Resumo
O artigo analisa as estratégias de produção da crença em Hilda Hilst (1930-2004) a partir das tensões geradas por Bufólicas (1992) no campo literário brasileiro. Orientado nos referenciais de Pierre Bourdieu, destaca o modo como a escritora promoveu agenciamentos em prol de sua distinção nesse espaço social ao instituir um projeto pautado na obscenidade, no riso e em uma forte crítica ao mercado editorial. Para tanto, investiga como a obra se consistiu em um projeto político, direcionando a fabricação de repertórios específicos sobre Hilst no mercado de bens simbólicos ao reatualizar e ritualizar versões construídas pela autora e por outros agentes.
Palavras-chave: campo literário; Hilda Hilst
Abstract
This paper analyzes the strategies of belief production in the work of Hilda Hilst (1930-2004) taking as its point of departure the tensions generated by her text Bufólicas (1992) within the Brazilian literary field. Using the work of Pierre Bourdieu as a reference point, the essay highlights how the writer established forms of agency that advanced her distinction in this social space by creating a project based on obscenity, laughter and a strong critique of the editorial market. To this end, the essay investigates how the book constitutes a political project, which directs the production of specific repertoires about Hilst in the symbolic goods market by reactualizing and ritualizing versions built by the author and by other actors.
Keywords: literary field; Hilda Hilst
Resumen
El artículo analiza las estrategias de producción de creencia en Hilda Hilst (1930-2004) a través de las tensiones generadas por Bufólicas (1992) en el campo literario brasilero. Basado en referencias a Pierre Bourdieu, el articulo pone de relieve cómo la escritora promueve medios en favor de su distinción en ese espacio social al establecer un proyecto basado en la obscenidad, la risa y una fuerte crítica del mercado editorial. Con este fin, investiga cómo el libro consistió en un proyecto político, dirigiendo la producción de repertorios específicos acerca de Hilst en el mercado de bienes simbólicos, y al re-actualizar y ritualizar versiones construidas por la autora y por otros agentes.
Palabras clave: campo literário; Hilda Hilst
É tão grotesco que não pode ser considerado pornográfico. Bufólicas é muito engraçado e a pornografia não é engraçada, ninguém goza rindo. Mas insisto que é um livro político, porque é impossível escapar ao momento político em que vivemos: temos um presidente que não é presidente e considera-se escritor quem não é escritor.
Hilda Hilst
Em fins da década de 1980, Hilda Hilst (1930-2004) decidiu empreender novos contornos a seu projeto literário. Amadurecida com as incursões e leituras anteriores e com o peso dos anos, tendo ciência da importância de sua obra, apesar da escassa repercussão junto ao grande público, afirmou que se sentia livre para fracassar. Esse fato demonstra a lucidez da autora ao sugerir que os novos investimentos poderiam levá-la ao fracasso, já que possuía uma obra consolidada e um nome relativamente reconhecido perante a crítica. Independentemente disso, assumiu o risco, na tentativa de obter um maior reconhecimento de público e um retorno econômico, visto que não sobrevivia financeiramente de sua produção intelectual. Até esse momento, havia publicado 21 livros, além das oito peças ainda inéditas, mas constantemente reclamava da desatenção dos agentes do campo literário brasileiro em relação a seu legado. Era comum nas entrevistas comentar que poucas pessoas liam seus livros, embora fosse reconhecida por alguns críticos ao ponto de receber análises e prêmios de alcance nacional.
Na verdade, alguns motivos teriam contribuído direta ou indiretamente para esse afastamento do público leitor. Suas declarações surpreendentes e a vivência de situações não convencionais para as mulheres de sua época, juntamente com a independência financeira e intelectual, contribuíram para que sua vida, de certo modo, obscurecesse a obra. De acordo com Alcir (Pécora, 2010), a obra de Hilst acabou sendo substituída por um anedotário mesquinho como uma possível chave de leitura: a mulher ousada, avançada para sua época, explosiva, louca etc. A celebridade de Hilda Hilst surge como uma ficção sedutora que diz pouco da vida pessoal da autora e se torna estranha a questões incômodas de sua obra: "esta disposição de esquecer a 'celebridade' não pretende dizer que devam ser afastados da competência crítica os aspectos biográficos da artista. [...] Tratados com as devidas mediações, os aspectos biográficos podem ser muito significativos no conhecimento do legado" (Pécora, 2010, p. 10).
Outro fator que não pode ser desconsiderado refere-se a então dificuldade de acesso às suas publicações, quase artesanais e sem alcance de distribuição. Essa distribuição deficitária também era destacada por Hilst em entrevistas e em seus diários. Não raro encontramos em suas anotações as frases "quero ser lida" ou "ninguém me lê". Na maioria das vezes, a própria autora deixava suas obras em livrarias de Campinas (SP) ou presenteava críticos e escritores amigos com seus exemplares que, em pouco tempo, tornaram-se alvo de colecionadores. Além disso, também não era fácil publicar seus livros. Inúmeros documentos de seu acervo pessoal destacam tentativas frustradas de publicação no Brasil e no exterior, embates com editores, intermediação de amigos e críticos no intuito de abrir caminho para editoras e/ou mecenas.
Se não bastassem tais dificuldades, após fazer com que os leitores se interessassem por sua obra e a ela conseguissem ter acesso, outra questão a ser enfrentada era a compreensão de seu projeto, pautado em elevada erudição e no esfacelamento dos gêneros. Criou-se a fama de que Hilda Hilst era uma escritora difícil. Uma história recorrentemente evocada pela escritora relata essa situação:
Tem uma história muito interessante. Uma vez fui a Campinas comprar um livro meu para dar de presente. Não falei quem eu era. Perguntei se ele tinha Com os meus olhos de cão. Ele perguntou: "A senhora lê essa senhora? Essa senhora só é lida por doutores. Uma coisa impressionante. Mas não tem o livro. Parece que ela briga tanto com os editores que nós nunca temos os livros". Nisso, o Dante Cassarini (ex-marido e grande amigo de Hilda) se aproximou e disse: "Você vai comprar seu livro? Por que não pede ao editor?". Aí, o homem pegou as minhas mãos e beijou-as, impressionadíssimo: "Então a senhora é aquela escritora que só os doutores leem". Foi muito gozado (Cardoso, 1994, p. 1).
Esse trecho demonstra o mito que se criou em torno do projeto literário hilstiano. Alvo de incompreensão, a autora constantemente afirmava que, muitas vezes, eram os próprios críticos quem contribuíam para obscurecer sua obra: "Escrevem umas coisas tão dificílimas sobre o meu trabalho que, ao invés de auxiliarem o outro a compreender, parece que obscurecem tudo. Eu fiquei por anos escrevendo como uma louca sem ninguém entender". E concluía informando ter ciência de que era uma excelente escritora e que "se leem e entendem, não é meu departamento. [...] Às vezes eu releio o que eu escrevo e penso 'meu Deus, mas está tão compreensível!'. O que será que é?" (Zeni, 1998, p. 10). Do mesmo modo, indignava-se com algumas estratégias adotadas pelo mercado editorial, a ponto de colocar em xeque os critérios de distinção e legitimidade: "considera-se escritor quem não é" (Heynemann, 1992, p. 4).
Inconformada com essas questões, Hilst mobilizou estratégias em busca de seu reconhecimento instituindo um projeto criador singular, que visava, de certo modo, desestabilizar as engrenagens do campo literário brasileiro.
Estilhaçando as medidas do campo literário
Na trajetória de Hilda Hilst, a leitura de A parte maldita, de Georges Bataille (pautada nas análises de Marcel Mauss a respeito do Potlatch), teve um impacto fundamental, chegando a admitir que seu projeto literário teria sido marcado por aquilo que José (Castello, 2006) definiu como a maldição de Potlatch. Nessa interpretação, a obra hilstiana se aproximaria do ritual praticado por índios do noroeste americano, quando destruíam a parte mais significativa de suas riquezas para acumular prestígio a partir do poder de perder: "sua vasta obra faria parte daquele segmento da riqueza literária brasileira que o país, numa imitação impiedosa do ritual ameríndio, resolveu destruir gratuitamente. [...] Escreve para não ser lida. Para ser recusada. É, no entanto, essa maldição que a leva a prosseguir" (Castello, 2006, p. 100). Essa análise a impressionou de tal forma que passou a utilizá-la para justificar o desinteresse por seu projeto literário: "Eu fui sempre dando tanto do que eu tinha que eu acho que eu fiz um trabalho muito bom e fui perdendo sempre. Ficou assim como um Potlatch mesmo. Porque, quanto mais eu escrevia, quanto mais eu trabalhava, eu fui perdendo sempre". Conclui, assim, que a única diferença em seu caso foi não ter recebido nada em troca: "a exibição absoluta do poder, não é? E não tendo a volta em nada. Pra mim foi uma exibição que só me fez perder mesmo" (Blumberg, 2004, p. 278).
Hilda Hilst acreditava que o silêncio em torno de sua obra era próximo ao do ritual, na medida em que a maioria das pessoas destruía aquilo que ela conseguiu escrever de melhor - embora José (Castello, 2006) afirme com propriedade que tais atitudes da autora constituíam uma espécie de estratégia encenatória a envolver sua obra de mistérios e promessas. Desse modo, a maldição se converteria em prestígio.
Aqui comparece a questão do desinteresse interessado da dádiva ou, em outros termos, do elo tenso entre interesse e desinteresse na cultura intelectual. De acordo com Pierre (Bourdieu, 2007), cada campo, ao se produzir, gera uma forma de interesse que, sob o ponto de vista de outro campo, pode parecer desinteressado. As trocas não se reduzem unicamente a sua dimensão econômica, gerando uma illusio como crença fundamental no interesse no jogo e no valor dos móveis de competição inerente a esse envolvimento. Conforme explica Bourdieu, participar da illusio literária, por exemplo, "é o mesmo que levar a sério os móveis dessa competição, os quais, nascidos da lógica do próprio jogo, conferem seriedade ao jogo, ainda que possam escapar ou parecer 'desinteressados' e 'gratuitos' àqueles envolvidos em outros campos" (Bourdieu, 2007, p. 21).
No caso do silêncio em torno da obra hilstiana, poderíamos supor que ele, de algum modo, seria interessante a determinados agentes e dialogaria com a lógica do campo literário, ou seja, com o sentido do jogo que não é posto ou imposto de modo explícito. No mesmo sentido, a tensão entre interesse e desinteresse moveria a luta no interior do campo artístico, possibilitando a eclosão de revoluções simbólicas a partir da reunião de propriedades e projetos opostos e socialmente incompatíveis:
Tal como acredito, se este modelo vale para todos os autores de grandes revoluções simbólicas, talvez isso se deva ao fato de todos eles se encontrarem situados num espaço de possíveis já prontos que lhes designa à revelia (e tão somente para eles) um possível a fazer. Esse impossível possível, ao mesmo tempo rejeitado e acalentado por esse espaço que o define, mas como vazio, como falta, esses autores trabalham para fazê-lo existir, com e contra todas as resistências que o surgimento do possível estruturalmente excluído faz emergir na estrutura que o exclui e em todos os ocupantes bem postos de todas as posições constitutivas dessa estrutura (Bourdieu, 2007, p. 11).
Nesse aspecto, poderíamos observar como o silenciamento foi mobilizado por Hilda Hilst, tornando-se trunfo e incentivo para que radicalizasse suas experiências com o obsceno visando chamar a atenção para toda a sua obra. Utilizando as orientações de (Bourdieu, 1996, p. 153) para analisar a situação da escritora, verificamos que "se o desinteresse é possível, isso só ocorre por meio do encontro entre habitus predispostos ao desinteresse e universos nos quais o desinteresse é recompensado". Estratégia que, apesar de, em um primeiro momento, gerar uma série de desconfortos para uma parcela de agentes do campo literário que antes era recompensada por esse alheamento, em médio prazo, contribuiu para que Hilst empreendesse ações em prol de maior visibilidade e prestígio para sua assinatura.
Conforme anunciado na contracapa de Amavisse (1989), Hilda Hilst decidiu estilhaçar as medidas abraçando de vez a obscenidade, publicando a tetralogia obscena O caderno rosa de Lori Lamby (1990), Contos d'escárnio/textos grotescos (1990), Cartas de um sedutor (1991) e Bufólicas (1992). As justificativas por esse empreendimento foram apresentadas, em diversas entrevistas, como uma estratégia para obter recursos e projetar sua obra - o que realmente aconteceu, embora tenha enfrentado críticas de amigos e de analistas mais ortodoxos. Após ser informada que a escritora francesa Régine Deforges ganhara US$ 10 milhões com a publicação de A bicicleta azul, decidiu escrever algumas coisas "para todo mundo entender":
Começou com a tristeza de ninguém me ler nunca. Comecei a ficar uma velhinha chorando pelos cantos e sabendo que tinha feito um trabalho muito bom. E aí li que uma mulher na França tinha ganhado 10 milhões de dólares escrevendo uma imitação de E o vento levou, uma tal de Bicicleta azul. Pensei: "Eu não acredito". Estava no meio do café da manhã e decidi que iria escrever um livro horrível. Vi sobre a mesa uma fotografia minha de criança e pensei: "É uma menina quem vai falar coisas horrendas brincando o tempo todo" (Bueno, 1996, p. 32).
A escritora problematizou algumas questões caras ao campo literário, especialmente ao questionar o papel do escritor e do editor, suas estratégias e, principalmente, o papel da literatura. Situações que ganharam evidência na adoção da obscenidade como linha de força para criticar esses processos, na tensão entre o corpo e o corpus da linguagem reconhecida pelo espaço de produção simbólico.
Em seu estudo sobre o erotismo literário no Brasil contemporâneo, Eliane Robert (Moraes, 2008) afirma que a literatura obscena produzida no último quarto de século no país adotou um repertório que privilegiou fantasias da sensibilidade urbana contemporânea, notadamente caracterizado por um embate entre formas elevadas e registros baixos da cultura nacional, praticado quase que exclusivamente por mulheres e homossexuais, sugerindo uma erótica do limite. Ocorre, assim, uma renovação na década de 1990, apostando radicalmente na fantasia fescenina, alucinatória, mística ou grotesca: "uma vez desfeito o pacto com a morte, a ênfase trágica cede lugar a uma pluralidade de vozes que descobrem outras vias de dizer o sexo", valendo-se de "um dos seus expedientes mais férteis: o rebaixamento" (Moraes, 2008, p. 407).
É nessa tensão entre a dialética de uma transcendência que rebaixa o elevado e eleva o baixo que o obsceno vai se configurar nos últimos anos do século XX na literatura brasileira, apontando para um confronto entre as polaridades que perturba a hierarquia dos valores. Para a pesquisadora, a mais acabada expressão dessa tendência encontra-se na obra obscena de Hilda Hilst, cujo projeto funde o alto e o baixo no corpo da própria linguagem, concluindo que sua tetralogia se constitui na grande novidade do erotismo brasileiro do último quarto do século XX. O elo entre esses polos tidos como excludentes, a partir de um deboche escrachado, "ao retirar os temas imortais do gueto onde se confinam os gêneros inferiores, associando-os às expressões legitimadas como superiores, subverte a hierarquia dos saberes, perturbando a zona de tolerância que o país reserva às fabulações sobre o sexo" (Moraes, 2008, p. 412).
Para Luciana (Borges, 2006), grande parte da inquietação frente ao texto hilstiano deve-se à combinação de dois elementos não muito usuais na chamada "alta literatura": texto "pornográfico" e autoria feminina. Assim, se falar de sexo é, por si só, uma transgressão, a escrita erótica das mulheres seria um ato ainda mais transgressor, na medida em que deslocaria as mulheres da condição de mero objeto para a posição de enunciadora do desejo, dela e de outrem, construindo um discurso sobre o erotismo a partir de um lugar de fala específico. Segundo concluiu, o problema não seria a "pornografia" em si, mas seu deslocamento, extrapolando os limites pensados para circunscrever as atividades sexuais e intelectuais femininas. Desse modo, no caso da literatura, "é a sua aura, a crença teórica em uma especificidade discursiva e unicidade que torna incompatível com a alta literatura e com os grandes autores a associação com a escrita do pornográfico" (Borges, 2006, p. 24).
Nesse aspecto, o projeto de Hilst repercutiu no campo literário, desestabilizando algumas certezas com relação à produção de autoria feminina e os enquadramentos existentes. Enquanto alguns a definiram como erudita, erótica ou obscena, outros a classificaram como subliteratura, literatura pornográfica e, alguns, como obras erótico-pornográficas, ao se referir as narrativas integrantes da trilogia obscena e as poesias de Bufólicas (1992). O corpo manipulado pelo corpus hilstiano estilhaçou as medidas, provocando tensões no campo literário nacional:
Com estes textos fiquei mais igualzinha aos outros, mais próxima deles. Quem sabe agora venham a descobrir minhas novelas, minha poesia, meu teatro. [...] Então eu falei: quer saber? Não vou escrever mais nada de importante. Ninguém me lê, falam sempre aquelas coisas, que eu sou uma tábua etrusca, que sou um hieróglifo, que não sei o que. Entrei para o quarto e falei, quer saber, vou escrever uma tremenda putaria C...p...B...! Todo mundo vai entender. Mostra pra minha empregada, mostra pro metalúrgico do ABC! E, agora, entendeu? (Azevedo Filho, 2002, p. 6 e 21).
A despeito das tentativas de diferenciação entre pornografia e erotismo empreendidas nos trabalhos de (Alexandrian, 1994) e Lúcia Castello (Branco, 1984), concordamos com Luciana (Borges, 2006) quando afirma que é inegável na tetralogia de Hilda Hilst a existência do que Susan Sontag denomina intenção pornográfica. Seus livros foram elaborados a partir de uma intenção deliberada de efetuar textos "impróprios para menores", embora não tenha conseguido que eles se tornassem pornográficos: "Eu não consegui. Eu queria fazer uma coisa que, de repente, eles gostassem de ler. Não adiantou. Diziam que eu era dificílima na literatura pornográfica" (Hilst, 1999, p. 30).
São reincidentes em seu acervo pessoal, nas anotações de diários, correspondências e entrevistas os argumentos afirmando não ser pornográfica a literatura pornográfica de Hilda Hilst - para utilizarmos o título provocativo de um dos textos de Alcir Pécora: "Eu mesma, quando escrevo 'cu', ninguém entende o meu 'cu'. O Anatol Rosenfeld me disse uma vez que o meu 'cu' era muito intelectual. E a Gallimard escreveu que eu transformava pornografia em arte. Aí ninguém leu mesmo" (Machado, 1998, p. 2).
A análise sobre os usos do obsceno em Hilst empreendida por Alcir (Pécora, 2010) também se torna importante na medida em que revela que a obscenidade se aplica a toda obra da autora, e não apenas à tetralogia dita pornográfica, e que essa noção pouco tem em comum com a ideia de literatura erótica. Em suas análises, afirma que a tetralogia é a parte menos erótica de toda a sua escrita, sendo melhor aplicável a ideia do erotismo na produção poética de Júbilo, memória, noviciado da paixão, Cantares, Amavisse e Poemas malditos, gozosos e devotos. Do mesmo modo, afirma não ser correto enquadrar a tetralogia como pornografia, já que a crueza dos textos não implica na excitação do receptor, "eles se dobram todo o tempo sobre si próprios, escancarando a sua condição de composição literária e esvaziando o seu conteúdo sexual imediato" (Pécora, 2010, p. 20).
Nesses termos, Pécora conclui que a tetralogia hilstiana - e aqui nos deteremos em Bufólicas - é obscena por demonstrar a perplexidade diante da identificação vulgar entre criação e consumo mercadológico ou, em outras palavras, o sentido do obsceno é indissociável da questão do mercado editorial: constituindo na aporia mais óbvia do obsceno a metamorfose da arte em mercadoria. Assim, entende que os textos obscenos de Hilst dramatizam "o instante de confronto entre a arte mais radical da palavra, no limite de sua apreensibilidade, e a sua normalização habitual" decorrente das expectativas simplistas dos leitores, dos editores interessados especificamente em seus rendimentos ou das vaidades dos escritores, enfim, trazendo à cena as relações geralmente destinadas aos bastidores do campo literário.
Bufólicas e a produção da crença em Hilda Hilst
Bufólicas é o único livro de poemas que integra a chamada tetralogia obscena de Hilda Hilst. Discutir sobre as estratégias de "produção da crença" em Hilst a partir da análise dessa obra consiste em destacar como a escritora, herdeiros legais e simbólicos promoveram/promovem agenciamentos em prol de sua distinção na trama do campo literário brasileiro. Aqui utilizamos essa categoria nos moldes apresentados por Pierre (Bourdieu, 2002), quando demonstrou os jogos de poder em prol da distinção nos espaços de expressão e os bastidores e as cenas da "criação de criadores" ou, em outras palavras, a busca pela legitimação da autoridade da criação. O objetivo é oferecer alguns indícios sobre os processos de criação, circulação e consagração dos bens culturais tendo como fio condutor os trânsitos ocorridos em torno de Bufólicas.
Para além da existência de uma trajetória e de um projeto criador considerado excepcional, torna-se necessário que a energia social produzida em torno de um nome próprio se estenda ao longo do tempo (Bourdieu, 2002). Quanto maior a extensão cronológica do prestígio, maior é a eficácia dos mecanismos materiais e simbólicos mobilizados contra a ameaça do esquecimento. Desse modo, não basta ser um agente conhecido e reconhecido em sua geração, é necessário reunir subsídios para que seu nome/obra conquiste perenidade ou reconquiste o prestígio perdido ou não obtido em outros tempos. Tarefas empreendidas pelo conjunto de agentes que integram o espaço de possíveis expressivos de produção simbólica: escritores, editores, críticos literários, biógrafos, jornalistas, instituições de ensino e cultura, entre outros.
É importante compreendermos as ações empreendidas pela protagonista (e post mortem pelos demais agentes) para a gestão e manutenção do capital de legitimidade acumulado. Ações que convergem para o estabelecimento de uma "marca" distintiva, identificada com o capital simbolizado por seu nome e renome e, consequentemente, com a posição ocupada no campo simbólico.
Uma das facetas que instauram essa singularidade no projeto hilstiano, nesses termos, é a adoção do riso como meio de criticar os costumes. A crítica social instituída a partir de uma ironia cáustica cujo auge pode ser visualizado não apenas na trilogia obscena, mas nos poemas de Bufólicas (1992) e nas crônicas que publicou semanalmente, de 1992 a 1995 no Correio Popular, de Campinas/SP, reunidas em Cascos & carícias & outras crônicas (2007). Não sem motivos inseriu como epígrafe de Bufólicas e, posteriormente, intitulou sua crônica de 31 de outubro de 1993, com a frase de Molière Ridendo castigat mores, cuja tradução se aproximaria do gesto de rir para criticar ou castigar os costumes. Desse modo, Hilst atualizou a estratégia do escritor ao narrar situações, personagens e suas particularidades de forma sarcástica e, na maioria das vezes, cômica. Conforme destacou Alcir (Pécora, 2007), a comicidade hilstiana é um caso notável, e o humor se torna um dos componentes decisivos de seu projeto, adquirindo uma marca pedagógica:
O caso é que raramente se podia estar diante de Hilda ou de seus textos sem estar na berlinda, incomodado, com um riso amarelo mal disfarçado na cara, ou, ao contrário, rindo meio histericamente de alguém mais que, surpreendido em alguma tolice característica, livrava os demais, momentaneamente de ocupar o lugar de João Bobo. Estar sob o influxo do humor de Hilda era, portanto, estar implacavelmente exposto a um processo educativo, entendido como aprendizado de rir de si mesmo e desistir de toda afetação vulgar. O melhor jeito de se livrar do pior, em sua companhia, era aprender a ser afiado também. [...] Aspecto educador de sua verve (Pécora, 2007, p. 17).
O riso se apresenta como uma blindagem para escapar da crueza e da vileza humana. Constituía em um modo de Hilda Hilst desafiar a naturalização de determinadas posturas com relação aos diversos tipos de violência a que estamos submetidos, por isso desferiu sua crítica social mesclando sexualidade e comicidade: "Eu a sério, sou bastante pessimista. [...] Às vezes me perguntam o porquê de eu ter optado pelo riso depois de ter escrito minhas ficções, meu teatro, minha poesia, com grandes e constantes pinceladas de austeridade. Optei pela minha salvação" (Hilst, 2007, p. 29). Em seus diários, é possível observarmos que encarar a vida com humor era uma forma de sobreviver aos impactos das crueldades humanas inventariadas pela imprensa. No mesmo sentido, afirmava que o brasileiro não levava as coisas a sério e, por isso mesmo, decidiu dar uma guinada em seu projeto literário rindo da sua condição de escritora séria em um "país bandalho", daí sua opção por escrever "bandalheiras".
Em seu estudo sobre o riso e o risível, Verena (Alberti, 2002) demonstra como o riso se tornou objeto do pensamento e estratégia para a compreensão do mundo, mais especificamente na filosofia, concluindo que, em última instância, a reflexão sobre o riso consiste em uma reflexão sobre a linguagem. Dessa forma, pensar com e sobre o riso se torna uma forma de posicionar-se "ou posicionar o objeto das próprias reflexões em um terreno intermediário entre a razão, porque o riso é 'próprio do homem' e não dos animais, e a não razão - a 'paixão', a 'loucura', a 'distração', o 'pecado' etc. - porque o riso não é próprio de Deus" (Alberti, 2002, p. 8). O riso se torna um potencial de redenção para o pensamento e uma das estratégias encontradas por Hilda Hilst para se posicionar no campo literário: ao mesmo tempo uma anestesia e uma provocação. Talvez por isso uma das frases mais conhecidas de Hilst seja a de que Deus consiste em "uma superfície de gelo ancorada no riso".
Questões também suscitadas por Joelma (Silva, 2009), quando concebeu que nos percursos literários hilstianos o riso se apresenta como uma espiral a circular pela órbita de sua escritura em diferentes caminhos: alegre, sardônico, rancoroso, satírico, mordaz, irônico, triste, burlesco, bucólico, ingênuo, derrisório. Na tetralogia obscena, apresenta uma escala de risos que atravessa o riso ingênuo encontrado em O caderno rosa de Lori Lamby (1990), o riso cáustico que envolve Contos d'escárnio, Textos grotescos (1990) ou o riso ápice sustentado em Bufólicas (1992), onde concebe um riso mais próximo das aventuras da praça pública e das tiradas diabólicas do palco da Corte, recorrendo à figura do bufão, aquele que brinca de dizer verdades ensurdecedoras.
É por essa razão que Bufólicas consiste em exemplo significativo para observarmos como o riso se metamorfoseia em crítica à moral dominante tecida na releitura dos contos de fadas. Nessa obra, os risos envolvem personagens cujos corpos grotescos contribuem para pensarmos sobre a sexualidade e, mais que isso, um modo velado de rir da política existente no interior do campo literário brasileiro.
Conforme afirmou em uma entrevista (utilizada na epígrafe deste artigo), Hilst concebeu o livro de poesias satíricas como uma obra política, na medida em que sua elaboração foi motivada pelas contingências sociais brasileiras do início da década de 1990: "temos um presidente que não é presidente e considera-se escritor quem não é escritor", destacando, sobretudo, suas frustrações com os escândalos na gestão do então presidente Fernando Collor de Mello e com o sucesso obtido pelas obras de Paulo Coelho e de Danuza Leão. Situações essas que são retratadas no rascunho de uma carta que Hilst enviou a Jaguar, ilustrador da obra, em 10 de setembro de 1992:
Jaguar, Ridendo castigat mores. Infelizmente o Brasil de hoje é uma Pornocracia. A desfaçatez, o caradurismo, a absoluta falta de ética, o cinismo das áreas do poder faz com que irrompa no cidadão uma dessas duas manifestações: a cólera ou o riso. A cólera traz uma grande desvantagem - você pode cair fulminado, aliás uma boa forma de morrer, mas não por causa de tantos bandalhos. Então optei pelo humor. Descobri que a velhice e o prestígio te trazem algumas vantagens e depois de ganhar todos os prêmios mais importantes do país em literatura e ser considerada estranha, lunática e ao mesmo tempo estar velha, dão uma grande liberdade e, principalmente, o direito de dizer barbaridades, sem preâmbulos. Testemunhos talvez agressivos, mas quase infantis e quase tão grotescos e divertidos como puxar o ranho do nariz e apostar para ver quem tem o ranho mais comprido. O Pound quando quis falar de Londres do após-guerra fez os cantares 14 e 15 que no meu entender são presunçosos e repugnantes. Bufólicas: Mudo, pintudão/O reizinho gay/Reinava soberano/Sobre toda a nação/Mas reinava apenas/Pela linda peroba/Que se lhe adivinhava/Entre as coxas grossas. [...] Desmistificar a literatura infantil. Toda a mística da literatura infantil foi por água a baixo. Reis, fadas, anões, magos, elementais, duendes. Tudo foi absorvido grotescamente pela sociedade de consumo. O caráter sagrado dos mitos virou pó. Desfez-se.
Entre a cólera e o riso, a escritora escolheu a segunda opção. Ciente de que o prestígio já acumulado no campo literário lhe asseguraria inserir nesse espaço uma obra inusitada, pautou-se pela crença envolta em sua assinatura para conseguir um ilustrador, no caso Jaguar, e um editor, mais uma vez Massao Ohno. Dificilmente uma estreante obteria crédito simbólico para publicar uma obra que desconstrói os contos de fada, invertendo sua moral pelo avesso. A partir de uma trajetória de certo modo já consolidada nas letras, Hilda apostou que sua idade também lhe proporcionaria maior liberdade para falar sobre temas considerados tabus como o sexo e a política, aproximando-os dos contos de fadas. Bufólicas foi lançado quando a escritora estava com 62 anos, e o fato de estar velha concedeu-lhe maior liberdade para dizer determinadas coisas sem preâmbulos, o que aponta para a sua consciência reflexiva.
Nesse aspecto, a estratégia se aproxima da utilizada na composição de A obscena senhora D (1982) e de O caderno rosa de Lori Lamby (1990). Se, no caso desses livros, a velha escritora utilizou como narradora e persona principal, respectivamente, uma mulher velha e uma criança de 8 anos, em Bufólicas escolheu temas e personagens tradicionais dos contos de fadas, aludindo, mais uma vez, ao universo infantil para, em seguida, estilhaçar as convenções. Ao afirmar que a mística da literatura infantil tenha virado pó, já que tudo havia sido absorvido pela sociedade de consumo, a escritora ri da atitude moralizadora das fábulas, deslocando sua escrita como em um jogo em que os personagens são os mesmos, mas vivem em um reino onde vigora a Pornocracia.
Conforme destaca Alcir (Pécora, 2010), ao rir da moral autoritária e cínica, a estética hilstiana contribui para ensaiar uma espécie de resistência bem-humorada da invenção e da autocriação que não deixa de lado o Brasil, em uma analogia evidente entre a negatividade do narrador e a adoção de um registro obsceno em face do contexto brasileiro, lugar que a autora designa de "país bandalho por antonomásia: terra devastada onde o poder injusto e ilegítimo pactua com a venalidade e a ignorância por meio da celebração da malandragem: [...] 'temos tudo nas mãos/ bolas cricas gingas e tretas!/ temos a pica mais dura do planeta!/Viva o Brasil!'" (Pécora, 2010, p. 27).
Convém lembrar que, conforme registrado em inúmeras de suas crônicas, na década de 1990, quando Hilst enveredou pela literatura obscena, o Brasil passava por uma crise política em que vinham à tona os descaminhos de Collor e Paulo César Farias, a chacina da Candelária, o esquema dos anões do orçamento, a indústria da seca e da prostituição, o rombo da Previdência, além do plebiscito sobre a forma e o sistema de governo. Nesse sentido, nas entrevistas no ano do lançamento de Bufólicas, a escritora afirmava que qualquer semelhança entre o reino da pornocracia e o Brasil não era mera coincidência. Na obra, os habitantes "são o avesso dos encontrados em contos de fadas e bem próximos da realidade do país. O rei, antes adorado pelo povo, cai em declínio quando se nega a explicar alguns atos. Pressionado, simplesmente saca seu enorme pênis 'na rampa ou na sacada' e cala a todos" (Rosa, 1992, p. 4).
Os usos do obsceno em Bufólicas não diferem sobremaneira dos evidenciados em sua trilogia obscena. Nela, às vezes de modo velado, também surge uma crítica ao campo literário brasileiro, especialmente as estratégias de autores e editores voltadas para o mercado. Nesse aspecto, o poema "Drida, a maga perversa e fria" descreve a vida de uma maga que rabiscava a cada dia o seu diário e que percorria um caminho de magos com uma espada de palha e bosta seca rumo a Santiago. Nesse poema a escritora apresenta uma crítica às estratégias de Paulo Coelho para conquistar um lugar no campo literário brasileiro e mundial, especialmente junto ao público:
Assim era Drida
A maga perversa e fria.
Rabiscava a cada dia o seu diário.
Eis o que na primeira página se lia:
Enforquei com a minha trança
O velho Jeremias.
E enforcado e de mastruço duro
Fiz com que a velha Inácia
Sentasse o cuzaço ralo
No dele dito cujo.
[...]
E agora vou encher de traques
O caminho dos magos.
Com minha espada de palha e bosta seca
Me voy a Santiago.
Moral da estória:
Se encontrares uma maga (antes
Que ela o faça), enraba-a (Hilst, 2002, p. 19-20).
Relembrando aspectos da trajetória de Paulo Coelho, Hilst apresenta uma maga que escrevia seu diário e que percorria o caminho rumo a Santiago, em uma alusão à viagem de peregrinação pelo caminho de Santiago que o escritor realizou em 1986, da França até Santiago de Compostela, relatada no livro O diário de um mago (1986). Hilda Hilst se lançava contra o sucesso e a má qualidade dos best-sellers desferindo críticas às obras de Paulo Coelho e ao livro de etiqueta Na sala com Danuza (1992), sucesso editorial de Danuza Leão,1 dizendo-se ofendida quando consideravam tais obras como literatura.
Bufólicas constitui em contundente exemplo de como a escrita de Hilda não se fixa em um ponto, conectando códigos diversos, regimes de signos e estados de coisas diferentes como os personagens tradicionais dos contos de fada (reis, rainhas, magos, anões, fadas, chapeuzinho vermelho e lobo mau), artifícios da considerada alta literatura (lirismo, ritmo, paródia, figuras de linguagem, alegorias, redondilhas, rimas eventuais, humor, poesia etc.) e temas e palavras de calão (pintudão, peroba, bronha, cu, cuzaço, enrabar, cagar, pau, xereca, bunda etc.). Os sete poemas do livro possuem uma moral explícita e, de modo não vulgar, desconstroem e rearticulam gêneros, mesclando humor e política na discussão de temas como a violência sexual, a exploração econômica do sexo, o autoritarismo, o homoerotismo, o campo literário e a sexualidade reprimida.
Não pode ser enquadrado stricto sensu com um livro de contos de fadas, literatura erótica, pornográfica ou um livro de poemas convencional. Alcir (Pécora, 2002), na apresentação ao volume que integra as obras completas hilstianas editadas pela Editora Globo, suscita que os poemas de Bufólicas parodiam tanto fábulas antigas, com suas alegorias morais, quanto contos de fadas, a eles aplicando hilariantes desfechos, nos quais o pior crime é o da inocência. Ainda destaca que, se os personagens são os mesmos, o diferencial consiste nas anomalias em suas genitálias e na prática de graus diversos de bizarrias. O próprio título do livro exemplifica esse deslocamento: ele joga com os termos "bucólico" e "bufo". O bucolismo remete à poesia pastoril geralmente dialogada, a oralidade é seu elemento central. Já a palavra "bufo", "bufão", evoca tanto o ator cômico e burlesco, quanto o ato de bufar (Barros; Borges, 2006).
Parodiando os contos de fadas, a autora utiliza a estrutura das fábulas, desconstruindo-as, "dando-lhes uma nova e inusitada moral que torna hilária a moral social do leitor, levando-o a repensar valores, cobranças e comportamentos sociais tidos como politicamente corretos em diferentes situações" (Vaz, 2003, p. 40). Os contos de fadas são variações do conto popular ou da fábula. Consistem em narrativas curtas, fundadas na oralidade, em que o personagem central da história fantasiosa, após enfrentar dificuldades, triunfa ao final. Geralmente, além de se centrarem em um personagem, desenvolvem um enredo e realizam um desfecho que possui um caráter moralizante (moral da estória). Comumente associados ao universo infantil, não eram escritos para crianças, muito menos para transmitir lições morais. Constituíam em textos para adultos, onde eram apresentados temas como adultério, incesto, canibalismo e mortes:
Originalmente concebidos como entretenimento para adultos, os contos de fadas eram contados em reuniões sociais, nas salas de fiar, nos campos e em outros ambientes onde os adultos se reuniam - não nas creches. [...] É por isso que muitos dos primeiros contos de fada incluíam exibicionismo, estupro e voyeurismo. Em uma das versões de Chapeuzinho Vermelho, a heroína faz um striptease para o lobo, antes de pular na cama com ele. Numa das primeiras interpretações de A bela adormecida, o príncipe abusa da princesa em seu sono e depois parte, deixando-a grávida. E no conto A princesa que não conseguia rir, a heroína é condenada a uma vida de solidão porque, inadvertidamente, viu determinadas partes do corpo de uma bruxa (Cashdan, 2000, p. 20).
Hilda Hilst, em poesia, reencontrou com esse sentido original, reinventando fábulas antigas e contos de fadas com o uso do humor e da ironia. Apesar de nos sete poemas recuperar personagens tradicionais do gênero (rei, rainha, fada etc.), o que os torna diferentes é que possuem anomalias nas genitálias e praticam bizarrias: "a paródia, assim, ri da moral estreita, amplificada num mundo de absurdos, e proclama uma espécie de declaração dos direitos da livre-invenção e da autocriação, num tom cuja hilaridade destrambelhada, contudo, nunca chega a tornar-se triunfal" (Pécora, 2002, p. 9). O projeto hilstiano dialoga com um dos procedimentos analisados por Henri (Bergson, 2007) para alcançar a comicidade: a inversão. Nesse aspecto, a comicidade é obtida com a inversão de uma situação ou da troca de papéis: "é assim que rimos do réu que dá uma lição de moral ao juiz, da criança que pretende dar lições nos pais, enfim daquilo que se classifique sob a rubrica do 'mundo às avessas'" (Bergson, 2007, p. 70). Esse procedimento é constantemente utilizado por Hilst nos poemas de Bufólicas; neles os personagens invertem seus papéis e o cômico é tecido mediante exageros e degradações.
Um rei gay e mudo que comanda seu reino devido a possuir um pênis descomunal: "ando cansado/de exibir meu mastruço/pra quem nem é russo./E quero sem demora/um buraco negro/pra raspar meu ganso/quero um cu cabeludo" (Hilst, 2002, p. 14). Uma rainha sem pelos na vagina que se entrega a um mascate peludo: "disse-lhe a rainha/quero apenas pentelhos/pra minha passarinha" (Hilst, 2002, p. 17). Uma maga que redige um diário de perversidades. Chapeuzinho Vermelho caftina o lobo, que é sodomizado pela vovozinha. O anão se desentende com Deus e perde seu pênis. A cantora que por excitar os homens com seu canto, foi condenada a fazer sexo oral com um jumento. Ou a fada lésbica que "metia o dedo/em todas as xerecas, loiras, pretas/[...] que deixava uma estrela/em tudo que tocava/e um rombo na bunda/de quem se apaixonava" (Hilst, 2002, p. 35) são os personagens das histórias.
De acordo com (Luisa Barros e Julia, Borges, 2006), a coesão em Bufólicas se dá justamente devido ao caráter híbrido das interconexões entre a forma elevada da poesia e a objetividade da prosa, além da oralidade promovida pelos versos e da constância dos vocábulos chulos. Seria o efeito cômico dominante construído por essas estratégias que deixaria a obra coesa. Hilda, desse modo, subverteria as formas, já que as redondilhas "apesar de não tratarem tradicionalmente de temas elevados, não usam comumente palavras grosseiras ou obscenas" (Barros; Borges, 2006, p. 8). Nesses termos, essa obra desafia as convenções do próprio campo literário, forçando passagem para que editores, críticos, escritores e público leitor questionem as relações que movem o fazer literário, gerando desconfortos e incertezas a partir de uma humorada e ácida crítica àqueles legitimados para dizer o que é ou não literatura e quem pode produzi-la. Nesse sentido, é evidente sua crítica ao falocentrismo:
Mudo, pintudão
O reizinho gay
Reinava soberano
Sobre toda a nação.
Mas reinava...
APENAS,,,
Pela linda peroba
Que se lhe adivinhava
Entre as coxas grossas.
Quando os doutos do reino
Fizeram-lhe perguntas
Como por exemplo
Se um rei pintudo
Teria o direito
De somente por isso
Ficar sempre mudo
Pela primeira vez
Mostrou-lhes a bronha
Sem cerimônia. [...]
Daí em diante
Sempre que a multidão
Se mostrava odiosa
Com a falta de palavras
Do chefe da Nação
O reizinho gay
Aparecia indômito
Na rampa ou na sacada
Com a bronha na mão (Hilst, 2002, p. 11-12).
No acervo da autora existem três versões sem data e incompletas da obra. Uma manuscrita com caneta roxa e em folhas amarelas. Uma segunda versão datiloscrita, com correções manuais, composta pelos poemas "O reizinho gay", "Drida, a maga perversa e fria" e "Filó, a fadinha lésbica". E uma terceira, também datiloscrita e com correções, em que comparecem os poemas "A rainha careca" e "Drida, a maga perversa e fria". Avaliando os originais, é possível observar que a moral da história foi inserida posteriormente e que o título pensado para o poema "A chapéu" era "Chapeuzinho vermelho, versão nova". Por ocasião da publicação, os sete poemas receberam ilustrações de Jaguar, em que todos os personagens estão nus, enfocando as anomalias em suas genitálias, e praticando suas bizarrias.
Mais uma vez, Hilst aproximou o corpo humano do corpo da linguagem, demonstrando como o aspecto moralizante das histórias transmitidas para as crianças pode ser invertido com vistas à compreensão de uma sociedade em que essa mesma moral se encontra em xeque. Nesse aspecto, com o intuito de estabelecer uma crítica aos costumes, a escritora decidiu realizar o lançamento da obra na boate gay Rave Dinner Club, na Rua Bela Cintra, na capital paulista, fazendo com que alguns agentes do campo literário se deslocassem para o referido espaço para compartilhar do inusitado lançamento. Um grupo de teatro amador composto por atores da Universidade Estadual de Campinas foi responsável por algumas performances de poemas do livro. Prestigiaram Hilda, Jaguar, o ilustrador da obra, o escritor Mora Fuentes, a artista plástica Olga Bilenky e até os que não concordavam com a nova fase literária, como Lygia Fagundes Telles (Destri e Folgueira, 2006).
Apesar da obra e do lançamento incomuns, a autora continuava pontuando que o livro não adquiriu a repercussão desejada: "Fiz uma sátira, um livro onde o aspecto político é o principal, e os críticos acharam que era simplesmente pornografia. Os jornais também boicotaram, numa autêntica censura" (Rosa, 1992, p. 4). Uma das justificativas apontadas pela escritora para esse silêncio era que alguns críticos ficaram escandalizados e outros tinham vergonha de falar sobre a obra, apesar de considerarem ter ficado uma bandalheira agradável e perfeita: "Este livro, Bufólicas, que eu fiz com ilustrações do Jaguar, é uma crítica de costumes engraçadíssima. Na época, o Jaguar ficou muito triste, porque não foi noticiado em lugar nenhum. Só disseram que nós éramos dois velhos indecentes" (Mendes, 1994. p. 49). Hilda Hilst afirmou que decidiu realizar uma ópera bufa para rir das bandalheiras que o país vivenciava: "A situação do país está entre o temor e o humor. O presidente que chamam presidente é o antipresidente. A literatura que chamam literatura é a antiliteratura. Daí eu resolvi escrever historinhas infantis pelo avesso" (Freitas, 1992, p. 1).
Podemos afirmar que essas estratégias forçaram passagem em O caderno rosa de Lori Lamby (1990). A narradora deixa escapar em um trecho o desejo de escrever a história de um príncipe e de outro He-Man, mas que lamberia a princesa, e revela que iniciou um caderno só com histórias para crianças, intitulado "O cu do Sapo Liu-Liu e outras histórias", composto de histórias fundas e tênues "como nas fábulas di tio La Fonténe" (Hilst, 2005, p. 100). Além disso, o livro traz o que poderíamos reconhecer como uma espécie de ensaio para Bufólicas, um conto cujos personagens eram um rei, um mago e uma bruxa, invertendo o final feliz das histórias infantis e destacando, ao final, outra moral. No mesmo sentido, observamos que a ideia de elaborar um livro de poesias obscenas perseguiu a autora enquanto ela escrevia as narrativas da trilogia, não apenas por esses indícios encontrados n'O caderno rosa, mas pela informação de que o narrador de Cartas de um sedutor (1991) escreveria uma história intitulada "Filó, a fadinha lésbica", descrevendo o enredo posteriormente divulgado no poema homônimo de Bufólicas.
As estratégias empreendidas nessas poesias também atingiram, de certo modo, suas produções posteriores. Exemplo disso são as aproximações que podem ser feitas entre algumas das crônicas que publicou no Correio Popular entre 1992 e 1995. Muitos textos se utilizam do estilo de contos de fadas, chegando, inclusive, a apresentar moral da história invertida, a exemplo das crônicas "Descida", "Capitalismo e outros ismos", "Domingo", "Hora de desligar, negada!" e "Voz do ventre?". Além da estrutura, grande parte das crônicas amplia e explicita as críticas empreendidas ao campo político e ao campo literário brasileiro, perpassando-as do sentimento de que a indignação não deve implicar perda de humor e que o riso, ao contrário da cólera, consiste na melhor saída para enfrentar os dilemas e contradições do Brasil. Em um país pelo avesso, só uma crítica contundente e pautada no riso garantiria a sobrevivência do escritor sério, mesmo que para tanto ele metamorfoseasse suas obras no intuito de satisfazer os leitores. Embora sua intenção pornográfica não tenha obtido o êxito desejado, Hilda Hilst afirmava ainda preferir o Brasil e, certamente, as contradições desse espaço em devir encaminharam trajetos e memórias influenciando seu projeto literário ao ponto de alcançar uma dicção peculiar: "Apesar de toda a bagunça, adoro o Brasil. Tenho paixão por esse nosso jeito bandalho de ser. E não seria fácil me expressar como preciso em outra língua. Teria de estudar anos e eu aprecio bastante a sonoridade do português" (Rosa, 1992, p. 4).
Desse modo, além de fonte para a história e crítica literária, Bufólicas deve ser pensado como projeto significativo para a compreensão de como são construídas determinadas estratégias de distinção e produção de crenças no campo simbólico. Como um "repositório" da memória de um campo de produção cultural que, na maioria das vezes, é considerado como a própria memória nacional, torna-se objeto importante para a análise da construção de legados. Aqui entendidos, conforme a concepção de Luciana (Heymann, 2004), como investimento social por meio do qual uma determinada memória individual se torna exemplar ou instituidora de um projeto criador, um trabalho social de produção da memória:
A produção de um legado, tal como o estou definindo, depende, para além da intenção do indivíduo ao qual se associa, da ação de sujeitos que expressem a "necessidade" de recuperá-lo, que sejam os porta-vozes do risco do esquecimento, da "dívida" com a memória desse personagem e da importância dessa recuperação para a "memória nacional", categoria na qual cumpre incluir o legado e os objetos que o simbolizam (Heymann, 2004, p. 5).
Em outras palavras, as obras literárias contribuem para a monumentalização da imagem de seu criador, formando um campo de lutas que revela e vela valores e interesses. No caso em investigação, Bufólicas fomenta "uma discussão sobre o papel de leitores, escritores e editores dentro do campo literário brasileiro" tendo por objetivo o exame das "relações entre os representantes das três instâncias de circulação do texto, principalmente com o tratamento sarcástico dispensado aos editores, [...] Hilda Hilst desconcerta e faz pensar nos sistemas de valoração do texto literário no Brasil" (Borges, 2009, p. 143).
Não é por acaso que a moral da primeira estória ou conto de fadas poético pode ser estendida para toda a sua obra: "A palavra é necessária diante do absurdo". Em Bufólicas, a poetisa sem aura conseguiu rir de si mesma e dos costumes, desafiando as fronteiras da linguagem e exemplificando como nossos tabus também podem ser objetos de lirismo em uma humorada transição "dos contos de fadas aos contos de fodas". Hilda Hilst demonstrou uma lucidez e coerência na configuração de sua literatura, ciente de que não se sai impune quando se parodia a moral dominante e, sentindo na própria pele, achou que valeria a pena pagar esse preço. Trajetória pautada na esperança de que o corpo e o corpus literário de autoria feminina fossem respeitados no campo de produção simbólico e, por isso mesmo, ousou ao provocar as orientações em voga nesse espaço e ao reconhecer as práticas literárias como jogos de poder.
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-
1
"A Danuza Leão fazer um livro sobre boas maneiras aqui é o mesmo que abrir uma fábrica de guardanapos na Somália. Outro absurdo é o Paulo Coelho falar sobre coisas que ele sabe serem mentiras. Em Bufólicas criei a 'Drida, a maga perversa e fria'" (Rosa, 1992, p. 4).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
May-Aug 2016
Histórico
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Recebido
Mar 2015 -
Aceito
Ago 2015