Open-access Nietzsche e o ecstase: o trágico a partir de uma reinterpretação dos conceitos de phobos e eleos

Nietzsche and the Ecstase: The Tragic from the View of an Reinterpretation of the Concepts of Phobos and Eleos

Resumo

Pretendemos, neste artigo, expor a noção trágica nietzschiana na conferência O Drama Musical Grego e os fragmentos póstumos escritos no mesmo período, mostrando que o desenvolvimento dessa concepção caminha peri passu à crítica ao pensamento moderno. Essa crítica é realizada por meio do conceito de ecstase, o qual se confronta com a ideia de tragédia entendida a partir da poesia, Deste modo, exporemos como Nietzsche articula o seu conceito de ecstase como um contraponto à compreensão moderna da “Poética” de Aristóteles, assim como as suas aproximações e distanciamentos da filosofia schopenhaueriana ao formular sua concepção trágica.

Palavras-chave: ecstase; tragédia; phobos; eleos; Nietzsche

Abtract

In this article we intend to expose the nietzschean tragic notion in the conference The Greek Musical Drama and the posthumous fragments written in the same period, showing that the development of this conception goes peri passu to criticism of modern thought. This criticism is made through the concept of ecstase, which confronts the idea of tragedy understood from poetry. In this way, we will expose how Nietzsche articulates his concept of ecstase as a counterpoint to the modern understanding of Aristotle's Poetics, as well as his approximations and distances from Schopenhauer's philosophy in formulating his tragic conception.

Keywords: ecstase; tragedy; phobos; eleos; Nietzsche

Introdução

A metafísica do artista nietzschiana é muito conhecida a partir de seu primeiro livro, publicado em 1872, O Nascimento da Tragédia. Visto a enormidade de trabalhos sobre esse assunto, pretendemos, neste artigo, mostrar como Nietzsche compreendia o trágico em uma de sua primeira conferência acerca da tragédia, a saber, O Drama Musical Grego, apresentada no início de 1870.

Neste escrito de Nietzsche notamos como a noção de trágico vai sendo gestada e, com o auxílio dos fragmentos póstumos coetâneos a este escrito, já encontramos também a fundamentação de uma metafísica de artista a partir da noção trágica de ecstase, a qual será maturada e transformada até a publicação do Nascimento da Tragédia.

Para tornar mais claro o conceito de ecstase nietzschiano e algumas de suas diversas imbricações, este trabalho será organizado da seguinte maneira:

Inicialmente será exposto como Nietzsche introduz sua crítica aos modernos por meio de uma crítica à interpretação da tragédia antiga a partir de apenas uma perspectiva, qual seja, a poesia. Ao invés disso, o jovem filólogo compreenderá a tragédia antiga a partir de um todo orgânico, o qual é composto de diversas formas artísticas insufladas pela música.

Em seguida, mostraremos como Nietzsche apresenta a sua concepção de ecstase como o fundamento patológico da tragédia. Então, para melhor compreensão do exposto, apresentaremos as duas formas de compreensão da tragédia a partir dos conceitos aristotélicos de phobos e eleos: dos modernos, fundamentada no drama; e de Nietzsche, balisada na música.

Visto que a principal influência de Nietzsche, ao conceber a sua noção trágica a partir da música, é Schopenhauer, pretendemos, por fim, confrontar os dois pensamentos para mostrar que já neste período o jovem filólogo possui um certo afastamento do filósofo da vontade.

A crítica à concepção moderna de arte

O principal intuito de Nietzsche ao proferir a conferência O Drama Musical Grego é retirar a opinião corrente na época de que a ópera seria o correlato moderno da tragédia (GMD/DM, KSA 1.515). Para atingir tal fim, o jovem filólogo pauta-se na própria recepção que os modernos obtiveram da arte antiga.

Segundo Nietzsche, a arte antiga nunca fora presenciada de fato por um moderno, pois tudo o que se sabe das tragédias antigas advém principalmente dos escritos que permaneceram desde a Antiguidade. Apesar de os modernos saberem que a tragédia era formada pelo coro, música, poesia, dança, ou seja, um conjunto de artes, ela somente foi interpretada por eles a partir de uma perspectiva, qual seja: a poesia.

Por ser o primeiro modo de recepção da tragédia pelos modernos, a poesia obteve uma maior preponderância, consequentemente, foram menosprezados os outros modos de arte que completavam o espetáculo trágico. Desse modo, os poetas antigos foram concebidos como “libretistas” (GMD/DM, KSA 1.517). Assim, a poesia foi entendida como a arte da leitura, dos olhos, que se mostra somente como um encadeamento de palavras, sem relação alguma com as outras artes - o que, segundo o jovem filólogo, se assemelharia a conhecer a ópera Tanhäuser apenas como libreto (Nachlass/FP 1, [1], KSA 7.9).

Esta maneira de se apreender a poesia possui como consequência, segundo Nietzsche, a criação de uma arte que, apesar de intentar reviver a tragédia, acaba desenvolvendo um modelo artístico completamente alheio àquela representação antiga (GMD/DM, KSA 1.517-518). A tragédia é concebida pelos modernos somente a partir das características isoladas da poesia. Assim, na medida em que ela nada mais é que a explanação de ações no tempo, exposta a partir de conceitos que são concatenados logicamente, esse novo modelo de arte terá como pressuposto a representação de ações justificadas logicamente. Isto propicia uma forma artística na qual as ações individuais serão vangloriadas, de modo que a ópera será engendrada a partir de ações do cotidiano: o indivíduo se representará no palco defendendo e divulgando suas ações ― ou as melhores ações. Destarte, as formas do debate jurídico como representação que vigoram as ações na sociedade são transpostas para a estrutura do drama, erigindo, assim, o império da dialética na obra de arte, caracterizando a arte moderna como o confronto racional de diferentes logos (Nachlass/FP 1 [15], KSA 7.14).

A questão que emerge aqui é que, ao se levar as ações individuais ao palco, a fantasia é abolida em favor de uma maneira de se educar o povo, as melhores ações serão vangloriadas e ensinadas para o espectador. Doravante, esse modelo de arte se apresenta como uma maneira de se mostrar as ações que o indivíduo deve seguir, ou seja, a arte é moralizada, representando os costumes cotidianos e ensinando quais as maneiras de agir diante das intempéries da vida.

Mesmo a música na ópera, segundo Nietzsche, não possuía mais sua característica puramente musical. Ela fora subjugada a outra espécie de arte: a da leitura, dos olhos, que a descaracterizaram fundamentalmente. O som deixou de apresentar a música para expor o texto, sendo apenas mais um recurso subordinado à compreensão das ações e das palavras.

“Como realizar isso? Coloriam-se as notas com a cor das coisas das quais se tratava no texto, ou seja, verde se eram mencionados plantas, campos, montes cobertos de vinha, púrpura se eram mencionados o sol e a luz. Isso era música literária, música para leitura” (GMD/DM, KSA 1.517).

Esta perspectiva de arte entende as artes como singulares e não relacionadas entre si. A poesia é arquitetada como uma arte relacionada apenas aos olhos e ao entendimento; a música advinda deste fundamento torna-se apenas uma auxiliar da poesia. Segundo o jovem filólogo, tal concepção entende o homem como um ser fragmentado que se subordina ao “mau hábito moderno de não podermos gozar como homens inteiros: estamos como que despedaçados pelas artes absolutas e só gozamos como pedaços, ora como homens-ouvidos, ora como homens-olhos, etc.” (GMD/DM, KSA 1.518).

A partir deste ponto de vista, o homem não é visto como um organismo inteiro que utiliza todos os seus sentidos concomitantemente, mas sim, como algo dividido em partes que não se comunicam entre si. Assim, com a erudição, a música ficou completamente dependente do texto, o olhar foi hierarquizado em grau maior que o ouvir, de modo que a sua peculiaridade, o som, foi encarada como inferior e dispensável. O importante nela se transformou na imitação daquilo que é cognoscível e evidente.

A crítica que Nietzsche engendra aos modernos não intenta negar a poesia na Antiguidade - o que seria um absurdo -, mas pretende mostrar que ela não era apreciada apenas a partir da leitura, mas pelo som, pois o mito presente nas tragédias não era lido, mas cantado, e por isso capaz de despertar sentimentos que somente com o uso da palavra não seria possível.

Pode-se notar as deficiências da escrita em uma longa carta de Nietzsche enviada ao seu amigo Gersdorff, na qual o filósofo reclama sobre a dificuldade de passar os sentimentos e outros impulsos para o papel. Diz ele: “Todo o calor, imediatez e energia do sentimento se vão, uma vez que palavra, envolta em tinta, descansa sobre o papel”.1

A palavra escrita é incapaz de carregar os sentimentos e impulsos existentes no autor das palavras, reduzindo-se a apenas uma mancha no papel. Portanto, segundo Nietzsche, a única maneira de alcançar o conhecimento seguro dos poetas antigos e mergulhar em sua obra é a partir da ópera, não como ela é entendida pelos modernos, mas como um modelo de arte que une diversas artes, sem a hierarquização da poesia, aproximando-se da noção de organismo existente na tragédia. Somente isto pode propiciar o momento obscuro de plena força e fantasia, no qual a fantasia se idealiza em tão elevado grau que provocará a intuição do drama musical antigo. Assim, só pela abstração do saber consciente é possível identificar a força inconsciente da tragédia, unindo a poesia com as outras artes, analisando-as em conjunto, o que possibilitaria a imersão na obscuridade e a entrega completa.

Apesar de Nietzsche não afirmar peremptoriamente em O Drama Musical Grego, é evidente, em seus fragmentos póstumos coetâneos à escrita desta conferência, o pressuposto schopenhaueriano dessa crítica aos modernos. A partir das duas perspectivas de mundo - a vontade e a representação - a filosofia da vontade explica a formação das diversas linguagens, das quais a música é entendida como a expressão direta da vontade, propiciando um sentimento mais vívido. Por sua vez, as outras formas de linguagem como os gestos, a dança e a palavra são modos gradativos de representação daquela vontade, pois nada mais são que traduções daquele sentimento vívido do som em imagens.

Contudo, enquanto os gestos e a dança são modos de transposição da vontade imediatos e propriamente experienciais, a palavra advém de uma construção lógico-racional provenientes da abstração do sentimento. Assim, nasce o conceito como uma maneira de comunicar um sentimento ou uma experiência, de modo que diversos fatores existentes no momento da afecção vivida são abstraídos.

Portanto, esse saber inconsciente e obscuro ao qual Nietzsche se refere é o mundo da vontade que envolve completamente a música, que está intrinsecamente relacionada à comunicação de sentimentos que não são traduzíveis em imagens: o impalpável que não pode ser transmissível de outra maneira além do som.

Assim, segundo Nietzsche, apesar de a palavra também ter a capacidade de transmitir sentimentos, seu percurso é maior, visto que ela passa primeiramente pelo mundo dos conceitos, para em seguida representar as ideias. Por conseguinte, gera a simpatia (Nachlass/FP 2 [10], KSA 7.47-48), havendo três estágios a serem percorridos, nos quais o sentimento que estava vívido no momento de sua experiência perde sua força neste decurso.

Em contrapartida, a música toca o coração imediatamente, pois ela é portadora da linguagem universal. Nietzsche salienta que a maioria dos sentimentos não é possível de se traduzir em palavras, o que se consegue só por meio da música, assim ela está relacionada à língua falada, na qual há os intervalos, os ritmos, os tempos, a intensidade e acentuação que simbolizam o conteúdo sentimental. A música, desse modo, possui maior imediatez ao comunicar os sentimentos em relação à palavra. (Nachlass/FP 2 [10], KSA 7.47-48). O drama lido não é capaz de dispor da fantasia da vontade (Nachlass/FP 2 [11], KSA 7.48), pois a visão nele é muito estimulada, o cognoscível, os fenômenos não dão espaço para a fantasia atuar, impossibilitando alcançar o estado de quietude da vontade.

Para Nietzsche, a poesia, por ter sua existência arrolada ao conceito, possui grande distância da realidade intuitiva. Desta maneira, ela está aprisionada a uma intuição isolada pertencente à representação, que está contida no mundo da razão, separando-se em maior grau da vontade.

Portanto, a poesia concebida particularmente remete diretamente à intuição intelectual, na medida em que é composta de palavras, as quais nada mais são que a forma racional que o homem possui de fixar suas intuições para a comunicação delas. Em um de seus fragmentos, Nietzsche aponta o problema da palavra em relação à música: “Palavra e música na ópera. As palavras devem explicar a música, no entanto a música a alma da ação. Certamente, as palavras são os signos mais deficientes” (Nachlass/FP 2 [11], KSA 7.48).

Por sua vez, a música, para Nietzsche, seguindo a concepção de Schopenhauer, é a própria linguagem da vontade. Por não passar pelo mundo das formas, consegue expressar a vontade em seu grau mais elevado. Assim, no momento em que ela é ouvida, possuem-se todos os sentimentos que a vontade quer transmitir, pois ela só pode ser experienciada e a razão é incapaz de traduzi-la em conceitos.

Segundo Nietzsche, a música dissolve as palavras, que nada mais são que apenas lembranças, proporcionando a experiência da vontade na maneira mais compreensível para qualquer pessoa, a partir do compasso e do ritmo, que contêm todos os estados do desejo (Nachlass/FP 1 [49], KSA 7.23). Ao proporcionar esse estado, a arte produz a si mesma como um mundo da vontade, no qual o homem se sente aquiescente no puro estado da contemplação, pois todos os seus desejos são suspensos (Nachlass/FP 1 [47], KSA 7.23).

Nietzsche, ao criticar a concepção moderna como uma compreensão de arte unilateralmente poética, tem em vista erradicar a noção erudita da arte advinda da preponderância da poesia. Esta noção, como vimos acima, está amparada em uma matriz essencialmente racional, que exclui o cerne artístico para Nietzsche: o inconsciente.

O jovem filólogo entenderá o fundamento do impulso inconsciente na arte como ecstase, o qual não é encontrado individualmente, mas em um impulso que se aflora no homem em situações festivas na multidão: no momento de entrega do homem ao puro impulso vital, no qual a música aparece como aglutinadora de todas as artes, seja na dança, no canto, etc.

Ao expor essa concepção amparada no inconsciente, Nietzsche desvia a forma de se procurar o sentimento trágico antigo: ao invés de circunscrever tais sentimentos na poesia da tragédia, ele os encontra em outras manifestações artísticas ou religiosas, como o drama popular na França e os jogos carnavalescos na Alemanha (GMD/DM, KSA 1.516). A tragédia nada mais é, pois, que a forma desenvolvida de representação daquele sentimento inconsciente de que o homem é acometido. Assim, a maneira que Nietzsche utiliza para explicar esse impulso inconsciente é por meio de uma festa que ocorria na Idade Média.

O trágico nietzschiano - ecstase

Na Idade Média, é possível encontrar algo análogo a esse impulso inconsciente, tão reclamado por Nietzsche, nas festas de São João e São Guido. Nestes festejos, a massa era invadida por um sentimento que a impelia a caminhar de cidade em cidade cantando e dançando, como se estivesse envolvida por um espírito com tamanha força que a medicina a considerava uma moléstia.2

Notamos que uma das expressões daquela obscuridade (ou seja, o impulso inconsciente, a própria vontade) é a patologia, o sofrimento, a partir de uma moléstia; o impulso inconsciente, como uma enfermidade que se apropria do corpo e é encarado como demônio. Ademais, a união de tal terror com as festas é proporcionada, segundo Nietzsche, pela sensação advinda da chegada da primavera e fim do inverno - que expressa o fim daqueles dias curtos e sombrios e as boas vindas aos dias mais claros e longos.3 Isto denota a criação de um mundo da fantasia como uma comemoração pela vida, que pressupõe a fragilidade do homem frente ao mundo, na medida em que ele está sujeito às intempéries do mundo e da natureza.

É exatamente desta moléstia que a ópera carece em sua origem, pois o estado alcançado por essas multidões não é refletido e pensado racionalmente. Ele é um impulso vital ocasionado pela primavera, ao qual a multidão se entrega e chega a tamanho excesso que alcança um estado de êxtase [ekstatischer Zustand], no qual ela está encantada com visões e crenças na própria transformação.

Aqui, encontra-se o berço do drama (GMD/DM, KSA 1.521), um fundamento que não possui uma ascendência arbitrária baseada em enganar o espectador, mas uma origem propriamente experiencial, na qual o homem está fora de si e se crê transformado e encantado. “No estado de ‘estar fora de si’, do ecstase, somente um passo é necessário: que não voltemos a nós mesmos novamente, mas entremos em um outro ser, de modo que nos portemos como encantados (GMD/DM, KSA 1.521-522)”.4

Defrontamo-nos aqui com a base sobre a qual se fundamenta a crítica que Nietzsche realiza aos modernos, a determinação mais precisa do impulso inconsciente presente na massa responsável pela origem do drama antigo. No ecstase é como pode ser entendida a concepção trágica nietzschiana em O Drama Musical Grego, na medida em que neste estado se encontra a origem tão reclamada pelo filósofo.

Esta concepção trágica apresentada por Nietzsche pode ser melhor demonstrada no fragmento de outono de 1869 (Nachlass/FP 5, [25], KSA 7.54), que é anterior a O Drama Musical Grego. Nele Nietzsche faz uma relação explícita entre os termos, presentes na “Poética”, phobos (temor ou medo) e eleos (piedade ou compaixão) com sua noção de ecstasis (êxtase).

O filósofo alemão mostra que no drama, considerado isoladamente, não há o terrível identificado pelos sentimentos de phobos e eleos, pois, tais sentimentos são provenientes da lírica musical. Assim, o drama apenas consegue atingir estes sentimentos na tragédia após alcançar o estado de ecstasis, o “estar fora de si”, proporcionado pela lírica musical; somente aí há o desenvolvimento do drama, uma vez que propicia a possibilidade de se experienciar profundamente o terrível, o trágico, de modo que o indivíduo se desprende de si e se entorpece ao vislumbrar o drama.

Nietzsche, portanto, utiliza os mesmos termos expressos por Aristóteles em sua “Poética, phobos e eleos, para caracterizar sua concepção trágica, deixando evidente sua crítica ao estagirita, deslocando a preponderância do drama para a lírica musical, além de vincular a sua concepção trágica a uma ferrenha crítica aos termos aristotélicos tão aclamados pelos modernos. Deste modo, para se entender como se fundamenta a crítica nietzschiana é necessário perscrutar o pensamento poético aristotélico.

Phobos e eleos a partir do drama

Aristóteles, em sua “Poética”, não pretende realizar uma exegese ontológica da tragédia, mas apenas entender as suas peculiaridades em relação às outras formas de arte. Assim, ela é caracterizada apenas como um estudo acerca dos métodos técnicos para a construção estrutural da tragédia, não se relacionando, então, com os estudos modernos que intentam interpretar metafisicamente o estado trágico.5

A arte (techne) para Aristóteles é definida como uma imitação (mímesis) da natureza; contudo, não uma mera imitação realista como se fosse uma cópia dela, mas que se eleva em relação à natureza, pois pode corrigir seus defeitos, realizando aquilo de que ela foi incapaz.6

Para o estagirita, a imitação é algo intrínseco ao homem, o que responderia à questão da origem da arte, pois é ela que difere o homem dos animais: o homem é, por natureza, imitador, aprendendo a partir da imitação, como, por exemplo, na aprendizagem da fala, quando o bebê imita os gestos e símbolos do adulto. Assim, os seus primeiros processos de aprendizagem advêm da imitação, pois o ato de imitar nada mais é que a abstração de algo particular para uma lei universal, da mesma maneira como ocorre o processo do conhecimento.7 Além disso, a imitação desperta prazer no homem, como pode ser notado quando este assiste tanto imitações de animais que o aterrorizam, quanto a imitação de algo que visto diretamente causaria desconfortos, como cadáveres.8

Assim, todos os gêneros de arte são imitações que diferem entre si a partir da forma com que imitam. No caso da poesia, o estagirita distingue suas espécies pelo meio, objeto ou modo como se realiza a imitação. O meio remeterá à linguagem utilizada pela poesia, que pode ser tanto o ritmo, quanto a palavra ou a música, utilizados individualmente ou em conjunto. Na tragédia, por exemplo, tais meios são empregados conjuntamente, enquanto na epopeia somente há o uso da palavra.

O objeto concernirá ao caráter ou qualidade das ações que são imitadas, que podem possuir caráter superior ou inferior dependendo do fato de serem praticadas por homens melhores, piores ou iguais a nós; assim, enquanto na tragédia há a imitação de homens superiores, a comédia possui como objeto os homens inferiores.

Por sua vez, o modo de imitação se apresenta de duas maneiras: a narrativa ou a dramática. A tragédia utiliza o modo de imitação dramático, pois representa as ações por meio de atores, já a epopeia emprega o modo misto de imitação, contendo o drama e a narração concomitantemente.9

A partir desta classificação, o estagirita utilizará os conceitos já trabalhados para definir a tragédia, considerada por ele a melhor forma de arte, como a imitação de uma ação nobre, a qual deve ser completa e de certa extensão, que necessita ser realizada em discurso ornamentado de modo diverso para cada uma de suas partes e, necessariamente, precisa ser dramatizada.

Após esta conjugação das formas de imitação, a tragédia será capaz de suscitar o terror e a piedade (phobos e eleos), que são, respectivamente, o medo existente no espectador de que ele seja acometido pelos infortúnios do herói trágico e o sentimento solidário do espectador em relação ao sofrimento alheio. Consequentemente, tais emoções serão seguidas pelo telos da tragédia: a purificação ou purgação [katharsis] dessas emoções.

Nota-se que é o sofrimento que produz tais sentimentos de identificação entre o espectador e o herói trágico, de modo que para ela ocorrer, segundo Aristóteles, a tragédia deve imitar homens que não se distinguem muito pela virtude e pela justiça, sendo que o motivo de seu sofrimento advém de uma falha (hamartia) em suas ações que não se relaciona com o caráter ético do personagem.

Segundo Gazolla, é por meio desses erros/falhas que o espectador consegue se aproximar daqueles homens incomuns que caracterizam os heróis trágicos; tais erros deixam transparecer que, apesar de serem reconhecidos por suas nobres ações, ainda assim, estão sujeitos aos mesmos erros que o cidadão grego.

As dores humanas, os erros e incertezas, bem como a arrogância, a inveja, a vingança, o medo, a piedade, a vergonha, as expressões emocionais do ser vivo enfim, estão presentes nas falas dos personagens. Enquanto assiste à encenação trágica cada cidadão movimenta seu pathos na direção de uma katharsis, de uma purificação das emoções pelo “re-vivenciar através”, ou seja, por um movimento perceptivo-emocional que passa e repassa valores e critérios durante todo o espetáculo, coteja-os, escolhe, volta atrás, pondera. É esse o sentido de purificação. O assistente está exposto ao intenso reconhecimento de sua identidade veiculada pelo ethos vigente, de modo perturbador.10

O homem purifica-se não no sentido ético que extirpa a sua culpa, mas no sentido religioso. Ao ser exposto de maneira tão contundente àqueles sentimentos, vivencia seus maiores limites, possibilitando uma maior abrangência de situações que aumentará sua capacidade de julgamento nas ações e relações cotidianas. Portanto, a katharsis assim entendida será pedagógica, educativa, mas não moral.

O que devemos depreender daqui é que a katharsis está relacionada intrinsecamente com a ação, é a boa imitação das ações que proporciona a identificação do espectador e, concomitantemente, provoca os sentimentos de phobos e eleos. Isto é necessário para se perceber que o processo trágico nietzschiano caminha em direção diametralmente oposta ao exposto por Aristóteles, assim como seus seguidores modernos. Como vimos anteriormente, o jovem professor da Basileia aponta que tais estados de terror só podem ser alcançados pela música, ocorrendo assim o ecstasis, ou ecstase, como o filósofo grafa em O Drama Musical Grego.

Contrapondo a importância que Aristóteles dá ao drama em relação ao coro, Nietzsche realiza uma reviravolta na noção artística aristotélica, deslocando o fundamento da arte do drama à música que será expressa pelo coro, e com isso elabora sua concepção trágica, a saber, o ecstase. Não é mais a katharsis, a responsável por retirar aquele sentimento terrificante presente no indivíduo, mas é o ecstase11 que opera, entretanto, de maneira contrária à concepção da “Poética”, sem retirar o indivíduo daquele estado transformado, mas mantendo-o naquela experiência.

Phobos e eleos a partir do coro

Nietzsche, ao deslocar o fundamento da tragédia do drama à música, retira a importância do ator e a transporta ao coro, o qual será compreendido a partir da concepção de “espectador ideal”, de August Schlegel. Segundo esta noção, o coro representa o público, de modo que a apreensão dos acontecimentos pelo coro é a indicação de como o poeta quer que o público compreenda a tragédia. Assim, aquele que representa o herói deve gritar seus sentimentos, a partir do coro, em uma colossal ampliação ao ouvinte, como se fosse um megafone (Nachlass/FP 1 [40], KSA 7.20).

O coro, assim entendido, representa um grande pulmão do ator, que expressa os desejos do poeta, sendo o meio pelo qual este e o ouvinte assistem à obra. O coro se configura como a conexão entre público e ator, restringindo o espírito inventivo grego no espetáculo trágico, de maneira que o deus solene caminha entre tais limites, guiando o ouvinte, condicionando-o a uma via do desenvolvimento e a uma vida patética (Nachlass/FP 1 [70], KSA 7.32).

A chave conceitual para compreender a função do coro advém da filosofia da vontade, na qual ele deve ser entendido como o propiciador da ideia schopenhaueriana, ou seja, ele é o medium que liga o mundo da vontade ao mundo da representação através da lírica, pois nesta, segundo Nietzsche, “não saímos fora de nós mesmos: mas somos impelidos a produzir nossos próprios estados de alma, a maioria das vezes por meio da anaminesis.” (Nachlass/FP 2 [11], KSA 7.48).

Aqui, nota-se em Nietzsche, a partir da relação entre a lírica e a noção platônica de reminiscência, uma alusão à concepção exposta por Schopenhauer de objetidade imediata da vontade: as ideias, segundo as quais, a vontade se objetiva no mundo, como arquétipo singular de qualquer representação. Dessa maneira, há coisas que possuem um maior grau de objetivação da vontade e outras um menor grau. Nesta escala, o homem está mais próximo da vontade e os minerais mais distantes.

Conhecemos a Vontade como coisa-em-si; a ideia, entretanto, como a objetidade imediata [...] da Vontade num determinado grau. Portanto, ambas não são a mesma coisa, porém intimamente aparentadas: divergem apenas mediante uma determinação, a citar: a Ideia é a Vontade assim que esta se tornou objeto, contudo ainda não entrou no espaço, tempo e causalidade. Espaço, tempo e causalidade não concernem à Ideia, tampouco à Vontade. Mas à Ideia já concerne o ser-objeto, a Vontade não. A bem dizer a doutrina de Platão das Ideias e seu ser eterno, isto é, inatingível pelo devir e pelo perecer [...].12

Assim, na arte também haverá os graus de objetivação da vontade, nos quais o seu nível mais baixo está na arquitetura e o mais alto na tragédia. A música, por sua vez, está além das ideias, ela é entendida por Schopenhauer como a apreensão direta da vontade, pois não está subjugada às formas como os outros tipos de arte. Assim, somente ela, por não possuir referência com as ideias, por ser somente som, é a própria linguagem da vontade, a partir da qual se pode alcançar a própria vontade: o estado em que o indivíduo e todo o mundo do querer são suspensos.

Destarte, o coro, como componente musical da tragédia, para Nietzsche, desempenha esta função de retirar o público do mundo da representação, a partir de diversas oportunidades patético-líricas que ocorrerão no decorrer da tragédia. Será por meio destas oportunidades patético-líricas que se proporciona o estado de ecstase, o que denota a importância do coro na concepção trágica nietzschiana.

Deste modo, a tragédia não tinha como ênfase o agir, o drama - como apontara Aristóteles -, mas o sofrer, o pathos. O agir só surge com o diálogo, de tal modo que, anteriormente a isto, toda a ação verdadeira era ocultada, não sendo representada em cena, mas apenas mencionada. Assim, na medida em que a tragédia é oriunda do coro, o qual tem como característica principal a lírica, ela originalmente tem como fundamento o pathos (Nachlass/FP 1 [56], KSA 7.27), expresso em “uma lírica objetiva, uma canção cantada a partir do estado de determinados seres mitológicos, e deveras com a indumentária destes”. (GMD/DM, KSA 1.527)

Nietzsche entende a música como a própria vontade, de modo que as outras artes devem ser entendidas como modos de representação dela, intermediado pela ideia, expressa por Nietzsche como a lírica. Assim, a tragédia nada mais é que objetivações da vontade, ou em palavras nietzschianas, como apontamos acima, a produção de estados de alma. A tragédia é entendida como a representação da música em diversas formas artísticas. Portanto, as outras formas de arte nada mais são que traduções da música, transposições de “uma linguagem, que é suscetível de ser esclarecida infinitamente” (Nachlass/FP 2 [10], KSA 7.47).

Assim, a ação nada mais é que a tradução do sentimento provocado pela música, de modo que o coro ditirâmbico naquelas oportunidades líricas deveria mostrar ao público o que o levou ao êxtase e isso era logo entendido. Dionísio era introduzido com a função de mostrar as desventuras de sua vida e fazer crer que aquela imagem em cena era a própria imagem do deus. O ouvinte era levado a vivenciar todo o mundo cênico, a fantasia era aguçada e vivida por meio do lirismo e emoção, de modo que compreendia a cena a partir dos sentimentos mais profundos: “estas emoções eram no imaginário e na experiência religiosa grega, as lutas e sofrimentos de Dionísio”.13 O filósofo deixa claro esse processo em um de seus fragmentos:

Em primeiro lugar, eles [os gregos] mesmos indicavam a razão do seu estado de ânimo lírico: mais tarde saía um personagem: através dele se pode levar a uma unidade de conteúdo um ciclo de canções corais. A pessoa que saia narrando as ações principais: a todo acontecimento importante narrado seguia-se uma explosão lírica. Assim mesmo, este personagem também se disfarça: e foi considerado como o senhor do coro, como um deus que narra suas façanhas. Por conseguinte ciclos de cantos corais, unidos por uma narração, esta foi a origem do drama grego” (Nachlass/FP 1 [56], KSA 7.27-28).

A música como pressuposto artístico não retira os sentimentos gerados pela poesia. Ao transmiti-la, ela aguça outros que antes não estavam presentes quando se lia; contudo, o contrário diminui a percepção patológica que possui. Assim, por meio da música, os sentimentos de phobos e eleos não são suscitados, mas sim vivenciados com maior veemência naqueles espasmos, o homem é acometido pelo verdadeiro sofrimento - aqueles sentimentos são aguçados porque ele vislumbra todo o sofrimento do mundo anelante - entrando em um estado de ecstase, no qual o indivíduo se transforma em outro ser como se estivesse encantado, completamente entregue ao mundo da fantasia. Neste estado há o profundo estupor ao contemplar o drama: o solo vacila, assim como a fé na indissolubilidade do indivíduo. (Nachlass/FP 2 [25], KSA 7.54-55).

Este sentimento terrífico proporcionado pelo ecstase nada mais é que a produção do mundo anelante da vontade schopenhaueriana. O sofrer patético a que Nietzsche se refere é o mundo do eterno desejar, que se intensifica de tal maneira que o indivíduo se identifica com a vontade, alcançando o estado de puro sujeito do conhecimento. “O que é a arte? A capacidade de produzir o mundo da vontade sem vontade? Não. Produzir de novo o mundo da vontade sem que o produto queira por sua vez. Trata-se, por conseguinte, de uma produção do que não tem vontade mediante a vontade e de modo instintivo.” (Nachlass/FP 1 [47], KSA 7.23).

Neste estado do puro sujeito do conhecimento, o ouvinte, ao contemplar um objeto, se funde com ele, suspendendo as relações do princípio de razão, retirando assim a relação sujeito-objeto - o homem e a vontade se tornam unos. A vontade é apresentada de tal modo que o homem percebe a imensidão do mundo que existe e como ele faz parte daquilo; contudo, nesta compreensão, não há nada de conceitual ou abstrato, isto já fora suspenso anteriormente,

Todo o poder do espírito é devotado à intuição e nos afunda por completo nesta, a consciência inteira sendo preenchida pela calma contemplação do objeto natural que acabou de se apresentar (...) a gente se PERDE por completo nesse objeto, isto é, esquece o próprio indivíduo, o próprio querer, e permanece apenas como claro espelho do objeto - então é como se apenas o objeto ali existisse, sem alguém que o percebesse, e não se pode mais separar quem intui da intuição, mas ambos se tornam unos, na medida em que toda a consciência é integralmente preenchida e assaltada por uma única imagem intuitiva.14

No entanto, diferentemente de Schopenhauer, que considera a música isoladamente em relação às outras artes, ao concebê-la como a própria linguagem da vontade, Nietzsche não desvincula a música das outras formas de arte: a música grega é entendida como vocal, “uníssona, por conseguinte, a voz individual multiplicada por cinquenta” (Nachlass/FP 1 [41], KSA 7.21), havendo, deste modo, a coadunação entre o som e a palavra.

Assim como a vontade é o estofo do mundo, de modo que nela é encontrado o protótipo desse mundo da representação - ou seja, nela estão circunscritas todas as representações na medida em que une todas as outras artes -, é a partir da música no coro que Nietzsche pode manter uma noção de organismo, no qual a tragédia é vista como a união de todos os gêneros de arte.

Destarte, para Nietzsche, os estados de alma proporcionados pela ideia advêm da tradução da música em diversas formas, sendo a primeira exigência grega a compreensão do conteúdo da canção. Após isto, era permitida a arte da representação e ao mesmo tempo a acentuação e a arte rítmica. Por conseguinte, junto à construção do período rítmico musical, que é paralelo e se coaduna com a palavra, há a expressão da dança com o fim de tornar mais claro o conteúdo. O coro, com seus movimentos, dava visibilidade à música. Desta maneira, a música intensificava a poesia enquanto a coreografia a tornava compreensível. A música, então, seria a responsável pela união das artes por meio do coro - somente ela pode proporcionar a visão orgânica da arte, de modo que ela é a própria linguagem do todo, da vontade, dispondo, assim, por meio de momentos líricos o vislumbre do sofrer, o verdadeiro pathos -, seguido pelo ecstase, ou seja, o momento em que o indivíduo se liberta do mundo da representação. Não mais deseja, é o puro sujeito do conhecimento, pois consegue neste momento contemplar o todo do mundo, devendo apenas se manter nesse estado.

Portanto, apenas nos coros ditirâmbicos é possível encontrar o surgimento da música unindo em si todas as artes, visto que neles, ela é cantada e dançada com máscaras e vestimentas na multidão, mostrando o conjunto das artes motivado por um impulso inconsciente popular que intenta consagrar o deus. Deste modo, pode-se entender a tragédia como a representação dessa insurgência popular.

Assim, o estado de ecstase será gerado pela música, que fará com que o indivíduo vivencie o pathos, as emoções terríveis de phobos e eleos, pois ele foi levado ao tempestuoso mundo da vontade por meio da lírica, no qual é transformado ao sair do mundo da representação; nesta transformação ele se sente completamente aquiescente, pois apesar de vislumbrar todo o terror do mundo da vontade e notar a sua insignificância em relação a este todo, ele se funde de tal maneira com o mundo da vontade que se sente como se transformasse naquele fundamento do mundo.

Pelo caminho que percorremos parece que se explica a ojeriza de Nietzsche em relação aos modernos, pois eles creem que o fundamento do mundo está no mundo da representação, da erudição, acreditam compreender a imensidão do mundo por meio da dialética. Este é um modelo de interpretação que se alicerça na razão, a qual, segundo aponta Nietzsche, amparado em Schopenhauer, não consegue captar toda a imensidão de sentimentos presentes no mundo intuitivo. Assim, ao vislumbrarem o drama e serem purificados dos sentimentos de phobos e eleos, eles não vivenciam de fato aquela experiência, pois além dos sentimentos não estarem ali presentes, há a diferenciação entre o espectador e o ator.

Por sua vez, na tragédia, segundo Nietzsche, a vivência é tão forte que o ator, coro e espectador se confundem, visto a dissolução do mundo da representação. Isto se realiza através da música, única capaz de proporcionar todos os sentimentos presentes na intuição empírica, levando o indivíduo ao supremo mundo da vontade.

Ademais, como aponta Martins15, a diferença entre o público antigo e os modernos em relação às obras apontadas por Nietzsche é bem esclarecedora neste ponto. Enquanto o moderno vai ao teatro com o intuito de se divertir e esquecer os problemas cotidianos, utilizando a arte meramente como entretenimento que não mudará nada no percurso de sua vida - pois o que é prezado em seus dramas é a encenação dos costumes cotidianos da vida -, o antigo vai ao teatro como se fosse a uma cerimônia, na qual não busca entretenimento, mas a transformação da sua vida. Ele procura uma vivência propriamente estética que adicionará um valor maior à sua existência.

Nietzsche e Schopenhauer

Como podemos notar, é peculiar a forma que Nietzsche se apropria da filosofia schopenhaueriana, pois, apesar de o jovem filólogo utilizar a todo momento as noções da filosofia da vontade para fundamentar a sua concepção artística, elas não são concebidas da mesma maneira.

A noção de música, como apontamos acima, a despeito de ser entendida como a linguagem da própria vontade, não possui a mesma concepção que a de Schopenhauer, na medida em que ela não é concebida unilateralmente por Nietzsche, mas como meio aglutinador das outras artes. Por isto que a melhor forma de expressão artística será a tragédia. Nela pode se encontrar as diversas maneiras de transposição da música, possibilitando a compreensão artística como um organismo, contendo os vários modos de apreensão da vontade.

Isto tem como consequência a concepção de que a tragédia seria a melhor forma artística e não mais a música, a tragédia, que era entendida por Schopenhauer como uma expressão artística de grau inferior à música, é erguida para o grau mais alto de emanação da vontade.

Schopenhauer, ao descrever a noção de tragédia em sua obra magna “O Mundo como Vontade e como Representação”, compreende a tragédia em um grau inferior de objetivação da vontade. Afirma ele:

Após termos considerado até aqui todas as belas artes (...) começando com a bela arquitetura (...) e fechando a nossa consideração com a tragédia (...) notamos que uma bela arte permaneceu excluída de nossa consideração e tinha de permanecê-lo, visto que no encadeamento sistemático de nossa exposição, não havia lugar apropriado para ela. Trata-se da música. Esta se encontra por inteiro separada de todas as demais artes. Conhecemos nela não a cópia, a repetição no mundo de alguma Ideia dos seres; no entanto é uma arte tão elevada e majestosa, faz efeito tão poderosamente sobre o mais íntimo do homem, é aí tão inteira e profundamente compreendida por ele, como se fora uma linguagem universal, cuja distinção ultrapassa até mesmo o mundo intuitivo (...).16

A tragédia é entendida como inferior por Schopenhauer, pois ela ainda está circunscrita ao mundo da representação, ao passo que a música é a única forma de arte que não possui forma, e identificando-se com a vontade.

Além disso, a própria concepção que o jovem filólogo possui da tragédia é completamente oposta a Schopenhauer, enquanto elemento propulsor da vontade de vida. O filósofo da vontade compreende a tragédia como a negação da vontade, a partir da resignação do espectador. Para ele, “a tragédia tem a tendência de indicar ao espectador, mediante a exposição do lado terrível da vida e com a descrição de grandes infelicidades, a resignação, a renúncia, a negação da vontade de vida”.17

A tragédia, para Schopenhauer, proporciona ao indivíduo a compreensão da vontade como puro sofrimento, evidenciando seu conflito interior. Desse modo, o véu de maia é desvelado, sendo responsável pela produção da resignação no espectador. Contudo, enquanto o filósofo da vontade compreende a tragédia como uma sugestão à negação da vida, Nietzsche, ao pressupor a música como o componente unificador da arte trágica, interpreta a tragédia como o mais alto grau de afirmação da vida. Ele escreve que “a arte, como festa de júbilo da vontade, é o mais forte sedutor da vida” (Nachlass/FP 3 [3], KSA 7.59), de modo que, ao invés de negar a vontade, ele ativa a plena vontade de vida.

Assim, notamos que o estado de puro sujeito de conhecimento, do ecstase, para Nietzsche, é a forma mais forte de afirmação de vida e não da negação da vontade18, configurando-se como um estado ativo do homem para a valoração da vida e não aquiescente, como aponta Schopenhauer, que denota a pura entrega do homem ao terror da vontade. Segundo Nietzsche, “a tragédia era uma crença na imortalidade helênica, antes do nascimento. Quando se abandonou essa crença, desapareceu também a esperança na imortalidade helênica” (Nachlass/FP 1 [4], KSA 7.11).

Nietzsche, ao conceber a tragédia deste modo, vincula-a a uma maneira de se refugiar do grande terror do mundo da vontade. Esta noção compreende a arte como uma ilusão necessária para a afirmação da vida, uma criação humana semelhante à religião, a partir da qual a vontade de vida é vangloriada, como se pode notar em um de seus fragmentos póstumos: “O helenismo tem para nós o valor que têm os santos para os católicos” (Nachlass/FP 1 [29], KSA 7.18).

Segundo o jovem filólogo, não basta saber que o mundo da representação schopenhaueriana é uma aparição incompleta da vontade e que o modo de escapar desse mundo ilusório é a aquiescência do puro contemplar ou do ascetismo, pois, a simples entrega a este mundo causaria o não sentido da vida, visto que o homem apenas compreenderia que ele estava subjugado ao mundo efêmero da matéria. Segundo Nietzsche, para que a vontade se compreenda como uma constante objetivação no mundo, como aponta Schopenhauer, o homem deve dar valor à sua vida, para que ela se perpetue e não feneça.

Referências Bibliográficas

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  • SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2004.
  • 1
    Carta para Carl Von Gesdorff de 28/09/1869 (KSB 3.61).
  • 2
    “[...] Dança de São Guido tornou-se nome de uma doença nervosa, reumatismo articular nervoso, caracterizada por convulsão muscular e movimentos desordenados e involuntários, que em geral acomete crianças entre os 6 e os 7 anos e entre os 11 e os 15 anos, especialmente as meninas, devido ao cansaço ou a fadiga [...]” (Chaves, 2006, p. 46-47n22).
  • 3
    No dia 2 de fevereiro, exatamente 40 dias após o Natal, há na Alemanha a festa a Nossa Senhora das Candeias (Maria Lichtmess) que celebra a mudança de estação do inverno para a primavera, quando os dias se tornam mais longos.
  • 4
    Grafamos ecstase, na forma como aparece no original, diferentemente da tradução brasileira, pois achamos extremamente importante ressaltar a grafia latina utilizada por Nietzsche, na medida em que é a única vez que, nesse texto, ele a utiliza desse modo. Nietzsche expõe a ideia de ecstase muito semelhante ao que foi descrito em um dos fragmentos de 1869 (Nachlass/FP 1, [1], KSA 7.9); no entanto, ele utiliza a terminologia grega ekstasis, como será expresso abaixo. Ademais, não é de menor consideração a forma que Nietzsche utiliza para descrever este estado, visto que em um pequeno espaço de tempo, em relação à elaboração de seus textos, é utilizado tanto o termo grego quanto o latino, evidenciando a gênese de sua noção trágica. É importante salientar que nos escritos posteriores de Nietzsche até 1874 somente será utilizada a tradução alemã do termo [Ekstase], que aparecerá sempre relacionado ao estado dionisíaco.
  • 5
    Machado, 2006, p. 24. Szondi, 2004, p. 23.
  • 6
    Machado, 2006, p. 24.
  • 7
    Machado, 2006, p. 25.
  • 8
    Aristóteles, 1973, p. 445 (1448b 4 - 15).
  • 9
    Puente, 2002, p. 10-27.
  • 10
    Gazolla, 2001, p. 38.
  • 11
    Fernandes, M. S. P. Introdução sobre o Teatro Grego Antigo no seu Contexto de Surgimento e Desenvolvimento. Disponível em: http://www.verlaine.pro.br/nascimento/visaodionisiaca.pdf.Visitado em 22/11/2013. Este texto deveria estar incluso na tradução brasileira do texto A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude. Trad. Fernandes, M. S. P. e Souza, M. C. S. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Segundo SOUZA, M.C.S., no entanto, não foi publicado, estando disponível apenas na internet. De qualquer modo, a veracidade da autoria do texto foi assegurada pela segunda autora da tradução citada. Inclusive, há a possibilidade de que o texto supramencionado seja publicado na próxima edição da tradução brasileira.
  • 12
    Shopenhauer, 2003, p. 33-34.
  • 13
  • 14
  • 15
    Martins, 2011, p. 47.
  • 16
  • 17
  • 18
    Simmel, 1944, p. 27.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2019
  • Aceito
    30 Jun 2019
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