntegra, já que ele articula muitos pontos que retornam em cartas mais tardias.
Desde o começo, Roberto designa o jornal como árbitro da justiça: “Sr. redator d’A RAZÃO. - É para o vosso jornal que apelo, por saber justo e imparcial, quando se trata de esclarecer a verdade.” Buscando criar uma conivência com os redatores e leitores do órgão, Godfroy faz uso de uma linguagem semilegal (“apelo”, “justo e imparcial”, “esclarecer a verdade”) que reforça seu entendimento do noticioso como uma espécie de tribunal da opinião pública - próximo das leis republicanas, e distante das práticas exclusivistas do hospital. Godfroy retorna a essa ideia algumas vezes. Nos últimos parágrafos faz um pleito dramático, dizendo que não teria mais ninguém a apelar. Afirma mais: que tem esperanças de que, com a publicação de seu texto, se dê voz às “gravíssimas irregularidades ocorridas nos serviços clínicos e administrativos do pseudo estabelecimento denominado ‘Hospício’”.
No entanto, a grande “verdade” que nosso personagem procura defender, nesta carta, não se separa da sua situação particular. Afinal, boa parte da missiva de Roberto se dedica a contestar a ficha criminal e médica que lhe é atribuída. Logo no segundo parágrafo, ele detalha sua perseguição em 1919 - o caso envolvendo sua acusação de capoeiragem. Conforme seu arrazoado, ele fora preso em 15 de abril de 1919, e, a partir da requisição de Juliano Moreira e Mattoso Maia, processado sob o Artigo 402. Propositadamente, Godfroy evita introduzir a palavra capoeiragem, deixando o conhecimento do Código Penal para o próprio leitor, mesmo ao alegar a injustiça do seu confinamento em instituição penal. Relata, nesse sentido, como pedira por exame mental com o famoso dr. Henrique Roxo, que, como sabemos, teria propensão a patologizar um paciente mestiço, mas talvez não um apenado branco. Roxo teria determinado que ele não era “louco, mas simplesmente um alcoólatra”, e que estaria melhor no HNA: “por não ter o Rio um estabelecimento destinado para bebedores.” A implicação levava a concluir que, seu comportamento agressivo não era produto de loucura, tampouco de envolvimento com a capoeira - era uma consequência exclusiva do álcool. Foi assim que ele conseguiu ser transferido da Casa de Detenção ao HNA nos meses que precederam à Revolta. Godfroy manipulava, pois, a lei, os médicos, selecionava os profissionais que gostaria que fossem acionados em seu caso, e ainda procurava influenciar no veredito.
Esse tipo de interpretação vai e volta na série de cartas publicadas por Godfroy, que frequentemente insiste na sua sanidade e na crueldade dos administradores do hospital29. Enquanto isso, A Razão conclui que o fato de o paciente estar escrevendo tais cartas já era em si um sinal de sanidade30. Assim, se Godfroy era uma vítima do sistema, também o agenciava no sentido de diminuir sua pena.
É paradoxal o fato de Lima e Godfroy trazerem perspectivas diversas das suas alianças no hospital. Lima, que dizia estar internado apenas para “anotar o cotidiano da instituição”, parece ter sido incentivado por Juliano Moreira a redigir suas memórias. Em contraste, nas cartas legadas por Godfroy, como também nas reportagens realizadas por A Razão, Juliano Moreira é o grande vilão, sendo classificado como “charlatão”. Já em relação ao dr. Roxo, as posições se invertem. É Lima que não gosta do médico jovem, prepotente, que aplica as máximas do determinismo racial.
Quem sabe a experiência seria diversa a depender da ala em que os pacientes se encontravam internados. Esses são os encontros e desencontros entre Godfroy e Lima, que deviam se conhecer, ao menos de passagem. Para o escritor, o HNA simbolizava a loucura do Brasil e do racismo vigente no país. Já as cartas de Godfroy têm evidentemente outro propósito; seu objetivo era mais mundano - comprovar como não era insano ou criminoso, e que seu único crime fora a sua caracterização equivocada como um “louco criminoso”.
É em meio a esse fogo cruzado acerca da direção do HNA que Roberto finalmente menciona a Revolta naquela primeira carta. Ele descreve como, após ser transferido ao HNA diante do episódio da capoeiragem, Moreira e Mattoso Maia “continuaram na baixa e mesquinha campanha de sempre”; perseguição essa que, segundo o autor, o teria levado aos atos de 27 de janeiro: “O instinto de conservação, o cansaço e o amor à liberdade ‘Libertas quae sera tamen’ levou-me e aos meus infelizes companheiros de infortúnio à revolta, único remédio, porta por onde podíamos escaparmos aos bárbaros e cruéis tratamentos que recebíamos na infernal casa que de humana só tem o nome.” Godfroy menciona o slogan dos Inconfidentes Mineiros de 1789, que pretendia a separação de Portugal, e virou emblema quando a República recuperou a figura de Tiradentes como herói nacional (Carvalho, 2001). No entender de Godfroy, os profissionais do Hospital seriam repressores cruéis que lembravam o jugo dos portugueses, enquanto os internados seriam os Inconfidentes, os verdadeiros patriotas; e Godfroy, um Tiradentes que buscou levar seus colegas à liberdade. Ainda arrisca uma analogia médica: diante do tratamento perverso, a Revolta era o “único remédio” capaz de aliviar o sofrimento daqueles mantidos em cativeiro dentro dos muros cerrados do Hospital.
No parágrafo final, se define como prisioneiro “sem nota de culpa, apesar de não ser nem criminoso e muito menos louco”. Por isso, acredita que a carta será publicada e ele atendido, “em favor dos infelizes que têm a desgraça de ser internados naquela geena onde muitos perecem aos esboroamentos que sofrem, como aconteceu ao infeliz Pedro Rossi31 que morreu devido a espancamento, fato esse muito comentado pela imprensa desta capital. Subscrevo-me muito agradecido.” Dessa forma, não só apela à cristandade do jornal com termos como “geena”, mas também procura se apresentar como informante valioso na crítica ao HNA. Tanto que, em outra missiva publicada no dia 1º de abril, oferece um caso de abuso de um paciente erroneamente punido por roubo, ou, em outra ainda, do dia 19 de abril, detalha o caso de um médico que roubava tinta do hospital para pintar sua própria casa.
Ao longo dos dois meses de publicação dessas cartas, ele destaca o perigo que sofria ao mandá-las para o jornal. Cita, por exemplo, quando “me pediu o dr. Carrilho, para não escrever mais ao vosso jornal”, ao qual ele respondeu que “isso eu não podia fazer, porque era negar-me como se tem feito, o direito de defesa. Fiz ver que não tinha advogado e nem pessoa alguma por mim, que o único Defensor meu era A RAZÃO”. E termina com seu conhecido estilo dramático: “Escrevo com pressa e às escondidas para não ser visto” (20 mar. 1920, p. 2). Posando de revolucionário, o paciente procura conferir urgência à situação.
Até onde foi possível apurar, A Razão suspende a publicação das cartas em meados de abril de 1920. Se elas serviram para aliviar as condições de nosso personagem ou acabaram fazendo o caso ficar ainda pior - até mesmo para os outros detentos -, não podemos responder. O que sim, sabemos, é que outro pedido de habeas corpus de Godfroy fora aprovado em junho de 1920, colocando nosso líder em liberdade. No documento, assinado dois meses antes, de punho próprio, o paciente alega se encontrar privado de sua liberdade injustamente, pois, conforme tão bem define, embriaguez não é loucura32.
O caso chamou atenção dos redatores de O Paíz, que, reportando o pedido exitoso de habeas corpus, não deixaram de ironizar a situação: “Roberto Godfroy afirma, com a maior convicção, não ser louco, apesar de ter 14 entradas no hospício” (5 jun. 1920, p. 5). Já a Gazeta de notícias informou: “Roberto, em palestra, declarou que é um perseguido. Nunca foi louco e apenas tem sido vítima dos próprios parentes” (5 jun. 1920, p. 5). Por sua vez, O Jornal continuava a se referir a ele como “um declarado louco” e ainda explicou que o líder da Revolta apenas “pediu uma passagem, a fim de fugir, conforme asseverou, da perseguição do sr. Juliano Moreira, diretor do Hospício” (5 jun. 1920, p. 4).
O certo é que se a figura de Godfroy era tratada pelos jornais e, com certeza, pela própria sociedade carioca com grandes doses de ambiguidades, o episódio serviu para chamar a atenção para esse local esquecido da República - uma geena, um cemitério dos vivos, onde eram jogados aqueles e aquelas que não combinavam com os novos “valores” do regime, e com o processo de higienização social então implementado. Por isso o caso do chefe da insurreição deve ter chamado tanta atenção: afinal, se a exclusão da pobreza era tratada com “naturalidade”, já a presença de uma pessoa pertencente ao circuito das elites há de ter causado certa comoção.
A Revolta foi o barril de pólvora que estourou e, ao que tudo indica, apenas seu líder branco e socialmente privilegiado ganhou protagonismo e se livrou da pecha pesada da loucura. Todos os demais continuaram a viver seus anonimatos. Como perguntava Lima Barreto em Cemitério dos vivos: “A Constituição é lá para você?” (Barreto, 2017: 13).
Essa não era uma parábola ingênua, tampouco um ato de imaginação. Afinal, pouco antes, o médico Nina Rodrigues publicara o livro A Responsabilidade Penal, em que propunha a criação de dois códigos penais: um para negros, outro para brancos. Datava também desse momento a atuação de Renato Khel, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e suas propostas de introdução de modelos eugênicos de separação das raças. A República brasileira combinava e combina, perversamente, democracia com exclusão social, e impôs um apagamento de certas populações; sobretudo negras e pobres, como “os infelizes colegas de infortúnio” de Lima Barreto e Roberto Godfroy.
Lima voltou à sua casa em Todos os Santos e continuaria a publicar seus textos em forma de crônicas, contos e romances. Dataria de 1922 o livro que escreveu durante mais de vinte anos: Clara dos Anjos. No entanto, jamais terminaria seu romance antimanicomial - Cemitério dos vivos.
E, afinal, o que aconteceu com Godfroy? Os periódicos que anunciaram a aprovação do seu pedido de habeas corpus informaram também que ele pretendia se mudar para Juiz de Fora, “a fim de livrar-se da perseguição do Juliano Moreira”, segundo O Paíz, e “em busca de um meio de vida”, na opinião da Gazeta de Notícias. A saída do Rio talvez significasse uma forma de escapar do círculo vicioso em que ele recaíra, deixando a detenção e a hospitalização para trás. Poderia significar também a oportunidade de criar uma nova imagem pessoal, longe do Rio de Janeiro.
Não sabemos dizer se ele teve sucesso nesse seu novo destino. A partir desse momento, Roberto deixa de aparecer nos jornais, nos documentos do HNA e nos das prisões da corte. O silêncio dos arquivos - que já haviam se habituado a ter em Godfroy um personagem habitual - nos leva a supor que ele conseguiu evitar novas internações. Não hospitalizado nem detido, Godfroy escapou ao olhar público - sendo que, talvez, tenha sido esse o seu maior desejo: a chance de conquistar a normalidade do anonimato.
Na triste sequência de fotos (Figuras 7 a 11), tiradas dos livros de observações clínicas do Pavilhão de Observação33, vemos como a vida era difícil para aqueles que, como Godfroy, caíam no circuito perverso da loucura. Em apenas uma década, ele, que parecia um jovem bastante confiante - um açougueiro, segundo uma das suas anamneses -, foi se transformando em uma pessoa precocemente envelhecida em função dos maus-tratos da vida e de instituições totais como o HNA. A tão temida “bastilha juliânica”.
PARA TERMINAR: MUITAS OUTRAS REVOLTAS
Por terem permanecido sob a alçada do HNA, conhecemos um pouco mais acerca do destino dos outros integrantes da Revolta. Parece que quase todos morreram no Hospital ou no Manicômio Judiciário. Esse era o final infeliz aguardado por boa parte dos pacientes, que, uma vez ingressados nessas instituições, dificilmente conseguiam se reintegrar à sociedade.
Mesmo assim, tudo indica que a repressão militar em 1920 não foi suficiente para apagar o espírito rebelde dos pacientes, que continuaram a ameaçar a ordem manicomial. Oito dos pacientes mandados à Casa de Detenção foram depois enviados à Colônia da Ilha do Governador, onde ficaram poucos dias. Em carta dirigida pelo diretor da Colônia ao diretor do HNA, pede-se a remoção “forçosa” de quatro desses pacientes com a seguinte justificativa:
como única medida de providência para evitar desordens, desacatos ou violências, cuja prática já foi por eles iniciada e pior do que isso - algum crime contra empregados ou contra outros alienados, e que seria profundamente lamentável, por serem estes últimos doentes calmos, pacíficos e inofensivos, em sua maioria trabalhadores, mas impotentes ou incapazes de se defenderem. Esses 4 alienados têm-se mostrado agitados, insubordinados e exigentes, desobedecendo e resistindo às ordens dos guardas, reclamando coisas impossíveis ou regalias especiais e tentado evadir-se e agredir companheiros e empregados34.
O diretor explica, ainda, que essas ações “ameaçadoras à boa ordem e à segurança de vida dos internados neste estabelecimento” não combinavam com o modelo agrícola das colônias, “onde não há recintos fechados, quartos fortes, nem meios de contenção para loucos perigosamente agitados e inadaptáveis ao regime de Colônias de onde devem ser eliminados como elementos indesejáveis, inconvenientes e nocivos aos outros em todos os sentidos, quer pelas ideias, quer pelo exemplo”.
Não havia nada de idílico na Ilha do Governador, onde se morria de malária, de desnutrição, de afogamento e do descaso do Estado (Schwarcz, 2017: 81-83). Mas, mesmo assim, o diretor da Colônia - local onde o pai de Lima trabalhara e o menino passara sua infância - tinha medo do descontrole diante de pacientes tão resistentes à ordem vigente nessas instituições, como também do possível “contágio” desse tipo de comportamento considerado tão perigoso, tanto em função das ideias como por causa do “mau exemplo” que essas pessoas representavam.
Como se pode notar, motivos para insurreições não faltavam - assim como quem as quisesse realizar. Um mês depois, no dia 7 de março, e segundo relata o Correio da Manhã (8 mar. 1920, p. 3), um desses pacientes recém-transferidos da Ilha para o HNA, começou a planejar outra insurreição, junto com dois dos amotinados da Revolta do 27 de janeiro. Circulando entre o HNA, a Colônia e a Casa de Detenção, essas pessoas com certeza conheciam os números de mortos nessas instituições, onde pagava-se o preço do pedágio da falta de liberdade e, no limite, de vida. Deviam sentir, também, que tinham pouco a perder.
E, se muitos deles não escaparam dessa triste sina, deixaram evidências de que não agiram como vítimas passivas, liderando uma série de insurreições e mostrando como a de 1920 foi a mais visível - talvez por ter sido protagonizada por um branco -, mas não a única. Olhando em retrospectiva, Godfroy foi talvez a melhor pessoa para dar início àquela primeira insurreição, e assim ampliar a mensagem embutida no movimento - um grito de ajuda contra o isolamento, o desamparo da pobreza e a “loucura”. Com sua origem de elite, seu sobrenome estrangeirado, sua cor branca e o convívio inusitado com pessoas de classe mais baixa, atraiu a atenção do público para a causa.
Já a eclosão da rebelião pode ser entendida como uma metáfora forte da opressão racial e de classe vivida pelos setores urbanos, nomeadamente negros, no período do pós-abolição. Por sua vez, Godfroy soube agenciar sua situação social excepcional para unir os companheiros de revolta, mas também escapar do modelo que prendia indiscriminadamente aqueles que fugiam à ordem e à nova regra republicana. Afinal, a República não era aquela que Lima Barreto e tantos outros imaginaram. Não por acaso, essas insurreições foram apagadas da narrativa oficial e orgulhosa da nação, restando como um caso recôndito e exótico, uma “revolta de loucos”, que, por definição, escapa à razão. Quantos e tantos equívocos foram feitos em nome dela - ou da falta dela.
REFERÊNCIAS
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Agradecemos a ajuda de numerosos arquivistas, memorialistas e coordenadores de várias instituições, entre eles: José Paulo de Morais Souza, do Museu Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro (MPERJ); Cátia Mathias e Celia Anselme, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB); e Daniele Ribeiro e Tatiane Lopes dos Santos, do Centro de Documentação e Memória do Instituto Municipal Nise da Silveira (IMNS/CDM). Agradecemos também à professora Cristiana Facchinetti, por nos facultar uma base de dados levantada por pesquisadores da Fiocruz, e os comentários generosos dos nossos dois pareceristas.
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Achamos por bem atualizar as citações de documentos de época para facilitar a leitura.
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O nome de Roberto Duque Estrada Godfroy varia bastante nas referências de jornais, como também de prontuários e outros documentos oficiais. Optamos chamá-lo ora por Roberto, ora Godfroy, ora por seu nome completo. Nos documentos de época, consta também “Godefroy”. Escrevemos o nome sem o “e” para respeitar a ortografia usada por Roberto na sua própria assinatura (Fig. 6).
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Todos os jornais citados neste artigo foram encontrados na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. As informações presentes nestes parágrafos foram retiradas dos seguintes artigos publicados nos dois dias seguintes à Revolta. Muitas vezes contraditórios, eles relatam, porém, aspectos comuns aqui apreendidos: “A revolta dos loucos!”, Gazeta de notícias, 28 jan. 1920, p. 1; “O Hospício Nacional Agitado por uma Rebelião”, O Imparcial, 28 jan. 1920, p. 3; “A Revolta dos Loucos”, A Noite, 28 jan. 1920, p. 1; “Uma revolta de doidos no Hospital Nacional de Alienados”, O Paíz, 28 jan. 1920, p. 5; “Uma revolta no hospício”, Correio da manhã, 28 jan. 1920, p. 3; “Um sério levante de loucos no Hospício Nacional de Alienados”, A Razão, 28 jan. 1920, p. 4; “A Perspectiva de Outra Revolta: O qué é o Hospício Nacional de Alienados”, A Razão, 29 jan. 1920, p. 4; “Revolta de Loucos no Hospital de Alienados”, Jornal do Brasil, 29 jan. 1920, p. 10. Lima descreve a vista que tinha dentro do hospital e afirma: “Olho a baía de Botafogo, cheio de tristeza... Tudo é triste” (2017: 76).
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No caso de Godfroy, conferimos os livros de observação clínica arquivados no IPUB/UFRJ.
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A tese de Henrique Roxo aparece mais detalhadamente citada no livro Lima Barreto: triste visionário, de Lilia Moritz Schwarcz (2017).
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A anamnese completa aparece na biografia de Lima Barreto escrita por Francisco de Assis Barbosa (2002) e na biografia de Schwarcz.
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Com o objetivo de lidar com esse tipo de registro produzido pela HNA, a anamnese, nos valemos do método indiciário de Carlo Ginzburg, desenvolvido no livro Mitos, emblemas e sinais (1989) e no artigo “O inquisidor como antropólogo” (1998). Ginzburg mostra como, a despeito das posições hierarquicamente desiguais que se estabeleciam entre (no seu caso) inquisidor e vítima, travavam-se debates dialógicos no sentido da tensão que se apresentava entre ambos, mas igualmente na compreensão de um universo cultural partilhado, por vezes silenciosamente, por vezes de maneira aberta e conflitiva.
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Vale destacar, porém, que o uso original da frase era favorável para Lisboa. Segundo o diplomata, nesse local se cuidava dos “indigentes”, que descansavam nos seus últimos dias e recebiam um sepultamento digno.
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Vide, por exemplo, o discurso de David Hartley, proferido no Parlamento inglês, sobre a Revolução Francesa: “A metropolis harrowed and subdued by the perpetual terrors and dungeons of a bastile, the horrid cemetery of the living; their only Habeas Corpus, either for life or death, being a lettre de cachét” (Hartley, 1794: 13). O presente ensaio nasceu, de fato, da descoberta da citada carta de Roberto, no processo de desenvolver outra pesquisa sobre as origens etimológicas da frase “cemitério dos vivos”. Aquela pesquisa gerou mais outro ensaio, ainda inédito, que visa reconstruir o uso histórico da frase (Blau Edelstein, 2022).
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Na crônica chamada “Da minha cela”, publicada na A.B.C. de 30 de novembro de 1918 - portanto, entre uma e outra internação -, Barreto lembra com um misto de ironia e sofrimento das suas “mensurações”: “Sofri também mensurações antropométricas e tive como resultado delas um pequeno desgosto, Sou braquicéfalo”. Tal termo se referia aos indivíduos que tinham o crânio alongado e de forma ovoide, e era com frequência associado aos tipos inferiores. Era claro que nesse texto a citação surgia como piada. Mas sabemos também que a graça da piada está no conjunto de alusões que ela apresenta ou esconde. Lima as negava, mas dialogava com as classificações que sofria. No entanto, igualmente as temia.
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12
Em 1911, em inquérito policial, Guilherme Jacques Deschamps Godfroy e Eudoxia Duque Estrada Figueiredo são citados como pai e mãe do nosso protagonista (Arquivo Nacional, BR RJANRIO T8.0.PCR.4064).
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A notícia vem acompanhada por fotos dos guardas que conseguiram capturar Roberto Duque Estrada Godfroy (Figura 3) e de alguns dos pacientes que se rebelaram (Figura 5). Também convém dizer que os nomes dos pacientes que aparecem nessa matéria aparecem também em outras matérias da época (a despeito de figurarem com algumas diferenças).
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14
Para uma análise mais detalhada dessas teorias, vide: O espetáculo das raças (Schwarcz, 2000).
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15
Com o fechamento da Seção Lombroso em 1921 e do HNA em 1944, os arquivos do antigo hospital ficaram espalhados pela cidade do Rio de Janeiro. Procuramos informações sobre esses pacientes em três arquivos, encontrando registros de 13 dos protagonistas. Primeiro, no MPERJ, consultamos o Livro de Observações, Filme 0001, em que encontramos os registros de vários dos pacientes levados à Casa de Detenção após a Revolta. Esse museu hoje ocupa o prédio administrativo do antigo Manicômio Penitenciário, fundado em 1921 por Heitor Carrilho para substituir a Seção Lombroso. Segundo, na biblioteca do IPUB, foram consultadas dezenas de livros clínicos do Pavilhão de Observação do HNA, onde os pacientes foram observados ao ingressarem na instituição. Por último, consultamos uma série de prontuários de pacientes localizados no IMNS/CDM, instituto no Engenho de Dentro que acolheu a infraestrutura e boa parte dos pacientes do antigo HNA após o seu fechamento.
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16
Informações sobre esses e outros pacientes foram encontradas nos arquivos do MPERJ. Livro de Observações, Filme 0001, p. 27-40, 49-62, 176-181, 267-271, 313-320 e 477-483.
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Esse caso está catalogado no Arquivo Nacional sob a classificação BR RJANRIO 0R.0.IQP.4465.
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“Processo criminal - Código Penal de 1890, Artigo 303”. 1911. Arquivo Nacional, BR RJANRIO T8.0.PCR.4064.
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19
CDM/IMNS. Fundo: Hospício Nacional de Alienados. Série: Internação. Subsérie: Dossiê de internações. DC61,45.
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20
“Paciente requer habeas corpus por acusação de capoeiragem”. 1919. Arquivo Nacional. BR RJANRIO BV.0.HCO.4958.
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21
“Paciente requer habeas corpus por acusação de insanidade mental”. 1920. Arquivo Nacional, BR RJANRIO.BVA.HCO.4995.
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22
MPERJ, Livro de Observações, Filme 0001, p. 176-181.
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23
Arquivo Nacional, BR RJANRIO BV.0.HCO.4958.
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24
Sobre a história da capoeira no Brasil, vide, entre outros: Antônio Liberac (2004); Maya Talmon-Chvaicer (2008); Letícia Vidor de Sousa Reis e Elisabeth Vidor (2013); Maurício Acuña (2015).
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O Código Penal de 1890 pode ser consultado em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm
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Até o momento foi possível identificar 12 cartas, publicadas nas seguintes datas: 16 de fevereiro, 9 de março, 16 de março, 20 de março, 30 de março, 1º de abril, 4 de abril, 12 de abril (3 cartas) e 19 de abril (2 cartas). Essas cartas foram todas datadas, o que indica terem sido escritas por Godfroy poucos dias antes da publicação. Ao que parece, as cartas não foram estudadas pela bibliografia especializada. Foi possível localizar apenas a dissertação de mestrado de Fernando Mello Machado (2019), que cita brevemente uma das cartas em meio a um estudo sobre Lima Barreto.
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“Não sou e nem nunca fui louco, tenho sido simplesmente uma vítima do álcool e da perseguição mesquinha de parentes, inclusive do sr. coronel Mattoso Maia, administrador do infernal Hospício, que tem o pomposo nome de Hospital de Alienados.” (A Razão, 9 mar. 1920, p. 1).
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“Não sou e nem nunca fui louco, tenho sido simplesmente uma vítima do álcool e da perseguição mesquinha de parentes, inclusive do sr. coronel Mattoso Maia, administrador do infernal Hospício, que tem o pomposo nome de Hospital de Alienados.” (A Razão, 9 mar. 1920, p. 1)
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“[…] essa normalíssima carta que ali fica para vergonha de toda essa ciência oficial e seus charlatânicos representantes” (A Razão, 16 mar. 1920, p. 2); “não pode ser louco quem assim pensa e escreve” (A Razão, 30 mar. 1920, p. 2).
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30
Segundo o artigo “O trágico fim de um louco”, tudo teria acontecido em setembro de 1919, quando Pedro Rossi morreu por causa de abusos sofridos no HNA (Última Hora, 3 out. 1919). Ocorrido poucos meses antes dos eventos de 27 de janeiro de 1920 e aparecendo na carta de Godfroy, não é implausível esse evento ser também um dos fatores que motivaram a Revolta.
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31
“Paciente requer habeas corpus por acusação de insanidade mental.” Arquivo Nacional, BR RJANRIO BV.0.HCO.4995. A assinatura reproduzida aqui vem do mesmo documento.
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32
Foram encontradas na Biblioteca do IPUB, nos Livros de Observações Clínicas, fotografias referentes aos seguintes períodos: 1º de abril a 14 de maio de 1908 (Figura 7); 7 de dezembro de 1909 a 22 de janeiro de 1910 (Figura 8); 29 de julho a 1º de setembro de 1913 (Figura 9); 1º de abril a 13 de maio de 1914 (Figura 10); e 16 de novembro a 30 de dezembro de 1919 (Figura 11).
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33
Carta encontrada entre os papéis guardados com o prontuário de Gastão de Araújo. IMNS/CDM. Série: Internação. Pasta: “Gastão de Araújo”. Notação: DC 67,43.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Nov 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
08 Fev 2023 -
Revisado
24 Maio 2023 -
Aceito
26 Jun 2023