Open-access Conflitos em bacias hidrográficas compartilhadas: o caso da bacia do rio Piranhas-Açu/PB-RN

Water resources conflicts in shared water basins: the Piranhas-Açu Water Basin case study

RESUMO

Os conflitos relacionados à utilização dos recursos hídricos são decorrentes não só de sua escassez, mas também da deficiência na gestão desses recursos. Há várias bacias compartilhadas entre países e acordos entre eles têm ajudado a solucionar, minimizar ou evitar conflitos. No Brasil, a Paraíba e o Rio Grande do Norte compartilham a Bacia Hidrográfica do rio Piranhas-Açu e formalizaram, com a intervenção da Agência Nacional de Águas (ANA) e do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), um acordo denominado Marco Regulatório (Resolução ANA nº 687/2004) que fixou a vazão na divisa entre os dois Estados. Este artigo objetiva analisar o funcionamento do Marco Regulatório durante os seus 10 anos de existência (2004-2014), verificando aspectos como os motivos para a sua criação e a sua contribuição para a resolução/mitigação de conflitos. Pesquisa-se, também, sobre a atuação do Comitê da Bacia enquanto árbitro em primeira instância dos conflitos da bacia e sobre a incorporação e alteração dos preceitos do Marco Regulatório no Plano da Bacia do rio Piranhas-Açu, em elaboração. Conclui-se que o Marco Regulatório possibilitou uma razoável discussão sobre os problemas da bacia, mas que ações insuficientes no seu acompanhamento e na fiscalização dos usos dificultaram solucionar os conflitos em época de escassez hídrica. Avalia-se, entretanto, como positiva a repactuação, ora em curso, em torno do “novo” Marco Regulatório.

Palavras Chave:  Resolução de conflitos; Comitê de bacia; Plano de bacia; Agência Nacional de Águas; Marco Regulatório

ABSTRACT

Water resources conflicts have their roots not only in water shortage but also in water resources management failures. There are many shared water basins around the world and agreements may help solve, minimize or avoid water conflicts. In Brazil, the Paraíba and Rio Grande do Norte states share the Piranhas-Açu Water Basin. Considering this, a Regulatory Framework was defined between them designed by the Brazilian Water Agency (ANA), Brazilian Department Against Droughts (DNOCS) and both states. This Regulatory Framework was established by ANA Resolution nº 687/2004 and defined the discharge that must flow through the border of those states. In this article, the Regulatory Framework during its ten years of existence (2004 to 2014)is analyzed, verifying aspects which led to its creation and contribution in resolving/mitigating conflicts. This research also analyzed the role of the Water Basin Committee as the first instance to deal with conflicts and the consideration of the Regulatory Framework in the new water basin plan (which is in elaboration). It is concluded that the Regulatory Framework allowed a reasonable discussion about the problems of the basin but that the lack of sufficient monitoring and water uses control actions made it difficult to solve conflicts during water shortage periods. However, the ongoing negotiations to define a “new” Regulatory Framework are considered positive.

Keywords:  Conflict resolution; Basin committee; Water basin plan; Brazilian Water Agency; Regulatory Framework

INTRODUÇÃO

A água é motivo de poder e conflito, em função da sua dinâmica espacial e temporal, uma vez que a demanda hoje e em certo local por um usuário pode afetar a demanda de outro. Há dois grandes motivos que originam esses conflitos: i) a escassez hídrica (seja quantitativa ou qualitativa), tradicionalmente apontada como a responsável pelo surgimento dos conflitos e ii) a inexistência ou inadequação de medidas de gestão hídrica, mais recentemente entendida como a principal causa dos conflitos. Segundo essa ótica, para evitar ou solucionar esses conflitos, os responsáveis pela gestão de recursos hídricos (incluindo os colegiados de participação pública) devem estabelecer mecanismos proativos que impeçam a sua ocorrência ou, quando já existentes, que possam minimizá-los ou solucioná-los.

É natural a existência de conflitos referentes ao acesso, alocação e gestão de recursos hídricos, notadamente devido à sua importância para a vida humana, demanda crescente e variabilidade espaço-temporal da oferta. Atividades cooperativas nessa área são importantes e devem ser estimuladas. Dessa forma, comportamentos conflituosos e cooperativos devem fazer parte de todos os níveis de organização social e constituir a norma onde os recursos hídricos se assentam. Outro fator complicador dessa questão é o compartilhamento de bacia, quer por países, quer por unidades político/administrativas em um único país (CAP-NET, 2008).

Na América do Sul, por exemplo, o Brasil compartilha a Bacia Hidrográfica do rio Amazonas com a Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela; e com o Paraguai, Argentina e Uruguai, a Bacia do rio da Prata. Na Europa, Portugal e Espanha compartilham cinco bacias hidrográficas: rios Minho, Lima, Douro, Tejo e Guadiana.

O Brasil possui várias bacias hidrográficas compartilhadas por dois ou mais Estados, dentre elas a do rio Paraíba do Sul, do Doce, do São Francisco, dos rios Poti e Longá, e do Piranhas-Açu – objeto desta pesquisa. No país, a Lei 9.433/97, que criou a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), estabeleceu cinco instrumentos de gestão, os quais, se bem implementados, serão capazes de evitar ou minimizar conflitos. A PNRH estabeleceu, também, um sistema institucional (o SINGREH – Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos) constituído por organismos colegiados (Conselho Nacional de Recursos Hídricos, conselhos estaduais de recursos hídricos, comitês de bacia hidrográfica); por órgãos gestores de recursos hídricos (Agência Nacional de Águas e correspondentes agências estaduais) e entidades de bacia (representadas pelas agências de bacia – secretarias executivas dos respectivos comitês).

Nesta pesquisa, analisa-se o funcionamento do mecanismo adotado na Bacia Hidrográfica do rio Piranhas-Açu, denominado de “Marco Regulatório” (2004-2014), cujo objetivo era regular os múltiplos usos e usuários de água do sistema de reservatórios Curema-Açu, para solucionar, minimizar ou evitar conflitos. Analisa-se, também, a atuação do Comitê da Bacia do rio Piancó-Piranhas-Açu (CBH-PPA), inexistente quando da época de formalização do Marco Regulatório, no seu papel de árbitro em primeira instância dos conflitos da bacia. Considerando o término do período de vigência do Marco, reflete-se sobre a incorporação/aperfeiçoamento dos conceitos daquele acordo (que passa a ser chamado do “novo” Marco Regulatório) no atual Plano de Recursos Hídricos da Bacia.

CONFLITOS EM BACIAS COMPARTILHADAS

Os conflitos são inevitáveis e necessários, já que a sociedade vive permanentemente em conflitualidade e o progresso humano e social é afirmado a partir desses conflitos. Além disso, os conflitos têm a função criadora e integradora, pois os grupos procuram se afirmar pela oposição (BARRON; SMITH; WOOLCOCK, 2004; BATES, 2001; COSER, 1956, 1977; FERNANDES, 1993; FERREIRA, 2012; VIEIRA; RIBEIRO, 2010;). Para Simmel (2010), o objetivo do conflito é resolver dualismos divergentes.

O NOSR (2007) define conflito como: “um processo que começa quando um indivíduo ou grupo percebe diferenças e oposições entre si e outro indivíduo ou grupo, sobre interesses e recursos, crenças, valores ou práticas que interessam a eles”.

Vieira (2008) apresenta como definição de conflitos institucionais os relacionados com a estrutura institucional da gestão hídrica, podendo ser legais, políticos e organizacionais, incluindo-se entre eles: regras legais; planejamento, consulta e participação públicas; mecanismos de preços; estabelecimento de comitês de bacias, para servirem como plataformas de discussão dos problemas e das formas de planejamento; estabelecimento de autoridades, em nível de bacias, com poder de decisão em casos de conflitos. Com base nesses conceitos, Araújo, Ribeiro e Vieira (2012) inferem que os conflitos institucionais são resultantes da falta de recursos sociais.

Para se estudar os conflitos e cooperação sobre a utilização da água, notadamente em bacias compartilhadas, a literatura tem utilizado de ferramentas, lições e fundamentos dispensados por diferentes disciplinas acadêmicas. Dinar et al. (2007) citam quatro áreas do conhecimento que têm sido mais instrumentais para esse estudo: economia, direito internacional, relações internacionais e teoria de negociação.

Para Oliveira (2010) é fundamental a caracterização da proteção jurídica aos recursos hídricos no plano normativo interno e no Direito Internacional Ambiental, para que possa haver uma preservação adequada e haver uma utilização racional em benefício de todos, evitando conflitos que causem danos irreparáveis para a comunidade humana e o meio ambiente. Essa proteção, inicia-se na esfera administrativa para os conflitos primários, passando para a esfera jurisdicional cível e penal quando da sua não resolução. Nesse sentido, há uma série de instrumentos legais que estabelecem competências, mecanismos e procedimentos para a resolução de conflitos de recursos hídricos. Tais instrumentos englobam: leis, decretos, resoluções, portarias, tratados, acordos de cooperação, convênios, entre outros.

De Bruyne e Fischhender (2013) afirmam que na literatura de governança da água são identificados quatro tipos de mecanismos de resolução de conflitos, os mais informais como negociação e mediação e os mais formais como arbitragem e adjudicação. Vieira e Ribeiro (2010) acrescentam a esses quatro tipos de mecanismos, os métodos de soluções institucionais e os métodos e modelos baseados na Teoria dos Jogos. Esses mecanismos de resolução de conflitos estão sendo um importante elemento de acordo sobre a utilização da água devido à sua capacidade de absorver disputas, mesmo em condições de escassez de recursos e de mudança climática (TIR, 2012).

Mecanismos de resolução de conflitos em bacias compartilhadas no mundo

Apesar dos mecanismos de resolução de conflitos serem citados como elementos cruciais na construção de tratados, há dificuldades para incluir efetivamente tais mecanismos na concepção de tratados sobre águas compartilhadas, devendo esse fato estar relacionado aos custos de transações (COOLEY et al., 2009; DE BRUYNE; FISCHHENDLER, 2013). Outras formas de acordos entre países fronteiriços podem ser baseadas em pagamento (uma compensação) de um para o outro, daquele situado a montante para o de jusante ou vice-versa (DINAR, 2006).

As diferenças regionais na frequência, intensidade e duração dos conflitos de rios internacionais dependem, no entendimento de Hensel, Mitchell e Sowers (2006), da variação de dois fatores fundamentais: a escassez de água e a institucionalização. Para a solução desses conflitos, a utilização do princípio da equidade, definido em 1997 na Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito Relativo à Utilização dos Cursos de Água para Fins Diversos dos de Navegação (SERRA, 2006), é de grande importância, sendo inclusive já utilizado em diversas decisões da Corte Internacional de Justiça (MCINTYRE, 2013).

Analisando a situação de utilização de água por israelenses e palestinos, Brooks e Trottier (2010) afirmam que para se alcançar um consenso sobre os objetivos para um acordo de água, vários princípios devem ser adotados, dentre eles o de uso equitativo e razoável, contido na Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito Relativo à Utilização dos Cursos de Água para Fins Diversos dos de Navegação, comuns a todas as gestões de água transfronteiriças. Outros cinco princípios propostos para a gestão conjunta de água compartilhada devem ser utilizados: definição de direito sobre a água; igualdade de direitos e responsabilidades; prioridade à gestão da demanda; aceitação da posição histórica de formas locais de gestão; monitoramento contínuo da quantidade e qualidade em toda água compartilhada e mediação de usos, demandas e práticas conflitantes.

Chazournes (2009) cita a aplicação dos princípios da equidade, da obrigação de cooperar, da razoabilidade, da prevenção dos efeitos nocivos aos Estados vizinhos, utilizado no caso do Acordo de 1995, sobre a Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável da bacia do Rio Mekong (Tailândia, Camboja, Vietnam e Laos).

Barreira, OCampo e Recio (2007) relatam a existência de vários acordos entre países que compartilham a mesma bacia hidrográfica em vários continentes. Cita o acordo que formalizou a Comissão Internacional para a Proteção do rio Reno – CIPR (1963) e o Convênio sobre Cooperação para a Proteção e uso Sustentável do Danúbio – CIPD (1994). Na América do Norte elenca o Tratado de Washington firmado entre os Estados Unidos e o Canadá (1909), onde foi constituída uma Comissão Mista Internacional. Entre os Estados Unidos e o México várias convenções foram firmadas, dentre elas, o Tratado de Distribuição das Águas Internacionais dos rios Colorados e Tijuana e Bravo (1944).

Na Europa, o instrumento utilizado para a solução dos conflitos entre Portugal e Espanha pelo uso das águas das bacias transfronteiriças foi a Convenção de Albufeira (1998), que definiu, entre outros pontos, a vazão de fronteira entre os dois países (SERENO, 2012).

Na América do Sul, a Argentina e o Uruguai adotaram o Tratado do rio Uruguai (1961) que estabeleceu os limites fronteiriços entre os países, tendo adotado o Estatuto do rio Uruguai para estabelecer os mecanismos comuns necessários para o aproveitamento ótimo e racional do rio Uruguai (BARREIRA; OCAMPO; RECIO, 2007). Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai firmaram, em 1969, o Tratado da Bacia do Prata, com o objetivo de promover o desenvolvimento harmônico e a integração da bacia (BARREIRA; OCAMPO; RECIO, 2007; BROCH, 2008). Em 1995, Argentina, Bolívia e Paraguai constituíram a Comissão para o desenvolvimento da Bacia do rio Pilcomayo (BARREIRA; OCAMPO; RECIO, 2007). Na Bacia Hidrográfica do rio APA, localizado entre o Brasil e o Paraguai, em 2007, foi assinado um Acordo de Cooperação entre os Governos da República Federativa do Brasil e o Governo da República do Paraguai para o desenvolvimento sustentável e a gestão integrada da bacia, cujo objetivo era resolver os conflitos pelo uso da água (BROCH, 2008).

Os Estados africanos também firmaram acordos para a gestão e proteção dos recursos hídricos, dentre eles: Acordo da Bacia Hidrográfica do Níger (1963); Convenção relativa ao rio Senegal (1972); Acordo do rio Gambia (1978); Acordo sobre o Plano de Ação para a gestão ambiental do sistema comum do rio Zambezi (1987), etc. Na Ásia, os principais acordos relacionados com a gestão dos recursos hídricos foram o Acordo de Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável da Bacia Hidrográfica do Mekong (1995), o Tratado Bangladesh-Índia (1996) sobre as águas do rio Ganges e o Tratado Índia-Nepal (1996) sobre as águas do rio Mahakali (BARREIRA; OCAMPO; RECIO, 2007).

O estudo realizado por Teasley e McKinney (2011), sobre o acordo de alocação de água e energia na Bacia do Syr Darya, demonstrou que a situação mais benéfica para todos os países da bacia, Quirguizistão, Tajiquistão, Uzbequistão e Cazaquistão, é eles considerarem os acordos de cooperação firmados.

Estudando a Bacia do rio Okavango, compartilhada por Angola, Namíbia e Botswana, Mbaiwa (2004) apresenta os acordos realizados entre os Estados ribeirinhos, concluindo sobre a necessidade de efetivação desses acordos e que os Estados desenvolvam um modelo para a partilha equitativa dos recursos hídricos do rio.

Referindo-se ao Líbano e a Síria (bacia do rio Orontes), Comair et al. (2013) afirmam que a solução dos conflitos entre os países foi explicado pelo conceito de repartição de benefícios e hidrodiplomacia, considerando que neste último a água é utilizada como elemento de negociação e cooperação ente os países. Na hidrodiplomacia deve haver um diálogo multilateral em vários níveis, como também a noção de responsabilidade coletiva da comunidade internacional.

Como muitas bacias são caracterizadas por fatores semelhantes (geográficos, climáticos, etc.), os instrumentos utilizados podem ser aplicáveis em outras bacias transfronteiriças que enfrentam desafios semelhantes, conforme estudo realizado nas bacias do rio Jordão, no Oriente Médio, e Colorado, nos Estados Unidos (CHEN et al., 2015).

A experiência internacional mostra que, embora a existência de acordos entre países que compartilham uma mesma bacia hidrográfica não impeçam um futuro desentendimento, esses Estados ficam mais propensos a negociarem quando existe um tratado em vigor entre eles, como observado por Brochmann e Hensel (2009) e Brochmann e Gleditsch (2012).

Mecanismos de resolução de conflitos em bacias compartilhadas entre estados brasileiros

O domínio da água no Brasil está disciplinado na Constituição Federal de 1988, a qual atribui apenas à União e aos Estados o domínio desse recurso. O artigo 20 estabelece como bens da União, dentre outros, os rios e quaisquer correntes de água que banhem mais de um Estado. O artigo 26 estabelece como bem dos Estados, as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito em seu território, ressalvadas as decorrentes de obras da União. Assim, os rios que atravessam mais de um Estado pertencem ao domínio da União e deverão ser compartilhados entre eles.

No Brasil, há bacias hidrográficas compartilhadas por distintos Estados e, consequentemente, os conflitos pelo uso da água entre eles são inevitáveis. A Agência Nacional de Águas (ANA) juntamente com os órgãos gestores estaduais de recursos hídricos tentam atuar para resolver os problemas de utilização de água nessas bacias, firmando acordo entre os Estados para evitar conflitos mais sérios pela utilização desse recurso. Esses acordos, em determinados casos, são denominados de Marco Regulatório: conjunto de regras acordadas entre os órgãos gestores de recursos hídricos e usuários de água para evitar a ocorrência de conflitos pelo uso da água ou solucioná-los (ANA, 2015).

Dentre esses acordos, cita-se o que fixou a vazão de fronteira entre os Estados da Paraíba e Rio Grande do Norte – objeto de análise desta pesquisa - formalizado através da Resolução ANA nº 687/2004. Este acordo foi o primeiro que teve a denominação de Marco Regulatório. Cita-se, também, o acordo que tratou da estratégia de gestão de recursos hídricos e dos procedimentos e condições para outorgas preventivas e de direito de uso da água nas Bacias Hidrográficas dos rios Poti e Longá, localizadas entre os estados do Ceará e Piauí, através da Resolução Conjunta ANA/SRH-CE/SEMAR-PI nº 547/2006 (CORREIA; STUDART; CAMPOS, 2012).

A Resolução nº 562/2010 (alterada pela Resolução nº 564/2010) da ANA define o Marco Regulatório de uso de água da Bacia Hidrográfica do rio São Marcos, compartilhada entre os Estados de Minas Gerais e Goiás. Ele foi motivado devido à “vocação da bacia do rio São Marcos para agricultura irrigada” e ao “potencial de crescimento deste uso da água; considerando a necessidade de compatibilização entre os usos de irrigação e energia elétrica na bacia do São Marcos” (SILVA; OLIVEIRA; HORA, 2013).

Na Bacia Hidrográfica do rio São Francisco, o Plano Decenal de Recursos Hídricos (2005) procurou estabelecer um ambiente de harmonia para a gestão dos recursos hídricos na bacia, propondo um Pacto de Gestão envolvendo a União, os Estados federados, com a interveniência do Comitê da Bacia e a participação dos Comitês das bacias de rios afluentes, o que deveria ser consolidado em um Convênio para Gestão Integrada da Bacia (MASCARENHAS, 2008).

Em agosto de 2004, a ANA, os Estados de São Paulo e Minas Gerais e o Comitê das Bacias Hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (CBH-PCJ) celebraram um Convênio de Integração cujo Plano de Trabalho tinha como objetivo a implantação dos instrumentos de gestão integrada dos recursos hídricos nas bacias e previa a realização de várias medidas, como o cadastro de usuários, a regularização dos usos, a revisão das outorgas, a consolidação do Sistema de Informação, entre outras (GONTIJO JR., 2013).

Na Bacia Hidrográfica do rio Paraíba do Sul, a ANA e os Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo e o CEIVAP (Comitê para Integração da Bacia Hidrográfica do rio Paraíba do Sul) celebraram, em 2002, um Convênio de Integração objetivando a gestão integrada dos recursos hídricos da bacia (BRAGA et al., 2008; PEREIRA; JOHNSSON, 2005).

Neste ano de 2015, várias bacias hidrográficas brasileiras encontram-se sob efeito de uma estiagem hídrica. Na região Sudeste, por exemplo, os Estados localizados na Bacia Hidrográfica do rio Paraíba do Sul vêm divergindo sobre a utilização da água disponível, na tentativa de solucionar o abastecimento d’água de suas cidades. O Nordeste vivencia (desde 2012) mais um período de estiagem, o que deixa evidente os conflitos pelo uso da água. O caso da Bacia Hidrográfica do rio Piranhas-Açu é discutido a seguir.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para realização desta pesquisa procedeu-se um extenso levantamento de informações. Além da revisão de literatura na temática (apresentada anteriormente), no que se refere ao caso de estudo foram considerados documentos como leis federais e estaduais; Resoluções da ANA; Deliberações do Comitê da Bacia Hidrográfica do rio Piancó-Piranhas-Açu (CBH-PPA); atas de reuniões do CBH-PPA; atas de reunião do Grupo Técnico Operacional (GTO); atas de reunião da Articulação Interestadual do Marco Regulatório do Sistema Curema-Açu; estudos sobre o Marco Regulatório; Relatórios Parciais do Plano de Recursos Hídricos da Bacia, dentre outros.

Durante a pesquisa, também, foram assistidas e observadas reuniões (do CBH-PPA e da Câmara Técnica de Planejamento Institucional - CTPI). A CTPI tem “como finalidade a elaboração de proposta de planejamento estratégico para o CBH Piancó-Piranhas-Açu, assim como estabelecer procedimentos para o seu acompanhamento” (CBH-PPA, 2008). Nessas reuniões, todas gravadas, era analisada a participação de cada membro por categoria (Poder Público, usuário de água e sociedade civil), assim como verificados os temas postos na pauta da reunião, observando-se quais as matérias que mais interessavam aos participantes.

Paralelamente às atividades citadas, várias entrevistas foram realizadas com atores chaves na gestão de recursos hídricos da bacia, notadamente técnicos dos órgãos gestores, os quais tiveram participação no antigo processo de elaboração do Marco Regulatório; técnicos envolvidos na elaboração do atual plano da bacia e com integrantes do CBH-PPA. Estas entrevistas foram formuladas em quatro Blocos com os seguintes conteúdos: o primeiro Bloco tinha como objetivo conhecer a experiência e a ligação do entrevistado com o tema relacionado aos recursos hídricos e bacia compartilhada; o segundo Bloco tratava da relação Paraíba/Rio Grande do Norte no compartilhamento das águas da Bacia do rio Piranhas-Açu, enfatizando o funcionamento do Marco Regulatório; a Bacia do rio Piranhas-Açu e os seus problemas foi o tema do terceiro Bloco, o qual procurava entender como era a atuação das instituições envolvidas na gestão da água na bacia; por fim, no quarto e último Bloco, os entrevistados apresentavam suas considerações finais.

A análise documental e sua interpretação, a observação participante nas reuniões e as entrevistas realizadas permitiram caracterizar e analisar o conflito na Bacia do rio Piranhas-Açu com foco no respectivo Marco Regulatório e a atuação dos órgãos relativos à sua operacionalização. A pesquisa permitiu, também, indicar as perspectivas para o tratamento dos conflitos da bacia, à luz de mecanismos contidos no Plano de Bacia e da atuação do comitê. Os resultados são apresentados nas seções que se seguem.

O CONFLITO NA BACIA DO RIO PIRANHAS-AÇU

A Bacia Hidrográfica do rio Piranhas-Açu, localizada no semiárido nordestino, é formada por um rio de domínio da União e vários afluentes de domínio dos Estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte (Figura 1). A gestão nessa bacia deve ser compartilhada entre a União (ANA) e os Estados da Paraíba (SEMARHCT – Secretaria de Estado de Recursos Hídricos, do Meio Ambiente e da Ciência e Tecnologia e AESA – Agência Executiva de Gestão das Águas do Estado da Paraíba) e Rio Grande do Norte (SEMARH – Secretaria de Estado do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos e IGARN – Instituto de Gestão das Águas do Rio Grande do Norte). Esta bacia é considerada estratégica de acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Recursos Hídricos CNRH no 109/2010, que define as Unidades de Gestão de Recursos Hídricos de Bacia Hidrográfica de rios de domínio da União. Para as bacias estratégicas são previstas a elaboração de estudos para a definição de unidades territoriais e a instalação de modelos institucionais e respectivos instrumentos de gestão. Neste sentido, destaca-se o papel da União na articulação com os Estados para promover a gestão dos recursos hídricos intensificando a formulação e implementação de políticas, programas e projetos relativos ao gerenciamento e uso sustentável da água.

Figura 1
– Bacia Hidrográfica do rio Piranhas-Açu - Sistema Curema-Açu

Encontram-se nessa bacia dois grandes reservatórios que têm muita importância no desenvolvimento socioeconômico da região, o sistema de reservatório Curema-Mãe d’Água, que pereniza o rio Piranhas, e o reservatório Armando Ribeiro Gonçalves, que pereniza o rio Açu, localizados nos Estados da Paraíba e Rio Grande do Norte, respectivamente. Os principais usos da água na bacia são para irrigação (65,7%), aquicultura (23,6%), abastecimento humano (7,6%), industrial (1,6%) e pecuária (1,5%) (ANA, 2014).

Em 2003, o uso intensivo das águas do sistema Curema-Açu vinha causando conflitos entre os usuários de águas, principalmente para irrigação e carcinicultura (no trecho a jusante da barragem Armando Ribeiro Gonçalves, localizada no Rio Grande Norte), e entre o poder público dos Estados da Paraíba e Rio Grande do Norte. A intensidade desse uso teve reflexo no aumento dos pedidos de outorga que ultrapassava a capacidade de regularização dos sistemas hídricos da bacia, obrigando a intervenção da União junto aos Estados para que fosse promovida uma gestão cooperativa e compartilhada dos recursos hídricos da bacia. Essa articulação possibilitou a definição de uma estratégia conjunta dos Estados e da União, para o encaminhamento da proposta do Plano de Regularização e Ordenamento dos Usos dos Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do rio Piranhas-Açu, objetivando: (i) a gestão integrada, descentralizada e participativa dos recursos hídricos desta bacia; (ii) a harmonização de critérios, normas e procedimentos relativos ao cadastro de usuários, outorga e fiscalização de usos de recursos hídricos; e (iii) a mobilização e articulação de usuários para o processo de gestão participativa (BRAGA, 2008; BRAGA et al., 2004; NOGUEIRA, 2006).

O Marco Regulatório da Bacia do rio Piranhas-Açu

O processo descrito anteriormente ficou conhecido como Marco Regulatório da Bacia do rio Piranhas-Açu ou Marco Regulatório do Sistema Curema-Armando Ribeiro Gonçalves. Ele representa o primeiro acordo celebrado entre a ANA e Estados da Federação com esses objetivos, servindo de base para implantação em outras bacias de rios de domínio da União.

A formalização dessa cooperação foi concretizada através de um Convênio de Integração entre a ANA, o Estado da Paraíba, o estado do Rio Grande do Norte e o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS). Nesse convênio foram estabelecidas três linhas de ações: regularização de usuários; gestão participativa e gestão de rede de monitoramento. O objetivo do Convênio é a gestão integrada, regularização e ordenamento dos recursos hídricos da Bacia, e o ponto de partida para atingir esses objetivos foi o estabelecimento do Marco Regulatório (ANA, 2004).

O Marco Regulatório é, portanto, o instrumento formal que estabeleceu as diretrizes de orientação do uso dos recursos hídricos no Sistema Curema-Açu. A Resolução ANA nº 687/2004 concretizou o Marco Regulatório para o prazo de duração de dez anos, com a possibilidade de ter revisão a cada dois anos, estabelecendo os seguintes critérios:

  • A divisão do Sistema em seis trechos (Figura 1);

  • A quantidade de água disponível em cada trecho, inclusive definindo a quantidade para cada tipo de uso (irrigação, abastecimento humano, piscicultura, industrial, etc.);

  • A vazão mínima que deve passar na fronteira entre os Estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte, sendo 1,5 m3/s nos primeiros cinco anos (2004-2009) e de 1,0 m3/s nos cinco anos seguintes (2009-2014);

  • Os critérios de outorga ou dispensa do uso de água, visando à regularização dos usuários;

  • A definição dos usos dispensados de outorga (captação inferior a 0,5 l/s = 1,8 m3/h);

  • A promoção de campanha de regularização de usuários do Sistema;

  • A criação de uma rede de monitoramento quantitativo e qualitativo para dar suporte às ações de fiscalização e ao cumprimento do Marco Regulatório.

A discussão e a aprovação do Marco Regulatório foram feitas apenas pelos representantes do Poder Público (União e Estados da Paraíba e Rio Grande do Norte), já que o Comitê da Bacia Hidrográfica do rio Piancó-Piranhas-Açu não estava instituído naquele momento. Para a fixação dos valores máximos disponíveis para alocação e da vazão de fronteira, as partes envolvidas se utilizaram do cadastro de usuários do sistema Curema-Açu, determinando a demanda em cada trecho e as projeções de demandas de 5 e 10 anos construídas por cada Estado.

No Marco Regulatório, um dos pontos mais importantes foi a definição da vazão mínima na fronteira entre os estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte. A proposta inicial da Paraíba era uma vazão em torno de 0,8 m3/s e a do Rio Grande do Norte de 1,5 m3/s (NOGUEIRA, 2006).

Para construção da decisão da vazão mínima de fronteira PB/RN foram necessárias sete reuniões (de 2003-2004) com os representantes da ANA, do DNOCS e dos Estados da Paraíba e Rio Grande do Norte, os quais negociaram os valores máximos alocáveis por trechos e usos, considerando as vazões regularizadas dos reservatórios Curema-Mãe d´Água/PB (7,9 m3 com 95% de garantia; AESA, 2006) e Armando Ribeiro Gonçalves/RN (19,4 m3/s com 90% de garantia; MIN, 2000). Após o fim da vigência do Marco, as discussões sobre as vazões passaram a ser incorporadas ao Plano de Bacia.

Para a negociação e implementação do Marco foram estabelecidos o Grupo de Articulação Interinstitucional (GAI) e o Grupo Técnico Operacional (GTO), incluindo as atividades de regularização, monitoramento qualiquantitativo e fiscalização (ANA, 2004). Na perspectiva de assegurar a participação dos usuários na gestão do referido sistema hídrico, criou-se o Grupo de Acompanhamento do Marco Regulatório (GAMAR), formado por 40 usuários de água dos Sistemas, escolhidos em assembleias na bacia durante uma campanha de regularização dos usos. O GAMAR deveria acompanhar o cumprimento do Marco Regulatório, das ações dos órgãos gestores, os dados de qualidade e quantidade de água e promover junto com os órgãos gestores e os demais usuários regularizados, a alocação negociada de água (BRAGA, 2008).

A regularização dos usos pela ANA se deu por: (i) declaração de dispensa de outorga para usuários (as vazões de captações e derivações iguais ou inferiores a 0,5 l/s); (ii) outorga coletiva para cada trecho, contendo a relação dos usuários outorgados daquele trecho e (iii) outorga individual (empreendimentos cuja vazão máxima de captação seja superior a 50,0 l/s; empreendimentos cujo proprietário seja um agente público; e empreendimentos cujos pedidos de outorga já tenham sido ou que venham a ser autuados na ANA).

Os anos posteriores à construção do Marco Regulatório foram úmidos, com precipitações normais e acima da média, conduzindo os atores a uma acomodação, mudando o foco das ações na bacia. O GTO e o GAMAR ficaram sem exercer atividades. As revisões previstas a cada dois anos não foram realizadas. Os totais alocáveis por uso e por trecho “engessaram” o processo de regularização dos usos, uma vez que havia saldo para alguns usos, o qual não poderia ser disponibilizado para outros.

O Plano da Bacia e o “novo” Marco Regulatório

A discussão para a revisão do Marco Regulatório foi retomada com a elaboração do Plano da Bacia (ANA, 2014) e a escassez hídrica 2012-2015. Essa escassez obrigou a ANA a elaborar as seguintes Resoluções: Resolução ANA nº 641/2014, que estabelece regras de restrição de uso para captação de água com finalidades de irrigação e aquicultura; Resolução ANA nº 316/2015, que estabelece regras operativas para o açude Armando Ribeiro Gonçalves; Resolução ANA nº 633/2015, que estabelece condições especiais de captação de água do açude Mãe d’Água para o Canal Governador Antônio Mariz; e a Resolução ANA nº 640/2015, que trata da interrupção das captações de águas superficiais no rio Piancó e no rio Piranhas-Açu para irrigação e aquicultura.

Nesse mesmo período (2012-2015), o Marco Regulatório foi alterado após reunião entre a ANA e a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos do Rio Grande do Norte, onde se acordou que não seria necessário se exigir a demanda por uso, permanecendo apenas a demanda por trecho. Posteriormente, houve outra alteração, através do GTO, onde ficou acordado que a vazão na divisa entre os Estados não necessariamente deveria ser de 1,0 m3/s, mas suficiente para atender a cidade de Jardim de Piranhas.

Até agosto de 2015, o Plano da Bacia do rio Piranhas-Açu ainda não havia sido aprovado. Em reunião do Grupo Técnico Operacional – GTO realizada em 02 julho de 2014 com a ANA, DNOCS, gestores estaduais e representantes do Comitê de Bacia, foram apresentadas as propostas que deverão conter o “novo” Marco Regulatório no Plano de Bacia (Ata Memória da Reunião do GTO, 2014), dentre elas:

  • A vazão de entrega não será fixa, devendo ser definida uma faixa de vazões;

  • A definição de duas cotas de alerta por açude;

  • A alocação de longo prazo será definida na revisão do Marco Regulatório (revisão da Resolução ANA n.º 687/2004);

  • A alocação de curto prazo em açudes isolados será definida pelas comissões gestoras (“alocadoras”) dos respectivos açudes;

  • A alocação de curto prazo em cursos d’água e açudes de interesse regional será definida pelo Comitê de Bacia Hidrográfica;

  • O GTO será oficialmente instituído com a atribuição de monitoramento e acompanhamento das ações de gestão, sendo formado por órgãos gestores de recursos hídricos e o DNOCS. A coordenação do grupo será exercida pela ANA. Será definido o instrumento legal de criação e definição da composição do GTO (Resolução Conjunta ou Portaria Conjunta);

  • Necessidade de aporte de recursos financeiros da ANA para custear a secretaria executiva do Comitê da Bacia Hidrográfica;

  • As comissões gestoras dos açudes (“alocadoras”) deverão ser apoiadas tecnicamente pelo GTO e órgãos gestores estaduais e administrativamente pela secretaria executiva do Comitê de Bacia Hidrográfica.

ANÁLISE E DISCUSSÃO

Conforme se pode observar das Atas da Reunião de Articulação Interestadual da Bacia Hidrográfica do rio Piranhas-Açu, todas as instituições vinculadas ao gerenciamento de recursos hídricos dos dois Estados (na Paraíba: SEMARH – Secretaria do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos e AAGISA – Agência de Águas, Irrigação e Saneamento do Estado da Paraíba - substituídas depois, respectivamente, pela SEMARHCT e AESA; no Rio Grande do Norte: SERHID – Secretaria de Recursos Hídricos, substituída pela SEMARH, e IGARN) e da União (ANA e DNOCS) participaram da elaboração e assinatura do acordo, demonstrando a sua importância para a Bacia, para os dois Estados e para a União.

O processo de elaboração do Marco Regulatório estabeleceu um ambiente cooperativo para a gestão da bacia, inclusive contribuindo para a criação do comitê da bacia em 29/11/2006. Na segunda reunião ordinária do CBH–PPA (11/12/2009) foi apresentado e discutido o processo do Marco Regulatório. Na oportunidade, deliberou-se pela solicitação de revisão do Marco Regulatório à ANA, com o envolvimento dos Órgãos Gestores e da Câmara Técnica de Planejamento Institucional (CTPI) do Comitê (CBH-PPA, 2009). Assim, foram iniciadas as discussões destes entes institucionais, que decidiram por incluir no processo de elaboração do Plano da Bacia a revisão do Marco e uma nova proposta de alocação de água (ANA, 2010).

Enquanto a precipitação na região ocorreu de forma normal, nos anos considerados úmidos (2004/2011), a vazão liberada pelo sistema Curema-Mãe d’Água permitiu uma vazão na fronteira bem superior ao estabelecido pelo Marco. Isso possibilitou o atendimento das demandas do Estado do Rio Grande do Norte, notadamente o abastecimento da cidade de Jucurutu (ponto de captação mais sensível no extremo do trecho 4 – Figura 1), município situado próximo ao espelho d´água do reservatório Armando Ribeiro Gonçalves, com retirada de água do próprio rio.

Com a estiagem (a partir de 2012), a redução da vazão liberada pelo sistema foi inevitável, repercutindo na vazão de fronteira e consequentemente no ponto onde era captada a água da cidade de Jucurutu, impossibilitando o abastecimento da cidade. Esse foi um dos principais problemas que o Marco Regulatório passou a enfrentar desde a sua formalização. Sendo assim, em outubro de 2013, o Marco Regulatório voltou a ser discutido no CBH-PPA em uma reunião extraordinária que tratou principalmente sobre a utilização da água no trecho Curema/Jucurutu. Nessa reunião foi cogitada a possibilidade de redução da vazão na fronteira de 1,0 m3/s para 0,7 m3/s sob o argumento de que o Rio Grande do Norte possuía um volume de água acumulado bem superior ao da Paraíba.

Devido ao prolongamento da escassez de água e a diminuição do volume dos reservatórios do sistema Curema-Mãe d’Água, a ANA e os órgãos gestores dos dois Estados resolveram reativar o GTO (em 03/07/2013) para promover medidas que pudessem minimizar os efeitos da escassez. Na reunião do dia 03 de julho de 2013, conforme o documento “Ajuda Memória de Reunião” (GTO, 2013), presentes os gestores de recursos hídricos dos Estados, ANA, DNOCS e diretoria do Comitê da Bacia do rio Piancó-Piranhas-Açu, foram debatidos vários temas, dentre os quais: redefinição do GTO; resgate do GAMAR (Grupo de Acompanhamento do Marco Regulatório); acompanhamento por etapas do Marco Regulatório; redução da vazão defluente dos reservatórios Curema-Mãe d’Água; entre outras. Nesta reunião ficou definido que o GTO seria composto por representantes dos seguintes órgãos: SEMARHCT-PB, AESA; CAGEPA – Companhia de Águas e Esgoto da Paraíba; DNOCS-PB; SEMARH-RN; IGARN; CAERN – Companhia de Águas e Esgotos dos Rio Grande do Norte; DNOCS-RN e ANA. A partir daí o GTO passou a se reunir para discutir o problema de escassez de água. Desde a sua reativação, o GTO teve nove reuniões de 03 de julho de 2013 até 25 de fevereiro de 2015.

Uma das medidas promovidas pelo GTO foi a mitigação do Marco Regulatório quanto à vazão na fronteira, não sendo mais exigida a vazão de 1,0 m3/s, mas uma vazão que deveria ser suficiente para abastecer a cidade de Jardim de Piranhas, próximo à divisa entre os dois Estados. Nessa situação, a cidade de Jucurutu seria abastecida por uma adutora de engate rápido com captação na barragem Armando Ribeiro Gonçalves. Outro ponto definido pelo GTO foi a limitação da área a ser irrigada (máximo 5,0 ha) e a fixação de seus dias. Esse ponto foi objeto de formalização pela ANA através da Resolução no 641/2014, já mencionada na seção sobre o Plano da Bacia e o “novo” Marco Regulatório.

Com base na experiência obtida nos últimos 10 anos de vigência do Marco Regulatório (2004-2014), a proposta apresentada para o “novo” Marco Regulatório, que deverá estar contida no Plano de Recursos Hídricos da Bacia, contempla pontos importantes para corrigir algumas deficiências. Esses pontos consideram a flexibilização de sua estrutura quanto à definição de faixa e não de valor fixo de vazão na fronteira; a não dependência da demanda por tipo de usuário; a definição metodológica do processo de alocação de água e a definição de entidade (GTO) permanente para monitoramento e acompanhamento das ações de gestão.

CONCLUSÃO

O conflito pelo uso da água na bacia do rio Piranhas-Açu deu início ao entendimento entre os estados da Paraíba e Rio Grande do Norte, com a intervenção da ANA e do DNOCS, que promoveu a formalização da Resolução nº 687/2004. Essa resolução fixou a vazão entre os dois Estados, com a denominação de Marco Regulatório, o qual teve seu prazo de vigência encerrado em 2014.

O que se conclui desse processo é que, da data da formulação do Marco Regulatório (03/12/2004) até a data de reativação do GTO (03/07/2013), houve acomodação natural dos gestores da bacia em função do período úmido verificado na região. Mesmo assim, destacam-se, nesse período, anos com ações importantes (2005 e 2006) nos quais se estabeleceu a regularização dos usos na bacia.

Com o término da validade do Marco Regulatório em 2014, a concepção de um “novo” Marco foi incorporado na elaboração do Plano de Bacia (conclusão prevista para o final do ano de 2015), a fim de tornar mais flexível a alocação de água e levar em consideração a tomada de decisão no âmbito do Comitê de Bacia (inexistente quando da formalização do Marco Regulatório em 2004).

Conclui-se pela necessidade da criação de ambientes participativos, no âmbito do Comitê. Dentre esses, as comissões gestoras em cada reservatório da bacia. Importante, também, a criação de uma Câmara Técnica para Resolução de Conflitos. Menciona-se, também, a necessidade de instituição do Grupo Técnico Especial – GTE (já previsto na Deliberação CBH-PPA nº 06/2010 e criado para arbitragem de conflitos no âmbito do CBH). Esses mecanismos podem ser úteis para auxiliar na implementação e fiscalização do “novo” Marco Regulatório.

Considerando a ótica do órgão gestor (a Agência Nacional de Águas), com a escassez hídrica na Bacia acentuando-se desde 2012, medidas institucionais passaram a ser conduzidas pela Agência, como a reativação do Grupo Técnico Operacional (meados de 2013) e a emissão de resoluções em 2014 e 2015 para disciplinar o uso da água na Bacia.

Como já identificado pelo GLOBAL WATER PARTNERSHIP (2013), inevitavelmente os conflitos tendem a ocorrer nos processos de gestão de recursos hídricos. A situação não terminará, necessariamente, em uma polarização ou impasse, podendo até ser positiva para a identificação das soluções. É o que se verifica em muitas das experiências internacionais relatadas nesta pesquisa. É, também, o que se observa para a Bacia do rio Piranhas-Açu. Se o ambiente decisório estabelecido pelo Marco Regulatório tivesse se mantido ativo durante toda a sua existência, as medidas (que passaram a ser propostas mais recentemente) poderiam ter sido antecipadas para melhor preparar a bacia para épocas de severa estiagem hídrica.

AGRADECIMENTO

Ao CNPq pelo financiamento do projeto “Conflitos e Participação Pública na Gestão Hídrica no Brasil e em Portugal” (Processo nº 484689/2012-6) no qual se insere esta pesquisa. À CAPES/PDSE – Programa Institucional de Bolsas de Doutorado Sanduíche no Exterior pela bolsa concedida ao primeiro autor para realizar doutorado-sanduíche no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Os autores agradecem aos técnicos de órgãos gestores, assim, como aos integrantes do CBH-PPA, pela participação nas entrevistas. Agradecem, também, aos revisores do artigo que muito contribuiu para o seu aperfeiçoamento.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2015
  • Revisado
    28 Set 2015
  • Aceito
    10 Nov 2015
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