Open-access Tarefa de discriminação de fala com pseudopalavras

RESUMO

Objetivo  Elaborar uma lista de pseudopalavras em Português Brasileiro para avaliação da habilidade de discriminação auditiva de sons da fala e investigar a consistência interna dos itens de teste e o efeito do ano escolar sobre o desempenho na discriminação.

Método  Participaram 60 escolares de 3º (N=14), 4º (N=24) e 5º anos (N=22) do Ensino Fundamental (60% meninas) entre 8 anos e 2 meses e 11 anos e 8 meses (99 a 136 meses; M=120,05; DP=10,26), com média de rendimento escolar=7,21 pontos (DP=1,23; mínimo 5,0; máximo 10). Elaboraram-se 48 pares mínimos de pseudopalavras, com estrutura do Português Brasileiro e oponência de apenas um fonema. As repostas dos participantes (se os elementos dos pares eram iguais ou diferentes) foram anotadas e analisadas. Calculou-se o Coeficiente Alfa de Cronbach, o Coeficiente de Correlação de Spearman e o Teste de Bonferroni, com nível de significância de 0,05.

Resultados  A análise da consistência interna indicou a retirada de 20 pares. Vinte e oito resultantes mostraram boa consistência interna (α=0,84). O máximo de respostas corretas de discriminação dos estudantes foi 34, o mínimo = 16, a média = 30,79 (DP = 3,68). Não foram observadas correlações entre a idade, a nota e o desempenho em discriminação; tampouco foram apontadas diferenças de desempenho entre os anos escolares.

Conclusão  Grande parte dos itens propostos para avaliação da discriminação auditiva dos sons da fala mostrou boa consistência interna em relação à tarefa. Não foi observada melhora da capacidade de discriminação auditiva dos sons da fala quanto mais velha a criança ou mais adiantado o ano escolar.

Descritores  Percepção de Fala; Protocolos; Avaliação; Distúrbio de Fala; Fonoaudiologia

ABSTRACT

Purpose  Prepare a list of pseudowords in Brazilian Portuguese to assess the auditory discrimination ability of schoolchildren and investigate the internal consistency of test items and the effect of school grade on discrimination performance.

Methods  Study participants were 60 schoolchildren (60% female) enrolled in the 3rd (n=14), 4th (n=24) and 5th (n=22) grades of an elementary school in the city of Sao Paulo, Brazil, aged between eight years and two months and 11 years and eight months (99 to 136 months; mean=120.05; SD=10.26), with average school performance score of 7.21 (minimum 5.0; maximum 10; SD=1.23). Forty-eight minimal pairs of Brazilian Portuguese pseudowords distinguished by a single phoneme were prepared. The participants' responses (whether the elements of the pairs were the same or different) were noted and analyzed. The data were analyzed using the Cronbach's Alpha Coefficient, Spearman's Correlation Coefficient, and Bonferroni Post-hoc Test at significance level of 0.05.

Results  Internal consistency analysis indicated the deletion of 20 pairs. The 28 items with results showed good internal consistency (α=0.84). The maximum and minimum scores of correct discrimination responses were 34 and 16, respectively (mean=30.79; SD=3.68). No correlation was observed between age, school performance, and discrimination performance, and no difference between school grades was found.

Conclusion  Most of the items proposed for assessing the auditory discrimination of speech sounds showed good internal consistency in relation to the task. Age and school grade did not improve the auditory discrimination of speech sounds.

Keywords Speech Perception; Protocols; Evaluation; Speech Disorders; Speech, Language and Hearing Sciences

INTRODUÇÃO

O sistema fonológico organiza-se ao longo do desenvolvimento da linguagem oral, devendo acompanhar o seu crescimento. Do ponto de vista da fala, pode-se afirmar que, por volta dos 48 meses de idade(1), é possível que todos os sons estejam adquiridos e organizados, de modo a permitir que a expressão oral se faça sem dificuldade. Inputs sensoriais e perceptivos de sons linguísticos carregam importante carga de informação e dão início ao aprendizado, desenvolvimento e aprimoramento da fala. Além desse processo, primordialmente auditivo (há importantes informações visuais e proprioceptivas envolvidas), outros, de natureza neurocognitiva da linguagem, psicolinguística e motoras da fala, estão envolvidos nesse aprendizado(2,3). Contudo ressalta-se a discriminação fonêmica como importante habilidade para o desenvolvimento linguístico em seus aspectos fonológicos, semântico-lexicais e morfossintáticos(4).

Mas, nem sempre esse desenvolvimento se faz da maneira esperada. A literatura e, não raramente, também a prática clínica nos apresentam crianças, em idades superiores às esperadas para a aquisição total das regras de uso dos fonemas de seu idioma, com alterações de fala(5). Essas alterações são chamadas Erros ou Transtornos Residuais(6) ou Persistentes(7) da Fala (TPF), mundialmente reconhecidos e identificados em alta prevalência na população de escolares brasileiros(8,9). A despeito da diversidade de características das alterações e dos fatores determinantes, esses quadros apresentam como característica principal o fato de persistirem para além da idade limite esperada para a normalização da fala, até mesmo em crianças já tratadas e que não responderam satisfatoriamente à intervenção terapêutica, evidenciando a persistência das dificuldades, que podem continuar durante os anos escolares e até a vida adulta(7).

Assim, o TPF engloba uma expressiva diversidade de quadros que podem estar associados ou decorrer de alterações de fala relacionadas a dificuldades de organização cognitivo-linguística de regras da língua ou com a percepção auditiva ou, ainda, com a produção (em seus mais variados níveis de organização e expressão) dos sons linguísticos. Além disso, o TPF pode apresentar-se em comorbidade ou coocorrência com outras alterações do desenvolvimento como o Transtorno de Linguagem e o da Leitura e Escrita(7,10). É preciso ressaltar que, muitas vezes, sua identificação é feita a partir da queixa ou diagnóstico inicial do transtorno de leitura e escrita. Desse complexo espectro de alterações, associadas ou sobrepostas, decorre a necessidade de compreender o porquê da persistência das alterações a despeito, muitas vezes, da intervenção empreendida.

Diferentes abordagens e pontos de vista teóricos buscam explicar a complexidade do sistema de fala a partir de modelos estabelecidos para o desenvolvimento normal. Desde as bases neurobiológicas, investigadas em estudos genéticos ou de histórico familial(7,10) e de neuroimagem(11,12), geralmente voltadas para a produção da fala, até modelos linguísticos, que veem a produção e percepção da fala como um sistema dinâmico(13,14) ou, ainda, abordagens psicolinguísticas que levam em conta o léxico mental armazenado quando estudam a percepção de fala nos diferentes níveis de organização da palavra(15,16).

Do ponto de vista psicolinguístico, a percepção da fala pode ser entendida em etapas multinível de processamento. Discutindo a intervenção do TPF, Pascoe et al.(7) adotaram um modelo psicolinguístico para detalhar o encadeamento do processamento de fala. O modelo descreve diferentes níveis de input do sinal de fala, passando pela representação lexical, finalizando com processamentos de output dos sons linguísticos. Uma vez concebido para intervir no TPF e considerando o nível de desenvolvimento fonológico para os seis anos de idade ou mais, os autores propuseram tarefas de percepção de fala que avaliam desde a acuidade e percepção auditiva até a discriminação de fonemas com e sem referência a representações lexicais, as representações fonológicas e semântico-lexicais, a consciência fonológica, a própria organização fonológica, a programação motora da fala, a precisão fonoarticulatória, o automonitoramento da produção de fala, entre outros(5,7).

Uma das tarefas propostas para avaliação dos níveis de input nesse modelo de processamento é discriminar sons da fala sem referência à representação lexical. Segundo modelos psicolinguísticos, ainda que seja categórica, a discriminação de sons da fala é tarefa de nível mais baixo da percepção auditiva(15). Todos os mecanismos de percepção de fala, desde os mais periféricos, devem levar ao reconhecimento das palavras estocadas. Embora haja evidências de que o conhecimento lexical contribui para a exatidão na repetição, até mesmo de pseudopalavras(17), a interferência de mecanismos topdown em provas de discriminação fonêmica pode ser minimizada com a utilização de pseudopalavras. Alguns estudos propuseram comparar o desempenho de crianças com e sem problemas de fala ao discriminar sons ou sequências de sons em palavras e pseudopalavras e encontraram semelhanças na discriminação com palavras e pior desempenho do grupo com alteração de fala na discriminação com pseudopalavras (5,18). Além disso, o desempenho com pseudopalavras poderá indicar a maior ou menor facilidade de aprender de novos vocábulos(5).

Embora outras teorias sobre a percepção de fala ressaltem o importante papel do gesto articulatório à percepção da fala(13,14,19), esta pesquisa buscou elaborar uma lista de pseudopalavras criada para avaliar a discriminação auditiva dos sons da fala sem referência à representação lexical e analisar a consistência interna de seus itens. A escolha por essa tarefa foi baseada no pressuposto de que a percepção de fala envolve o mapeamento do sinal acústico em características básicas dos fonemas, como vozeamento, ponto e modo articulatório. Essas características são usadas para julgar e discriminar, de maneira precisa e categórica, diferenças relevantes entre sons com contrastes fonéticos mínimos - por exemplo, discriminação da consoante inicial nas sílabas ba e da(20). Todos os indivíduos sem alterações sensoriais relacionadas à audição são sensíveis a detalhes fonéticos e capazes de reter na memória quase todas as variantes fonéticas do seu idioma, mesmo sem dominá-lo ou reconhecê-lo(3,21,22). Esses detalhes sobre o fonema, apresentado de forma isolada do suporte semântico, podem fornecer, para o avaliador, informações cruciais sobre a condição da discriminação dos traços fonéticos.

Considerando a importância da avaliação precisa do TPF, criou-se um protocolo destinado a avaliar, em procedimento piloto, crianças entre 8 e 11 anos e 11 meses, sem queixa relacionada à comunicação oral e escrita e com bom desempenho escolar, de forma a possibilitar a investigação sobre a adequação e confiabilidade dos itens de teste e das tarefas propostas(22,23).

Provas e testes são elaborados para medir desempenhos e habilidades. Os itens de teste devem ser consistentes internamente e mostrar que avaliam o mesmo constructo e podem diferenciar amostras ou indivíduos segundo diferentes características que apresentem. Assim, o instrumento para mensuração de um evento ou fenômeno deve ser validado. E, para ser considerado válido, também deve ser confiável, sendo necessária a inicial análise de confiabilidade. A relação existente entre validade e confiabilidade pode ser analisada por meio da consistência presente em critérios externos e fidedignidade. A consistência interna refere-se à inter-relação de um grupo de itens que compõe uma prova, uma tarefa, ou mesmo, um instrumento de investigação que representa uma condição necessária para a homogeneidade das mensurações(23). Essa foi a condição medida e investigada no protocolo ora elaborado.

Mais à frente, o protocolo permitirá a comparação do desempenho de crianças com e sem queixa de alteração da comunicação oral e/ou da mediada pela escrita.

Com base no exposto acima, este estudo teve por objetivos: (a) elaborar uma lista de pseudopalavras para avaliação da capacidade de discriminação auditiva de sons da fala no Português Brasileiro; (b) investigar a consistência interna de seus itens de teste; (c) investigar o efeito do ano escolar sobre o desempenho na discriminação.

MÉTODO

Seleção da amostra

Participaram deste estudo crianças escolares regularmente matriculadas em uma escola da rede pública estadual da cidade de São Paulo. Inicialmente, foram selecionadas 79 crianças segundo a observância dos seguintes critérios para a inclusão na amostra (realizada por indicação dos pais e professores): ter entre 8 e 11 anos e 11 meses de idade; ausência de histórico, queixas relacionadas ou de indicadores de alterações da audição e aprendizado; ausência de queixas relacionadas ou de indicadores de alterações da visão (não corrigidos); ausência de histórico, queixas relacionadas ou de indicadores da presença de distúrbios neurológicos, comportamentais ou cognitivos; matrícula regular no 3º, 4º ou 5º anos do Ensino Fundamental; média do desempenho acadêmico acima de 5 nos dois primeiros bimestres do ano de 2016; ausência de histórico de retenção escolar. Além desses critérios, as crianças passaram por triagem para excluir da amostra crianças que: apresentassem alteração de fala e, para isso, aplicou-se o Teste de Linguagem Infantil / ABFW – Fonologia (24); apresentassem histórico de otites de repetição e/ou de atraso ou alteração do desenvolvimento de linguagem e fala - identificado pelas respostas ao questionário enviado aos pais(25); não apresentassem Reflexo Cócleo - Palpebral (RCP) na Avaliação Simplificada do Processamento Auditivo(26). Foram excluídos da amostra 15 escolares que apresentaram processos fonológicos produtivos e 4 com ausência de RCP.

Compuseram a amostra final, 60 escolares de 3º (N = 14), 4º (N = 24) e 5º anos (N = 22) do Ensino Fundamental (60% meninas) com idades entre 8 anos e 2 meses e 11 anos e 8 meses (Média = 120,05 meses; DP = 10,26). A média de rendimento dos alunos foi de 7,21 pontos (mínimo = 5,0; máximo = 10; DP = 1,23). Todos passaram na Avaliação Simplificada do Processamento Auditivo (localização, reconhecimento de sequência sonora não verbal e verbal)(26).

O questionário(25) referente à história pregressa e ao desenvolvimento de linguagem e fala das crianças foi enviado aos seus pais, juntamente com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Procedimentos de avaliação

A tarefa de percepção de fala foi elaborada a partir das indicações de Pascoe et al.(7) para verificar a capacidade de discriminação entre palavras com os sons da fala do Português Brasileiro, sem referência à representação lexical. Uma fonoaudióloga e uma linguista criaram 48 itens de teste, constituídos por pares de pseudopalavras, balanceadas foneticamente, que constituíram pares mínimos (diferindo em apenas um fonema) de forma a avaliar a habilidade de discriminação auditiva. Dessa lista, deveriam constar pseudopalavras cujo fonema a ser identificado constituísse um grupo consonantal, frequentemente alterado nos transtornos persistentes da fala. Uma banca de especialistas (fonoaudiólogos com experiência clínica e de pesquisa) analisou, por duas vezes, a lista. Metade dos estímulos foi modificada até que a banca aprovasse a lista final com 48 itens (pares de pseudopalavras).

Os estímulos foram gravados em voz masculina, não disfônica (e sem alterações de produção da fala) e apresentados em áudio, para garantir a homogeneidade de aplicação do protocolo elaborado e para excluir qualquer possibilidade de interferência de estímulo visual (27). Foram gravados diretamente no computador (Wise Case) pelo programa de avaliação acústica FonoView-4.6, CTS, equipado com microfone profissional (Samson CO3U), condensador, estéreo, omnidirecional, com sensitividade de -10 dB. O microfone foi posicionado a 10 cm da boca do falante e com ângulo de captação direcional de 45º. As gravações foram realizadas em ambiente acusticamente tratado (dentro de cabina acústica).

As avaliações foram realizadas individualmente, na sala de recursos da escola, disponibilizada pela direção para a aplicação do protocolo por ser silenciosa. A avaliadora sentou-se ao lado da criança, posicionou o computador na mesa à frente de ambas e apresentou as instruções do teste, também gravadas em áudio. Foi fornecida a seguinte instrução: “ Vou falar duas palavras inventadas. Diga se elas são iguais ou diferentes ”.

Após a apresentação, a avaliadora solicitou à criança que explicasse com suas palavras o que compreendeu da instrução ouvida, de modo a verificar o entendimento da instrução. Para as crianças que demonstraram não ter compreendido a instrução (ou a compreenderam apenas parcialmente), a avaliadora retomou-a e, a seguir, apresentou de viva voz, quatro exemplos de teste. A prova foi iniciada apenas após a apresentação da resposta correta à realização dos exemplos, confirmando o entendimento da criança.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo - Hospital São Paulo, São Paulo, Brasil CEP- UNIFESP/EPM - sob o número CAAE: 47313115.5.0000.5505. Para participação no estudo, os responsáveis concordaram com a inclusão da criança na pesquisa, por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido após terem lido a Carta de Informação.

As crianças também foram esclarecidas quanto aos objetivos e procedimentos da avaliação e assinaram o Termo de Assentimento da Criança.

Método estatístico

Para caracterizar a habilidade de percepção de fala e investigar a presença de correlações entre variáveis e quais delas interferem nos desempenhos, foram conduzidas estatísticas descritivas e inferenciais.

O Coeficiente Alfa de Cronbach foi utilizado para analisar a consistência interna dos itens do teste, o coeficiente de Correlação de Pearson (rho) foi calculado para verificação do comportamento conjunto entre as variáveis categóricas do estudo; o coeficiente de Correlação de Spearman (r) foi calculado para verificação do comportamento conjunto entre as variáveis métricas do estudo e a análise de post hoc (teste de Bonferroni) foi conduzida para examinar as diferenças entre os anos escolares. Para todas as comparações, foi postulado o ponto de corte de p < 0,05 para que fossem consideradas significativas.

RESULTADOS

Foi realizada a análise da confiabilidade dos itens através do alfa de Cronbach e da correlação item-total. Ao analisar a prova, foi observada confiabilidade de 0,79 - dentro do aceitável ( Tabela 1 ).

Tabela 1
Estatísticas descritivas, correlação item-total e coeficiente alfa se o item for deletado para o conjunto dos 44 itens da prova discriminação auditiva dos sons da fala

Após a retirada de itens por não apresentarem variabilidade e por apresentarem correlações nulas ou negativas (itens 15, 22, 29 e 38 - efeito de teto, e 1, 4, 5, 7, 8, 11, 17, 18, 23, 26, 28, 34, 41, 42, 44 e 46 – efeito nulo), o alfa passou a apresentar valor aceitável de 0,83, considerado bom ( Tabela 2 ).

Tabela 2
Estatísticas descritivas, correlação item-total e coeficiente alfa se o item for deletado para o conjunto dos 48 itens selecionados da discriminação auditiva dos sons da fala

Após a retirada de itens que não apresentaram variabilidade e apresentaram correlações nulas ou negativas, foram mantidos no protocolo de avaliação da percepção de fala apenas os itens que foram considerados com boa consistência interna ( Quadro 1 ).

Quadro 1
Protocolo de avaliação da percepção de fala - itens que foram considerados com boa consistência interna

Calcularam-se correlações entre os escores totais da prova de discriminação auditiva dos sons da fala, baseados nos itens que apresentaram precisão com índices adequados. O máximo de acertos observado foi 34 pontos, com o valor mínimo = 16, a média = 30,79 e o DP = 3,68.

A Tabela 3 apresenta as correlações entre a idade, a nota da criança e as variáveis perceptivas. A Tabela 4 apresenta as estatísticas descritivas por ano e os valores de p para as comparações.

Tabela 3
Correlações entre a prova discriminação auditiva dos sons da fala e as variáveis idade, nota e gênero
Tabela 4
Estatísticas descritivas por ano para a tarefa de discriminação de não palavras

DISCUSSÃO

Os transtornos persistentes da fala mostram expressiva prevalência na população de crianças e adolescentes escolares, às quais se tem melhor acesso(2,3). Manifestos ou subclínicos, ainda presentes na idade escolar(4-6), podem dificultar, agravar ou piorar o processamento da informação fonológica e de habilidades imprescindíveis para o desenvolvimento da decodificação e codificação do sistema alfabético de escrita.

Essa prevalência indica a necessidade de investigação do fenômeno, em suas características, tanto da produção, quanto da percepção da fala e da capacidade de organização do material linguístico para a adequada representação fonológica das palavras e seus elementos constituintes. Levando em consideração a aquisição e o desenvolvimento auditivo e de fala(1-3,7), foi proposta a avaliação da discriminação de sons do Português Brasileiro. Por isso, este estudo elaborou diferentes listas de itens linguísticos de modo a avaliar, em uma concepção de organização multinível(7), as capacidades perceptivas de crianças em idade escolar. A faixa etária foi determinada pela indicação da literatura(6,7) para a constatação dos transtornos persistentes. Este estudo apresenta apenas o processo de elaboração e análise de apenas uma das listas que compuseram um protocolo de avaliação da percepção da fala: a de pseudopalavras, constituída para eliminar a carga semântica na discriminação de fonemas(2,7,28,29). Esta prova não exige representação lexical e conhecimento semântico e, assim, pressupõe homogêneas as capacidades de discriminar traços distintivos dos fonemas.

A elaboração dessa lista de pares mínimos de pseudopalavras seguiu a orientação da literatura(7) com vistas a avaliar a integridade da habilidade de discriminação dos sons. A criação dos itens, primeiramente, obedeceu à maior frequência do acento paroxítono do Português Brasileiro. Também esteve de acordo com a capacidade de memória de sílabas, estimada na aplicação da ASPA(26) na qual a maioria dos escolares respondeu corretamente a sequências de 4 estímulos linguísticos apresentados. O número de sílabas das pseudopalavras foi estipulado, portanto, de acordo com a prova de percepção auditiva de sons linguísticos e não linguísticos(26), assegurando assim que o desempenho na prova de discriminação de sons da fala não seria influenciado por déficit de percepção ou memória auditivas(2,3,7).

Foi necessário analisar as medidas dos indivíduos (idade, escolaridade, desempenho escolar) e, de forma exploratória, a consistência interna dos itens da prova de discriminação de sons da fala, para entender seu comportamento em uma amostra pequena(27,30). Para isso, aplicaram-se testes estatísticos com a finalidade de avaliar a adequação dos itens da prova, considerando que, para o seu aperfeiçoamento, seria necessária a revisão de itens, de forma a aumentar sua validade e precisão (27-29). Assim, conduziu-se, inicialmente, a análise de confiabilidade dos itens da prova de discriminação de sons da fala, por meio da correlação item-total e o coeficiente alfa ( Tabela 1 ).

A primeira análise da confiabilidade dos itens indicou o valor de α de 0,79, ou seja, aceitável ( Tabela 1 ). Porém, foi indicada a remoção de alguns itens por efeito teto e por correlações nulas ou negativas(30). Foram excluídos 20 itens por efeito nulo, (dentre esses, monossílabos, dissílabos e trissílabos) e 4 por efeito teto (monossílabos e trissílabos). Restaram 28 itens com diferentes quantidades e estruturas silábicas: monossílabos, dissílabos e trissílabos, formados por sílabas simples e complexas, com diferenças fonológicas quanto à sonoridade, ponto e modo articulatório. Após a retirada desses itens, o valor de α passou para 0,83, no mínimo, considerado bom ( Tabela 2 ).

A etapa de análise da confiabilidade dos itens permitiu descartar aqueles com nível impróprio e que, assim, não informariam sobre diferenças individuais, além de poderem prejudicar a variabilidade do teste(27).

Portanto, pressupôs-se de início a adequação dos pares mínimos de pseudopalavras quanto à extensão e localização da sílaba tônica. Entretanto, os resultados da análise da consistência interna mostraram que, mesmo obedecendo a essas condições de facilitação da percepção do fonema, nem todos os pares de pseudopalavras se mostraram consistentes com o total de itens propostos para a tarefa. Por outro lado, admitiram-se valores de alfa de Cronbach a partir de 0,83, assegurando boa consistência interna(30) dos 28 pares mínimos de pseudopalavras restantes ( Quadro 1 ).

Não foram observadas correlações entre a idade, a nota da criança e as variáveis perceptivas ( Tabela 3 ). A análise post hoc (teste de Bonferroni) também não apontou diferenças entre os anos escolares na tarefa ( Tabela 4 )(29). Outros autores afirmam a presença de evolução na habilidade discriminação auditiva dos sons da fala acompanhando a idade cronológica. Porém, esses estudos foram realizados com crianças mais novas(23), reafirmando, assim, que, avaliar essas habilidades desenvolvidas em idades precoces, mas deficitárias em crianças mais velhas com algum transtorno de fala, pode ser imprescindível para o bom diagnóstico e a escolha do modelo de intervenção mais adequado.

Sumarizando, os itens considerados de boa consistência interna mostram a confiabilidade da prova proposta para avaliação da discriminação de traços distintivos dos fonemas do Português Brasileiro e permitem estimar a capacidade de organização das regras fonológicas, habilidades essenciais para o desenvolvimento da fala e o aprendizado da leitura e da escrita.

CONCLUSÃO

Grande parte (60,41%) dos itens propostos para avaliação da discriminação auditiva dos sons da fala mostrou consistência interna boa em relação à tarefa, mostrando-se confiável para avaliar habilidades de escolares típicos.

Não foi observada melhora da capacidade de discriminação auditiva dos sons da fala quanto mais velha a criança ou mais adiantado o ano escolar.

AGRADECIMENTOS

Agradeço à CAPES, pelo financiamento da pesquisa que resultou no presente artigo: processo n° 131635/2015-8.

  • Trabalho realizado no Departamento de Fonoaudiologia, Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP - São Paulo (SP), Brasil.
  • Fonte de financiamento: CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), processo nº 131635/2015-8. CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), processo nº 313645/2014).

REFERÊNCIAS

  • 1 Othero GA. Processos fonológicos na aquisição da linguagem pela criança. ReVEL. 2005;3(5):1-13.
  • 2 Murphy CFP, Pagan-Neves LO, Wertzner HF, Schochat E. Children with speech sound disorder: comparing a non-linguistic auditory approach with a phonological intervention approach to improve phonological skills. Front Psychol. 2015;6(64):64. PMid:25698997.
  • 3 Centanni TM, Booker AB, Chen F, Sloan AM, Carraway RS, Rennaker RL, et al. Knockdown of dyslexia-gene Dcdc2 interferes with speech sound discrimination in continuous streams. J Neurosci. 2016;36(17):4895-906. http://dx.doi.org/10.1523/JNEUROSCI.4202-15.2016. PMid:27122044.
    » http://dx.doi.org/10.1523/JNEUROSCI.4202-15.2016
  • 4 Freitas CR, Mezzomo CL, Vidor DCGM. Discriminação fonêmica e a relação com os demais níveis linguísticos em crianças com desenvolvimento fonológico típico e com desvio fonológico evolutivo. CoDAS. 2015;27(3):236-41. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20152014168. PMid:26222939.
    » http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20152014168
  • 5 Stackhouse J, Pascoe M, Gardner H. Intervention for a child with persisting speech and literacy difficulties: a psycholinguistic approach. Adv Speech Lang Pathol. 2006;8(3):231-44. http://dx.doi.org/10.1080/14417040600861029.
    » http://dx.doi.org/10.1080/14417040600861029
  • 6 Shriberg LD, Tomblin JB, McSweeny JL. Prevalence of speech delay in 6-year-old children and comorbidity with language impairment. J Speech Lang Hear Res. 1999;42(6):1461-81. http://dx.doi.org/10.1044/jslhr.4206.1461. PMid:10599627.
    » http://dx.doi.org/10.1044/jslhr.4206.1461
  • 7 Pascoe M, Stackhouse J, Wells B. Persisting speech difficulties in children: children’s speech and literacy difficulties. Chichester: John Wiley & Sons; 2006.
  • 8 Garcia de Goulart BN, Chiari BM. Prevalência de desordens de fala em escolares e fatores associados. Rev Saude Publica. 2007;41(5):726-31. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102007000500006. PMid:17923893.
    » http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102007000500006
  • 9 Patah L, Takiuchi N. Prevalência das alterações fonológicas e uso dos processos fonológicos em escolares aos 7 anos. Rev CEFAC. 2008;10(2):158-67. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462008000200004.
    » http://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462008000200004
  • 10 Pennington BF, Bishop DVM. Relations among speech, language, and reading disorders. Annu Rev Psychol. 2009;60(1):283-306. http://dx.doi.org/10.1146/annurev.psych.60.110707.163548. PMid:18652545.
    » http://dx.doi.org/10.1146/annurev.psych.60.110707.163548
  • 11 Fuertinger S, Horwitz B, Simonyan K. The functional connectome of speech control. PLoS Biol. 2015;13(7):e1002209. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pbio.1002209. PMid:26204475.
    » http://dx.doi.org/10.1371/journal.pbio.1002209
  • 12 Simonyan K, Ackermann H, Chang EF, Greenlee JD. New developments in understanding the complexity of human speech production. J Neurosci. 2016;36(45):11440-8. http://dx.doi.org/10.1523/JNEUROSCI.2424-16.2016. PMid:27911747.
    » http://dx.doi.org/10.1523/JNEUROSCI.2424-16.2016
  • 13 Gregio FN, Gama-Rossi A, Madureira S, Camargo Z. Modelos teóricos de produção e percepção da fala como um sistema dinâmico. Rev CEFAC. 2006;8(2):244-7.
  • 14 Berti LC. Relação entre produção e percepção de fala: coerência com o parâmetro fonético-acústico. Cad. Est. Ling. 2008;50(1):45-67.
  • 15 Marslen-Wilson W, Warren P. Levels of perceptual representation and process in lexical access: words, phoneme and features. Psychol Rev. 1994;101(4):653-75. http://dx.doi.org/10.1037/0033-295X.101.4.653. PMid:7984710.
    » http://dx.doi.org/10.1037/0033-295X.101.4.653
  • 16 Weber A, Scharenborg O. Models of spoken-word recognition. Wiley Interdiscip Rev Cogn Sci. 2012;3(3):387-401. http://dx.doi.org/10.1002/wcs.1178. PMid:26301470.
    » http://dx.doi.org/10.1002/wcs.1178
  • 17 Coady JA, Evans JL. Uses and interpretations of non-word repetition tasks in children with and without specific language impairments (SLI). Int J Lang Commun Disord. 2008;43(1):1-40. http://dx.doi.org/10.1080/13682820601116485. PMid:18176883.
    » http://dx.doi.org/10.1080/13682820601116485
  • 18 Bridgeman E, Snowling M. The perception of phoneme sequence: a comparison of dyspraxic and normal children. Br J Disord Commun. 1988;23(3):245-52. http://dx.doi.org/10.3109/13682828809011936. PMid:2477053.
    » http://dx.doi.org/10.3109/13682828809011936
  • 19 Liberman AM, Mattingly IG. The motor theory of speech perception revised. Cognition. 1985;21(1):1. PMid:4075760.
  • 20 Robertson EK, Joanisse MF, Desroches AS, Ng S. Categorical speech perception deficits distinguish language and reading impairments in children. Dev Sci. 2009;12(5):753-67. http://dx.doi.org/10.1111/j.1467-7687.2009.00806.x. PMid:19702768.
    » http://dx.doi.org/10.1111/j.1467-7687.2009.00806.x
  • 21 Rizzon GF, Chiechelski P, Gomes E. Relação entre consciência fonológica e desvio fonológico em crianças da 1ª série do ensino fundamental. CEFAC. 2009;11(2, Supl suppl 2):201-7. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462009000600010.
    » http://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462009000600010
  • 22 Cortina JM. What is coefficient alpha? An examination of theory and applications. J Appl Psychol. 1993;78(1):98-104. http://dx.doi.org/10.1037/0021-9010.78.1.98.
    » http://dx.doi.org/10.1037/0021-9010.78.1.98
  • 23 Santos-Carvalho B, Silva AS, Mota HB, Keske-Soares M. Habilidade de discriminação auditiva em relação às variáveis sexo e idade. In: XII Congresso Brasileiro de Fonoaudiologia; II Encontro Sul Brasileiro de Fonoaudiologia; 2004; Foz do Iguaçu. Resumos. São Paulo: Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia; 2004.
  • 24 Andrade CRF, Befi-Lopes DM, Fernandes FD, Wertzner HF. ABFW: teste de linguagem infantil. Carapicuíba: Pró-Fono; 2000.
  • 25 Arnaut MA, Hackerott MMS, Bueno GJ, Nepomuceno PF, Avila CRB. Erros de base fonológica na escrita: codificação de surdas e sonoras, segmentação e juntura vocabular. Audiol Commun Res. 2014;19(3):264-71. http://dx.doi.org/10.1590/S2317-643120140003000010.
    » http://dx.doi.org/10.1590/S2317-643120140003000010
  • 26 Carvalho RMM, Pereira LD, Schochat E. Processamento auditivo: avaliação audiológica básica. In: Pereira LD, Schochat E, editores. Processamento auditivo central: manual de avaliação. São Paulo: Lovise; 1997. p. 27-35.
  • 27 Santos-Carvalho B, Mota HB, Keske-Soares M. Teste de figuras para discriminação fonêmica: uma proposta. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2008;13(3):207-17. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-80342008000300003.
    » http://dx.doi.org/10.1590/S1516-80342008000300003
  • 28 Signoret C, Gaudrain E, Tillmann B, Grimault N, Perrin F. Facilitated auditory detection for speech sounds. Front Psychol. 2011;2:176. http://dx.doi.org/10.3389/fpsyg.2011.00176. PMid:21845183.
    » http://dx.doi.org/10.3389/fpsyg.2011.00176
  • 29 Rodrigues EJB. Discriminação auditiva: normas para avaliação de crianças de 5 a 9 anos. São Paulo: Cortez; 1981.
  • 30 Santos KOB, Araújo TM, Oliveira NF. Estrutura fatorial e consistência interna do Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20) em população urbana. Cad Saude Publica. 2009;25(1):214-22. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2009000100023. PMid:19180304.
    » http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2009000100023

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2017
  • Aceito
    25 Out 2017
location_on
Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia Al. Jaú, 684, 7º andar, 01420-002 São Paulo - SP Brasil, Tel./Fax 55 11 - 3873-4211 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@codas.org.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro