Open-access Fatores relacionados à funcionalidade da comunicação social em crianças com transtorno do espectro do autismo: estudo preliminar

RESUMO

Objetivo  analisar a associação entre funcionalidade da comunicação social de crianças com transtorno do espectro do autismo (TEA) segundo aspectos sociodemográficos, atos comunicativos, gravidade do TEA e percepção da família.

Métodos  trata-se da etapa piloto de um estudo observacional analítico de recorte transversal. Crianças com TEA foram avaliadas e seus cuidadores foram entrevistados. As variáveis analisadas foram: gravidade do TEA, aspectos socioeconômicos, atos comunicativos, dificuldades comunicativas e a classificação de funcionalidade da comunicação social. Para as análises de associação foram utilizados os testes Qui-quadrado de Pearson e Kruskal-Wallis.

Resultados  foram avaliadas 16 crianças com idade entre 3 e 10 anos. Os participantes incluídos no estudo apresentaram níveis medianos de funcionalidade da comunicação social. As crianças com mais dificuldades na comunicação social foram as que os cuidadores afirmaram ter a impressão de que as pessoas zombavam delas. Não houve associação em relação à funcionalidade da comunicação e aspectos socioeconômicos, gravidade do TEA e atos comunicativos por minuto.

Conclusão  este estudo faz a triangulação entre a funcionalidade da comunicação de crianças com TEA com fatores ambientais e sociais. Crianças com TEA em atendimento ambulatorial em serviço especializado apresentaram níveis intermediários em comunicação social. As dificuldades na aceitação e inclusão social são mais observadas em crianças com TEA com maiores déficits de comunicação.

Palavras-chave:  Transtorno do Espectro Autista; Linguagem infantil; Classificação internacional de funcionalidade, incapacidade e saúde; Transtorno de comunicação social

ABSTRACT

Purpose  to analyze the association between social communication functionality in children with Autism spectrum disorder (ASD) according to sociodemographic aspects, communicative acts, severity of ASD and family perception.

Methods  this is the pilot stage of a cross-sectional analytical observational study. Children with ASD were evaluated and their caregivers were interviewed. The variables analyzed were ASD severity, socioeconomic aspects, communicative acts, communicative difficulties and the classification of functionality of social communication. For association analyses, the Pearson and Kruskal-Wallis chi-square tests were used.

Results  Sixteen children aged between 3 and 10 years were evaluated. The participants included in the study presented median levels of social communication functionality. The children with the greatest social communication difficulties were the ones caregivers had the impression other people made fun of . There was no association regarding communication functionality and socioeconomic aspects, ASD severity and communicative acts per minute.

Conclusion  This study triangulates the communication functionality of children with ASD with environmental and social factors. Children with ASD in outpatient care at a specialized service showed intermediate levels of social communication. Difficulties in acceptance and social inclusion are more commonly observed in children with ASD with greater communication deficits.

Keywords:  Autism Spectrum Disorder; Child language; International classification of functioning, disability and health; Social communication disorder

INTRODUÇÃO

O transtorno do espectro do autismo (TEA) é um transtorno do neurodesenvolvimento, caracterizado por déficits persistentes na comunicação social recíproca, na comunicação não verbal e verbal, na interação social, presença de padrões restritos e repetitivos de comportamentos e interesses. Tais alterações se manifestam no início do desenvolvimento, com gravidade variável(1).

Os déficits na comunicação são evidentes, tanto na compreensão (no processamento da informação recebida), quanto na expressão (na utilização de linguagem verbal e não verbal)(2,3). É possível perceber grande restrição na intenção comunicativa, geralmente os atos comunicativos são direcionados para solicitação de objetos e ações ou protesto, enquanto as maiores dificuldades estão nas funções de interação, como chamar a atenção para si, e na atenção conjunta(3). Há também dificuldade na reciprocidade, na iniciação e manutenção do diálogo(4).

Ademais, dentre os aspectos funcionais da linguagem, a pragmática é apontada como o subsistema mais afetado, ou seja, há maior dificuldade no que se refere ao uso das diversas funções da linguagem coerentes ao contexto(5). Sendo assim, a funcionalidade pode estar relacionada à quantidade e à diversidade de atos comunicativos.

Dois dos fatores que dificultam o manejo das alterações do TEA são sua complexidade e variabilidade(6). Quanto à comunicação, observa-se desde ausência de linguagem verbal funcional, ou presença de linguagem minimamente verbal(7), até habilidades morfológicas e sintáticas bem desenvolvidas(8), capacidade de iniciação de comunicação com objetivos sociais e manutenção do diálogo(6,9).

O diagnóstico do TEA é, acima de tudo, clínico e, para tal, as alterações em comunicação social são determinantes(10). Alguns estudos têm ressaltado a estreita relação entre as alterações na comunicação e a gravidade do TEA(11,12), o que amplia a necessidade de conhecer profundamente esse aspecto.

O desenvolvimento da linguagem depende de fatores intrínsecos e extrínsecos, logo, fatores como escolaridade dos pais, nível socioeconômico, qualidade das interações no ambiente domiciliar, uso de telas e exposição social podem influenciar a linguagem, positiva ou negativamente, em crianças com desenvolvimento típico(13,14). Porém, pouco se sabe sobre como estes e outros fatores podem influenciar também a funcionalidade da linguagem e comunicação de crianças com TEA(15). Compreender essas possíveis relações pode expandir a compreensão das dificuldades no TEA e colaborar com o processo de intervenção.

Diante do exposto, o objetivo deste estudo foi analisar a funcionalidade da comunicação social (Autism Classification System of Functioning: Social Communication) de crianças com transtorno do espectro do autismo segundo aspectos sociodemográficos, atos comunicativos, gravidade do TEA e percepção da família.

MÉTODOS

Trata-se da etapa piloto de um estudo observacional analítico de recorte transversal, cuja amostra foi composta por 16 crianças com transtorno do espectro do autismo (TEA) na faixa etária de 3 a 10 anos 11 meses e 29 dias, sendo quatro meninas (25%) e 12 meninos (75%).

Foram incluídas no estudo crianças com diagnóstico médico de TEA (realizado por neuropediatra, psiquiatra infantil ou pediatra) que realizavam acompanhamento fonoaudiológico semanal no Ambulatório de Linguagem do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais. O critério de exclusão foi pontuar menos de 30 (nota de corte) na aplicação da escala Childhood Autism Rating Scale (CARS). Dois participantes obtiveram pontuação abaixo da nota de corte e, por isso, foram excluídos do estudo.

Ao longo do processo de intervenção, as crianças em estudo também foram acompanhadas por outros profissionais de saúde e educação (como terapeutas ocupacionais, psicólogos, psicopedagogos, entre outros), porém, o tempo de tratamento e a frequência das intervenções eram muito variados, além de algumas informações serem imprecisas. Portanto, esses dados não foram analisados.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, sob o protocolo 02470618.1.0000.5149. Os pais das crianças foram esclarecidos quanto ao caráter voluntário do estudo, seus objetivos e repercussões e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Procedimentos

Após seleção e recrutamento dos participantes, o levantamento dos dados foi realizado por meio de avaliação direta dos indivíduos e de entrevistas com os cuidadores.

Para estimar a gravidade do TEA, foi aplicada a Childhood Autism Rating Scale (CARS), na versão padronizada e validada para o português brasileiro, que auxilia na identificação de crianças com TEA e permite diferenciar entre leve- moderado e grave(16). Para a aplicação, foi realizada a observação da criança em interação com o terapeuta e com o cuidador, além de entrevistas com os cuidadores. A pontuação obtida foi analisada como: sem autismo (15 a 29 pontos), autismo leve-moderado (30 a 36 pontos), autismo grave (superior a 36 pontos).

A classificação econômica foi avaliada por meio do Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB). O CCEB é um sistema que demarca o poder aquisitivo em classes de A a E, tendo a classe A maior poder aquisitivo e a classe E, menor. Os parâmetros para a delimitação das classes econômicas são o poder aquisitivo e o grau de instrução do chefe da família(17). O questionário é autoaplicável, logo, foi apresentado ao cuidador, que foi orientado a assinalar as respostas correspondentes à sua realidade.

Os atos comunicativos foram avaliados usando o protocolo validado da Prova de Pragmática do Teste de Linguagem Infantil ABFW, com objetivo de analisar quantitativamente a produção de atos comunicativos realizada pelo participante e determinar o perfil comunicativo da criança quanto ao que é esperado para a idade(18). Por meio do teste, neste estudo, foram considerados os aspectos não linguísticos, as funções e os meios comunicativos (gestual, vocal e verbal) utilizados e o espaço comunicativo usado pela criança. É importante ressaltar que as ecolalias também foram consideradas quando apresentavam função autorregulatória e/ou quando acompanhadas de intenção comunicativa. Foi realizada gravação de vídeo de dez minutos de interação da criança com um adulto familiar, com atividades lúdicas voltadas para o interesse da criança. Posteriormente, as gravações foram analisadas considerando-se os atos comunicativos da criança. Para análise quantitativa, foi considerado o número de atos comunicativos por minuto e as respostas foram classificadas como ‘esperado para a idade’ ou ‘alterado’.

A Prova de Pragmática do Teste de Linguagem Infantil - ABFW foi eleita para aplicação neste estudo devido aos parâmetros objetivos da análise, por meio dos quais é possível estabelecer relação direta entre o que está dentro do esperado e o que é considerado alterado, de acordo com a quantidade de atos comunicativos.

As percepções dos cuidadores sobre as dificuldades de linguagem de crianças com TEA foram levantadas pelo Questionário de Dificuldades Comunicativas. Produzido no Brasil e validado em 2012, o questionário foi construído com o objetivo principal de identificar as dificuldades paternas quanto à comunicação com seu filho com TEA(19). As perguntas foram feitas aos cuidadores por meio de entrevistas e eles deveriam responder ‘discordo completamente’, ‘discordo’, ‘concordo’ e ‘concordo completamente’. Não há pontuação. Ao final, observam-se as respostas e faz-se um levantamento das principais dificuldades apontadas. Cada resposta foi analisada separadamente.

Por fim, foi aplicada a Autism Classification System of Functioning: Social Comunication (ACSF:SC), uma escala padronizada(9), adaptada para aplicação no Brasil(20). É um sistema de classificação baseado na Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF), que visa fornecer uma linguagem comum para classificar a comunicação social de crianças com TEA em idade pré-escolar (crianças de 3 a 5 anos 11 meses e 29 dias). Apresenta cinco níveis que distinguem as habilidades de comunicação social segundo desempenho (realiza habitualmente) e capacidade (realiza em ambiente controlado), focando em seus pontos fortes e em suas necessidades de apoio. Para classificar o desempenho, foi utilizado o relato da família, por meio de conversa dirigida quanto à comunicação da criança nos ambientes sociais. As informações prestadas foram analisadas pelo avaliador, que classificou o nível de desempenho. Para classificar a capacidade, foi analisado o registro de dez minutos de interação com adulto familiar, gravado para avaliação dos atos comunicativos. Um único avaliador classificou a funcionalidade quanto à capacidade e ao desempenho. As respostas obtidas foram classificadas de I a V, sendo I o melhor nível de comunicação social e V, a maior necessidade de suporte.

Análise de dados

Para atender ao objetivo do estudo, foi realizada a análise descritiva dos dados, por meio da distribuição de frequência das variáveis categóricas e análise das medidas de tendência central e de dispersão das variáveis contínuas.

Para a realização da análise bivariada, as seguintes variáveis foram agrupadas: o CCEB teve as respostas agrupadas em A/B (A, B, B1), C/D-E (C1, C2, D-E) e o Questionário de Dificuldades Comunicativas em ’discordo’ (discordo completamente / discordo) e ’concordo’ (concordo completamente / concordo).

Para as análises de associação foram utilizados os testes Qui-quadrado de Pearson e Kruskal-Wallis. A escolha do teste Kruskal-Wallis deveu-se ao fato de a variável idade não apresentar uma distribuição normal, confirmada por meio dos testes dos testes Shapiro Wilk e Kolmogorov-Smirnov, nos quais os valores encontrados foram menores que 0,05. Foram adotados como resultados com significância estatística os que apresentaram valor de p≤0,05.

Para entrada, processamento e análise dos dados foi utilizado o software SPSS, versão 25.0.

RESULTADOS

A amostra total foi composta por 16 participantes, com média de idade de 5,94±2,11 anos e mediana de 5,50 anos, com maioria do gênero masculino (75,0%). A escolaridade relatada pelos cuidadores foi, predominantemente, fundamental completo a médio incompleto ou médio completo a superior incompleto (43,7%). Quanto à classificação econômica a maior parte pertencia à classe B2 do CCEB (31,2%), seguida de C2 e D-E (ambas com 25%) e C1 (18%).

Em relação gravidade do TEA, avaliada pela CARS, a distribuição da amostra estudada foi a seguinte: 62,5% leve-moderado e 37,5% grave. Os resultados obtidos pelos participantes na Prova de Pragmática do Teste de Linguagem Infantil ABFW, na qual se considerou o número de atos comunicativos por minuto, foi de 64,3% ‘alterado’ e 35,7% ‘esperado para a idade’.

Quanto à classificação de funcionalidade da comunicação social (ACSF:SC), os níveis variaram de II a IV (nível II: iniciava ou respondia para se comunicar com objetivos sociais sobre seus interesses e sustentava a comunicação até a outra pessoa mudar de assunto; nível III: iniciava comunicação com pessoas que conhecia para solicitar que seus interesses fossem atendidos e tentava iniciar comunicação com objetivos sociais; nível IV: tentava iniciar comunicação com seu cuidador primário, tentava responder à comunicação iniciada por pessoas que não conhecia. Em desempenho, a maioria apresentou resultado nível III (56,2%), seguido de nível IV (25%) e, depois, nível II (18,8%). Em capacidade, a maioria apresentou nível III (57,1%), seguido de nível II (28,6%) e, depois, IV (14,3%). Os resultados da análise descritiva obtidos à aplicação do Questionário de Dificuldades Comunicativas estão dispostos na Figura 1.

Figura 1
Análise descritiva das respostas obtidas por meio do Questionário de Dificuldades Comunicativas, separadas por domínios (Fonte: Elaboração própria)

A análise de associação do ACSF:SC desempenho e do ACSF:SC capacidade, por meio do teste Qui-quadrado de Pearson, revelou que não houve associação com significância estatística em nenhuma das variáveis analisadas (Tabela 1).

Tabela 1
Associação entre o Autism Classification System of Functioning: Social Communication e dados sociodemográficos

A associação entre o ACSF:SC desempenho e capacidade e idade, por meio do teste Kruskal-Wallis, revelou que não houve associação com significância estatística em nenhum dos itens analisados (Tabela 2).

Tabela 2
Associação entre o Autism Classification System of Functioning: Social Communication e idade

A análise por meio do teste Qui-quadrado de Pearson da associação entre o ACSF:SC desempenho e gravidade do TEA (CARS), ACSF:SC desempenho e prova de pragmática, ACSF:SC capacidade e gravidade do TEA (CARS), ACSF:SC capacidade e prova de pragmática revelou que não houve resultado com significância estatística em nenhum dos itens analisados (Tabela 3).

Tabela 3
Associação entre o Autism Classification System of Functioning: Social Communication, Childhood Autism Rating Scale e Prova de Pragmática do Teste de Linguagem Infantil ABFW

A análise da variável ACSF:SC desempenho e capacidade com o Questionário de Dificuldades Comunicativas, por meio do teste Qui-quadrado de Pearson, revelou associação significativa entre a questão 9 (p=0,009) - “Eu tenho a impressão de que as pessoas zombam do meu filho quando ele deseja comunicar algo” - na qual se observou, no nível IV, que todos concordaram com a questão (Tabela 4).

Tabela 4
Associação entre o Autism Classification System of Functioning: Social Communication e o Questionário de Dificuldades Comunicativas

DISCUSSÃO

Neste estudo, foi investigada a relação entre fatores ambientais e sociais e a funcionalidade da comunicação social de crianças com TEA. Para tal, foram avaliadas 16 crianças em atendimento fonoaudiológico ambulatorial. Estudos brasileiros, europeus, asiáticos e estadunidenses também apresentam tamanho amostral aproximado(21-23), refletindo a dificuldade no recrutamento de participantes e no envolvimento da população em pesquisas.

As crianças com mais dificuldades de comunicação social deste estudo foram as que os cuidadores afirmaram ter a impressão de que as pessoas zombavam delas. Esse dado confirma os da literatura, pois, ainda hoje, o preconceito e a baixa aceitação da sociedade são alguns dos grandes desafios na integração social de indivíduos com TEA(24,25). No ambiente escolar, o preconceito em diferentes momentos na adaptação dos alunos também é apontado como uma das maiores dificuldades no processo de inclusão(26). Sendo assim, faz-se necessário considerar esse aspecto na orientação aos pais de crianças com TEA em processo de avaliação, diagnóstico e reabilitação fonoaudiológicos.

A maior parte dos cuidadores apresentou escolaridade entre ensino fundamental completo a ensino médio completo e baixo poder aquisitivo, segundo a classificação econômica. Um levantamento mostra que usuários da atenção primária à saúde (APS) do Sistema Único de Saúde (SUS) são, em maioria, assalariados, com carteira de trabalho, e apresentam baixa escolaridade(27). Logo, essa característica predominante da amostra, pode ser atribuída ao perfil de indivíduos atendidos no ambulatório, que, devido à complexidade do transtorno, demandam serviços especializados e recorrem ao hospital de ensino para realizar o tratamento.

Embora com um tamanho amostral pequeno, houve grande variabilidade na idade dos participantes deste estudo. A literatura mostra que, embora os sinais do TEA sejam comumente percebidos aos 2 anos(10), sendo a dificuldade de fala o que mais mobiliza a busca de tratamento(28), a média de idade diagnóstica é 4 anos(10). Ademais, além de haver muita dificuldade no acesso aos serviços de saúde(25), diversas crianças necessitam de intervenção por longos períodos(28). Logo, a variabilidade observada pode estar relacionada ao início tardio do tratamento devido ao tempo desde a percepção dos sintomas, idade ao diagnóstico, acesso aos serviços de saúde e aos tratamentos extensos.

A maioria das crianças do estudo apresentou grau leve-moderado no TEA e não houve crianças com o maior nível de dificuldade na comunicação social - nível V. A literatura mostra ampla variedade nas manifestações comportamentais, no funcionamento cognitivo e linguístico no TEA(7), mas também ressalta a importância de identificar subgrupos homogêneos de acordo com determinadas características do TEA, o que permite direcionar a prática clínica, influenciando a seleção de intervenções e/ou o acesso a serviços e grupos de apoio(29). Desta forma, infere-se que esse dado mais homogêneo pode estar relacionado ao tamanho amostral reduzido, ao perfil de indivíduos atendidos no ambulatório ou, até mesmo, ao tempo e tipo de intervenção aos quais as crianças foram submetidas.

Também não houve, na amostra em estudo, crianças em nível I de comunicação social. Neste nível, as crianças iniciam e respondem para se comunicar com objetivos sociais, sustentam a interação e se adaptam às mudanças(20). Logo, a ausência de crianças no nível I, na amostra, pode estar relacionada ao perfil do serviço, pois se trata de componente especializado em um hospital de ensino que tende a receber pacientes de ambulatórios especializados (psiquiatria, neurologia infantil, genética, entre outros). Esses ambulatórios recebem pacientes, em sua maioria, com maior complexidade e que não foram passíveis de intervenção na atenção primária à saúde ou Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF).

Na análise quantitativa da Prova de Pragmática do Teste de Linguagem Infantil ABFW, considerando apenas o número de atos comunicativos por minuto, mais de um terço das crianças não tiveram alterações. Estudos mostram que as alterações de linguagem mais presentes em crianças com TEA estão no uso social da linguagem, ou seja, na pragmática(5). As crianças apresentam dificuldade de compreender e expressar a linguagem dentro do contexto de comunicação(2), principalmente no que se refere à interpretação de figuras de linguagem, ao turno comunicativo, à linguagem não verbal, às intenções de comunicação e ao sustentar a conversação(2,4). O presente estudo não confirmou achados anteriores(2,4,5), o que sugere que apenas a análise quantitativa dos atos comunicativos não exprime os déficits persistentes na pragmática. Assim, é importante salientar que, se analisada qualitativamente, pode haver alterações funcionais mesmo em crianças com número de atos comunicativos dentro do esperado para a idade.

Outro ponto que merece ser destacado foi a ausência de associação entre os resultados da Prova de Pragmática do Teste de Linguagem Infantil ABFW e a classificação de funcionalidade da comunicação social no presente estudo. Na literatura, a relação entre as habilidades gerais de linguagem e as habilidades sociais no TEA tem sido investigada, principalmente com vistas à pragmática - em que se tem observado relação direta entre pragmática e habilidades sociais no TEA(5). Portanto, é possível inferir que, na presente amostra, apenas a quantidade de atos comunicativos por minuto não exprimiu a funcionalidade da comunicação, sendo necessário estudo mais aprofundado, que analise as funções e meios comunicativos.

Quanto à associação entre a comunicação social e os aspectos sociodemográficos, não houve associação com significância estatística. A literatura mostra que a baixa escolaridade e a renda dos pais podem estar relacionadas a dificuldades de linguagem em crianças típicas(14) e ao pior desempenho na comunicação de crianças com TEA e outros transtornos(15), o que pode estar associado a menos acesso a informação e serviços. Este dado pode não ter sido relacionado devido à homogeneidade da amostra em relação à escolaridade e classificação econômica.

A despeito dos dados encontrados neste estudo não terem apresentado significância estatística na associação entre a gravidade do TEA e o nível de comunicação social, observa-se, na literatura, que crianças com maior gravidade do TEA apresentaram mais dificuldades na comunicação social(12). Outro estudo, realizado com 72 crianças com TEA, falantes do hebraico, propôs uma análise da fala das crianças com a utilização de um algoritmo, correlacionando as alterações de fala à gravidade do TEA. Foi possível observar grande precisão nos resultados obtidos pelo instrumento, quando comparados à gravidade do TEA levantada por avaliação clínica, indicando que há relação entre as dificuldades de fala e a gravidade do TEA(11). Considerando que não foi possível estabelecer relação estatística em consonância com a literatura, infere-se que as crianças desta amostra podem apresentar limitações graves em determinadas habilidades, que demandam maior necessidade de suporte e, consequentemente, maior gravidade do TEA, mas que não comprometeram diretamente seu desempenho comunicativo.

Algumas limitações foram observadas ao longo do estudo, como a uniformidade dos aspectos socioeconômicos, da funcionalidade e gravidade do TEA, que dificultaram a possibilidade de generalização dos resultados. Outra limitação importante foi a não observação das intervenções em que as crianças foram expostas ao longo da infância, como tempo e métodos de terapia fonoaudiológica e demais áreas, que também influenciam sua comunicação.

Também cabe ressaltar que a escala ACSF:SC foi aplicada em toda a amostra, ou seja, algumas crianças apresentavam idade superior à preconizada, o que pode ter gerado implicações no estudo.

Os resultados indicaram viabilidade de realização do estudo observacional, porém, há necessidade de um desenho amostral que considere uma amostra probabilística e estratificação por gênero, idade e gravidade do TEA, para a obtenção de evidências mais robustas e possibilidade de generalização dos resultados.

CONCLUSÃO

Na amostra estudada, a classificação da funcionalidade da comunicação social de crianças com TEA revelou que crianças em atendimento ambulatorial em serviço especializado apresentaram perfil de comunicação social intermediário, variando do nível II ao nível IV.

Foi possível identificar que a dificuldade comunicativa que teve relação direta com piores níveis de comunicação social foi a reação pejorativa de terceiros quanto às iniciativas de comunicação das crianças. Portanto, as dificuldades na aceitação e inclusão social ainda são bem presentes na vida de crianças com TEA, principalmente daquelas que possuem mais déficits na comunicação social. Não houve associação em relação à funcionalidade da comunicação e aspectos socioeconômicos, gravidade do TEA e atos comunicativos por minuto.

Um dos avanços do presente estudo é a triangulação entre a funcionalidade da comunicação de crianças com TEA com fatores ambientais e sociais. Além de relacionar aspectos da funcionalidade da comunicação à avaliação pragmática utilizada na clínica fonoaudiológica, o que pode evidenciar e viabilizar o uso do sistema de classificação de funcionalidade da comunicação social na prática clínica.

Futuras pesquisas devem analisar qualitativamente os meios e funções comunicativas (prova de pragmática) e associar ao desempenho e capacidade da comunicação social, bem como utilizar a classificação de funcionalidade da comunicação social para mensurar o progresso e os ganhos em comunicação a partir da terapia fonoaudiológica, em longo prazo.

  • Trabalho realizado no Programa de Pós-graduação (Mestrado) em Ciências Fonoaudiológicas, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Belo Horizonte (MG), Brasil.
  • Financiamento: Nada a declarar.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2022
  • Aceito
    03 Maio 2023
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