Open-access Gabriela Aguerre - O quarto branco. São Paulo: Todavia, 2019

Aguerre, Gabriela. O quarto branco. São Paulo: Todavia, 2019

Conta a lenda que três uruguaios estavam a bordo do Titanic no momento do naufrágio, em 1912. Um deles carregava uma marca especial: Ramon Artagaveytia era sobrevivente do incêndio que afundara o navio America, quarenta anos antes. “Alguém que sobreviveu a um naufrágio, mas não a dois”, pensa diante do túmulo do viajante, em Montevidéu, a protagonista de O quarto branco (Aguerre, 2019). De naufrágios e recomeços se constrói o romance de estreia da também uruguaia Gabriela Aguerre. Espécie de jornada particular em busca de uma identidade aos pedaços, a narrativa gira em torno de Glória, que retorna ao país de origem para resgatar uma história de sucessivas perdas.

Glória tem 40 anos, acaba de perder o emprego e vive com o companheiro húngaro em São Paulo, cidade para onde migraram seus familiares:

Nasci no Uruguai no começo da tarde de uma segunda-feira de outono. Fazia pouco que o país estava em ditadura, palavra que aprendi a pronunciar em português, quase sempre falando baixo, dura, intangível, talvez na mesma época em que ouvi meus pais cochichando um com o outro sobre uma mala que chegara à porta da casa de uma conhecida, uma mala que continha partes do corpo de um amigo deles (Aguerre, 2019, p. 18).

O nascimento é duplo, já que foram gêmeas, Glória e Gaia. No entanto, a morte de uma delas, ainda no primeiro dia de vida, acaba por acarretar uma sensação constante de incompletude na irmã: ao morrer, elas têm seus nomes trocados, e assim é enterrada Glória e rebatizada Gaia. No diário mantido pela mãe, a personagem se depara aos 17 anos com a revelação da troca de nomes. Gêmeos têm uma ligação muito singular, e essa simbiose irá reverberar de distintas formas. Anos depois, já adulta, ao perder um filho e saber-se impossibilitada de engravidar novamente, a protagonista do romance decide partir rumo ao Uruguai, “para pegar seu nome de volta” (Aguerre, 2019, p. 17).

O vazio da inexistência da narradora é o motor dessa busca, compelida pela tentativa de elaborar a dor de uma perda concreta, a do filho abortado, e a de uma perda simbólica, a identidade que lhe foi confiscada na troca de nomes. A falência do projeto de prolongar a linhagem acende nela a necessidade de escavar sua origem. No caminho, duas figuras masculinas importantes - o pai, homem de passado boêmio, cantor de tangos e milongas, figura que ensina à personagem o calor do afeto e da herança. No Uruguai, o tio Elazar, espécie de elo com o país e a história familiar, sujeito que a acompanha em um mergulho no passado e nesse “inferno de ter que me reinventar” (Aguerre, 2019, p. 15).

A narrativa se constrói em torno da percepção da personagem acerca de si e do lugar na família, bem como da condição de estar fora de sua cultura, percebida na relação diária com as palavras, sempre entendidas por meio de um incômodo:

Ao ouvir o primeiro contato de um ser humano feito em espanhol, geralmente o oficial da alfândega, orgulhosamente eu devolvia o mesmo sotaque, como quem revê um parente, estou de volta, demorei mas cheguei, agora fico, o estranho virando familiar, reconhecendo-me imediatamente, ouvindo minha voz não mais como se fosse de outra pessoa, mas de mim mesma. Encaixada (Aguerre, 2019, p. 55).

Por diversas vezes surge no texto a força imagética da água, seja na visão do “mar que é rio” na capital uruguaia, ou na presença da ossada de baleia cravada na pequena praia a que Glória se dirige para realizar o ritual de despedida da irmã. Ossos, cinzas, pele, pintas, manchas, as imagens se sucedem evocando corpos que se transmutam em fragmentos ou carregam as marcas indeléveis do tempo. Sim, o romance evoca dores e laços de família. Há aqui um desejo de mapear sensações e nomear estados de espírito, mais do que acontecimentos. Engana-se, porém, quem espera uma narrativa lacrimejante ou um romance às voltas do umbigo. O corpo encenado aqui é um corpo político, de quem migra e deixa o país de origem em função da ditadura.

Em Luto e melancolia, Freud sustenta ser necessário um trabalho para superar uma perda, que inclui, entre outros rituais, enterrar o corpo e chorar pelo morto. Glória parece incapaz de realizar uma e outra tarefa do enlutado, já que o corpo da irmã está distante e carrega seu próprio nome, e o do filho se dissolve em seu próprio organismo. Acrescente-se o fato de que, nas ditaduras latino-americanas, inúmeros foram os desaparecidos sem deixar rastro, somando-se à dor da perda de familiares o drama de muitas vezes não haver corpo para enterrar, gerando um pesar sem fim, pois inexiste a possibilidade de se realizar o fechamento desse ciclo.

Em O quarto branco, a presença da vida pública se faz em cruzamento com a tessitura do privado. Mais do que nunca, vale retomar um dos motes do feminismo das décadas passadas - o pessoal é político. A proposta das teorias feministas de questionar a separação entre as duas esferas reafirma que “não há experiência pessoal que não seja política, e vice-versa” (Leal, 2017, p. 131). Assim, público e privado não se encontram em polos dicotômicos, mas entrelaçados. Tais esferas são atravessadas de forma permanente pela necessidade de verter em palavra a experiência do deslocamento, como nas cartas enviadas pela mãe da protagonista à avó no Uruguai, “contando como era morar no novo país, como era a vida no exílio, palavra que não se usava mas que se sentia dentro” (Aguerre, 2019, p. 33). Esse é o grande salto de Aguerre, que intuiu não bastar um assunto relevante ou um suposto pacto biográfico para se fazer boa literatura. A intenção está toda lá, mas o mergulho na linguagem é que propicia ao leitor e à leitora o solavanco que todos queremos ao abrir as páginas de um livro. E ele virá.

Verdade seja dita. Não é nada fácil escrever em português no Brasil depois de Clarice Lispector. Sobre isso já nos advertiu Adriana Lisboa, ratificando o desafio de se inscrever em uma linhagem assombrada pela figura da autora nascida na Ucrânia. Clarice é uma espécie de matriz dessa estirpe, a escrever em língua que não era a sua de origem, igualmente marcada por deslocamentos. No que tange à literatura brasileira mais recente, aparentemente estamos vendo nascer uma nova categoria, a de ficcionistas nascidas em países próximos que escrevem e publicam em nosso idioma. Para ficar em poucos exemplos, Carola Saavedra, nascida no Chile, e Paloma Vidal, na Argentina. Ambas vindas para o Brasil ainda crianças, da mesma forma que Gabriela Aguerre. Todas filhas do feminismo, como sintetizou Beatriz Resende (2008) a propósito da literatura de Vidal.

Mas não se resume a isso o traço que as justapõe. Do contraponto entre culturas, emergem narrativas que se apropriam igualmente da marca incontornável da ditadura militar. Todas filhas de exilados, acrescentaria eu. Em Mar azul (2012), de Paloma Vidal, e Inventário das coisas ausentes (2014), de Carola Saavedra, o cenário político surge mais do que como pano de fundo, ele é mola propulsora do itinerário de sujeitos compelidos a trocar de país e de idioma em função de regimes implantados à força. Essa geração, nascida nos anos de chumbo, parece tomar para si a urgência de narrar, hoje mais do que nunca, o horror de governos autoritários e ideologias perversas. Sobre tal tarefa, quase dever, Jeanne Marie Gagnebin (2009, p. 57) aponta:

[...] testemunha não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos [...]. Testemunha seria também aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar a esboçar uma outra história, a inventar o presente.

Herdar o trauma, colocá-lo em palavras e inventar o presente, esse parece ser o lugar de algumas de nossas ficcionistas, testemunhas por via indireta desse momento. Condensam, talvez, a condição de filhas do feminismo e de filhas da ditadura. Não vivenciaram diretamente, mas recebem como herança a memória da violência, base do movimento de saída de seus familiares, razão e motivação do deslocamento. Edward Said, ao pensar a condição do exílio, nos fala de uma perda terminal, “uma fratura incurável entre o ser humano e um lugar natal” (2003, p. 44). O crítico afirma que o exílio não é uma questão de escolha: se nasce nele ou ele nos acontece. A despeito de toda dor, Said destaca a possibilidade de uma pluralidade de visão, o despertar de uma consciência contrapontística, pois o olhar do exilado consegue enxergar ao mesmo tempo duas culturas, promovendo um diálogo insuspeitado. Afinal, em larga medida, a moderna cultura ocidental é obra de exilados, imigrantes e refugiados, alerta o intelectual palestino.

Dessa forma, é possível pensar que, a exemplo de Gabriela Aguerre, autoras que carregam a história do exílio (não por escolha, como afirma Said, mas contingência) alcançam uma dupla mirada, a de mulheres em uma sociedade ainda profundamente marcada por valores patriarcais, e a de estrangeiras, deslocadas de seu espaço: “acho estranho o idioma que falam, porque é também o meu mas ainda não me acostumei, e todas as minhas informações ainda são processadas em espanhol, depois vertidas ao português com algum esforço, o recipiente todo misturado, o anzol voltando às vezes com a palavra errada, parecendo certa” (Aguerre, 2019, p.106-107). Uma potente luta que não cessa - com as palavras e com a memória da violência que assolou nossos países. Na bagagem, o desejo da paz de um quarto branco.

Referências

  • AGUERRE, Gabriela (2019). O quarto branco. São Paulo: Todavia.
  • FREUD, Sigmund (2011). Luto e melancolia. Tradução, introdução e notas de Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify.
  • GAGNEBIN, Jeanne Marie (2009). Lembrar escrever esquecer. 2. ed. São Paulo: Editora 34.
  • LEAL, Virgínia Maria Vasconcelos (2017). Apesar dos pesares: mães em luto em narrativas contemporâneas. In: DIAS, Ângela Maria; CHIARELLI, Stefania (Org.). Atores em cena. O público e o privado na literatura brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Oficina Raquel. P. 111-132.
  • LISBOA, Adriana (2008). Escrever no Brasil depois de Clarice Lispector: armadilhas ficcionais. Journal of Iberian and Latin American Studies, Adelaide, v. 14, n. 2-3, p. 141-145.
  • RESENDE, Beatriz (2008). Contemporâneos: expressões da literatura brasileira do século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra.
  • SAAVEDRA, Carola (2014). Inventário das coisas ausentes. São Paulo: Companhia das Letras.
  • SAID, Edward (2003). Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras .
  • VIDAL, Paloma (2012). Mar azul. Rio de Janeiro: Rocco.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2019
  • Aceito
    06 Ago 2019
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