Resumo
A representação brasileira da imigração japonesa passou por rápidas transformações nos primeiros anos após a Segunda Guerra Mundial. Neste artigo analisa-se, a partir do ponto de vista de três jornais brasileiros, o processo de transformação das imagens da imigração japonesa, de sua quase proibição em 1946 (durante a Constituinte) até as celebrações do Cinquentenário da Imigração Japonesa no Brasil em 1958. Os três jornais são: O Estado de S. Paulo (SP), o Jornal do Brasil (RJ) e o Jornal do Commercio (RJ). Em comum, todos partem de uma mesma posição de apoio à proibição em 1946 e chegam a uma mesma posição de homenagem e celebração em 1958. O caminho que liga o percurso, no entanto, é sensivelmente distinto. O objetivo do trabalho é identificar empiricamente as formas de representação do grupo minoritário japonês em veículos de imprensa de grande circulação no imediato pós-guerra. Além disso, busca-se delinear alguns dos fatores que inf luenciaram nas transformações dessas representações, verificando a importância da economia, da geopolítica, da ação de lideranças e associações locais, assim como das ideologias raciais e de nacionalidade que dominam o debate público em cada momento.
Palavras-chave Imigração japonesa; Análise documental; O Estado de S; Paulo; Jornal do Brasil; Jornal do Commercio
Abstract
Brazilian representations of the Japanese immigration underwent rapid transformations in the first years following World War II. Drawing from three Brazilian newspapers—O Estado de S. Paulo (SP), Jornal do Brasil (RJ) and Jornal do Commercio (RJ) —, this study analyzes how images of the Japanese immigration changed from its near ban in 1946 (during the Constituent Assembly) to the celebrations of its Fiftieth Anniversary in 1958. All three newspapers supported the ban in 1946, but ended up celebrating Japanese immigration in 1958. But their paths connecting 1946 to 1958 are appreciably different. Besides empirically identifying the representations of the Japanese minority group amidst mainstream press outlets in the immediate post-war period, the study also examines some of the factors behind such changes, verifying the importance of the economy, geopolitics, local leadership and association actions, as well as the racial and national ideologies that dominated the public debate at each moment.
Keywords Japanese immigration; Documentary analysis; O Estado de S; Paulo; Jornal do Brasil; Jornal do Commercio
A imigração japonesa no Brasil, iniciada em 1908, intensifica-se no fim da década de 1920 e início da década de 1930, época de volumoso subsídio estatal japonês destinado ao processo emigratório (Mita, 2018). Esse período de intensificação, porém, logo torna-se também uma fase conturbada para os imigrantes japoneses, que se veem em meio ao crescente nacionalismo e xenofobia no Brasil. Em 1934, a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) estabelece o sistema de cotas de entrada de estrangeiros, com o objetivo declarado de limitar a imigração japonesa. Nos anos seguintes viriam as políticas de nacionalização, com restrições a manifestações culturais dos japoneses residentes no Brasil. A Segunda Guerra Mundial os transformaria, então, em inimigos de guerra, com novos cerceamentos de direitos fundamentais, como o de locomoção e o de propriedade (Handa, 1987; Lesser, 2001; Takeuchi, 2008; Wakisaka et al., 1992).
O fim da guerra e do Estado Novo não significaria uma mudança imediata dessa situação. Na ANC de 1946, a Emenda nº 3.165 buscava declarar constitucionalmente “proibida a entrada no país de imigrantes japoneses de qualquer idade e de qualquer procedência” (Brasil, 1946: 60). Ela seria rejeitada por apenas um voto. No entanto, apesar desse início do pós-guerra ainda conturbado, aprofundado pelo conflito “vitorista” (que veremos mais adiante), a imagem brasileira sobre a imigração japonesa começaria a se transformar rapidamente nos anos seguintes.
O objetivo deste artigo é reconstruir parte dessa mudança a partir da perspectiva de três jornais brasileiros de grande circulação: O Estado de S. Paulo (ESP), O Jornal do Brasil (JB) e O Jornal do Commercio (JC) 1. A escolha desses veículos se deu não apenas pela sua influência nas décadas de 1940 e 1950, com público leitor na emergente classe média urbana e nas elites políticas e econômicas brasileiras, mas também por permitir contrastar as imagens negativas sobre a imigração japonesa em 1946 com as imagens mais positivas na década de 1950, um movimento comum aos três periódicos. A escolha permitiu ainda observar perspectivas e processos distintos na ascendente metrópole paulista (ESP), por um lado, e na então capital da República, Rio de Janeiro (JB e JC), por outro. Destaca-se ainda a posição política distinta dos veículos, com um antiniponismo mais radical do JC, que refletia também seu maior alinhamento ao nacionalismo varguista, e uma posição mais liberal do ESP — ocupando o JB uma posição pragmática intermediária 2.
Ao compreender as transformações das representações sobre a imigração japonesa na imprensa brasileira do imediato pós-guerra, busca-se, em parte, complementar os estudos sobre tais representações no período anterior à guerra (Takeuchi, 2016) e acrescentar aos estudos sobre a imprensa imigrante (Okamoto; Nagamura, 2015) o ponto de vista da grande imprensa nacional. Igualmente, o estudo permite localizar, no debate político e intelectual mais amplo sobre a imigração (Lesser, 2001; Takeuchi, 2008; Truzzi, 2012), as posições editoriais de três diferentes periódicos, que partem de um alinhamento ao pensamento eugênico ou a noções de “perigo amarelo” para uma visão mais desenvolvimentista ou alinhada a noções de “democracia racial”.
A análise concentra-se na posição editorial dos jornais entre 1946 (ano da emenda proibitiva) e 1958 (ano do cinquentenário da imigração japonesa no Brasil). Porém, para complementar e enriquecer o exame dos editoriais sobre a imigração japonesa (pouco numerosos em certos anos), algumas reportagens, especialmente no ESP, e algumas colunas de opinião 3 também compuseram o material empírico deste artigo. O tratamento das fontes se deu via análise de conteúdo com catalogação do material em planilhas e com atenção especial para as descrições e adjetivações da imigração japonesa e sua mudança ao longo dos anos. A literatura sobre raça, nação e etnia (Guimarães, 1999, 2002; Maio; Santos, 1996; Wimmer, 2014), assim como as pesquisas sobre a imigração japonesa (em especial Handa, 1987; Lesser, 2001; Maeyama, 1996; Motoyama; Okubaro, 2016; Wakisaka et al., 1992) forneceram as linhas de interpretação e de conteúdo a serem observadas nos jornais, com destaque para as concepções raciais e de nacionalidade, os interesses econômicos e geopolíticos, bem como os atores e entidades que ocuparam espaços nos jornais em cada momento.
Na primeira seção, demonstra-se a partir dos jornais a imagem contrastante da imigração japonesa em 1946 e em 1958 e o conteúdo dessas diferentes representações. Na sequência do artigo, analisa-se, então, nos três jornais, o processo que liga esses dois anos.
IMAGENS DE UMA IMIGRAÇÃO INDESEJADA E DE UMA IMIGRAÇÃO CELEBRADA
O JC é o mais enfático em seu antiniponismo, mantendo uma posição que, como ele mesmo ressalta, já vinha desde a década de 1930. Já na primeira aparição da imigração japonesa nos debates da ANC, em abril de 1946, o jornal lamenta, em sua seção editorial “Várias notícias”, que o governo tenha perdido durante a guerra “a oportunidade ideal de fechar de vez os nossos portos ao perigosíssimo elemento japonês” (Jornal do Commercio, 1946 /4/21: 6). São fundamentalmente duas as preocupações do jornal. Por um lado, essa imigração seria ruim para a formação do tipo humano brasileiro: “Permitir que fatores de degenerescência influam para o enfraquecimento da nossa raça é praticar um erro sem remédio” (Jornal do Commercio, 1946 /4/21: 6). Por outro lado, haveria riscos à segurança nacional: “Favorecer a infiltração em território nacional de populações que podem transformar-se num dado momento em hostes inimigas importa em um crime de lesa pátria” (Jornal do Commercio, 1946 /4/21: 6). Dirigindo-se à ANC, sintetiza: “Aos representantes do povo que estão estruturando o Brasil de amanhã cabe a obra precípua de proteger a raça e defender a segurança nacional. Confiamos no seu patriotismo” (Jornal do Commercio, 1946 /4/21: 6, grifo nosso).
O JC voltaria ainda ao tema na “Várias Notícias” de julho de 1946, para repercutir os atentados de japoneses “vitoristas” (crentes na vitória japonesa na guerra) contra os chamados “derrotistas” ou “esclarecidos” (conformados com a derrota). Esse grave conflito resultou, até janeiro de 1947, em quinze esclarecidos assassinados (Wakisaka et al., 1992: 294). O editorial do JC em julho se dava também pela saliência que esses episódios ganharam após a tentativa frustrada de Macedo Soares, interventor de São Paulo, de convencer os vitoristas do resultado da guerra. Essa tentativa de diálogo é interpretado pelo editorial como um passo necessário, junto à repressão, para dar fim a esses atentados. Mas, para o periódico, esses episódios de violência revelariam um “bárbaro misticismo” e um “fanatismo” próprio dos japoneses, que os tornariam persistentemente perigosos à segurança nacional e inassimiláveis à sociedade brasileira: “da sequência de crimes praticados pelos japoneses por motivos estranhos ao meio em que vivem, evidencia-se de modo positivo a impossibilidade da assimilação desses elementos” (Jornal do Commercio, 1946 /7/28: 7). O JC defende, então, dentro da mesma argumentação de segurança nacional e “garantia do aperfeiçoamento do homem brasileiro”, a “proibição absoluta da imigração japonesa” (Jornal do Commercio, 1946 /7/28: 7).
Quanto ao JB, na seção editorial “Tópicos e Artigos” de 24 de julho de 1946, apoia a opinião de João Neves da Fontoura, chanceler do Brasil, que disse em entrevista: “Tenho dos japoneses a opinião pior possível. Sou mesmo contrário à vinda deles ao nosso país. E lamento que tenhamos tão incômodos e indesejáveis hóspedes” (Jornal do Brasil, 1946 /7/24: 5). O editorial elogia aquelas “poucas, mas expressivas frases” e, referindo-se aos atentados vitoristas em São Paulo, embora considerasse a situação “deplorável”, reflete que teriam vindo em “hora excelente”, pois “Impossível advertência mais oportuna”. E conclui: “Os japoneses descobriram-se por inteiro. Falta que procedamos de forma consentânea” (Jornal do Brasil, 1946 /7/24: 5). Nota-se que, embora defenda a proibição da imigração japonesa, o editorial é mais sóbrio na adjetivação se comparado aos do JC. Mas uma aproximação ao seu concorrente carioca apareceria em uma coluna da “Tópicos e Artigos”, assinada por Maria Eugênia Celso. Baseada nas “revelações sensacionais da organização da Shindo Renmei” (organização vitorista), traz os mesmos argumentos “raciais” 4 e de segurança nacional do JC (que ela inclusive cita nominalmente). Nessa coluna, a adjetivação negativa e a racialização dos episódios de violência também se exacerbam:
Basta uma visão desses homúnculos amarelos, mesureiros e impenetráveis, de subordinação incondicional aos agentes de uma pátria estrangeira, para sentir o quanto será nocivo ao crescimento demográfico do nosso povo a incorporação desse indesejável elemento de degenerescência na fixação do tipo brasileiro (Jornal do Brasil, 1946 /4/30: 5).
O jornal paulista ESP, por fim, também trataria dos atentados em São Paulo em sua seção editorial “Notas e informações”, dando razão às tentativas de proibição da imigração japonesa: “Se tudo quanto há, no exterior, de fanático, de violento, de sanguinário, de antissocial e de anti-humano afluir livremente à nossa terra, seremos, dentro em pouco, uma Nação ingovernável […] paraíso dos indesejáveis” (O Estado de S. Paulo, 1946 /7/28: 3, grifo nosso). Segue então falando de “elementos perniciosos”; “gente que só se distingue pela perícia na arte de fazer o mal”; “gente que, sem os nossos sentimentos, [é] desdenhadora de nossas tradições”; “gente que constitui ameaça contínua à tranquilidade pública” (O Estado de S. Paulo, 1946 /7/28: 3). A dura adjetivação do ESP surge em reação ao que chama de “atividades terroristas de um grupo de japoneses estabelecidos em nosso Estado” (O Estado de S. Paulo, 1946 /7/28: 3). Em 8 de agosto de 1946, porém, na sua coluna “Momento político”, o jornal marca uma diferença em relação aos diários cariocas, particularmente ao JC, ao criticar a linguagem adotada pelo constituinte Miguel Couto Filho, quando disse em plenário que “os descendentes da raça japonesa jamais serão brasileiros”. Na visão do ESP, “para restringir ou combater a imigração japonesa não se deve ir ao extremo de criar uma teoria racista perigosa e reacionária como todo o racismo” (O Estado de S. Paulo, 1946 /8/8: 3). Essa reação mostra que a contrariedade do jornal paulista aos japoneses se concentraria na questão da segurança nacional, e não abrangeria tanto a “raça” dos nipônicos. Essa posição explica em parte porque, em editorial posterior, o ESP concorda com a posição final da ANC de rejeição à proibição da imigração japonesa, não por ser favorável a essa imigração, mas porque “não ficaria bem na Constituição de um país democrático, repulsa expressa a determinado povo” (O Estado de S. Paulo, 1946 /8/28: 3). Para o jornal e para a ANC, essa proibição poderia ser feita mais discretamente via leis ordinárias.
Em contraste a essas imagens da imigração japonesa em 1946 temos, apenas doze anos depois, em 1958, no ensejo do cinquentenário da imigração japonesa, uma situação muito distinta de japoneses e seus descendentes nos três periódicos examinados. Em reportagem de 13 de junho de 1958, o JC anuncia já na manchete uma visão contrastante em relação à sua antiga tese da inassimilabilidade: “Há meio século iniciada a integração nipo-brasileira”. No corpo da matéria, o diário carioca faz questão de sublinhar até mesmo a “integração racial”: “agora passados cinquenta anos, um alto sentido de integração social, econômica e até mesmo racial — o que antes fora julgado impossível — domina a comunidade oriunda das ilhas do Sol Nascente” (Jornal do Commercio, 1958 /6/13: 5). Além da integração, outro ponto sublinhado é sua contribuição econômica, principalmente na agricultura. Segundo o JC, “a colônia nipo-brasileira está participando na produção agrícola de São Paulo com cerca de 40% em algodão; 20% em café, arroz e milho; 60% em batata; 90% em tomate; 70% em hortaliças; 50% em banana e 70% em ovos” (Jornal do Commercio, 1958 /6/13: 5). Na indústria e comércio, destaca, além da iniciativa de imigrantes, a vinda de capitais japoneses: “vieram incorporar-se empresas como a Toyobo, a Kanebo e a Kurashiki, em fiação e tecelagem; a Usiminas, em siderurgia; a Howa, em fabricação de teares; a Ishikawajima, em estaleiros navais, etc.” (Jornal do Commercio, 1958 /6/13: 5).
A integração e a contribuição econômica da imigração japonesa também marcam o JB de 1958. Em comentário de cunho editorial sobre o cinquentenário, publicado em 20 de junho, sublinha como os japoneses e seus descendentes “Criaram no campo novas áreas de produção, puseram em prática novas formas de trabalho agrícola, da mesma sorte que, partindo de modestas oficinas, criaram indústrias” (Jornal do Brasil, 1958 /6/20: 15). Por meio da escolarização teriam conseguido também “ocupar lugar nas profissões liberais”. Diante desse cenário, conclui o jornal: “Integraram-se, totalmente, na vida brasileira. Os cinquenta anos de imigração japonesa podem marcar um capítulo na história social do Brasil” (Jornal do Brasil, 1958 /6/20: 15, grifo nosso). A visão do JB de uma imigração bem-sucedida é tão forte que o jornal a toma como um modelo de política imigratória: “O balanço desses cinquenta anos deve proporcionar importantes lições ao Instituto Nacional de Imigração e Colonização: ele oferece o resultado de uma ação coordenada, planificada, com assistência técnica” (Jornal do Brasil, 1958 /6/20: 15). Assim, para o JB, uma política de assistência, coordenação e planejamento explicaria essa situação mais positiva em 1958.
A contribuição econômica e a história de integração são também os motes do editorial do ESP em 18 de junho 1958, mas, em contraste com o JB, a explicação no diário paulista passaria em grande parte pelos próprios japoneses: “ao colono japonês se deve em grande parte, não só a diversidade de nossa agricultura, mas a recuperação de terras […] exaustas e infecundas” (O Estado de S. Paulo, 1958 /6/18: 3). O jornal considera esse colono “Agricultor por excelência, com uma intuição agronômica extraordinária” (O Estado de S. Paulo, 1958 /6/18: 3). Com relação à integração, destaca, por um lado, o que chama de “caráter dócil, ordeiro, laborioso e diligente da boa gente nipônica”, além de outras “virtudes cívicas que tão altamente concorrem para integrar o japonês” (O Estado de S. Paulo, 1958 /6/18: 3). Essas imagens da imigração japonesa já haviam aparecido em parte na década de 1930, quando se digladiavam posições contrárias e favoráveis à vinda de japoneses ao Brasil (Takeuchi, 2008), mas em 1958, no ensejo do cinquentenário, elas se tornaram representações mais frequentes e amplamente difundidas.
Por outro lado, a integração dos japoneses se explicaria também pelo que o ESP chama de “cordialidade” do brasileiro e ausência de “choques raciais” no Brasil, “país que é por formação e destino cadinho de tantas raças”. E pontua: “Que algo temos feito por merecer essa amizade [dos japoneses], provam-no a cordialidade, a lhaneza, o espírito completamente aberto que sempre em nós acharam os japoneses que nos procuram” (O Estado de S. Paulo, 1958 /6/18: 3). O editorial, assim, em sua explicação do processo de integração, traz além de imagens excepcionalistas dos japoneses (ordeiros e laboriosos) também uma certa imagem excepcionalista do Brasil (cordial).
Nesse sentido, na década de 1950 a imigração japonesa começa a se afastar da ideia de raça inassimilável e perigosa à segurança nacional, e passa a ser vista não apenas como integrada socioeconomicamente, mas também como integrada a discursos sobre a “cordialidade” e a “ausência de preconceitos” no Brasil — discursos da “democracia racial”. A integração social e econômica, tomada como bem-sucedida, de um povo com tantas “peculiaridades étnicas e religiosas” parecia demonstrar essas caraterísticas do Brasil, em particular para o ESP. O que, no entanto, essa interpretação esconde — e nisso se mostra ideológica — é o passado recente, bem retratado em 1946, com a hostilidade brasileira aos nipônicos chocando-se com a ideia de “cordialidade”, e a desordem trazida pelos atentados vitoristas chocando-se com a ideia de “caráter dócil e ordeiro” do japonês. O esquecimento é, por isso, uma parte importante da nova representação da imigração japonesa, celebrada em 1958. Analisado cuidadosamente, nota-se que tanto o lado brasileiro como o lado da colônia japonesa tinham razões fortes para fomentar esse esquecimento, já que os seus respectivos passados eram hostis a essas novas representações. Uma afinidade eletiva parece, assim, unir ambos os lados em direção à narrativa ideológica da “democracia racial” — a ideia da ausência de preconceitos no Brasil.
Demonstrado as posturas contrastantes dos três jornais em 1946 e 1958, é necessário agora conhecer o processo de mudanças que liga os dois anos. Para além do esquecimento e da afirmação de uma ideologia de “democracia racial”, quais fatores concorreram para tal transformação em pouco mais de uma década?
O PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DA IMIGRAÇÃO JAPONESA NOS JORNAIS DO RIO DE JANEIRO
É como “golpe ardiloso” que o editorial do JC caracteriza a rejeição da emenda que tentava proibir a entrada de japoneses no Brasil (Jornal do Commercio, 1947 /8/23: 6). Em meio à discussão da nova lei de imigração em 1947, o editorial considera insuficiente e vago até mesmo o dispositivo proposto na Câmara que restringia “a seleção dos imigrantes às características mais convenientes da ascendência europeia da nossa população” (Jornal do Commercio, 1947 /8/23: 6). Assim conclama novamente o legislativo para restringir — agora nas leis ordinárias — a entrada japonesa no país: “Esperemos do seu patriotismo um gesto de reação que proteja o Brasil contra o renascente perigo japonês” (Jornal do Commercio, 1947 /8/23: 6). Essa postura do JC continuaria até pelo menos 11 de setembro de 1953, quando ainda publica o editorial “Reincidência num erro imperdoável: o restabelecimento da imigração nipônica” (Jornal do Commercio, 1953 /9/11: 3).
Após a assinatura do Tratado de São Francisco em 1951, consolidando o realinhamento nipônico à esfera de influência dos Estados Unidos, as relações diplomáticas Brasil-Japão são restabelecidas. O JC, embora não fosse contrária à volta ao Brasil de representações japonesas, opõe-se ao restabelecimento da imigração, dentro da mesma preocupação com a inassimilabilidade e a segurança nacional: “O colono japonês é inadaptável a nosso meio. Não se deixa assimilar. […] Faz questão de permanecer vinculado ao seu país de origem por toda uma série de laços que o transformam em elemento indesejável e perigoso” (Jornal do Commercio, 1950 /5/28: 7). Nos anos seguintes, a posição do jornal se mantém em outra tradicional seção editorial, a “Gazetilha”, posicionando-se agora contra a onda imigratória prevista para o Amazonas: “A ideia de levar ao extremo norte milhares de colonos japoneses é inaceitável e impatriótica” (Jornal do Commercio, 1952 /1/16: 3). Em outra “Gazetilha”, reforça a posição, mesmo diante de possíveis qualidades do japonês como bom agricultor: “Essa alegação pode ser verdadeira. Mas não o é menos a de que o colono japonês não possui a menor capacidade de adaptação ao nosso meio. Resiste a todos os esforços envidados para facilitar a sua assimilação” (Jornal do Commercio, 1952 /6/25: 2). Em 1953, diante da retomada efetiva da imigração japonesa, a posição do JC é de resignação diante do que considera um “erro imperdoável”: “o Sr. Presidente da República preferiu permanecer surdo às vozes que o concitavam a salvaguardar os superiores interesses da nacionalidade” (Jornal do Commercio, 1953 /9/11: 3).
A posição do JB nesse período já é bem distinta. As desvantagens da imigração japonesa, como os supostos problemas de assimilação, vão sendo sobrepostas, ainda que com certa vacilação, pelas possíveis vantagens econômicas. Se em 1951 posições contra a imigração japonesa ainda aparecem em colunas assinadas na seção “Tópicos e Artigos” 5, uma sequência de editoriais em 1952 assenta um alinhamento do JB ao esforço governamental de restabelecimento da imigração japonesa. Ainda em janeiro, traz depoimento de João Neves da Fontoura, chanceler do Brasil, o mesmo citado em editorial do JB de 1946, mas que agora “afirma que o governo considera necessária a importação de um determinado número de trabalhadores agrícolas japoneses” (Jornal do Brasil, 1952 /1/3: 5). Em junho, o jornal rebate dois argumentos contra a imigração japonesa: a tese do enquistamento e a do perigo japonês. Contra a primeira tese, relata um episódio de reencontro de imigrantes nipônicos após trinta anos vivendo separados no Brasil, o que mostraria “que os japoneses não estão acumulados em certas regiões […], ao contrário, muitos estão espalhados pelo vasto território brasileiro e sem qualquer comunhão com a própria colônia” (Jornal do Brasil, 1952 /6/4: 5). Contra a segunda tese, argumenta que se “Fôssemos um país de pequeno território ainda se podia justificar tal receio [à segurança nacional]. O Brasil, porém, é de imensa extensão territorial” (Jornal do Brasil, 1952 /6/25: 5). Neste último editorial, o JB ainda sublinha a importância da imigração japonesa para o desenvolvimento do país, “pois é cada vez maior o despovoamento das zonas rurais” (Jornal do Brasil, 1952 /6/25: 5). Posteriormente, em setembro, destaca que as mudanças do cenário internacional e dos próprios imigrantes explicariam por que o Brasil estaria “animando imigrações de vários países, inclusive de nacionalidade japonesa” (Jornal do Brasil, 1952 /9/16: 5). A essas mudanças se somaria a do próprio Brasil: “Em todo o caso, mudaram [os imigrantes] menos do que nós, humildes servos que somos da inconstância” (Jornal do Brasil, 1952 /9/16: 5). Esse trecho parece denotar que o JB talvez ainda questione se a mudança brasileira foi mesmo correta.
O editorial de 7 de maio de 1954 prova que ainda restavam desconfianças no JB. Nele o jornal advoga um “amplo estudo” sobre a consequência que “uma corrente maciça de imigração asiática poderia ter na nossa formação étnica” (Jornal do Brasil, 1954 /5/7: 5). Embora ressalte algumas vantagens dessa imigração para a Amazônia e até mesmo destaque “sua atitude respeitosa para com as leis do país hospedeiro”, teme que uma política indiscriminada coloque “à disposição da imigração amarela inteiros Estados da federação, com o perigo de ser-lhe transformada completamente sua fisionomia étnica” (Jornal do Brasil, 1954 /5/7: 5). Assim, embora vista cada vez mais como vantajosa à luz dos ganhos econômicos, a imigração japonesa, ainda no tardio ano de 1954, gerava desconfianças no JB, inclusive de natureza “racial” ou “étnica”.
Mas em meados da década de 1950 a balança pende de vez para o lado das vantagens econômicas. Apenas quatro dias após o editorial crítico, o JB começa a publicar na “Tópicos e Artigos” uma série de longas matérias do correspondente no Pará, Chermont de Britto, que vê o japonês como “elemento ideal” para a ocupação do “hinterland brasileiro”, enunciando a seu modo a narrativa do “excepcionalismo japonês”: “Povo inteligente, admiravelmente inteligente, com uma elevada média intelectual, sóbrio, disciplinado, constituirá o seu imigrante um poderoso instrumento de progresso no extremo norte” (Jornal do Brasil, 11/5/1954: 5).
É também com o olhar na Amazônia que a imigração japonesa reaparece nas páginas do JC. Em reportagem de 1º de janeiro de 1955, a Colônia Agrícola Nacional da Amazônia, com 300 mil hectares, teria sido beneficiada pela presença japonesa: “Desde 1942 vinha a colônia lutando para sobreviver, sem grandes resultados, no entanto. Aproveitando agora a imigração japonesa, que se adapta cada vez mais firmemente a essas terras, o quadro atual é bem diferente” (Jornal do Commercio, 1955 /1/1: 3). Além da adaptação econômica, a reportagem sugere ainda um processo de assimilação e convivência de brasileiros e japoneses: “Como em Matapi, colônia japonesa do Amapá, os meninos frequentam escolas mistas demonstrando bom aproveitamento” (Jornal do Commercio, 1955 /1/1: 3).
Em 1957, diante da participação crescente dos japoneses na indústria pesqueira do Brasil, o JC volta ao tema no editorial “Gazetilha”. Ponderando entre vantagens e desvantagens, não esconde suas desconfianças: “Não há dúvida de que a atividade pesqueira por isso mesmo que se realiza paralelamente ao litoral deve cercar-se de garantias que resguardem alguns aspectos de segurança” (Jornal do Commercio, 1957 /10/2: 4). Tal como o JB, porém, logo sublinha as vantagens econômicas: segundo o JC, os japoneses estariam “revolucionando a indústria da pesca, introduzindo métodos mais eficientes e econômicos e até descobrindo espécies novas de peixe” (Jornal do Commercio, 1957 /10/2: 4). Em uma fórmula que bem sintetiza a visão dos diários cariocas, conclui: “Sem dúvida há um risco na imigração japonesa. Sabemos bem as resistências incomuns dessa raça cujo convívio superficial é tão fácil, mas cuja alma tanto custa atingir. Nada, porém, faz-se sem risco” (Jornal do Commercio, 1957 /10/2: 4). Assim, as preocupações de segurança nacional (do litoral) e de “raça” persistem no tardio ano de 1957, muito próximo já do cinquentenário, mas em vista das vantagens econômicas assume-se o “risco” pragmaticamente.
Do ponto de vista dos jornais cariocas, portanto, a economia e o clima de desenvolvimento nacional pós-guerra influenciaram decisivamente a transição da imigração indesejada à imigração desejada (economicamente). Embora a reaproximação diplomática seja fundamental nas mudanças das imagens brasileiras sobre o Japão e a imigração japonesa, é sobretudo a diplomacia econômica que encontra espaço editorial nos jornais do Rio de Janeiro. Assim quando, em 1955, o ministro da agricultura do Japão, Ichiro Kono, visita o Brasil, o JB dedica parte de seu editorial para conclamar as autoridades brasileiras para que estendam ao ministro um convite “para conhecer o grande vale [do Rio Amazonas] e apreciar de perto o labor profícuo que desenvolvem no vale os colonos nipônicos. Dessa visita podem resultar grandes vantagens para o Brasil e para o Japão” (Jornal do Brasil, 1955 /8/27: 5). Há mesmo impaciência no editorial, que não esconde certo entusiasmo com a imigração japonesa: “Não é possível que percam a oportunidade de revelar a um membro proeminente da Dieta Japonesa as possibilidades imensas que a Amazônia oferece à imigração japonesa” (Jornal do Brasil, 1955 /8/27: 5).
Esse editorial do JB e a Gazetilha do JC em 1957 sintetizam bem como a imigração japonesa, a partir de meados da década de 1950, começa a ser vista ostensivamente como uma espécie de capital econômico. O imigrante japonês aparece agora com características excepcionais, como um ativo “ideal para valorizarmos a Amazônia” (Jornal do Brasil, 1955 /8/27: 5) ou para “revolucionar a indústria da pesca” (Jornal do Commercio, 1957 /10/2: 4). É dentro dessa lógica básica que, apesar das desconfianças restantes, a imigração japonesa vai se tornando tolerada e até mesmo desejada nos jornais cariocas.
Um percurso sensivelmente distinto será percorrido pelo ESP. Além do fator econômico, terá muita importância também a proximidade do jornal paulista ao cotidiano da assim chamada colônia japonesa, o que revelará um agrupamento multifacetado em busca ativa por uma nova imagem no pós-guerra.
as transformações da imigração japonesa no estado de s. paulo
A proximidade do ESP ao dia a dia da colônia japonesa já se mostra importante em 21 de agosto de 1946, uma semana antes da votação da emenda proibitiva na ANC, quando, na coluna “Colaboração dos leitores”, publica-se um artigo anônimo de “um brasileiro que, a despeito de ser filho de japoneses, ama e admira este grande país” (O Estado de S. Paulo, 1946, p. 6/8/21: 5). O anonimato se deve aos riscos de vida que japoneses e seus descendentes 6 corriam ao se exporem publicamente contra os “vitoristas” e contra a ideia de vitória japonesa na guerra. O autor do texto começa rejeitando a ideia de ser japonês e afirma-se como brasileiro nato, reservista do exército brasileiro e graduado pela Universidade de São Paulo. Considera “preconceito injusto” tratar ele e outros filhos de imigrantes não como brasileiros, mas como japoneses. Reage, assim, às teses da inassimilabilidade. Na sequência, sem desprezar suas origens, exalta a contribuição econômica dos japoneses e da imigração japonesa: “A inestimável contribuição do japonês na economia de S. Paulo não pode ser negada nem pelos xenófobos” (O Estado de S. Paulo, 1946, p. 6/8/21: 5). Anuncia, assim, já em 1946, os argumentos da integração e da contribuição econômica que apareceriam nos editoriais da década de 1950.
Após um longo balanço sobre a ação da Shindo Renmei, com análises de sua mentalidade, de suas técnicas de manipulação e de interesses que teriam produzido a desinformação sobre o fim da guerra, o autor sugere medidas a serem tomadas. É contra a expulsão, pelo risco de isso estimular os atentados entre aqueles desejosos de voltar ao Japão. Indica duas medidas mais efetivas, discutidas com outros “japoneses esclarecidos e filhos de japoneses”: 1) retomar e intensificar a correspondência Brasil-Japão, para que recebam notícias do Japão de pessoas de sua confiança; e 2) encarcerar os membros da Shindo Renmei em localidades próximas à colônia japonesa. Na conclusão, dirige-se aos vitoristas “de boa fé” e alerta-os de que seus atos estariam desonrando as tradições japonesas e “prejudicando o bom nome dos japoneses, auxiliando a campanha dos nipófobos e fazendo regredir ao ponto de partida o trabalho que há decênios vimos fazendo para desfazer preconceitos injustos e humilhantes para a raça” (O Estado de S. Paulo, 1946, p. 6/8/21: 5). O ESP, portanto, já em 1946 apresentava a seus leitores uma perspectiva alternativa dos atentados vitoristas, elaborada por um filho de japoneses com forte afirmação de brasilidade e muito destoante dos estereótipos da inassimilabilidade e do perigo amarelo.
Essa outra faceta da presença japonesa no Brasil continua a aparecer de outras maneiras ainda no final daquela década. Em 1949, por exemplo, o ESP revela a proximidade de setores da assim chamada colônia japonesa ao catolicismo brasileiro em reportagens sobre a comemoração dupla dos 400 anos da chegada dos primeiros jesuítas no Brasil e no Japão. O organizador do evento, Yukishigue Tamura, primeiro vereador nipodescendente da capital paulista — eleito em 1947 —, “ressaltou o significado das cerimônias, agradeceu a cooperação recebida e pôs em evidência o sentido de ampla confraternização nipo-brasileira que as caracterizou” (O Estado de S. Paulo, 1949, p. 9/8/16: 9, grifo nosso). Assim, não apenas se festeja a coincidência da chegada dos jesuítas nos dois países, mas também se simboliza a ligação de dois povos por meio do catolicismo. Outros festejos católicos envolvendo imigrantes japoneses e seus descendentes são noticiados na seção “Movimento religioso” do jornal, como as homenagens ao missionário católico japonês Domingos Nakamura (O Estado de S. Paulo, 1950, p. 0/3/16: 6) e ao cientista Paulo Nagai, católico, mártir da bomba atômica e professor de radiologia da Universidade de Nagasaki (O Estado de S. Paulo, 1951, p. 1/5/12: 4).
Mas o catolicismo da colônia japonesa ganha grande saliência nos preparativos do IV Centenário de São Paulo. No dia 25 de janeiro de 1953, quando a cidade fazia 399 anos, é publicado no ESP um icônico anúncio de página inteira da assim chamada “Comissão Nipo-Brasileira do IV Centenário de São Paulo e dos Cinquenta Anos da Imigração Japonesa”. Presidida pelo agora deputado estadual Yukishigue Tamura e com o apoio do Banco Imobiliário Brasileiro, a comissão, além de homenagear a cidade, divulgava algumas iniciativas festivas com grande simbologia (O Estado de S. Paulo, 1953, p. 3/1/25: 6). No centro da imagem, lado a lado, aparecem o Padre José de Anchieta, com a mão sobre a cabeça de um menino indígena, e São Francisco Xavier, com a mão sobre a cabeça de um menino japonês. A ideia de 1949 de conectar Japão e Brasil por meio dos jesuítas ganha agora novos contornos. Recorrendo a crianças, sugerindo inocência e estado de natureza, o japonês é igualado ao indígena, uma parte fundamental da formação do Brasil. O esforço jesuítico aparece como assimilação, conectando povos em torno de uma mesma cultura, fé e universalismo cristão.
Ladeando os dois jesuítas, dois arcos trazem um longo preâmbulo que assentam os muitos significados daquele anúncio. Sublinha os laços Brasil-Japão e a importância do catolicismo para esse elo. Após outras considerações, como a necessidade de trabalhos sociais diversos no Brasil, anuncia, “como símbolo da amizade nipo-brasileira”, as construções de “um grupo escolar em todas as capitais dos Estados e Territórios do Brasil”, de uma igreja dedicada a S. Francisco Xavier, de um posto de saúde anexos ao grupo escolar, e de um monumento a Anchieta, a Xavier e às crianças do Brasil e do Japão “no pátio de cada grupo escolar” (O Estado de S. Paulo, 1953, p. 3/1/25: 6). No mesmo dia da publicação, o ESP traz em nota detalhes do ambicioso plano. O presidente do Banco Imobiliário Brasileiro teria anunciado a colaboração de 1 milhão de cruzeiros para a obra da igreja. A nota revela ainda o protagonismo no projeto do “deputado Tamura, apoiado pela coletividade japonesa e seus descendentes brasileiros” (O Estado de S. Paulo, 1953, p. 3/1/25: 17).
Por meio do próprio jornal e da literatura é possível conhecer um pouco da repercussão desse plano. Já em dezembro de 1952, pouco antes da publicação do anúncio, circulava a notícia de que “elementos da colônia japonesa decidiram ofertar à Cidade, em comemoração ao IV Centenário de fundação, uma igreja, que será consagrada a S. Francisco Xavier, apóstolo do Japão” (O Estado de S. Paulo, 1952, p. 2/12/23: 10). Mas essa mesma coluna ressalta que a notícia não teria agradado muitos japoneses que são, na maioria, budistas e xintoístas, e preferiam ofertar um edifício à Universidade de São Paulo.
Segundo documenta Tomoo Handa (1987), Tamura já teria apresentado esse projeto na primeira reunião da colônia japonesa para a participação no IV Centenário de São Paulo ainda em 23 de junho de 1952. Em outra reunião em agosto, acompanhado do bispo d. Paulo, teria sugerido a escolha deste como presidente da comissão nipo-brasileira, o que não aconteceu. Em oposição à sugestão do parlamentar, o cônsul japonês em São Paulo, que vinha articulando as reuniões (o que revela aqui a importância do restabelecimento diplomático), afirma que “a participação da colônia japonesa nas festividades deverá ser entendida como um evento unicamente comemorativo, não devendo, portanto, revestir de nenhuma conotação político-religiosa” (Handa, 1987: 755).
Diante das resistências, Tamura dá publicidade a seu plano. Em setembro, o governador de São Paulo, Lucas Garcez, envia carta de agradecimento à comissão japonesa pelo projeto da escola e da igreja, surpreendendo os líderes, que não haviam tomado essa decisão. No ESP desse período é possível flagrar Tamura repercutindo na Assembleia Legislativa as mensagens de agradecimento a autoridades eclesiásticas de São Paulo e do Rio de Janeiro pelas obras religiosas e assistenciais prometidas pela colônia japonesa no ensejo do IV Centenário (O Estado de S. Paulo, 1952, p. 2/09/16: 2) (O Estado de S. Paulo, 1952, p. 2/10/7: 5). Para se reorganizar, em 8 de dezembro de 1952, em Assembleia Geral Inaugural é criada sob a presidência de Kiyoshi Yamamoto a Comissão Colaboradora da Colônia Japonesa Pró-IV Centenário. O icônico anúncio de Tamura analisado acima surge pouco depois, sendo a sua autora a Comissão Nipo-brasileira, uma comissão alternativa criada por ele. Segundo Handa, ao longo de 1953 o deputado suspenderia seu plano “e, mais tarde, as duas correntes se uniriam numa só, em prol de um objetivo comum” (Handa, 1987: 755). Esse objetivo se materializaria na construção do Pavilhão Japonês, marcando nesse aspecto uma vitória do grupo de Yamamoto.
Kiyoshi Yamamoto vinha de uma trajetória diferente da maioria dos imigrantes. Agrônomo formado pela Universidade de Tóquio, chegou ao Brasil em 1926 “a convite de uns patrícios ricos que já estavam aqui”, segundo reportagem do JB (1959/5/3: 10). Em 1940, torna-se administrador-geral das fazendas de café Tozan (ligado ao grupo Mitsubishi), que seriam, porém, logo confiscadas durante a guerra. No pós-guerra é um dos líderes jurados de morte pelos vitoristas (Taniguti, 2019: 99), mas é também figura importante na superação desse conflito e na recuperação dos bens de japoneses confiscados pelo governo. É dentro desse último tema que flagramos, em 1950, a primeira aparição de Yamamoto no ESP, segundo a pesquisa no acervo digital do ESP para o período de 1946 a 1958. No editorial “Notas e informações”, o jornal informa que “Estiveram ontem em nossa redação os srs. Kiyoshi Yamamoto, Kunito Miyasaka, Takeo Goto, e Teiiti Suzuki, que, em nome da colônia japonesa em São Paulo, vieram agradecer a esta folha seus esforços em favor da liberação dos bens dos súditos do ‘Eixo’” (O Estado de S. Paulo, 1950, p. 0/11/17: 3).
No dia seguinte, uma longa coluna detalha a questão do confisco de bens, revelando já no ano de 1950, em um texto editorial, o alinhamento do jornal paulista a uma visão mais favorável à colônia japonesa e, ao mesmo tempo, crítica da xenofobia. Para o jornal, o confisco de bens foi essencialmente uma “legislação discriminatória”. “No fundo, os argumentos contra ‘fascistas’, ‘nazistas’, etc. apenas ocultavam sentimentos gerais contra estrangeiros” (O Estado de S. Paulo, 1950, p. 0/11/18: 4). Mencionando a visita no dia anterior, demonstra comiseração pela situação dos japoneses: “Julgamos significativo o fato de a redação desta folha ter sido visitada por personalidades japonesas, porque por várias razões os membros dessa colônia se tornaram o alvo predileto de ressentimentos e discriminações” (O Estado de S. Paulo, 1950, p. 0/11/18: 4). Na sequência ainda cobra o lado brasileiro no processo assimilativo da população nipônica, reagindo às teses da inassimilabilidade: “Seja-nos permitido lembrar que somos [nós, brasileiros,] os primeiros a opor dificuldades à assimilação dos japoneses” (O Estado de S. Paulo, 1950, p. 0/11/18: 4). O episódio da recuperação de bens confiscados não só evidencia precocemente a mudança de posição editorial do jornal em relação a quatro anos antes — quando, no lugar da comiseração, havia desconfianças e medo dos japoneses no Brasil —, mas também a importância da visita das quatro personalidades japonesas à redação do jornal.
O nome de Yamamoto volta a aparecer em 1952, quando o ESP noticia a sua eleição para presidente da comissão executiva da colônia japonesa pró-IV Centenário, no dia 8 de dezembro. Com a presença de 120 representantes, é curiosa a ausência do nome de Tamura nos cargos da comissão, provavelmente em retaliação à sua atuação independente, divulgando o plano da escola e da igreja. É nessa reunião que surgem as primeiras notícias sobre a construção do “Pavilhão Japonês no recinto da Exposição-Feira Internacional”, além da “construção de outro pavilhão destinado à exposição de objetos de belas artes japonesas e a construção de jardim estilo japonês em redor dos pavilhões” (O Estado de S. Paulo, 1952, p. 2/12/19: 13). As conclusões dessa reunião chegaram à Comissão do IV Centenário, na pessoa de Francisco Matarazzo Sobrinho, por meio do cônsul japonês em São Paulo, Shiro Ishiguro, o que revela não só a participação ativa do governo japonês no processo, mas também a preferência da colônia e de seus líderes pela representação oficial japonesa — ao menos naquele início.
O Pavilhão Japonês volta a aparecer com força no ESP em 1954. Com a manchete “Um ‘palácio de chá’ japonês será montado no Ibirapuera”, o plano é impactante: a colônia já teria arrecadado 8 milhões de cruzeiros para participar dos festejos. “Uma das iniciativas tomadas a respeito foi a de encomendar no Japão uma reprodução do ‘Katsura Rikyu’, um dos palácios do imperador, especialmente reservado para a cerimônia do chá” (O Estado de S. Paulo, 1954, p. 4/3/31: 10). As peças já estariam chegando ao porto de Santos em alguns dias. “No Ibirapuera, ocupará o edifício um espaço de 500 m²; em sua montagem trabalharão operários especializados, que acompanham o material em viagem. Engenheiros japoneses radicados em São Paulo dirigirão os trabalhos” (O Estado de S. Paulo, 1954, p. 4/3/31: 10). O objetivo do palácio era ser um mostruário do Japão na Feira Internacional. “Nele, portanto, serão expostos os mais variados produtos da indústria e do artesanato japoneses e mostras do progresso do país em vários campos” (O Estado de S. Paulo, 1954, p. 4/3/31: 10). A assinatura do contrato para construção do pavilhão se daria alguns dias depois, em 3 de abril (O Estado de S. Paulo, 1954, p. 4/4/4: 10). O processo de construção, com o auxílio de voluntários da colônia japonesa aos domingos, é reportado pelo ESP em junho de 1954, com previsão de finalização no mês seguinte (O Estado de S. Paulo, 1946, p. 4/6/1: 14).
Na inauguração do Parque Ibirapuera, em 21 de agosto de 1954, uma série de novidades urbanísticas causa grande impressão no ESP, particularmente a grande marquise. Mas o jornal não deixa de destacar também a construção oferecida pela colônia japonesa:
Outra construção interessante do Parque Ibirapuera é o Pavilhão Japonês, uma reprodução do Palácio Katura [sic], cuja construção data de quatrocentos anos. Os japoneses de São Paulo, através da Comissão Colaboradora da Colônia Japonesa Pró-Festejos do IV Centenário, doaram esse pavilhão aos paulistas, como um símbolo da amizade nipo-brasileira. Sua construção foi feita inteiramente com material vindo do Japão e por operários japoneses. No Palácio Katura, os japoneses apresentarão seus produtos, objetos de arte, livros e uma coleção de preciosos materiais que trarão ao Ibirapuera um pedaço do Império do Sol Nascente. (O Estado de S. Paulo, 1954, p. 4/8/21: 9)
Como revela a citação, um dos efeitos estéticos possíveis da obra seria transportar o Japão para o parque e os visitantes do parque ao Japão. Esse deslocamento parece materializar o sentido da participação da colônia japonesa naqueles festejos: afirmar as qualidades e a beleza da cultura japonesa, sem grandes preocupações com um amalgamar-se a elementos brasileiros. A comissão da colônia japonesa não esconde dos meios de comunicações, como o ESP, que “até a areia e as pedras que cercam a construção vieram do Japão” (O Estado de S. Paulo, 1954, p. 4/6/19: 14), aprofundando esse sentido de deslocamento para uma experiência “autêntica” de Japão. Tudo isso parece ser consciente se temos em vista a proposta alternativa de Tamura, que buscava justamente amalgamar japoneses e brasileiros, combinando a história de jesuitismo dos dois países.
A julgar pelo fascínio que esse “pedaço do Império do Sol Nascente” gerou no ESP e na comissão geral do IV Centenário, o objetivo da obra parece ter sido alcançado. Já em abril, pouco depois da assinatura do contrato de obras do Pavilhão Japonês, a comissão geral anuncia o oferecimento de “uma espiral de prata montada em madeira” a Kiyoshi Yamamoto, “como demonstração da gratidão pelo trabalho que essa colônia vem desenvolvendo para o maior brilho das comemorações que assinalam os quatrocentos anos de fundação da Capital paulista” (O Estado de S. Paulo, 1954, p. 4/4/29: 10). No mês seguinte, “em retribuição à cooperação recebida da colônia japonesa, a Comissão do IV Centenário ofereceu […] um coquetel aos diretores da Comissão Japonesa, estando presente o cônsul-geral do Japão em São Paulo” (O Estado de S. Paulo, 1954, p. 4/6/9: 12). Yamamoto enviaria, então, “ofício agradecendo as homenagens prestadas pela autarquia [isto é, a comissão geral] aos japoneses radicados em São Paulo” (O Estado de S. Paulo, 1954, p. 4/6/9: 12). Para o ESP, os japoneses “muito têm cooperado para abrilhantar os festejos programados”, em particular por meio do Palácio Katsura, “magnífica reprodução de um castelo japonês do século XIV, onde se localizará a representação do Japão [nos festejos]” (O Estado de S. Paulo, 1946, p. 4/6/9: 12).
Já no início de 1955, passado o ano comemorativo, a comissão geral ainda organizou uma festa no novo Pavilhão Japonês com o oferecimento de diplomas a pioneiros da imigração japonesa e a nonagenários. Dentre os convidados constavam as mais importantes autoridades locais (uma novidade até então): “o governador do Estado, o prefeito municipal, o presidente do Tribunal de Justiça, presidentes da Assembleia Legislativa e da Câmara Municipal, Secretários de Estado e autoridades federais em São Paulo” (O Estado de S. Paulo, 1955, p. 5/1/6: 10). Ainda naquele ano, após a exposição de “uma coleção de 50 bonecos procedentes do Japão, das regiões de Tóquio e Kioto” (O Estado de S. Paulo, 1955, p. 5/4/6: 9), e outra de arte japonesa com “fotografias, ‘maquetes’ de templos, estátuas de Buda, imagens e quadros feitos por artistas nipônicos” (O Estado de S. Paulo, 1955, p. 5/4/16: 6), haveria enfim a entrega formal do palácio à municipalidade de São Paulo. Em cerimônia no próprio Pavilhão Japonês, um representante da comissão geral leu a mensagem do presidente da autarquia, Guilherme de Almeida, deixando uma descrição oficial da imagem e reputação adquirida pela colônia japonesa:
fazendo-se oficial porta-voz de tão sincera mensagem de gratidão, a Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo quer, com este documento, perpetuá-la na lembrança dos japoneses que, nesta terra radicados, tornaram-se seus amigos, no sentido maior, e seus colaboradores, na acepção melhor (O Estado de S. Paulo, 1955, p. 5/10/19: 11).
Vê-se que o IV Centenário é um marco para o processo aqui analisado, ao menos na perspectiva paulista.
À luz dessa atuação muito particular da colônia japonesa, parece imprecisa a interpretação de Barbara Weinstein (2015). Para ela, no IV Centenário “outros grupos ostensivamente ‘não-brancos’, como os colonos japoneses, foram embranquecidos com sua inclusão na onda de imigração que consolidou a afirmação paulista de sua primazia na corrida brasileira para a modernidade” (Weinstein, 2015: 294, grifo nosso). O evento e o Pavilhão Japonês parecem estabelecer, na verdade, com ampla publicidade, uma imagem específica da colônia japonesa, mantendo uma fronteira entre niponicidade e brasilidade, diferente, pois, tanto de uma tendência de embraquecimento dos japoneses quanto de uma busca assimilacionista (como proposta por Tamura). É, porém, interessante que essa postura de preservação cultural não foi associada a um nacionalismo japonês, como poderiam acusar os teóricos da inassimilabilidade, mas foi recebida com entusiasmo pelo ESP e pela comissão geral — composta por membros da elite cultural e econômica paulistana, como o poeta Guilherme de Almeida e o industrial Matarazzo Sobrinho.
Esse resultado não parece se dever ao IV Centenário em si, embora o festejo tenha ajudado a consolidá-lo. Vimos como, já em 1950, o ESP denuncia as discriminações contra os japoneses no episódio do confisco de bens, apresentando uma visão mais favorável à presença japonesa no país. Além disso, o convite para a participação nos festejos de 1954 partiu da comissão geral — criada por lei municipal em 29 de dezembro de 1951 —, de modo que ela própria já possuía no início da década de 1950 um plano festivo para a cidade que envolvia as assim chamadas “colônias” estrangeiras, inclusive a japonesa. A isso tudo se soma a vinda, em 7 de dezembro de 1951, do primeiro cônsul-geral do Japão em São Paulo no pós-guerra (Ito, 1986: 149), que não só trabalharia na aproximação política e comercial Brasil-Japão, mas também atuaria ativamente no IV Centenário, organizando a primeira reunião em 1952, ainda em meio às cicatrizes do conflito vitorista (Handa, 1987).
Vale salientar também que a forma organizacional da colônia japonesa durante os festejos de 1954 se reproduziria de diferentes modos nos anos seguintes. Já em 1955, a reunião de dissolução da Comissão da Colônia Japonesa Pró-IV Centenário é também a reunião de constituição de duas comissões organizadoras: a do Cinquentenário da Imigração Japonesa e a da Sociedade Paulista de Cultura Japonesa, ambas presididas por Kiyoshi Yamamoto. É, aliás, quando presidente da comissão do cinquentenário, que ele receberia a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, no grau de Oficial, por “assinalados serviços prestados ao Brasil” (Jornal do Brasil, 1958 /4/19: 10). Essa honraria parece coroar o estilo imprimido por Yamamoto à frente das entidades da colônia japonesa.
Outra influência institucional de 1954 é o surgimento da Aliança Cultural Brasil-Japão em 1956, voltada principalmente ao intercâmbio cultural entre os dois países e tendo como primeiro presidente Guilherme de Almeida. Essa entidade organizaria o desfile de carros alegóricos, realizado no dia 18 de junho de 1958 no Vale do Anhangabaú em comemoração ao cinquentenário da imigração japonesa, segundo notícia do ESP (1958/6/18: 15). Nesse mesmo dia seria lançada a pedra fundamental da sede da Sociedade Paulista de Cultura Japonesa com a presença do príncipe e da princesa Mikasa, representantes da família imperial japonesa (O Estado de S. Paulo, 1958, p. 8/6/13: 10). Duas das mais importantes entidades representativas da colônia japonesa no pós-guerra tiveram, portanto, a sua base de formação no IV Centenário.
CONCLUSÃO
O presente estudo revelou como três jornais de grande circulação retrataram a imigração japonesa de formas muito diversas em um período de pouco mais de dez anos, o que refletia mudanças mais gerais nas representações sobre essa imigração e na situação dos japoneses no Brasil e no mundo pós-guerra. Os jornais cariocas, com pequenas diferenças (como o maior pragmatismo do JB), seguiram um caminho semelhante: ao ponderar vantagens e desvantagens da imigração japonesa, acabaram por dar cada vez mais peso às vantagens econômicas, até que essa imigração passou a ser desejada e o imigrante japonês a ser visto como um ativo econômico valioso, descrito em traços excepcionais. No ESP, a economia também teve importância, mas as mudanças nesse diário já aparecem no final da década de 1940 e, em editorial, no ano de 1950, quando o jornal se posiciona contra as discriminações aos japoneses.
O exame dos periódicos permitiu vislumbrar, no calor dos diferentes contextos, alguns dos fatores que contribuíram para esse processo de mudanças. Foi o caso do restabelecimento diplomático, dos resultados econômicos da assim chamada colônia japonesa — tidos muitas vezes como bem-sucedidos —, da atuação de lideranças nipodescendentes de diferentes tendências, das mudanças ideológicas com afastamento das teorias raciológicas e com maior preponderância da noção de “democracia racial” no Brasil pós-guerra, além de um certo cosmopolitismo “multicultural” em São Paulo na década de 1950. Iria além dos objetivos deste artigo compreender, em maiores detalhes, cada um desses fatores, além de outros que não ficaram tão explícitos nos periódicos — como a emergência de uma elite econômica, política e intelectual de filhos de imigrantes japoneses (nisseis) ou da atuação da imprensa e das associações da colônia japonesa. Para tanto, seria necessário um mergulho sobre materiais diplomáticos, documentos da colônia japonesa, bem como dados sobre a inserção econômica dos japoneses no Brasil e análises do pensamento brasileiro pós-guerra — neste último ponto, não só relativamente à “democracia racial”, mas com destaque também às teorias de assimilação que legaram novas interpretações sobre a imigração japonesa no Brasil na década de 1950. Esses aprofundamentos poderão ser desenvolvidos em trabalhos futuros.
Além disso, cabe destacar que o processo de transformação das imagens da imigração japonesa foi retratado de um ponto de vista bem específico (dos jornais de grande circulação) e apenas em seus primórdios. Alguns anos depois teria grande impacto, por exemplo, o chamado milagre econômico no Japão, que fortaleceria muitas das imagens excepcionalistas sobre o país e os japoneses (Oda, 2011), e que, dentre outros efeitos, levaria, a partir da década de 1980, ao movimento de migração inverso, do Brasil para o Japão — com toda uma reinterpretação da niponicidade entre imigrantes japoneses e seus descendentes no Brasil (Tsuda, 2003). O foco deste artigo foi, porém, o imediato pós-guerra, momento em que se avoluma e se concentra uma série de transformações na colônia japonesa, no Brasil, no Japão e no mundo. O objetivo foi documentar nesse período as representações mutantes sobre a imigração japonesa dirigidas à formação da opinião pública brasileira, com o exame do conteúdo dessas representações e a sua dinâmica de mudança em esquecimentos e acomodações, construções e reconstruções.
Como sugerido algumas seções acima, há uma espécie de afinidade eletiva entre, por um lado, o esquecimento pelo lado brasileiro de suas discriminações no passado, visando formar uma imagem do país como “democracia racial”; e, por outro, o esquecimento pelo lado japonês do conflito vitorista e das hostilidades sofridas, visando em um primeiro plano a inserção dos imigrantes japoneses e seus descendentes na sociedade brasileira, com o fomento de um ideário nacional menos hostil às suas peculiaridades étnicas e culturais. Mas esse esquecimento buscava também, em um outro plano, a reinserção diplomática do Japão no Brasil pós-guerra. Ao chegar ao país em 1955, o novo embaixador japonês, Yoshiro Ando, ressalta, por exemplo, que “o povo da minha pátria tem recebido [dos brasileiros], no passado e no presente, tantas provas de amizade e carinho” (Jornal do Commercio, 1955 /4/1: 5, grifo nosso), de modo que
a acolhida dispensada pela nação brasileira à imigração japonesa e o ambiente liberal em que vivem os meus compatriotas neste país vêm tornando possível o desenvolvimento pleno da capacidade produtiva dos imigrados, e a sua consequente contribuição considerável ao progresso do Brasil (Jornal do Commercio, 1955 /4/1: 5).
Busca, assim, colocar as tensões das décadas de 1930 e 1940 no esquecimento e associar o relativo sucesso econômico da colônia japonesa à hospitalidade dos brasileiros. No que se refere, portanto, ao cenário na década de 1950, o lugar da imigração japonesa parece ser não apenas de uma imigração tolerada e mesmo celebrada, mas também de uma imigração cuja mobilidade social ascendente funciona como uma espécie de evidência ideológica do Brasil como “democracia racial” — ideológica, porque dependente do esquecimento de um passado muito recente.
Nos jornais foi possível ainda observar como se vinha processando na década de 1950 a inserção de japoneses e seus descendentes na esfera simbólica da nação brasileira. Nos periódicos cariocas, a inassimilabilidade (ou ao menos a dificuldade de assimilação) é um foco persistente de desconfiança, aparecendo moderadamente mesmo em 1957 no JC. Os imigrantes japoneses são aqui recorrentemente vistos como um outro, essencialmente distinto do brasileiro — um grupo cuja assimilação mereceria ser supervisionada. Essa desconfiança foi sendo abertamente superada apenas quando os jornais cariocas passaram a notar na imigração japonesa uma crescente vantagem econômica para o desenvolvimento nacional do Brasil.
No ESP, o cenário é distinto. Vimos que a participação da colônia japonesa no IV Centenário valorizou um forte purismo estético nipônico, presenteando São Paulo com uma obra arquitetônica do Japão medieval. A recepção positiva da obra revela um certo pendor do jornal e da comissão geral do IV Centenário pelo pluralismo, por um multiculturalismo avant la lettre, em que a presença purista da manifestação cultural japonesa não é vista como uma ameaça ou invasão, mas como parte coerente da autorrepresentação que o jornal e a comissão começavam a fazer da cidade, do Estado e de sua história. Nesse desenho, imigrantes japoneses e seus descendentes conseguem uma espécie de cidadania no imaginário paulista e brasileiro, mesmo sem precisar simbolicamente se abrasileirar ou se assimilar — persistindo como outro da brasilidade.
O assimilacionismo de Tamura revela, porém, que japoneses e descendentes não se filiaram completamente a esse desenho. O projeto do parlamentar, embora derrotado no IV Centenário, foi recebido com entusiasmo pelo governador paulista, por autoridades eclesiásticas e por um banqueiro, que concordou em doar um milhão de cruzeiros para a construção da igreja. Além disso, em 1958 as celebrações do cinquentenário contaram com numerosas missas católicas, inclusive na agenda oficial do casal imperial Mikasa em São Paulo (O Estado de S. Paulo, 1958, p. 8/6/13: 10).
A colônia japonesa ficava, pois, entre tendências assimilacionistas e de preservação cultural. Mas na década de 1950, do ponto de vista dos jornais, a imagem dominante dos japoneses e seus descendentes parece pender à niponicidade, seja pela persistente desconfiança da inassimilabidade, seja pela essencialização do imigrante japonês em traços excepcionais de produtividade, ou ainda pela filiação do ESP à imagem vitoriosa no IV Centenário — isto é, de valorização e preservação da cultura e estética japonesa não amalgamada a traços brasileiros. Do ponto de vista das fontes aqui analisadas, o contato, a colaboração e a confraternização com os brasileiros — isto é, a integração — apareciam mais efetivamente no universo econômico. Cultural e etnicamente, eram ainda retratados com um certo distanciamento, como um outro da nacionalidade brasileira.
REFERÊNCIAS
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1
Disponíveis on-line no acervo do jornal O Estado de S. Paulo e na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional (Jornal do Brasil e Jornal do Commercio).
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2
Sobre os jornais, cf. Abreu, Alzira Alves de et al., 2010.
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3
Optou-se por deixar o exame mais detalhado das colunas de opinião para outra publicação. Muitas dessas colunas trazem análises sociais mais amplas, que podem ser mais bem examinadas à luz do pensamento social brasileiro no pós-guerra. É o caso, por exemplo, das colunas de Emílio Willems (1946: 4 e 6) e de Antonio Carlos Pacheco e Silva (1946: 6).
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4
O uso de aspas em “raça” e “racial” fora das citações busca marcar que se trata do sentido nas assim chamadas teorias raciais ou raciologia, que davam um sentido essencialmente biológico ao conceito.
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5
Cf. “Amnésia brasileira” de Sudá Andrade (Jornal do Brasil, 1951 /10/3: 5) e “Os perigos da imigração japonesa”, de Otto Prazeres (Jornal do Brasil, 1951 /10/11: 1-5). Também contrário aos japoneses, o diálogo ficcional de Soares Benther, “Que as portas se fechem” (Jornal do Brasil, 1951 /10/14: 34).
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6
No ESP, é mais clara a demarcação entre japoneses e seus descendentes brasileiros, motivo por que ela é adotada nesta seção.
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Esta pesquisa teve o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) (Processo nº 2017/25367-5 e 2021/07202-4). Agradeço aos organizadores do GT16 de Sociologia Histórica do 20º Congresso Brasileiro de Sociologia, profs. Karl Monsma, Matheus Gato e Patrícia Bosenbecker, que ofereceram indicações valiosas a um primeiro esboço deste artigo. Agradeço também aos(às) pareceristas anônimos(as) da revista Sociologia e Antropologia, que trouxeram novas referências e perspectivas que muito enriqueceram a versão final do artigo. Insuficiências do texto são, porém, da inteira responsabilidade do autor.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Abr 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
05 Jul 2021 -
Aceito
05 Out 2022 -
Revisado
31 Jul 2022