Resumo
Neste artigo, intenta-se avaliar os significados da noção de desenvolvimento que vêm informando as análises sobre “desenvolvimento regional” no Brasil, considerando o âmbito de atuação dos programas de pós-graduação vinculados a esse campo de conhecimento. Em termos metodológicos, recuperam-se as raízes da noção de desenvolvimento, examinam-se alguns significados que ela assumiu ao longo de sua trajetória e revisam-se algumas críticas à concepção de desenvolvimento, aí se chamando à superfície algumas alternativas. A conclusão é de que a noção de desenvolvimento tem sido incapaz de conduzir à superação do real existente. Daí postular-se uma proposição que transcenda (empírica, teórica e politicamente) o protagonismo do capital e do Estado e contemple uma transformação social desde baixo, fundada no impulso para a autodeterminação social.
Palavras-chave: Autodeterminação Social; Brasil; Capital; Desenvolvimento; Desenvolvimento Regional; Estado
Abstract
This article aims to assess the meanings of the notion of development that have been applied in analyses on ‘regional development’ in Brazil, considering the scope of action of the postgraduate programs linked to this field of knowledge. In methodological terms, the roots of the notion of development are reappraised, some of the meanings that it has assumed along its trajectory are examined and some critiques of development are reviewed, thereby bringing several alternatives to the surface. The conclusion is that the notion of development has been unable to pave the way in overcoming the existing reality. Hence, a proposal is postulated that transcends (empirically, theoretically and politically) the protagonism of the capital and the State, and contemplates a social transformation from the bottom-up, based on a drive toward social self-determination.
Keywords: Social Self-determination; Brazil; Capital; Development; Regional Development; the State
[...] sob as pressões econômicas do mundo moderno o processo de desenvolvimento precisa [...] caminhar no sentido de um perpétuo desenvolvimento. Onde quer que o processo ocorra, todas as pessoas, coisas, instituições e ambientes que foram inovadores e de vanguarda em um dado momento histórico se tornarão a retaguarda e a obsolescência no momento seguinte [...] todos os indivíduos, grupos e comunidades enfrentam uma [...] constante pressão [...]; se pararem para descansar, para ser o que são, serão descartados. (BERMAN, 1986, p. 77).
Sabemos agora [...] que as economias da periferia nunca serão desenvolvidas [...]. Mas como negar que essa ideia [desenvolvimento econômico] tem sido de grande utilidade para mobilizar os povos da periferia e levá-los a aceitar enormes sacrifícios, para legitimar a destruição de formas de cultura arcaicas, para explicar e fazer compreender a necessidade de destruir o meio físico, para justificar formas de dependência que reforçam o caráter predatório do sistema produtivo? (FURTADO, 1974, p. 89; grifos no original).
Introdução
Desenvolvimento regional é uma expressão que voltou a frequentar o debate político e acadêmico. O que parece ter reacendido a discussão a esse respeito, desde fins dos anos 1990, foi a perda de protagonismo do Estado, mais nas formações sociais periféricas que nas centrais, como agente responsável pelo ordenamento do território. Isso é atribuído ao que tem sido chamado de globalização, um processo de expansão geográfica do capital (HARVEY, 2004; THEIS, 2009) que constrangeu os Estados nacionais a operarem ajustes, resultando, em alguns casos, em redução de atribuições, mas, em outros, em alterações qualitativas de funções. Uma delas era, precisamente, regular o uso da terra no meio urbano e na área rural, tanto para objetivos econômicos como para fins sociais. Essa função se modificou a ponto de se vaticinar a perda de relevância das fronteiras nacionais, do que emergiria um planeta de regiões, todas inseridas no admirável mundo novo da globalização neoliberal (OHMAE 1995). O fato é que, subitamente, o território encontrava-se entregue ao livre movimento dos agentes para a maximização de seus interesses. Nas formações sociais periféricas, foram as corporações multinacionais e os bancos comerciais, estrangeiros e nacionais, que tenderam a beneficiar-se do afastamento do Estado no que se refere à organização dos espaços de produção e circulação de mercadorias. Por isso, em numerosos países do Sul Global, as regiões ficaram desamparadas diante da perda de relevância do Estado.
No Brasil, a globalização foi recebida de braços abertos. Nos anos 1990, os gestores do Estado optaram por enfraquecer certas funções econômicas e sociais em favor de outras, com graves consequências para o ordenamento do território. Se o planejamento urbano, nas médias-grandes e grandes cidades, sobretudo da extensa faixa ao longo do litoral, parecia dar conta de operar em face do afastamento do governo central, nas cidades médias-pequenas e pequenas, localizadas principalmente no interior e menos distantes do meio rural, inexistiam recursos para enfrentar o súbito desamparo do Estado neoliberalizado. A aproximação de médios-pequenos e pequenos municípios entre si resultou em organização em escala regional. No interior do Brasil, a cooperação entre agentes - indivíduos, grupos sociais, entidades comunitárias etc. - atuantes nos municípios menores produziu os antídotos para a sobrevivência em um mundo agressivamente globalizado. É nesse contexto que a expressão “desenvolvimento regional” foi reintroduzida no debate político e acadêmico. Foi aí que, no Brasil, se avançou em direção à criação de programas de pós-graduação (PPG) em desenvolvimento regional (THEIS, 2019b). No âmbito desses PPG, passaram a realizar-se investigações empíricas e teóricas e, também, se formularam políticas públicas que deveriam responder aos problemas decorrentes da expansão geográfica do capital para o interior.
Neste artigo, porém, não se tem o fito de examinar, propriamente, o desenvolvimento regional. O que se pretende é avaliar os significados da noção de desenvolvimento que vêm informando as análises sobre “desenvolvimento regional” no Brasil, considerando o âmbito de atuação dos PPG vinculados a esse campo de conhecimento, e, na sequência, avançar uma proposição que transcenda (empírica, teórica e politicamente) o protagonismo do capital e do Estado.
Para cumprir esse desiderato, o texto foi dividido em três seções, além da introdução. Na primeira seção, em seguida à introdução, busca-se recuperar as raízes da noção de desenvolvimento e examinar alguns dos significados assumidos ao longo de sua trajetória, com ênfase no conceito de subdesenvolvimento. Na segunda, passam-se em revista algumas das principais críticas à concepção de desenvolvimento e se chamam à superfície algumas alternativas. Na conclusão, apresentam-se uma síntese do artigo e subsídios para uma proposição crítica da noção de desenvolvimento.
1. Desenvolvimento e subdesenvolvimento
Embora não se pretenda refazer uma “arqueologia da ideia de desenvolvimento” (SACHS, W., 1992), o intento é de, mesmo que brevemente, recuperar as raízes da noção de desenvolvimento (Tabela 1) para, em seguida, examinar alguns significados que ela assumiria em sua trajetória, com destaque para o conceito de subdesenvolvimento.
Se é fato que a noção de desenvolvimento que frequenta o debate político e acadêmico é um produto do pós-Segunda Guerra Mundial, seus antecedentes podem ser buscados em tempos mais remotos. Eles remetem a progresso, um termo derivado do latim prōgressus, que começa a circular na Europa do século XVII. No século XVIII, já era utilizado para anunciar um futuro de liberdade, justiça e abundância (SBERT, 2010). Progresso não é algo que se poderia encontrar na Antiguidade ou na Idade Média. Nem a filosofia grega clássica, nem a ordem jurídica emergida durante o Império Romano, nem o cristianismo dos primeiros séculos legitimariam uma ordem social fundada nessa ideia. A rigor, nada poderia alterar a estabilidade prevalecente e conduzir a um estado de coisas submetido à contínua mudança em direção ao a priori desconhecido (RAPP, 1992). Contudo, um conjunto de eventos cada vez mais explosivos levaria à progressiva dissolução daquela estabilidade e à erosão do mundo imutável que se dera a conhecer até então (FURTADO, 1978). A noção de progresso que anunciava um futuro de liberdade, justiça e abundância se apoiava na combinação da razão com a experiência, das ideias com os fatos. Enfim, o ser humano poderia elaborar conhecimento (a ciência) com vistas à sua aplicação para fins práticos (a técnica) e, substituindo Deus, reorganizar o mundo em que vivia.
A partir da segunda metade do século XVIII, o problema do desenvolvimento passaria a preocupar alguns dos mais argutos observadores das mudanças engendradas pelo progresso então em marcha. Com a publicação de A riqueza das nações, em 1776, por Adam Smith, a economia emergiria como disciplina autônoma do interior da filosofia social, não apenas para explicar a origem da riqueza social, mas, também, para justificar sua perseguição (HIRSCHMANN, 1979). O termo “progresso” comparece em diversas passagens de A riqueza das nações (por exemplo, no Livro Terceiro). No entanto, o que mais se aproxima do significado que desenvolvimento ganharia é acumulação de capital (por exemplo, no terceiro capítulo do Livro Segundo). Aliás, acumulação de capital, crescimento da riqueza e progresso da sociedade são algumas das expressões empregadas pelos membros da chamada Escola Clássica da Economia Política.
Influenciado pela economia política clássica, Karl Marx - e seu fiel escudeiro, Friedrich Engels - se debruçou sobre o processo de acumulação de capital para investigar suas contradições. O ponto de partida era de que o capital, um sistema de metabolismo social historicamente determinado, não apenas definia o modo de produção dominante (a base econômica capitalista), como também condicionava a cultura mais geral (as formas político-jurídicas, as crenças religiosas etc.) que lhe correspondia. O capital, que surge na esfera da produção, mas se realiza na esfera da circulação, é uma relação continuamente renovada de criação de valor. Parte desse valor é destinada à reprodução da força de trabalho, enquanto outra é apropriada pelos proprietários dos meios de produção. É incontestável que, nessas condições, o capital possa ser, e de fato é, acumulado como resultado do acréscimo de (sobre)trabalho - não convertido em remuneração para os proprietários da força de trabalho - ao estoque de capital previamente existente. É também incontestável que, nessas condições, a riqueza social tende a se concentrar cada vez mais, já que os proprietários dos meios de produção se encontram em situação privilegiada para se apropriarem dos ganhos propiciados pelo processo de acumulação. Por fim, é igualmente incontestável que um modo de produção que se funda em tais premissas está submetido a crises cada vez mais frequentes e agudas. Assim, em Marx e Engels, o problema do desenvolvimento acabaria sendo tratado da perspectiva de suas múltiplas contradições. Contribuições posteriores alargariam algumas de suas teses que mais diretamente dizem respeito ao que aqui está sendo revisado, aí se destacando O desenvolvimento do capitalismo na Rússia, publicado em 1899 por V. I. Lênin, e A acumulação de capital, publicado em 1913 por Rosa Luxemburgo.
No período entre fins do século XIX e início do XX, um grupo de estudiosos, inspirado em proposições da Escola Clássica da Economia Política e preocupado em refutar as teses de Marx e Engels, passaria a exercer influência no debate político e intelectual da época. Com efeito, os primeiros “economistas neoclássicos” experimentaram uma difusão inaudita de seus achados, em especial a utilidade marginal e o equilíbrio geral. A rigor, nenhum de seus integrantes teria algo a dizer sobre o problema do desenvolvimento, até a entrada em cena de Alfred Marshall. Em seu Princípios de Economia, publicado em 1890, num capítulo intitulado “O crescimento da riqueza”, ele observa, destoando de seus predecessores, que “a marcha do progresso [...] agora avança a passos agigantados, cada ano mais rápidos, e não podemos dizer onde vai parar” (MARSHALL, 1982, p. 197).
Entretanto, com a quebra da Bolsa de Nova York, em outubro de 1929, e a crise subsequente da economia capitalista, nos anos 1930, ganhava a superfície o verdadeiro problema do desenvolvimento, e se evidenciava a limitada capacidade explicativa dos neoclássicos. Se visto da perspectiva da macroeconomia emergente, ele poderia ser denominado insuficiência de demanda, ou seja, há pouco dinheiro para se adquirir as mercadorias que chegam ao mercado; se considerado da perspectiva das contradições do processo de acumulação, por crise de realização do valor, ou seja, cada vez mais mercadorias são geradas na esfera da produção que, contudo, não alcançam a esfera do consumo. Foi, como se sabe, o primeiro desses paradigmas que demonstraria as limitações da ortodoxia neoclássica, proporia uma alternativa viável para a saída da crise e, por isso, se estabeleceria no debate político e intelectual. O problema do desenvolvimento, para J. M. Keynes e discípulos, consistiu, pois, em atentar para o lado da demanda; logo, em assegurar poder de compra para que as mercadorias que chegavam ao mercado pudessem ser adquiridas. Se a produção cresce, então tem que crescer, na mesma medida, o consumo. Assim, a partir dos anos 1930 se conformou uma corrente de estudiosos que, de fato, se tornariam apologistas do crescimento econômico.
Findada a Segunda Guerra Mundial, as políticas keynesianas de gestão da demanda não apenas favoreceram uma reconstrução rápida do que fora destruído na Europa entre 1939 e 1945, como também propiciaram condições para a constituição do chamado Estado de Bem-estar Social. Poderia o êxito do desenvolvimento europeu ser replicado na periferia? A Organização das Nações Unidas, que ganhou vida em fins de 1945, criaria a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, em 25 de fevereiro de 1948, para “contribuir ao desenvolvimento econômico” do subcontinente. Menos de um ano depois, em 20 de janeiro de 1949, o presidente H. S. Truman declarou, em seu discurso de posse, que a maior parte do planeta era subdesenvolvida (ESTEVA, 2010).
A ideia de desenvolvimento se disseminaria como aspiração não apenas dos já desenvolvidos, mas também dos declarados subdesenvolvidos, como panaceia para a superação do atraso econômico e a erradicação da pobreza. Essa condição seria alcançada quando, por desenvolvimento, se passaria a entender tanto a representação da realidade social e econômica quanto o intento de intervir sobre ela. Porém, os usos mais frequentes do termo permitiriam diferenciar, de um lado, processo e aspiração e, de outro, teoria e prática.
No primeiro caso, distinguem-se realidade empírica e intencionalidade, fato e propósito. Assim, desenvolvimento pode ser considerado um processo de mudança econômica de um país, que pode ser observado e captado por meio de indicadores e analisado segundo um padrão determinado. O significado que o termo assume aqui é o de aspecto palpável da realidade, passível de mensuração. Mas, desenvolvimento também pode ser um objetivo, uma intenção expressa em um plano ou uma política de desenvolvimento. Nesse caso, nada se tem de palpável, exceto a preocupação de se modificar a realidade a partir do que existe em direção ao que deveria existir. Dessa maneira, diferenciam-se fatos de intenções.
No segundo caso, distinguem-se teoria e prática, “pensar” e “agir”. É evidente que institutos de pesquisa e universidades se atribuiriam a primeira dessas tarefas, enquanto governantes e políticos reclamariam para si a segunda. Teorizar sobre desenvolvimento, porém, implica examinar criticamente as bases, tanto de processos como de aspirações, tanto de trajetórias como de estratégias. No entanto, em termos práticos, a preocupação com o “agir” se materializa com a intervenção sobre a realidade. Embora não devesse prescindir do “pensar” como seu pré-requisito, o desenvolvimento na prática não tem cumprido suas promessas. Neste sentido, diferencia-se o abstrato do concreto (WOLFE, 1976).
A distinção entre processo e aspiração, de um lado, e entre teoria e prática, de outro, contribui para a compreensão do fenômeno do subdesenvolvimento, essa contraparte do bem-sucedido desenvolvimento europeu do pós-Segunda Guerra Mundial que não poderia ser replicado na periferia. Talvez a coletânea organizada por Agarwala e Singh (1958) ofereça o melhor primeiro balanço do então ainda pouco compreendido fenômeno. Aliás, sendo a periferia o que era, não haveria autonomia nem para a adoção de políticas de gestão da demanda nem, muito menos, para a construção de um Estado de Bem-estar Social. Com efeito,
In the Third World [...] the pursuit of short-term interests led [the American elites] to frustrate the desire for independent development [...] There was no Marshall Plan for the Third World, merely a terrible catalogue of murders of nationalist leaders, absurd embargoes, engineered coups d’état, support for the most sordid dictatorhips, neo-colonial wars and minor tragedies. (LIPIETZ, 1992, p. 10).
A corrente mais influente no debate sobre subdesenvolvimento postulava que as sociedades tradicionais, não desenvolvidas, deveriam se empenhar em saltar as etapas que as separavam das sociedades modernas, desenvolvidas (ROSTOW, 1960). Outras vertentes recusavam o diagnóstico e as recomendações formulados pelos estudiosos da modernização. Elas, contudo, compartilhavam com estes o desiderato do desenvolvimento. Se os estudiosos da modernização identificavam subdesenvolvimento com apego às tradições, as demais correntes enriqueceram o debate com outras concepções. Economistas heterodoxos, como Michal Kalecki (1988), partindo de causas econômicas do subdesenvolvimento, propunham transformações de natureza estrutural. Cientistas sociais críticos, como Geoffrey Kay (1977), partindo de causas histórico-políticas, sugeriam que o subdesenvolvimento abriria possibilidades para rupturas revolucionárias. Dependentistas, como André Gunder Frank (1980) e Ruy Mauro Marini (1969), partindo de evidências empíricas sobre a América Latina, não apenas compartilhavam pontos essenciais sobre subdesenvolvimento com os economistas heterodoxos e os cientistas sociais críticos, como, dadas a originalidade de sua abordagem e a penetração de seus argumentos, chegaram mesmo a influenciá-los.
No Brasil, a problemática do subdesenvolvimento cedo receberia atenção de seus estudiosos mais engajados, mas o caso de Celso Furtado é exemplar. No prefácio de seu Desenvolvimento e subdesenvolvimento, de 1961, ele informa que, quando começou a debruçar-se sobre a dita problemática, no início dos anos 1950, a ciência da economia ensinada nos centros mais desenvolvidos oferecia poucos pontos de partida para os estudiosos dessa área de conhecimento. Aí se revela o pioneirismo de Furtado nos estudos sobre subdesenvolvimento: o capítulo 4 do referido livro resultou de uma exposição feita na Universidade do Brasil em 1958. Foi o mesmo ano em que veio à luz a coletânea organizada por Agarwala e Singh (1958), na qual, aliás, Furtado comparece com um importante capítulo. E o que era mesmo subdesenvolvimento para o economista paraibano nos anos 1950? Certamente, não uma etapa pela qual as economias atrasadas deveriam passar para, em algum dia, alcançar a etapa da maturidade, quando estariam tão desenvolvidas quanto as avançadas economias da Europa e dos Estados Unidos. Era, antes, um complexo processo de penetração de unidades produtivas capitalistas modernas em um contexto dominado por estruturas pré-capitalistas arcaicas. Como resultado, apenas uma fração reduzida da população seria beneficiada pelo desenvolvimento; em oposição às experiências das economias (desde sempre) desenvolvidas, a maioria da população vivendo em situação de subdesenvolvimento dependia de atividades de subsistência para sobreviver (FURTADO, 1961).
Com isso, e se foi logrado o duplo propósito de, por um lado, recuperar as raízes da noção de desenvolvimento e, por outro, de examinar alguns significados por ela assumidos ao longo de sua trajetória (aí incluído o referente ao fenômeno do subdesenvolvimento), então se está em condições de dar um novo passo. E este remete a críticas e alternativas.
2. Críticas ao desenvolvimento
Nesta seção se pretende avançar em direção às principais críticas desferidas contra a ideia de desenvolvimento (Tabela 2). Por principais se entendem as que mais frequentemente ocorrem na literatura, inclusive a pertinente a desenvolvimento regional. Inicialmente, busca-se sumariar tais críticas para, em seguida, tratar das principais alternativas, com ênfase nos casos de desenvolvimento sustentável, decrescimento e pós-desenvolvimento.
Parece haver pouca dúvida de que a ideia de desenvolvimento tem ocupado um lugar cada vez mais importante, não apenas no pensar de acadêmicos e no agir de burocratas e políticos, mas no cotidiano de indivíduos e coletividades humanas. Também cabe pouca dúvida de que ela demonstrou ser incapaz de oferecer conteúdo e sentido, seja para uma visão alternativa de futuro, seja para uma estratégia de ação conducente a mudanças que pudessem corresponder com aspirações conscientes de indivíduos e coletividades humanas (ESTEVA, 2010).
De um lado, há um tipo de crítica que considera ser a persistência do subdesenvolvimento o resultado de pouco desenvolvimento. Dela compartilham economistas liberais, embora às vezes também heterodoxos. Para eles, o subdesenvolvimento seria o castigo de que padecem as nações que experimentaram uma dose insuficiente de desenvolvimento. A observação empírica de situações concretas revela, porém, que, ao penetrar estruturas subdesenvolvidas, o capital impulsiona processos de acumulação primitiva que, se conduzem a resultados econômicos positivos, invariavelmente se fazem acompanhar da destruição de formas tradicionais de coletividades humanas e da degradação de ecossistemas (SANYAL, 2007).
Outro tipo de crítica, emanado das hostes de economistas preocupados com aspectos socioambientais, é o que põe a dimensão quantitativa do desenvolvimento em questão, atentando para sua natureza qualitativa:
Embora seja dificilmente imaginável desenvolvimento sem crescimento, idênticas taxas de crescimento podem levar tanto ao desenvolvimento como ao maldesenvolvimento, visto ser de caráter qualitativo a diferença entre os dois. O desenvolvimento ocorre quando se criam valores genuínos de uso que satisfaçam as necessidades da sociedade, e prevalecerá uma situação de maldesenvolvimento, caso a economia apresente pseudovalores de uso sob a forma de consumo conspícuo de bens e serviços, assim como de armamentos. (SACHS, 1986, p. 53).
O argumento encontra apoio em situações concretas: taxas elevadas de crescimento econômico podem conduzir a mudanças na vida de certas coletividades humanas, mas não na de outras. O que se poderia indagar é se, em muitos casos, a vida de indivíduos e coletividades humanas já não era qualitativamente “boa” antes que sobre ela incidisse alguma bem-intencionada estratégia de desenvolvimento. E, no limite, poder-se-ia inquirir se o caráter qualitativo da vida de indivíduos e coletividades humanas não poderia melhorar mesmo com decrescimento, ponto ao qual se voltará a seguir.
De outro lado, há um tipo de crítica que objeta os aspectos quantitativos e também os qualitativos. Este identifica desenvolvimento com a difusão da ideia de criação de riquezas, desde formações sociais centrais, que se materializa em processos de acumulação de capital, mas gera consequências adversas tanto para indivíduos e coletividades humanas como para a natureza nas formações periféricas.
Tome-se em conta o processo de descolonização, que coincidiu com a reconstrução da Europa destruída pela Segunda Guerra Mundial e a constituição de seu Estado de Bem-estar Social antes referidas. Não se pode dissociá-lo da difusão da noção de desenvolvimento como criação de riquezas. Assim, se é certo que o processo de descolonização foi acompanhado do enfraquecimento de antigas formas de dependência, não menos certo é que a difusão da noção de desenvolvimento propiciou a emergência de novas. Neste caso, desenvolvimento tem sido criticado como nova modalidade de colonialismo (ZEA, 1987). Essa crítica, que mira o capitalismo ocidental e patriarcal, repousa na constatação de que a concepção de criação de riquezas implícita na noção de desenvolvimento também abrange uma tripla exploração: de mulheres, da natureza e de culturas não ocidentais (SHIVA, 1989).
Há, por fim, um tipo de crítica que identifica a teoria e a prática do desenvolvimento com uma forma de dissimulação do processo de acumulação e suas implicações econômicas, sociais e políticas, por adotar um palavreado que oculta aspectos cruciais da vida de indivíduos e coletividades humanas. Assim, pondera-se que o pensamento convencional sobre desenvolvimento tem sido algo enganoso, já que estaria negligenciando aspectos como o contexto internacional (subdesenvolvimento não pode ser considerado um problema nacional, exclusivo das formações sociais periféricas), os conflitos de classe no âmbito das formações sociais e as relações desiguais entre classes e formações sociais no contexto da economia capitalista mundial (FAGEN, 1983). Esses aspectos frequentemente desprezados explicariam os gaps crescentes entre grupos sociais, assim como entre regiões, no interior das formações sociais periféricas, nas quais até se poderiam verificar resultados econômicos positivos, mas também pobreza, destruição de culturas, degradação de ecossistemas e autoritarismo político. A face enganosa do pensamento convencional sobre desenvolvimento se revelaria na medida em que se enalteciam os resultados econômicos, mas se silenciava sobre seus efeitos colaterais.
Em síntese: tanto a teoria quanto a prática do desenvolvimento têm sido criticadas por inúmeras razões que parecem legítimas. Curiosa, mas não surpreendentemente, todas as críticas parecem confluir para a excessiva ênfase no econômico. Ou seja, as críticas desferidas contra as noções conhecidas de desenvolvimento no debate político e acadêmico associam desenvolvimento precipuamente, quando não exclusivamente, com criação de riquezas.
Em face das críticas, haveria que tornar a teoria e a prática do desenvolvimento mais palatáveis, o que levou à elaboração de visões de futuro que procurassem escapar da excessiva ênfase no econômico, e à formulação de estratégias de ação que melhor pudessem atender às aspirações de indivíduos e coletividades humanas. Não caberia resenhá-las aqui. Mas, é preciso registrar que, na mesma medida em que se iam manifestando os efeitos colaterais do desenvolvimento, também emergiam proposições que apontavam para outras direções, aí podendo mencionar-se “um outro desenvolvimento” (BIROU; HENRY, 1987); “ecodesenvolvimento” (SACHS, 1980); “small is beautiful” (SCHUMACHER, 1973); “desenvolvimento sustentável” (CMMAD, 1988); “limites do crescimento” (MEADOWS et al., 1978); “the living economy” (EKINS, 1986); “La décroissance” (LATOUCHE, 2007) e “postdevelopment” (SACHS, W., 2009). Entre essas proposições, e assumido o critério de considerar a frequência com que ocorrem na literatura, inclusive a pertinente a desenvolvimento regional, conferir-se-á destaque a desenvolvimento sustentável, decrescimento e pós-desenvolvimento (Tabela 3).
Quanto a desenvolvimento sustentável, trata-se de uma proposição emanada do Relatório Brundtland, publicado em 1987, que pretendia enfrentar os efeitos colaterais do desenvolvimento sobre o meio ambiente. Daí orientar-se sua atenção, desde uma perspectiva temporal mais ampla, para a preservação da base física de “recursos naturais”. Desenvolvimento sustentável foi definido como “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem às suas próprias necessidades” (CMMAD, 1988, p. 46). Em certa medida, a noção de ecodesenvolvimento antecipava a preocupação com estratégias fundadas numa combinação mais equilibrada entre eficiência econômica, equidade social e prudência ecológica (SACHS, 1986). Todavia, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, ocorrida em Estocolmo, no ano de 1972, e o Relatório do Clube de Roma, publicado no mesmo ano (MEADOWS et al., 1978), podem ser considerados os verdadeiros antecedentes do desenvolvimento sustentável. A realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, em 1992, contribuiu para sua difusão, a ponto de a noção de desenvolvimento sustentável logo ser absorvida (e instrumentalizada) por organizações multilaterais, como o Banco Mundial (PEET; WATTS, 1996). Se, por um lado, não se podem culpar os advogados da proposição do desenvolvimento sustentável pelo fato de ela ter sido cooptada por agências internacionais, governos e grandes corporações privadas que, a rigor, atuam em contradição com o seu espírito, por outro, deve-se criticar o conceito de desenvolvimento sustentável por ele prometer consistência teórico-empírica que não pode cumprir. Mais grave, porém, é que a noção de desenvolvimento sustentável tem silenciado diante da progressiva expansão das forças produtivas que impulsionam o processo de acumulação, da ininterrupta destruição dos recursos comuns e consequente degradação dos ecossistemas e da reprodução da sociedade de classes baseada na incessante exploração do trabalho (REDCLIFT, 1995).
Quanto a decrescimento, é uma proposição que vem experimentando bem menos difusão que desenvolvimento sustentável, mas, em comparação, parece fundamentar-se em argumento científico mais sólido. A sua inspiração parece estar no capítulo VI, do Livro Quarto, dos Princípios de economia política, de John Stuart Mill, publicado em 1848. Aí seu autor contesta:
[...] aqueles que pensam que o estado normal dos seres humanos é aquele de sempre lutar para progredir do ponto de vista econômico, que pensam que o atropelar e pisar os outros [...] e um andar sempre ao encalço do outro [...] são o destino mais desejável da espécie humana, quando [...] não são outra coisa senão os sintomas desagradáveis de uma das fases do progresso industrial. (MILL, 1983, p. 252).
Nas últimas décadas vem ganhando audiência a exortação de ambientalistas e estudiosos do desenvolvimento em favor de uma redução no ritmo de crescimento econômico (GEORGESCU-ROEGEN, 1971). O termo “decrescimento”, propriamente, passou a disseminar-se a partir do título vertido para o francês de uma conhecida obra de Nicholas Georgescu-Roegen (1979). O que aí há de original e cientificamente sólido é a asserção de que o processo econômico é condicionado pelos limites entrópicos no uso de energia e pelos limites biofísicos no uso de recursos. O decrescimento não consiste em uma estratégia para diminuir a produção de mercadorias, gerar desemprego e/ou reduzir salários; ele aponta para uma reorganização planejada da sociedade, com base na constatação dos limites referidos e, em consequência, na adoção de medidas que se baseiam tanto na decrescente utilização de energia e recursos comuns como na distribuição equitativa dos seus benefícios (KALLIS; KERSCHNER; MARTINEZ-ALIER, 2012; LATOUCHE, 2007). Mais ainda: além de assentar em uso parcimonioso de energia e recursos comuns, decrescimento abarca ampla gama de dimensões da vida de indivíduos e coletividades humanas, inclusive cultura e política. Contudo, se, por um lado, parece evidente que os proponentes do decrescimento se opõem à expansão das forças produtivas que impulsionam o processo de acumulação, à ininterrupta destruição dos recursos comuns e à degradação dos ecossistemas, por outro, restam dúvidas em relação a como lidam com a sociedade de classes fundamentada na contínua exploração do trabalho.
E quanto a pós-desenvolvimento, apesar de menos difundida que desenvolvimento sustentável e amparada em argumentos menos sólidos que decrescimento, é uma proposição que ousa mais na radicalidade da crítica à ideia de desenvolvimento. Embora tenha surgido nos anos 1980, o pós-desenvolvimento se estabeleceria desde os anos 1990 como importante crítica ao discurso do desenvolvimento. Tal como outros discursos que se tornam hegemônicos no debate político e acadêmico, alega-se aqui que também o do desenvolvimento emergiu e se firmou em função de interesses de certos grupos sociais e das relações de poder dominantes em dado contexto histórico e geográfico (RAHNEMA; BAWTREE, 1997; ZIAI, 2007). A crítica desferida pelos estudiosos do pós-desenvolvimento - aí se destacando, inicialmente, Arturo Escobar (1995) - se diferenciava porque se propunha não meramente a redefinir desenvolvimento, mas a rejeitá-lo de maneira radical. Se, no princípio, o alvo era desenvolvimento, uma ideia tida como eurocêntrica, para a qual se ambicionava validade universal, no período recente os advogados do pós-desenvolvimento passaram a visar à globalização, um processo induzido pelo Norte Global que degrada as culturas e os modos de vida locais e regionais no Sul Global. Os estudiosos do pós-desenvolvimento não sugerem saídas neopopulistas ou neoliberais, mas têm sido criticados por se limitarem a descartar a ideia de desenvolvimento, sem se importarem com o que colocar em seu lugar. O que talvez os una é seu um pouco vago compromisso com uma democratização de todas as relações sociais. Isso corresponderia a uma política de emancipação dos subalternizados, sobretudo nas formações sociais periféricas, abarcando desde formas de conhecimento até mecanismos de poder que, até o presente, os têm mantido na condição de subalternidade; ou seja, uma política que levaria à desconstrução de diferenças epistemológicas e econômico-políticas (SACHS, W., 2009; ZIAI, 2004). Contudo, persistem dúvidas sobre como o pós-desenvolvimentismo concebe não somente as relações entre seres humanos e natureza, mas também a sociedade de classes baseada na exploração do trabalho.
Com isso, e se o duplo propósito de revisar críticas ao desenvolvimento e indicar alternativas - nomeadamente: desenvolvimento sustentável, decrescimento e pós-desenvolvimento - foi alcançado, então se está em condições de avançar algumas conclusões.
3. Conclusão: os desafios para os estudos do desenvolvimento regional
Nesta última seção se pretende oferecer uma síntese do exposto nas seções anteriores e, também, alguns subsídios para a formulação de uma concepção de desenvolvimento livre de suas determinações políticas e epistemológicas. Quais são, pois, os resultados a que se chegou?
Ao se empreender, na primeira seção, uma recuperação das raízes da noção de desenvolvimento e um exame de alguns dos significados assumidos ao longo de sua trajetória, pode-se constatar, a despeito da forte ofensiva neoliberal das últimas décadas, sua ininterrompida presença no debate político e acadêmico, aí ainda merecendo atenção o conceito de subdesenvolvimento. Na segunda seção se buscou identificar as mais importantes críticas dirigidas contra a ideia de desenvolvimento. Após a tentativa de sumariá-las, conferiu-se destaque a três alternativas que têm despontado no debate acadêmico recente. Aí se pode constatar que as críticas, embora procedentes, permaneciam na superfície e, igualmente, que as alternativas não ultrapassavam as restrições materiais e simbólicas do próprio conceito de desenvolvimento. Ora, essas limitações desafiam a pensar em saídas ainda não estabelecidas.
A proposição que se delineia nas linhas a seguir apoia-se em um duplo movimento. O primeiro propõe que se reconheça desenvolvimento como um processo positivado na história. Assim, desenvolvimento é, fundamentalmente, um processo econômico, a contínua expansão das forças produtivas que leva à ininterrupta produção de mercadorias. Por isso, pode ser considerado um processo empiricamente verificável de crescimento econômico, que se presta à mensuração por intermédio de certos indicadores e à análise segundo certo padrão. Um processo que envolve a criação de riquezas com base no consumo de matéria e energia disponíveis na natureza e de força de trabalho disponível em cada ser humano despossuído de meios de produção. De forma que desenvolvimento é condicionado pelos limites entrópicos no uso de energia e pelos limites biofísicos no uso de recursos comuns, bem como pelos limites físicos e morais no uso de força de trabalho. Trata-se, não obstante, de um processo de contínua conversão de materiais obtidos na natureza em mercadorias por meio de trabalho humano. Sua finalidade deveria ser a erradicação da pobreza e a superação do atraso econômico, sobretudo nos países do Sul Global. Todavia, historicamente, desenvolvimento tem sido um processo que, em grau até considerável, cumpre suas promessas - níveis toleráveis de pobreza, níveis aceitáveis de desigualdade, dinamismo econômico etc. - nas formações sociais centrais, ao preço, porém, de subdesenvolvimento nas formações sociais que se encontram na periferia da economia capitalista mundial. As evidências sugerem, pois, que desenvolvimento não pode ser outra coisa do que tem sido, pois não se presta a uma orientação humana consciente. Quando muito, pode ser considerado uma tentativa malsucedida de controlar impulsos intrínsecos ao processo econômico sob o sistema do capital.
Chega-se agora ao segundo movimento dessa proposição. Em termos normativos, ele indica uma alternativa plausível em substituição à noção de desenvolvimento. Portanto, não se trata mais do já ocorrido, mas de horizonte utópico (THEIS, 2019a). Sem lugar a dúvida, a realidade empírica importa, talvez, até mais que antes, inclusive para se constatar que o real existente não atende às aspirações conscientes de indivíduos e coletividades humanas. Mas, importa mais o almejado. E este não pode mais permanecer aprisionado na noção de desenvolvimento, inextricavelmente comprometida tanto com a perversa mão invisível do capital como com a dissimulada mão visível do Estado, e com (quase) tudo o mais que tem mantido o mundo como ele tem sido até agora. Nenhum plano ou política de desenvolvimento favorecerá a modificação da realidade, nem a superação do atraso econômico e a erradicação da pobreza. A noção de desenvolvimento é incapaz de propiciar a superação do real existente, sobretudo em direção a algo verdadeiramente diferente e melhor - “o conteúdo humano que ainda circula inconcluso” (BLOCH, 2006, p. 55) -, que poderia e deveria existir.
A alternativa plausível, que corresponde ao segundo movimento da proposição mencionada e aponta para um horizonte utópico genuíno, traduz-se como impulso para a autodeterminação social (HOLLOWAY, 2006), incitamento para a autonomia (DINERSTEIN, 2015, 2016), ímpeto para a autorregulação social (GUTIÉRREZ AGUILAR, 2012). Essa alternativa consiste em resistência consciente de mulheres e homens - lá onde trabalham e vivem, seja no campo, seja na cidade - à instauração da relação-capital, que não é “outra coisa que o processo histórico de separação entre produtor e condições de produção” (MARX, 1993 [1890], p. 742).
O ponto de partida é o reconhecimento do presente predomínio da relação-capital e, portanto, da reiterada subordinação da energia de mulheres e homens à produção de mercadorias e da coisificação das relações sociais em quase todos os domínios da vida de indivíduos e coletividades humanas. A alternativa do impulso para a autodeterminação social não pode significar outra coisa que a negação, “aqui e agora”, da relação-capital (HOLLOWAY, 2006). Ela mira um horizonte utópico impaciente, que já não pode aguardar pelo “daqui a pouco”. Ela se funda numa transformação social desde abaixo, na insubmissão em relação ao instituído, na rebelião contra a dominação e exploração vigentes. Ela tende a ocorrer quando as configurações de vida de indivíduos e coletividades humanas se vão desestabilizando, quando as relações sociais de dominação e exploração existentes se vão diluindo, quando os vínculos e laços que organizam a vida se tornam maleáveis a ponto de assumirem novas formas. A transformação social desde abaixo que aponta para a alternativa do impulso para a autodeterminação social não apenas confere visibilidade às práticas e aos saberes das/dos dominadas/os, das/dos que não vivem de trabalho alheio, como inclusive favorece sua expansão nos espaços de debate e decisão pública (GUTIÉRREZ AGUILAR, 2012).
Por que, porém, impulso em direção à? É que “si confundimos el impulso hacia la autodeterminación con la autodeterminación [...], si institucionalizamos y definimos un movimiento contra la definición, entonces, todo estará perdido” (HOLLOWAY, 2006, p. 11-12). Assim, a alternativa do impulso para a autodeterminação social é incompatível com todas as formas de institucionalização da vida de indivíduos e coletividades humanas. Contam-se aí o capital, o dinheiro, o mercado e o Estado, mas também todas as demais formas que, hipoteticamente, poderiam representar opções de emancipação social (HOLLOWAY, 2005).
São numerosas as iniciativas que se podem identificar na história e incontáveis as experiências que se podem diagnosticar atualmente nos quatro cantos do planeta, apontando para uma alternativa de autêntica emancipação social e autonomia individual e coletiva. Entre as primeiras, poder-se-iam incluir, por exemplo, o movimento anabatista do século XVI (BLOCH, 1973), a Comuna de Paris de 1871 (MARX, 2011), os sovietes nas Revoluções Russas de 1905 e 1917 (ANWEILER, 1974) e a Guerra Civil Espanhola de 1936-1939 (GEORGE, 1982). Entre as últimas, destacam-se o Movimento Zapatista, no México, e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, no Brasil (DINERSTEIN, 2015). Em todas essas iniciativas e experiências, constatam-se esforços genuínos em direção à autogestão, à instauração de formas não institucionalizadas e não hierarquizadas de organização social e econômica, à tessitura de laços entre coletividades que compartilham valores comuns. São esforços que radicam na transformação social desde abaixo que impulsiona para a autodeterminação social, como aqui postulado.
Os resultados a que se chegou e a proposição que se formulou têm seu âmbito delimitado pelo intento de tomá-los, resultados e proposição, como pano de fundo para auxiliar nos estudos de desenvolvimento regional no Brasil, muitos dos quais sendo realizados por investigadores/as vinculados/as a programas de pós-graduação (THEIS, 2019b). Uma expectativa não manifesta é a de que resultados e proposição possam subsidiar uma nova agenda, que passe a ter em conta a possibilidade de se retirar a noção de desenvolvimento do horizonte utópico em favor de uma alternativa que signifique impulso para a autodeterminação social por parte das/dos dominadas/os, das/dos que não vivem de trabalho alheio. Não se trata de fechar os olhos para o real existente, mas de mirar para além dele. Não se trata de desprezar a presença do capital e do Estado e de todas as escalas nas quais seus poderes têm operado, mas de atrever-se a recusar essas institucionalidades, que têm bloqueado a emancipação social e a autonomia individual e coletiva. Em síntese: que uma nova agenda de estudos no campo do desenvolvimento regional não deixe de continuar reconhecendo desenvolvimento como um processo empiricamente verificável. Mas, que, em termos normativos, ouse contemplar um horizonte utópico informado pelo impulso para a autodeterminação social.
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Este artigo é resultado de pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio da concessão de bolsa de produtividade em pesquisa. Cabem agradecimentos também aos integrantes do Núcleo de Pesquisas em Desenvolvimento Regional (NPDR), em especial a Vivian Costa Brito, Luis Claudio Krajevski e Nelson Afonso Garcia Santos, assim como, a Rogério Leandro Lima da Silveira (Unisc), Virginia E. Etges (Unisc), Cidonea Machado Deponti (Unisc), Cidoval Morais de Sousa (UEPB), José Luciano Albino Barbosa (UEPB), Fernando Cézar de Macedo (IE/Unicamp), Fábio Pádua dos Santos (UFSC) e Anelise G. Rambo (UFRGS), que fizeram comentários valiosos na versão preliminar de este artigo. No entanto, a responsabilidade pelo resultado final cabe apenas ao seu autor.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Out 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
14 Set 2021 -
Aceito
25 Mar 2022