Resumo
Este texto trata da produção literária de Laura Castro, romancista, poeta, artista visual baiana, além de curadora e professora, cujas práticas artísticas perscrutam os modos de expansão do campo literário brasileiro. Esse alargamento situa-se tanto no que diz respeito à publicação e circulação do livro como no que se refere a uma literatura marcada pelo não pertencimento a um só gênero, fazendo da experimentação, da hibridização e do uso de suportes distintos os seus traços constituintes. Para tanto, em um primeiro momento, avalia como o “ajuntamento coletivo”, próprio de seu trabalho, institui circuitos de colaboração independentes. Em seguida, comenta os seus dois últimos livros, O armarinho (2018) e Inês: pequena antologia do passado (2020), para avaliar o seu trânsito (de suportes, gêneros, formas), em que os experimentos e as experiências intimistas do primeiro se consolidam em uma linguagem mais sintética que se abre para questões de herança, ancestralidade e apagamento do passado. Autores tão díspares como Derrida, Garramuño, Devulsky e Munanga ajudam a compor essa reflexão.
Palavras-chave: literatura brasileira contemporânea; campo literário expandido; livro-objeto
Abstract
This work is dedicated to the literary production of Laura Castro, a novelist, poet, visual artist from Bahia, Brazil, as well as a curator and a teacher, whose artistic practices scrutinize the modes of expansion of the Brazilian literary field. This enlargement takes place both with regards to the publication and circulation of the book and to a literature marked by not belonging to a single genre, making experimentation, hybridization, and the use of different supports its constituent traits. To do so, at first, this text assesses how the “collective gathering”, characteristic of the author's works, establishes independent collaboration circuits. Subsequently, it comments on Castro's last two books, O armarinho (2018) and Inês: pequena antologia do passado (2020), to assess their transit (of supports, genres, forms), in which the experiments and intimate experiences of the first are consolidated in a more synthetic language that opens up to questions of inheritance, of ancestry, and of erasure of the past. Authors as diverse as Derrida, Garramuño, Devulsky, and Munanga help develop this reflection.
Keywords: contemporary Brazilian literature; expanded literary field; book-object
Resumen
Este texto trata de la producción literaria de Laura Castro, romancista, poetisa, artista visual del estado de Bahia, además de crítica de arte y profesora, cuyas prácticas artísticas estudian los modos de expansión del campo literario brasileño. Esa ampliación se sitúa tanto en lo que se refiere a la publicación y circulación del libro, como también a una literatura marcada por la no pertenencia a un solo género, haciendo de la experimentación, de la hibridación y de la utilización de soportes distintos sus rasgos constituyentes. Para esto, en un primer momento, evalúa como la “reunión colectiva”, propia de su trabajo, instituye circuitos de colaboración independientes. En seguida, comenta sus dos últimos libros, O armarinho (2018) e Inês: pequena antologia do passado (2020), para evaluar su tráfico (de soportes, géneros, formas), en que las experimentaciones y las experiencias intimistas del primero se consolidan en un lenguaje más sintético que se abre para temas de herencia, ancestralidad y borradura del pasado. Autores tan diversos como Derrida, Garramuño, Devulsky y Munanga ayudan a componer esta reflexión.
Palabras clave: literatura brasileña contemporánea; campo literario expandido; libro-objeto
RIO QUE CORRE AO CONTRÁRIO
Em 12 de junho de 2022, no festival literário de rua criado em São Paulo (SP), a Feira do Livro, cerca de 400 escritoras foram fotografadas nas arquibancadas do Estádio do Pacaembu como resultado de um chamado feito nas redes sociais pelas escritoras Giovana Madalosso, Natalia Timerman e Paula Carvalho. No mês anterior, Madalosso, ao deparar com uma fotografia de Art Cane feita em 1958, conhecida como Um grande dia no Harlem, na qual estão reunidos importantes músicos de jazz, teve a ideia de repetir o feito; dessa vez, com mulheres escritoras1.
Antes mesmo do êxito do chamado, já se imaginava que, no Brasil, existissem muito mais escritoras do que deixam entrever as movimentações no mercado editorial. Talvez não se esperasse que esse acontecimento, previsto para ocorrer uma única vez, fosse reproduzido país afora, apontando para um número expressivo de autoras e, ao que tudo indica, inaugurando outra cena literária até então percebida como predominantemente feita por homens. Essa outridade não se refere apenas à troca do gênero masculino pelo feminino nas capas de livros. Surgem daí modos de fazer distintos, novas dicções, outras sensibilidades que, ao serem reconhecidas, expandem o campo literário, consubstanciando uma visão menos essencialista da literatura de autoria feminina.
Cada vez mais, a reivindicação de que a mulher escreva sobre qualquer assunto, no registro de linguagem que lhe for mais adequado, se torna premente. Percebe-se um desejo de afastar-se das predeterminações, de modo que a autoria feminina esteja mais ligada ao nome da escritora e aos seus modos de subjetivação — e dessubjetivação — do que à ideia de uma grande comunidade escrevendo um livro total reconhecido como literatura feminina. Nesse caso, as muitas fotografias surgidas após o gesto inaugural apontam para a diferença e dizem tanto sobre o que excede como sobre o que falta no entendimento de como tem sido produzida a literatura de autoria feminina hoje no Brasil. Entretanto, com as provas materiais do deslocamento territorial, dadas pela paisagem de diferentes cidades, já se pode dizer que boa parte dessa literatura é feita fora dos espaços hegemônicos de publicação e crítica, em experiências editoriais que, muitas vezes, reúnem coletivos que movimentam a cena cultural das cidades.
Na fotografia feita nas escadarias da Fundação Casa de Jorge Amado das escritoras que vivem em Salvador (BA)2, não se vê Laura Castro, embora seja nessa cidade que a artista visual, poeta, romancista, editora e professora vive e produz a sua obra. As suas práticas artísticas, que ocorrem à margem das grandes produções editoriais, são um bom exemplo do movimento citado anteriormente. Em portfólio disponível na plataforma Issuu, o seu trabalho é assim definido:
Laura Castro é movida pelo desejo de experimentar diferentes possibilidades materiais da escrita. Pesquisa a criação literária experimental, suas materialidades e experiências. Acredita na autopublicação como estratégia política para a desconstrução do campo de forças do mercado editorial e o alargamento do campo literário brasileiro (Castro, 2019).
Essa apresentação especifica bem as práticas artísticas de Castro, tanto no que diz respeito à sua dicção múltipla como à filiação a projetos coletivos que dialogam com a memória e com a vida das comunidades. Cofundadora do coletivo de artes gráficas Sociedade da Prensa, com sede em Salvador, desenvolveu projetos editoriais e de curadoria, como a Paraguassu Feira de Impressos, que durante três dias de 2017 reconfigurou a paisagem da área externa do Palacete das Artes, de Salvador, com ateliês, oficinas, apresentações artísticas e bancas de editoras populares e independentes. Em 2019, com um grupo de pesquisadores e artistas, criou as Edições Zabelê, projeto de publicações com a comunidade escolar do Colégio Estadual Indígena Kijetxawê Zabelê, localizado na aldeia pataxó Kaí, no extremo sul da Bahia. Essa residência artística culminou na publicação de um livro destinado a escolas indígenas e não indígenas com narrativas de resistência e retomada da comunidade pataxó3. Atualmente, coordena o Projeto Livro-Lugar, com a condução de oficinas de produção poética para a edição de livros de estudantes de comunidades indígenas e tradicionais4.
O estar-junto, formalizado em projetos editoriais e de curadoria, não está apartado da produção artístico-literária de Laura Castro. Seu fazer configura-se como um manancial de partilhas que, como dito em seu portfólio, está a serviço “da desconstrução do campo de forças do mercado editorial e [d]o alargamento do campo literário brasileiro” (Castro, 2019). Lembra o gesto dos movimentos que furaram a bolha da produção e se tornaram catalogáveis na história da literatura brasileira, como o dos poetas marginais, pois Castro, além de criar, é editora de seu trabalho, o que lhe dá uma liberdade que incide nos diversos formatos e suportes de sua literatura. Como está posto em um de seus livros, O armarinho (Castro, 2018, p. 111), do qual trataremos adiante, sua poética é uma política da delicadeza, projetada pela figura da multidão:
desliguei o barco e fui pra rima, pro desafino de passos.
mas ao invés da gelada solidão de inverno, uma multidão.
uma multidão gentil a se esquentar de delicadeza, essa política (grifo do original).
Não se trata de qualquer multidão, que produza solidão pelo anonimato, e sim de uma “multidão gentil” que, por isso, se esquenta mutuamente de delicadeza. A comunidade instada por Castro se baseia no signo da amizade. O “ajuntamento coletivo” — como se autodenominava a Sociedade da Prensa — funciona como propulsor de novos projetos, instituindo circuitos de colaboração independentes e não hegemônicos que agregam singularidades de sujeitos e histórias que permaneceriam soterradas se não fosse tal abertura.
A autoria do projeto gráfico Ympressos Paraguassu (Castro, Oliveira e Ribeiro, 2017), livro-objeto que refaz o percurso de antigas tipografias de São Félix e Cachoeira, cidades do Recôncavo Baiano separadas pelo Rio Paraguaçu, é partilhada com uma série de colaboradores identificados na última página5. O uso de fontes tipográficas oriundas dessas gráficas na feitura do livro, a reprodução de antigos documentos, mapas e anúncios impressos e as “reminiscências gráficas” dos tipógrafos que ainda trabalham lá consolidam a força composicional do livro. O projeto origina-se da prática de derivar pesquisa em arte e expressa o “desejo de cruzar Salvador”, “de expandir a … pesquisa para além da capital” (Castro, Oliveira e Ribeiro, 2017), o que leva o grupo até as cidades do Recôncavo Baiano, em uma viagem-experiência narrada em minidocumentário, apresentado posteriormente em sarau num antigo casarão de Cachoeira, onde também o livro-objeto foi lançado, como parte da programação da Feira de Impressos, já mencionada. Como está dito em suas páginas finais, a concepção e a realização do livro são marcadas por “encontros, afetos e utopias gráficas” (Castro, Oliveira e Ribeiro, 2017).
A composição do livro também institui significados, chamando a atenção para o objeto. A disposição das páginas apresenta aberturas inusitadas, fugindo do padrão imposto pelo seu tamanho. Algumas folhas alargam-se de um lado a outro por não haver corte lateral; há também papel-manteiga entre as páginas comuns, uma folha fina de cor amarela ou branca com símbolos gráficos ou, ainda, pontilhados que exigem o trabalho do leitor de cortar a página. Os anacronismos do projeto gráfico obrigam o uso de espátulas para abrir folhas, propiciando somente assim acesso ao que estava camuflado. Forma-se, desse modo, uma espécie de catálogo de fontes de tamanhos e cores diferentes ao dispor do freguês. A própria empreitada é continuamente referida, sendo o rio com suas águas transbordantes — referência à enchente de 1989 que inundou a cidade de Cachoeira — uma imagem recorrente (Castro, Oliveira e Ribeiro, 2017):
A página
Feito um mapa vazado;
P a l a v r a m a r g e a n d o r i o
Ou, em outra página, uma frase isolada no centro em letras maiúsculas:
COMO IMPRIMIR O RIO?
Com tal pesquisa, a rota traçada não é apenas a da capital ao interior; é também aquela que expande os tipos de escrita da memória das tipografias antigas, em que se precisa considerar a montagem manual. Em um tempo de tantos recursos tecnológicos, da imediatez, o declínio dos procedimentos das antigas gráficas ganha sobrevida graças ao “saber dos mestres gráficos” e do gesto anacrônico da Sociedade da Prensa (Castro, Oliveira e Ribeiro, 2017):
escrever as cidades geminadas. germinar no papel o tempo das máquinas de outro tempo. Calvino falando em leveza. A imagem dos bytes ao contrário das prensas. Não parar a escrita. A QUE MÁQUINA VEM ESSA ESCRITA? A QUE ESCRITA VEM ESSA IMAGEM? NÃO PARAR DE ESCREVER.
Calvino (2010), em sua conferência sobre a leveza presente no livro Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas contrapõe a leveza do software ao peso do hardware, concluindo que “as máquinas de metal continuam a existir, mas obedientes aos bits sem peso” (Calvino, 2010, p. 20), o que Castro traduz com a imagem dos bytes em contraposição às prensas das gráficas, mas sem valorar a leveza dos bytes. Ao contrário, é o peso das máquinas antigas que ganha a prevalência sobre a escrita. Apontar sobrevivências, no sentido dado por Didi-Huberman (2011), a contrapelo do pensamento de uma época, é uma maneira de estabelecer um saber outro ou, ao menos, demonstrar que este pode subsistir.
O imperativo de “não parar a escrita”, por meio da alusão ao trabalho manual das gráficas — feito por mãos negras, como está dito nas referências do livro Inês: pequena antologia do passado (Castro, 2020) —, sugere que a leveza em Castro diz respeito aos modos de fazer comunitários e ao desprendimento do uso de uma forma única. Fazendo da pesquisa experimental o gesto que incide sobre os modos como constrói a sua obra, a autora elabora uma temporalidade própria, alheia ao peso das exigências editoriais, como demonstrado a seguir.
MAS SEMPRE HAVIA DE TER O CARNAVAL
Autora de livros como Inês: pequena antologia do passado, de 2020; O armarinho e Fique são, romance e livro de poemas geminados, de 2018; Pé de palavra, infantil de 2016; O telefone tocou novamente, dramaturgia de 2014; Fio condutor, livro-objeto de 2013; e Cabidela: bloco de máscaras, de 2011, Laura Castro atribui grande importância à visualidade em seu trabalho artístico-literário, cuja variedade de formato, suporte e gêneros brinca com a ideia de origem.
Do minilivro intitulado O telefone tocou novamente ao tamanho gigante de O armarinho (30 cm × 30 cm), cujo corte centralizado das últimas 40 páginas abriga o livro Fique são, em espaço 14 cm × 14 cm, a experimentação de formas parece estar relacionada à determinação de borrar quaisquer noções de fechamento e de completude sugeridas pelos suportes. Estabelecendo trânsitos distintos, Castro ressignifica a sua escrita a cada vez que muda de lugar.
Dois de seus livros, antes de serem reordenados e transpostos para as páginas de um livro-objeto, foram publicados em blogue6. A reordenação é condição sine qua non para a transposição, constituindo objetos autônomos, sem relação de dependência. Cada um pode ser usufruído em sua inteireza, embora, por meio de correlações, se veja que o suporte inicial funciona como uma etapa de investigação poético-visual que se projeta em outro suporte cujo gênero textual é mais definido. Elizangela Santos (2016), no texto O livro-objeto de Laura Castro, ao comentar a publicação de Cabidela: baile de máscaras (2011), aponta esse trânsito: “Reunindo textos de seu blog homônimo, mantido desde 2008, Castro estreita o diálogo entre a virtualidade da internet e o livro impresso, produzindo uma obra cujos elementos se aproximam do meio virtual”7.
Assim, O armarinho é tanto o blogue, escrito entre 2011 e 2015, quanto o livro, publicado em papel em 2018. Nas palavras de Castro (2018, p. 179):
O armarinho é um romance gestado na rede, tendo o blog como dispositivo de uma criação literária experimental. Pra mim é uma experiência da autoria como lugar da impermanência, da provisoriedade, de não saber onde esse barco vai dar, ali, na experiência de escrita de cada postagem.
A experiência anterior da escrita do blogue gera o livro como reescrita, mas não apenas. O trânsito entre um e outro gera contaminações que modificam o próprio status do que foi produzido, advindo daí o “lugar de impermanência”. Quando se observa o que já existe como obra, sempre se é tentado a perguntar: o que vem depois? O que será ainda inventado? Algumas das linhas de força que atravessam essa obra, revelando pontos comuns entre os trabalhos, como a questão do feminino, a relação com a fotografia e a afetividade como propulsora da escrita, auxiliam na análise desse movimento descontínuo.
O formato grande d’O armarinho (2018), em papel rosa bebê, com fonte de cor azul, capa dura com uma grande letra a gravada em baixo relevo, sem nenhuma outra informação adicional, seja título, seja autoria, seja editora, é mais afeito às medidas dos livros de arte do que aos de literatura, o que já marca a sua diferença, ou, se quisermos pensar em um termo comum à produção literária brasileira contemporânea, a sua inespecificidade, conforme dissertou Garramuño (2014).
No projeto gráfico, a disposição textual carrega muitas surpresas. Raramente o texto se rende à justificação das margens; ora está alinhado à esquerda, ora à direita, ora centralizado. Ora ocupa a parte de baixo, ora a parte superior. Algumas vezes, é suprimido, deixando a página em branco, ou, então, esta é quase que completamente ocupada por uma frase curta por causa do tamanho aumentado da fonte. Impossível, com essa descrição, não pensar na tradição da forma imposta pela tradução e leitura de O lance de dados, de Mallarmé, realizada pelos irmãos Campos e Décio Pignatari (2013) e seus desdobramentos na poesia concreta. A quebra de frases como se fossem versos, interrompendo o contínuo do relato e obedecendo mais à disposição rítmica do que aos sentidos do enredo, e o aproveitamento inusual dos espaços em branco da página (nesse caso, rosa) referendam uma linguagem bipartida, em que tanto a forma como o conteúdo importam.
A referência advém das artes visuais, nomeadamente dos procedimentos adotados por pequenas editoras na feitura de livros de artistas, livros-objeto ou livros-arte, como forma de diferenciar seus produtos, confeccionados de modo manual ou bem próximo a isso. Em O armarinho (2018), o livro performa as poéticas distintas que o compõem, ao narrar a história de Rosa, uma jovem mulher que interrompe a sina herdada da mãe de viver à espera do amado “canoeiro”, quando decide ela mesma ir ao mar, deixando de viver à beira. Ao habitar o barco, com o sugestivo nome de Pradianti, os efeitos de sua herança interrompida logo se fazem presentes: Rosa não está subordinada ao amor romântico que a destina a um único homem; vários amores ocupam o seu coração, o qual oscila entre a desrazão das paixões e a razão configurada na família: o pai, Chico, o irmão, Pedro, e a mãe — beira-mãe.
Em uma das últimas postagens do blogue, antes das duas performances em vídeo para o lançamento do livro, ambas protagonizadas por Castro, há um contrabando entre autora e personagem, ou melhor, uma doação, um endereçamento, da criadora à sua criatura, deixando à mostra os resquícios de um tom autobiográfico que atravessa todo o romance em pequenas frases, em advertências e no posfácio, à guisa de explicação:
de mim
mãe mulher água sereia cabocla loba y poeta
dessas muitas que soul
para Rosa
essa moça que imagina histórias da beira, entre barcos e trampolins, canoeiros e ciganas, entre vertigens e noites de amor.
enxugo
no pano de prato as mãos sujas do sangue das canções /sic/
Rosa Morena, de Caymmi, de João,
Rosa Tristeza, de Batatinha
Rose, de Ederaldo,
Maria Rosa, de Lupicínio, de Paulinho,
Rosa Maria, na beira da praia.
Estranha Rosa, de Banhart & Amarante8
Rosa não é uma só; ela é a junção de várias Rosas “ficcionais” do cancioneiro brasileiro, resultado de um apurado processo intertextual, explicitado no verso da canção “Drama”, cantada por Maria Bethânia (1972), a quem o livro é dedicado: “Limpo no pano de prato / as mãos sujas do sangue das canções”. Acontece que o sentido latente da composição do romance parece estar em outros versos dessa mesma canção: “Eu minto, mas minha voz não mente / Minha voz soa exatamente / De onde no corpo da alma de uma pessoa / Se produz a palavra eu”.
O gesto autoficcional sugerido presentifica-se na advertência que abre o romance, ao predizer: “Qualquer semelhança é mera coincidência”, frase geralmente usada para garantir que nenhum efeito legal incida sobre uma narrativa ficcional que estabelece pontos de contato com o real. Por outro lado, ao menos uma presentificação não pode ser apontada como “coincidência”: Laura Castro é a imagem feminina das fotografias customizadas que estão no livro, incluindo uma quando criança acompanhada de seu pai no que parece ser a proa de um barco no meio da água. Na imagem, lantejoulas espalhadas nos recantos também recobrem partes do corpo de seu pai, chamando a atenção para a figura daquele que é uma das personagens do romance. Assim, Castro cria “espetáculos de realidade”, expressão de Reinaldo Laddaga, citado no texto “Práticas inespecíficas”, presente em Indicionário do contemporâneo (Pedrosa et al., 2018, p. 210).
A escrita com o corpo todo — que é uma frase de seu romance — é, nesse sentido, a explicitação do procedimento artístico de constituir o seu corpus por meio de um corpo autobiográfico que, mais do que uma presença em si, é a encenação de si, de suas histórias, de seu passado e do presente da escrita. O nível ficcional esgarça-se pela performance do autobiográfico, embora aquele seja mantido não apenas pela centralidade do aspecto romanesco da história narrada, mas também pelos elementos que se referem à vida. Por exemplo, as fotografias, que tendem a marcar uma referência explícita ao real, estão recobertas por lantejoulas, de modo que a interferência desses traços luminosos evoca a fantasia, a suspensão dos dias comuns que ocorre no período do carnaval, personificado por Rosa, com sua alma carnavalesca, sempre disposta ao arrebatamento dos corpos e das festas. Em suma, remete-se à ficcionalização de si.
Mais do que no blogue, em que se preservam as suas cores vivas e variadas, no livro, as lantejoulas, restritas às cores azul e branca, aludem ao mar, às ondas quando quebram na praia. O armarinho decompõe-se em ar marinho, mantendo-se como lugar de guarda de memórias, de alinhavos de escrita:
eu não era começo-meio-fim, era gotas de parágrafo, de recortes de peças de armarinho me fazia. rolos e mais rolos e mais rolos de memórias. presos no corpo, enroscados de canções, de aquarelas, mas eu também não sabia, eu também aprendia a nadar. com retalhos, com restos, eu bordava cadernos, eu firmava na agulha alguma vida. era a escrita meu porto (Castro, 2018, p. 62).
Mais adiante, em uma página com algumas poucas lantejoulas, lemos em formato grande: marítimos solenes profanos. Há uma formulação da memória construída nas imagens, que combinam elementos heterogêneos na escrita. As “peças de armarinho” funcionam como recortes dos acontecimentos passados que advêm de muitos lugares (das letras de músicas, por exemplo) e são atravessadas por dedicatórias, poemas, fotografias, cortando o contínuo do relato. A intensidade dos capítulos, geralmente curtos, tem a ver com o instantâneo dos momentos herdados do blogue e conjuga o “movimento do trânsito” da protagonista, que com isso tece a sua rede de afetos. Quase no fim do livro, ela pergunta: “— por que diabos eu preciso tecer territórios afetivos? por que diabos o amor?” (Castro, 2018, p. 174).
É uma pergunta exasperada e, até certo ponto, inusitada. A personagem Rosa vive sua odisseia, mas, ao contrário de Penélope, é ela quem está em trânsito, é quem vive as aventuras, traçando um percurso que, grosso modo, pode ser assim resumido: estar na beira à espera, partir e tornar-se ela mesma canoeira, enamorar-se dos “canoeiros todos”, abandoná-los, ser abandonada por eles, enamorar-se de um só canoeiro, sofrer por sua morte, distanciar-se do mar, retornar, amar novamente. O fio dessas experiências é constantemente atravessado por outras vozes que o contesta. “— assim você não tece, você se desfaz”, é o que lhe diz outra mulher, a mãe. Frases parecidas dizem o pai, o irmão, o amigo, que funcionam como as vozes da razão, porém o romance sustenta a desrazão — “o acaso, o transitório, o errático” — como possibilidade das existência e sexualidade femininas, apresentando um corpo desejante que provoca desejo. Desloca-se a noção tradicional do amor relacionada à estabilidade, à instituição casamento.
A mulher Rosa, rodeada de caboclos, batizada por Iansã, tendo Ogum e Xangô, orixás ligados à guerra, entre os seus “canoeiros, filhos do vento”9, libera o seu corpo para viver as experiências do estar-junto:
aí apareceu xangai com seu sorriso franco, cheio de dente, e me arrancou daquelas lamúrias de samba canção… me fez seu chocalho, de suas mãos quentes, de seu cheiro de sexo. sua boca no meu sexo era qualquer coisa que me frequentava por dias. / vem, minha preta, ele dizia, venha para o seu xangô (Castro, 2018, p. 72-73).
Ela vai, mas também parte: “eu respirei fundo e sorri para xangai / depois parti, porque eu não podia parar” (Castro, 2018, p. 77). São representações da sexualidade feminina também em trânsito, que se forjam de outra maneira, não mais moldadas pela escrita do homem. bell hooks (2019), no texto “Mulheres negras revolucionárias: nos transformamos em sujeitas”, aponta que Toni Morrison, em Sula,
narra uma tentativa de uma mulher negra constituir uma subjetividade radical. Sula enfrenta todas as restrições impostas a ela, rompendo todas as barreiras. Desafiando as noções convencionais de uma sexualidade feminina passiva, ela se afirma como uma sujeita desejante. Rebelando-se contra a domesticidade forçada, escolhe vagar pelo mundo, mantendo-se sem marido nem filhos (hooks, 2019, p. 106).
hooks (2019) lembra, no entanto, que Sula morre muito cedo, não dando ao leitor a “percepção de seu poder”. Já Rosa não morre. Pelo contrário, os ciclos de espera e partida revelam uma vida marcada por rupturas, transformações, transgressões, culminando na libertação da ideia de amor romântico. No fim, pelas palavras da mãe, reafirma-se a predição do desejo de ventre livre, exercida pela personagem Rosa como uma política intransigente, irrevogável, permeada de uma alegria ambígua e transitória. Assim, o fim: “era quase tempo de armarinhos. Era quase tempo de carnaval. // dentro das gentes” (Castro, 2018, p. 177).
Criar uma protagonista que vivencia integralmente a sua sexualidade, seus desejos, sem a punição da morte, é ultrapassar uma moralidade recalcada ou mesmo um interdito pressuposto, como ainda pode ser encontrado na literatura. O porvir do carnaval, essa festa profana marcada pela alegria dos corpos, em Castro é signo de resistência. À ideia do corpo negro sexualizado, mas tantas vezes subjugado à visão heteronormativa, branca, opõe-se uma visão feminina, feminista, negra, que libera a sexualidade desse corpo sem submetê-lo aos ideais da norma.
A ESCRITA COMO CURA
Em Inês: pequena antologia do passado (2020), Castro opera um deslocamento na sua visada autobiográfica, tornando-a patente dessa vez não por meio de fotografias do seu corpo — principalmente da face —, mas lançando-se em uma investigação acerca dos nomes das mulheres de sua família, tendo em Inês de Castro a figura dessa busca. Ao pequeno núcleo familiar d’O armarinho (pai, mãe, irmão), acrescem-se agora os seus antecessores e também o seu herdeiro, cuja frase dita por ele aos 8 anos é posta como epígrafe do livro “— Mamãe, como seria se você descobrisse que você é sua própria tataravó?” (Castro, 2020). O filho traz à tona a lógica da decomposição e recomposição do tempo histórico, pressentindo, mais do que sabendo, o quanto a ancestralidade é constitutiva de nossa face identitária, dando-nos um próprio e um sentimento de pertença.
A indagação de Benjamin — o filho — é posta no livro como um suplemento a um incômodo comum às pessoas não brancas que reivindicam para si um corpo político que lhes possibilite investigar os traços da sua negritude para, assim, vivenciá-la, entretanto tornar-se negra, tendo pele clara, segundo os “arquétipos predefinidos”, que, de acordo com Devulsky (2021, p. 17), “restringem e disciplinam as variadas negritudes existentes no Brasil”, mostra-se um processo complexo, pois as tentativas de embranquecimento forjam a própria identidade brasileira, por meio de histórias de violência, silenciamentos e esquecimentos. Talvez por isso, logo no início da primeira das três partes de Inês, esteja disposta a razão de sua escrita: “Crio/ Para/ Curar // A escrita como cura/ Como seiva/ Como faísca/ (Castro, 2020, p. 10-11).
A Inês que dá título ao livro é Inês de Castro, posta como tataravó da voz que conduz os poemas, de quem herda o sobrenome — “Trago Inês pelas mãos/ Rainha de minha casta/ Sobrevivente no meu Castro” (Castro, 2020, p. 38). Ao rastrear a sua ancestralidade, o sujeito do poema (mulher não branca, assim como a autora) logo se dá conta de que não basta saber a origem do nome, pois este se remete a uma ficção de origem europeia devidamente salvaguardada e – subentende-se – valorizada; é um rastro de linhagem que, embora inventado, não se deseja apagar:
Perguntei pelo teu vestígio
No meu nome
Disseram:
— Portugal
Disseram:
Depois da morte foi rainha.
Te fizeram branca
Como leite derramado
Disseram:
— NÃO adianta mais.
Eu insisti (Castro, 2020, p. 22-23).
Usando mais uma vez a imagem do movimento, da busca, como havia feito em O armarinho (2018), Castro adentra poeticamente na questão da ancestralidade, da origem da cor negra em sua família “para virar o jogo”, em busca de um vir a ser por meio de um “caminho à unha”, como afirma em um dos versos de Inês (2020), tornando outra aquela que “fizeram branca como leite derramado”.
A figura histórica da nobre europeia cuja história de amor e morte ficou célebre ao compor o terceiro canto de Os Lusíadas, de Camões, serve de reelaboração intertextual da história de Inês de Castro, a tataravó. Empreende-se o apagamento de Inês de Castro, a personalidade histórica, para fazer surgir a história de Inês de Onha, a tataravó. A amante do futuro rei D. Pedro I de Portugal é feita rainha depois de morta e ganha sobrevida poética em Camões (2018, p. 19):
O caso triste, e digno da memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que depois de ser morta foi Rainha.
E a tataravó também ganha outra vida ao ter contestada a sua origem, sendo a escrita do livro um livrar-se de uma história de não pertencimento: “Eu reconecto/ Passado/ No presente./ Eu livro-me/ Livro-te/ Eu nos livro/ No livro/ Da maldição/ Do esquecimento” (Castro, 2020, p. 60). Para a herança familiar, interessa a branquitude da linhagem europeia, imortalizada nos versos finais do poema de Camões (2018, p. 228, grifo nosso):
Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lascivas maltratada
Da menina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal está morta a pálida donzela,
Secas do rosto as rosas, e perdida
A branca e viva cor, co’ a doce vida…
Para a poeta, entretanto, interessa perscrutar as violências, compará-las e conjurá-las para compreender o que advém se for levantado o véu do esquecimento:
Do amor
Ou
Da violência
Nascemos de ti,
Inês? (Castro, 2020, p. 27)
É possível fazer essa pergunta às histórias das duas Inês. É o amor ou a violência que torna “imortal” a história da rainha depois de morta? No entanto as semelhanças, embora não cessem de todo, são devidamente explicitadas. No poema de Castro (2020), reporta-se à violência a que foram submetidas milhares de mulheres escravizadas por homens brancos que se faziam donos de seus corpos:
Peço que sussurre
Teus segredos
Nos meus ouvidos.
Vejo o italiano
aportar na estação
cruzar a rua
da água preta.
Mas não sei
Se te abraçou
Se te pegou à força (Castro, 2020, p. 26).
À literatura, cabe suscitar a possibilidade do acontecimento que se guarda para não manchar o nome, para não desonrar a história da família que tanto se deseja preservar, até que esse nome seja violado pelo segredo da literatura, que tudo pode dizer. Daí por que a coroação das duas Inês de Castro ocorre de maneira diferente. Em Portugal, a coroação teve a função de restituir a nobreza, assemelhando Inês aos nobres que lhe haviam usurpado o seu lugar. Aqui, coroar significa uma recusa à assimilação que lhe fez branca; coroar é “[dourar] sua pele negra / Do amarelo de Oxum”. E isto:
Para que sejam novos
Agora
No presente
Nossos corpos
Livres
De mulher (Castro, 2020, p. 34-35).
Os “territórios afetivos” são solos de uma investigação que tem pressa em acontecer, pois para a poeta se trata de se curar por meio da fabulação que tem como dívida renomear, no sentido de trazer para o sobrenome Castro, que nomeia Inês e também Laura, as histórias esquecidas que reconstituem a sua linhagem, vindo à tona a sua negritude:
Inês de Onha
Na cor da pele procurei
Teu rastro negro
Em meu corpo.
Refiz tuas rotas
Tateei os apagamentos
Da tua linhagem escrava
Na memória de teus filhos (Castro, 2020, p. 24).
O caminho empreendido no poema é efetuado por perguntas, suposições, tateamentos, sugerindo que a busca não é por uma essência a ser concretizada por provas materiais, por uma verdade histórica. Trata-se, mais, de uma reconstituição da memória por meio de vestígios, do “rastro” como paronímia de “Castro”, como a dizer que o máximo que o poema pode fazer é questionar, é trazer à tona uma indagação sem força de lei. O rastro, como afirma Derrida (2012, p. 120-121), procede de um eu, mas não é o eu, o que oblitera a ideia de origem, uma vez que esta pode ser continuamente reapropriada. A “pequena antologia do passado” não é, portanto, um gesto narcísico, mas um gesto dessencializante, que cumpre a função de recusar o silenciamento. É um trabalho de rastreamento no arquivo incompleto da família, sabendo de antemão que há uma fratura a ser recomposta.
Remarca-se, assim, uma questão sensível nos debates antirracistas que ocorrem hoje no Brasil: a posição da pessoa não branca, mas também não imediatamente identificada como negra. Logo no início de Colorismo, lembra Alessandra Devulsky (2021, p. 23-24):
[O] grupo racial chamado de modo geral de negros no Brasil, portanto, inclui também os pardos. Pardos esses que são associados a algum grau de mestiçagem racial, enquanto, em contrapartida, não são identificados como brancos por não terem ascendência europeia visível em algum traço físico peculiar. O pendor racial atinente aos pardos aproxima, assim, este grupo dos negros, dos quais fazem parte.
Castro marca a sua posição refazendo o caminho oposto das tentativas históricas de embranquecimento, que, como alerta Munanga (2020), desde o processo de colonização e por conta deste, perfazem um sonho que persiste ainda hoje. Para ele, tornar-se branco dava-se por duas tentativas: a primeira, por meio da “assimilação dos valores culturais do branco”; e a segunda, pelo “que se costuma chamar de erotismo afetivo” (Munanga, 2020, p. 35-36). A segunda via é uma das hipóteses do poema que leva às lágrimas a voz do sujeito lírico ao indagar se o processo de embranquecimento herdado, que resultou na sua mestiçagem, não adveio da violência: “Choro com ela / Seu Rio Fundo. // Fazemos a nossa / Quinta das Lágrimas / Afrobrasileira” (Castro, 2020, p. 28).
A recusa da assimilação pelo negro é uma afirmação, no sentido “cultural, moral, física e psiquicamente” (Munanga, 2020, p. 41). É uma insurgência que possibilita o levante contra o modo de constituição da própria história. Assim, a voz do poema fala de sobrevivências, de rupturas:
Levanto-me
De teu colo.
Acendendo-me
Como um vaga-lume
Que carrega
Sua própria luz (Castro, 2020, p. 35).
Isso nos faz lembrar um trecho do livro Uma escuridão bonita, de Ondjaki (2013). “— Porquê que inventas estórias? — ela perguntou. — Para a nossa escuridão ficar mais bonita” (Ondjaki, 2013, p. 104-105). É o gesto de Inês: pequena antologia do passado (2020), na qual se inventa, se reconta uma história para torná-la “mais bonita”, ou seja, mais responsável perante a própria história. A referência aos vaga-lumes funciona como questionamento ao presente que abre o caminho para a reelaboração do passado, renegando o sistema de valoração causador do racismo:
Dirias, tu,
Que és negro como eras,
Vô,
Que os livros
Que as togas
Embranqueceste?
Ignácio se recusa a falar
Da cor (Castro, 2020, p. 52).
Para haver outra herança, diferente da que recebeu, o silêncio dos ancestrais deve ser rompido; como o do avô que, apesar de ter deixado para a neta um arquivo de histórias, se esquiva da menção à cor. O que falta nesse arquivo constitui a busca do poema. Diante do silêncio que somente pode ser rompido por meio do livro, o que se faz nessa pequena antologia é constituir outro arquivo como herança para o futuro: “Deixo a meu filho / Gravado na letra / Nosso sangue / Negro” (Castro, 2020, p. 64). Talvez seja por isso que, na forma, Castro encena o abandono da profusão de palavras em estado de jorro que constitui O armarinho (2018). O despojamento também é vocabular, atendo-se ao essencial, em forma de versos muito curtos.
NO COMEÇO, O BREU
“Breu” é um dos objetos que compõem o livro-objeto Cabidela: bloco de máscaras (2011), o primeiro livro de Castro. Não é nossa intenção falar sobre ele; apenas destacar um trecho que já indicava o caminho a ser constantemente reelaborado por ela:
É hora de terminar os livros pela metade. Como? Se eu mesma sou metade de alguém. Metade separada deste corpo interferido. Esta prótese que carrego, que arrasto. Meu corpo, meu corpus, meus ais, meu, meu, meu… mas não consigo me livrar de ser consciente neste inconsciente coletivo — porque eu sei dos assujeitamentos e é praticamente um caminho sem volta (Castro, 2011).
Assim tem sido a trajetória de Castro. Não que seja um trabalho pela metade, mas sim uma produção artística que rejeita a ideia de completude e está no entremeio de noções antitéticas, transitando entre o autobiográfico e o ficcional, o escrito e a performance, o virtual e o impresso. Desse modo, alia o trabalho de professora e editora ao de artista, sem estabelecer uma primazia entre um e outro, como se tudo fosse uma coisa só, que forma o seu corpo, também corpus.
Não à toa a subjetividade que emana de sua produção artístico-literária é cada vez mais carregada das questões prementes para a sua comunidade: a de “uma mulher não branca no Nordeste do país”, como ela se autodefine no artigo “Entre irmandades e coletivos: práticas editoriais de mulheres negras na Bahia” (Castro, 2021). Entre O armarinho, de 2018, e Inês: pequena antologia do passado, de 2020, não muda apenas o acento dado aos traços ficcional e autobiográfico, mas também o tom que reverbera as questões da negritude. Na exposição de seu nome próprio e dos nomes de sua linhagem, ela impõe o pensamento do presente, ao desamarrar o passado encenando a morte “No papel// [d]A genealogia/ do abandono/ do esquecimento” (Castro, 2020, p. 67) que compõe a sua história pessoal e também a da tragédia da questão racial no Brasil.
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A fotografia, realizada pela fotógrafa Mariana Vieira Elek, foi publicada em diversos órgãos de imprensa, podendo ser vista aqui, seguida de um depoimento das escritoras envolvidas na organização: https://curt.link/cnD0I2. Acesso em: 2 abr. 2023.
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A fotografia está disponível em: https://curt.link/a6Nl67. Acesso em: 2 abr. 2023.
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A página do projeto está disponível em: http://www.edicoeszabele.com.br/. Acesso em: 2 abr. 2023.
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No Instagram do projeto, é possível ver alguns dos trabalhos realizados e alguns dos livros já publicados com o apoio do Estado da Bahia, através do Fundo de Cultura, Centro de Culturas Populares e Identitárias e Secretaria de Cultura e Secretaria da Fazendo do estado da Bahia: https://www.instagram.com/livrolugar/. Acesso em: 2 abr. 2023.
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O leitor precisa despontear o pontilhado para ver uma fotografia do grupo em frente de uma das gráficas objeto de pesquisa. Logo abaixo da dedicatória do livro, os fundadores da Sociedade da Prensa são nomeados: Flávio Oliveira, Laura Castro e Tiago Ribeiro.
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6
São os seguintes: Cabidela: baile de máscaras (2011), hospedado no endereço http://cabidela.blogspot.com/, e O armarinho (2018), hospedado no endereço http://oarmarinho.blogspot.com/. Acesso em: 2 dez. 2022.
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O texto de Santos (2016) é de suma importância para demonstrar como “a hibridação da linguagem e das formas” está presente desde as primeiras obras de Castro.
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Postagem do blogue O armarinho. Disponível em: https://oarmarinho.blogspot.com/ Acesso: 2 dez. 2022.
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9
Título de uma das seções do livro.
Referências
- BETHÂNIA, Maria. Drama Rio de Janeiro: Philips, 1972.
- CALVINO, Italo (2010). Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras.
- CAMÕES, Luiz de (2018). Os Lusíadas 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
- CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio (2013). Mallarmé São Paulo: Perspectiva.
- CASTRO, Laura (2011). Cabidela: bloco de máscaras.
- CASTRO, Laura (2013). Fio condutor
- CASTRO, Laura (2014). O telefone tocou novamente São Paulo: Maloqueiristas.
- CASTRO, Laura (2016). Pé de palavra Salvador: Sociedade da Prensa/EDTÓRA.
- CASTRO, Laura (2018). O armarinho / seguido de Fique são. Salvador: Sociedade da Prensa/EDTÓRA.
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CASTRO, Laura (2019). Portifólio. Issuu Disponível em: https://curt.link/8rqe3c Acesso em: 20 dez. 2022.
» https://curt.link/8rqe3c - CASTRO, Laura (2020). Inês: pequena antologia do passado. Salvador: Incubadora de Publicações Gráficas.
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CASTRO, Laura (2021). Entre irmandades e coletivos: práticas editoriais de mulheres negras na Bahia. Revista de Estudos de Edição, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 67-83. Disponível em: https://curt.link/s7iCnf Acesso em: 20 dez. 2022.
» https://curt.link/s7iCnf - CASTRO, Laura; OLIVEIRA, Flávio; RIBEIRO, Tiago (2017). Ympressos paraguassu Salvador: Sociedade da Prensa/EDTÓRA.
- DERRIDA, Jacques (2012). Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível. Organização de Ginette Michaud, Joana Masó e Javier Bassas. Tradução de M. J. de Moraes. Florianópolis: Editora da UFSC, 2012.
- DEVULSKY, Alessandra (2021). Colorismo São Paulo: Jandaíra.
- DIDI-HUBERMAN, Georges (2011). Sobrevivência dos vaga-lumes Tradução de Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG.
- GARRAMUÑO, Florencia (2014). Frutos estranhos: sobre a inespecificidade da estética contemporânea. Tradução de Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco.
- HOOKS, bell (2019). Olhares negros: raça e representação. Tradução de Stephanie Borges. São Paulo: Elefante.
- MUNANGA, Kabengele (2020). Negritude: usos e sentidos. Belo Horizonte: Autêntica.
- ONDJAKI (2013). Uma escuridão bonita São Paulo: Lis Gráfica.
- PEDROSA, Celia; KLINGER, Diana; WOLFF, Jorge; CÁMARA, Mario (org.) (2018). Indicionário do contemporâneo Belo Horizonte: Editora UFMG.
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SANTOS, Elizangela (2016). O livro-objeto de Laura Castro Disponível em: https://curt.link/2HxvzU Acesso em: 16 abr. 2023.
» https://curt.link/2HxvzU
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Editoras: Cecília P. X. Rodrigues, Cristiane Lira e Lígia Bezerra
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
18 Set 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
01 Dez 2022 -
Aceito
26 Abr 2023