Open-access SUBCIDADANIA, SUBJETIVIDADE E RESISTÊNCIAS NA PANDEMIA DE COVID-19: EXPERIÊNCIAS DE JOVENS PERIFÉRICOS

SUBCITIZENSHIP, SUBJECTIVITY AND RESISTANCE IN THE COVID-19 PANDEMIC: EXPERIENCES OF YOUTH FROM PERIPHERY

SUBCIUDADANÍA, SUBJETIVIDAD Y RESISTENCIA EN LA PANDEMIA COVID-19: EXPERIENCIAS DE LA JUVENTUD PERIFÉRICA

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo investigar os significados e as vivências em relação aos espaços públicos e privados de um grupo de jovens moradores de regiões periféricas durante a pandemia de COVID-19. A teoria fundamentada nos dados foi utilizada para analisar de maneira qualitativa as entrevistas semiestruturadas realizadas com sete jovens. O desamparo diante da falta do Estado, a estigmatização da periferia que despotencializa a vida e vivências comunitárias como contrapontos de cuidado são temas que representam os resultados da investigação. A epistemologia psicodramática pode ser ferramenta relevante para análises críticas da desigualdade social, desvelando seus processos injustos. O psicodrama pode ser um saber que afirma a coletividade e a vida comunitária, servindo como contraponto ao ideário neoliberal vigente.

PALAVRAS-CHAVE Desigualdade social; Psicodrama; Pandemia COVID-19

ABSTRACT

This work aims to investigate the meanings and experiences in relation to public and private spaces of a group of young people living in peripheral regions during the COVID-19 pandemic. The grounded theory data was used to qualitatively analyze the semi-structured interviews conducted with seven young people. The abandonment in face of the absence of government, the stigmatization of the periphery that devitalizes and community experiences as counterpoints of care are themes that represent the results of the investigation. The psychodramatic epistemology can be relevant tools for critical analysis of social inequality, unveiling its unfair processes. Psychodrama can also affirm collectivity and community life, serving as a counterpoint to the prevailing neoliberal ideals.

KEYWORDS Social inequality; Psychodrama; pandemic COVID-19

RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo investigar los significados y experiencias en relación con los espacios públicos y privados de un grupo de jóvenes residentes en regiones periféricas durante la pandemia COVID-19. Se utilizó la teoría fundamentada para analizar cualitativamente las entrevistas semiestructuradas realizadas con siete jóvenes. El desamparo ante la falta del Estado, la estigmatización de la periferia que desvitaliza a la gente, las vivencias comunitarias como contrapuntos del cuidado son temas que representan los resultados de la investigación. La epistemología psicodramática puede ser herramienta relevante para el análisis crítico de la desigualdad social, desvelando sus procesos injustos. El psicodrama también puede afirmar la colectividad y la vida comunitaria, sirviendo de contrapunto a los ideales neoliberales imperantes.

PALABRAS CLAVE Desigualdad social; Psicodrama; Pandemia COVID-19

INTRODUÇÃO

A convivência na cidade, nos espaços públicos, nos centros urbanos e nas periferias pode indicar as relações entre espaço e subjetividade, de poder e as hierarquias presentes no território. A cidade também é o palco onde se dão as trocas culturais, os direitos de falar e de ser visto, de se expressar como cidadão, rompendo com o papel restritivo de consumidor.

A pandemia da COVID-19, provocada pela disseminação em escala mundial do Sars-CoV-2, reconfigura e afeta diversos aspectos do cotidiano. Pretendeu-se pesquisar sobre os desafios vividos no enfrentamento dessa situação por um grupo de jovens moradores de regiões periféricas de uma cidade do interior de Minas Gerais a partir do referencial teórico do psicodrama. Uma das autoras atuou como educadora social em um programa de formação profissional direcionado para jovens da prefeitura municipal em Mariana (MG).

Buscou-se compreender as perspectivas desse grupo sobre como percebem as informações sobre prevenção e cuidado, como têm se relacionado com o espaço privado e com os espaços públicos no contexto da pandemia.

A recomendação que se popularizou nas mídias, Fique em casa, como imperativo deslocado das múltiplas realidades sociais, parece não considerar as nuances do contexto de desigualdade. Esta crise sanitária global evidencia e agrava as contradições sociais já existentes. O atual modo de produção e reprodução da vida parece ter se esgotado: exploração predatória do meio ambiente, concentração de riqueza na mão de poucas pessoas e um imenso contingente de grupos sociais em situações de miséria e insegurança alimentar. As populações que vivem em periferias dificilmente podem adotar as recomendações preventivas em relação à contaminação.

O encontro do vírus com os corpos é mediado pela desigualdade social. Por um lado, percebem-se inventividades cotidianas, soluções coletivas e potência de criação nas periferias (Sawaia, 2020a). Por outro a vulnerabilidade social de grupos periféricos se manifesta em uma menor possibilidade de responder a situações de risco, devido ao escasso acesso a políticas públicas de proteção, trabalho e renda (Romagnoli, 2015). A desigualdade social brasileira se apresenta no acesso diferenciado em relação não somente à renda, mas aos bens culturais e simbólicos produzidos pela sociedade (Bock, 2009).

A dimensão subjetiva da desigualdade social brasileira pode ser analisada a partir de dois conceitos socionômicos: o coinconsciente e a espontaneidade. O conceito moreniano de coinconsciente, inicialmente de âmbito grupal, pode ser estendido ao contexto social mais amplo: em 1961, o próprio Moreno passou a considerar elementos socioculturais envolvidos nesse conceito (Knobel, 2011). Ao transcender o pequeno grupo, o contato íntimo e direto seria estendido para a ideia de um contato indireto de um grupo social mais amplo. Nesse âmbito ampliado, as subjetividades compartilhadas como elementos coinconscientes seriam tradições culturais, ideologias, traumas coletivos, imaginários compartilhados, preconceitos e percepções cristalizadas de determinados grupos sociais, conformando afetos e ações que reverberam nas interações sociais.

Nessa direção, há fortes preconceitos de classe social como conteúdos coinconscientes que circulam no imaginário social brasileiro e que incidem sobre as subjetividades de pessoas excluídas. A partir de elementos históricos escravocratas e autoritários, o Brasil possui uma dinâmica psicossocial que determina, de forma hierárquica, grupos sociais que possuem valor e grupos que são alvo de desprezo (Souza, 2017). A estigmatização dos segmentos populares pelas classes hegemônicas produz representações dos sujeitos excluídos como ligadas à inadequação, à desordem, e ao perigo (Vieira, 2020).

Os fluxos coinconscientes de desvalia são mensagens que provocam um sofrimento político e psicológico nos oprimidos, que Gonçalves Filho (1998) descreve como humilhação social. Seria uma angústia, fruto da desigualdade política, experimentada no impacto das mensagens e dos afetos de rebaixamento. O sofrimento diante das vivências nas relações de dominação inibe a palavra e a ação, impede a participação na vida social do sujeito como alguém capaz e potente para contribuir. Sawaia (1999) aponta o sofrimento ético-político, gerado pela sensação de sentir-se inútil, com as possibilidades vetadas de contribuir com a sociedade. A espontaneidade criadora, como possibilidade de liberdade, de realização pessoal, de recriação de si e da realidade, de desenvolvimento e crescimento, pode ser afetada pela humilhação social e pelo sofrimento ético-político. A universalidade do princípio socionômico da espontaneidade/criatividade pode ser problematizada ao pensarmos em sujeitos concretos atravessados pelas questões de classe social, além de outros marcadores sociais como raça, etnia, gênero e orientação do desejo sexual.

Na investigação da relação de jovens moradores de bairros periféricos com os espaços privados domésticos e públicos durante a pandemia da COVID-19, pôde-se perceber o desamparo diante da falta de Estado, a estigmatização da periferia que despotencializa a vida, vivências comunitárias como contrapontos de cuidado, dentre outros aspectos que serão discutidos. As vivências desses jovens podem conter elementos que ajudam a desnudar as desigualdades e contradições sociais brasileiras que a crise sanitária torna mais evidente.

MÉTODO DE PESQUISA

O presente trabalho se insere no referencial qualitativo de pesquisa que considera a importância do olhar do pesquisador e da sua relação com os sujeitos com os quais se dialoga para a cocriação de conhecimento, considerado a partir do contexto sócio-histórico em que é produzido (Brito, 2006).

A teoria fundamentada nos dados, abordagem interpretativo-sistemática, foi utilizada para a análise dos significados das experiências apresentadas pelos interlocutores. Esse método possibilita a elaboração de reflexões teóricas a partir da própria realidade investigada (Dantas et al., 2009). A teoria fundamentada possui diretrizes de coleta e interpretação, objetivando a construção de conceitos teóricos baseados nos próprios dados. A coleta e a análise dos dados ocorrem simultaneamente na busca de produções teóricas dos processos estudados, pretendendo-se ultrapassar o nível descritivo (Charmaz, 2009).

Para a coleta de dados foi utilizada a entrevista semiestruturada com sete jovens moradores dos bairros Cabanas e Santo Antônio, regiões periféricas de Mariana, entre os meses de setembro e novembro de 2020. Os critérios utilizados foram: ser morador (a) das localidades citadas, ser jovem ou jovem adulto (entre 18 e 32 anos) e desejar compartilhar sobre a própria experiência da pandemia em casa, na comunidade e na cidade. A perspectiva quantitativa de periferia, a partir de exclusões urbanas e geográficas (D’Andrea, 2020), foi considerada para a realização da pesquisa e seleção dos bairros de moradia dos participantes.

Uma das autoras do artigo conhecia de antemão três entrevistados, com quem havia desenvolvido trabalhos como educadora social no município de Mariana (MG). Esses participantes indicaram outros possíveis informantes, totalizando sete participantes. Todos os entrevistados foram contatados inicialmente por meio de mensagem pelo aplicativo WhatsApp e, em seguida, após autorização, foi realizada chamada telefônica na qual foram compartilhados os objetivos da pesquisa e elucidado que poderiam se negar a participar ou interromper a entrevista a qualquer momento. Os informantes autorizaram a gravação das entrevistas, sendo garantida a preservação de identidade, informações detalhadas em um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os encontros foram agendados de acordo com a disponibilidade dos participantes, pela plataforma virtual Zoom e as entrevistas foram realizadas com áudio e vídeo. As duas últimas entrevistadas não possuíam o aplicativo Zoom, nem conseguiram obtê-lo antes da entrevista. Nesses dois casos, a entrevista foi realizada via telefone e gravada somente com áudio. É possível que a ausência do recurso do vídeo tenha limitado o estabelecimento de um vínculo de confiança para o compartilhamento de experiências pessoais. Não foram buscados novos sujeitos por se ter entendido que a pergunta da pesquisa já havia sido respondida.

No roteiro da entrevista semiestruturada, haviam perguntas que sondavam sobre as experiências dos interlocutores durante a pandemia em relação a aspectos como: acesso à informação, impactos da pandemia no cotidiano, relação com o espaço privado doméstico e com o espaço público. Portanto buscou-se conhecer os meios consultados de informações durante a pandemia, os aspectos que se modificaram no convívio familiar e comunitário, as experiências em relação à possibilidade ou não de se afastar do trabalho presencial, a divisão de tarefas em casa, formas de estar em contato com amigos, dentre outros.

Informações como: idade, local de moradia, ocupação e pessoas com quem reside também foram solicitadas.O entrevistado 1, de 19 anos, vive no bairro Cabanas, com o pai, a madrasta e dois irmãos. É funcionário contratado da prefeitura e estudante secundarista. O entrevistado 2, de 20 anos, mora no bairro Santo Antônio com os pais e cinco irmãos, e é estudante universitário. O entrevistado 3, de 19 anos, vive no bairro Cabanas com a mãe, o pai e o irmão e é estudante secundarista. A entrevistada 4, de 29 anos, vive com o filho no bairro Santo Antônio e ficou desempregada na pandemia. A entrevistada 5 reside no bairro Cabanas com o marido e é estudante universitária. A entrevistada 6, de 32 anos, vive no bairro Cabanas com os três filhos e é secretária. Por fim, a entrevistada 7 também reside no bairro Cabanas, com a mãe e o companheiro, e possuía 30 anos na data da entrevista.

O material foi transcrito integralmente em arquivos de editor de texto e a partir dele foi realizada a codificação aberta, em que todos os trechos das entrevistas foram nomeados com códigos preliminares. O objetivo foi formular palavras ou pequenas frases que pudessem descrever as experiências que estavam sendo compartilhadas. A seguir, esses códigos foram agrupados em categorias de acordo com afinidade temática. Paralelamente ao processo de codificação, os pesquisadores escreveram textos chamados de memorandos. Foram escritos temas que não estavam explícitos no conteúdo das entrevistas, mas que estavam subjacentes ou nas entrelinhas dos depoimentos. Esses textos deram suporte analítico ao desenvolvimento das categorias e dos códigos (Charmaz, 2009). Duas categorias emergiram desse processo analítico, representando e condensando os resultados sobre a investigação das experiências de jovens de periferia com os espaços públicos e privados durante a pandemia de COVID-19: (1) subcidadania, desamparo e desqualificação da periferia e (2) enfrentamentos e resistências. A seguir, essas categorias serão apresentadas e discutidas a partir da interlocução com outros autores da psicologia social e do psicodrama. As entrevistas realizadas estão referenciadas por meio dos numerais por ordem de realização como forma de preservar o sigilo da identidade dos participantes.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Subcidadania, desamparo e desqualificação da periferia

Nesta categoria, a exclusão social se manifesta em vivências individuais e coletivas, demonstrando a articulação entre a desigualdade, a subcidadania e a subjetividade. As humilhações vividas nos encontros com as classes hegemônicas, o abandono pelo Estado e a estigmatização da periferia podem forjar sujeitos que se percebem como inúteis e inadequados. Marcadas pela desigualdade social e pelas forças correntes das ideologias neoliberais, a vivência da cidadania e a efetivação de direitos para os moradores da periferia ficam obstaculizadas. O desvalor, o desamparo e a despotencialização atravessam as relações interpessoais, o trabalho, a participação nas instituições e o cotidiano dos sujeitos excluídos.

O tema das relações de trabalho e renda durante a pandemia foi marcado pela impossibilidade de seguir as recomendações de isolamento social. Profissionais autônomos, prestadores de serviços essenciais e de cuidado, desempregados que fazem bicos, narraram sobre seus impedimentos para permanecerem em casa e a necessidade de enfrentar o medo para sobreviverem. A ameaça de ficar sem renda suplantou o medo de se contaminar.

O trabalho remoto, ou home-office, não foi uma alternativa possível, uma vez que os empregos formais e trabalhos precários são funções que requerem a saída para as ruas. Santos (2020) argumenta que qualquer tipo de quarentena será sempre discriminatória. A vulnerabilidade já vivenciada por alguns grupos sociais é intensificada pela pandemia. Uma parte significativa da população mundial não tem condições de seguir as recomendações de higiene e isolamento social da Organização Mundial da Saúde.

A desigualdade social foi intensificada na pandemia com a perda do emprego, com a dificuldade de subsistência, como relatou o entrevistado 2: “Não entro na casa das pessoas, mas dá pra ver um empobrecimento, sabe, de andar na rua”. A entrevistada 4 relatou ter ficado desempregada na pandemia e que estava dependente do auxílio emergencial como única fonte de renda.

A relação com o trabalho se mostrou ambígua: o alívio por ter emprego e o medo de se contaminar foram vivências simultâneas. Sá et al. (2020) ressaltam a articulação entre a vulnerabilidade social e o sofrimento subjetivo na crise intensificada pela pandemia da COVID-19. O medo de se contaminar ou contaminar alguém, o desamparo vivido diante do abandono dos órgãos públicos, especialmente pela falta de liderança e organização do governo federal afetaram fortemente os sujeitos. Nesse sentido, Bauman (2001) aponta: “A maneira como se vive torna-se uma solução biográfica das contradições sistêmicas. Riscos e contradições continuam a ser socialmente produzidos; são apenas o dever e a necessidade de enfrentá-los que estão sendo individualizados” (p. 48). O sucesso ou fracasso são entendidos enquanto produtos de esforços individuais, assim as contradições do sistema vigente tendem a não ser apontadas (Han, 2018). A competição toma o lugar da solidariedade, o que gera uma crescente sensação de insegurança (Vieira, 2017). O desamparo e a impotência são intensificados porque os sujeitos não estão munidos de recursos para enfrentar problemas socialmente produzidos. O desamparo acrescenta intensidade à angústia pelo medo de se contaminar. Esta privatização das experiências se exacerbou desde a década de 1980 com a vigência cada vez mais forte do neoliberalismo, que seria a radicalização da face antissocial e individualista do capitalismo. O processo progressivo de perda direitos sociais e o enfraquecimento das políticas públicas deixa atualmente o Estado como incapaz de lidar com uma crise como a causada pela pandemia (Santos, 2020).

O psicodrama pode contribuir como um contraponto a essa crescente experiência de individualização. O enfoque relacional da socionomia, a implicação psicossocial e comunitária dos seus conceitos, bem como a compreensão da espontaneidade como processo coletivo de posicionamento no mundo podem ser formas de resistência ao individualismo neoliberal. A escuta e a disponibilidade precisam representar uma abertura para o social. Se perseguirmos finais felizes ou cenas de consenso, pode-se, de maneira acrítica, contribuir com o ideário neoliberal em que o sujeito é visto, sobretudo, como um consumidor que deve ser produtivo (Merengué, 2020). A atuação sociocrítica do psicodramatista pode ser alcançada com uma escuta qualificada do intercâmbio que ocorre do contexto social para os contextos grupais e dramáticos (Gonçalves et al., 1988). Ou seja, o contexto social, com suas regras, interdições e ideologias, manifesta-se no contexto das relações grupais e na produção dramática, no desempenho de papéis e de personagens na cena psicodramática. Nessa perspectiva, o psicodramatista articula processos psicossociais com processos clínicos, na escuta dos atravessamentos políticos e sociais nas subjetividades. As regras sociais e ideologias do contexto social se manifestam no coinconsciente das relações grupais. Por meio da recriação dos papéis no contexto dramático novas possibilidades existenciais se abrem aos participantes (Gonçalves et. al., 1988).

Além do contexto de emprego e renda, a questão da desigualdade social foi narrada por meio das dificuldades de continuidade de inserção nas escolas e nos processos educacionais durante a pandemia. Quatro entrevistados perceberam que a falta da escola deixou as crianças vulneráveis nas ruas ou em casa sozinhas. Foram relatadas vivências de exclusão dos processos de estudo devido a condições precárias de acesso à internet e de falta de ambiente de estudo em casa. A entrevistada 4 observa que muitas crianças não possuem condições adequadas de acesso às plataformas online: “Assim, impactou na vida das crianças. Muitas não têm como fazer uma aula online. Então é um ano de estudo que foi perdido”. O entrevistado 1 declara ter se afastado da escola por não conseguir se concentrar em casa. Ele relatou que houve grande evasão escolar na sua comunidade.

A interrupção dos atendimentos na área de saúde e do acompanhamento das escolas foram vivências que aumentaram a vulnerabilidade. O acesso precário aos equipamentos e serviços públicos é uma das condições que podem intensificar a vulnerabilidade social, conforme colocam Paulon e Romagnoli (2018). A ausência de políticas públicas que amparem as famílias durante a pandemia diante do rompimento dos vínculos e dos suportes oferecidos pela escola pode intensificar vulnerabilidades e representarem obstáculos para a autonomia e a espontaneidade dos sujeitos. Romagnoli (2015) discute a complexa noção de vulnerabilidade, associada a múltiplas exclusões, que afeta possibilidades de respostas dos sujeitos nesses contextos. Ora, se compreendemos que a espontaneidade se relaciona a um posicionar-se no mundo, a uma presença ativa na realidade, é fundamental que as condições de exclusão e de vulnerabilidade que possam despotencializar os sujeitos sejam consideradas pelo enfoque socionômico. Torna-se necessária a problematização das condições para a emancipação humana por meio da espontaneidade e da criatividade de pessoas que vivem em condições materiais e simbólicas ligadas à escassez. Nesse sentido, a espontaneidade e a criatividade dependem das condições classistas em que se inserem os sujeitos. As condições concretas que possibilitam a emancipação humana não seriam distribuídas universalmente.

O parco acesso a políticas sociais protetivas afeta de modo especial as mulheres, de acordo com os depoimentos. Essas experiências específicas foram refletidas pelos participantes como ligadas à sobrecarga pela desigualdade dos papéis de gênero. A entrevistada 2 percebe que não tem sido possível para algumas mulheres trabalharem devido ao cuidado com as crianças que estão agora em casa. Algumas participantes da pesquisa, que são mães, compartilharam o desgaste que têm vivido no contexto do ensino à distância e as dificuldades da sobreposição de papéis que envolvem cuidar e auxiliar nos processos de estudo, como informa a entrevistada 6: “Eu não consigo fazer uma rotina dentro de casa, porque até então todos os três [filhos], dentro de casa... Acaba sendo desgastante, muito desgastante!”

A entrevistada 4 aponta em seu relato a intersecção entre gênero e classe social como algo que soma vulnerabilidades: “Então, assim eu tenho que aproveitar o dia que tem água, tenho que acompanhar o M. [filho] na aula online e tem vez que não dá tempo de ele fazer o dever”. Nesse sentido, Moreira et al. (2020) destacam a recorrente e cíclica reprodução da pobreza para mulheres a partir de desigualdades nos âmbitos de cuidado dos filhos e na gestão das tarefas domésticas; classe, raça e território atravessam as experiências de ser mãe na periferia. Na pandemia, segundo as autoras, a precariedade ou a inexistência de redes de apoio, a impossibilidade de ficar em casa devido à informalidade das atividades ou ao tipo de trabalho realizado e a redução da renda podem afetar intensamente as mulheres.

O conceito socionômico de papel postula que a subjetividade emerge do exercício de papéis. Seria a forma em que o eu se organiza quando está em interação com o outro em determinada situação. Conforme teorizam Gonçalves et al. (1988), os papéis se referem “ao homem em situação, imerso no social, buscando transformá-lo através da ação” (p. 66). A imersão nas situações concretas nas interações por meio dos papéis conforma as subjetividades. As condições concretas marcadas pela escassez e por vulnerabilidades obstaculizam a emergência da espontaneidade e criatividade, bem como marcam e atravessam o desempenho dos papéis. O papel de mãe desempenhado a partir da ausência da escola na periferia durante a pandemia sobrecarregou fortemente as mulheres pobres, seja pelo desamparo do Estado, seja pelas expectativas de cuidado contidas neste trabalho.

A escassez de políticas públicas se articula com a desvalorização dos bairros periféricos e a desqualificação das pessoas das camadas populares. Os entrevistados percebem a estigmatização sofrida por serem moradores de uma comunidade periférica, conforme relatou a entrevistada 4:

Aqui é um bairro muito carente. Assim, a gente vê que são pessoas criativas, cheias de ideias, mas muito retraídas, com muita vergonha. Eu não sei se o fato de a gente morar aqui, que os outros taxam as pessoas como bandido, ladrão, vagabunda... Então tem muitas pessoas com muitas ideias, só que fica tudo guardado porque a maioria dos jovens aqui do bairro não têm muita perspectiva. Às vezes, vai procurar um emprego na rua e pelo fato de ser o endereço daqui, dependendo do empregador, eles passam o emprego para outra pessoa.

Pode-se perceber nesta narrativa as reverberações e os efeitos subjetivos da desigualdade. Se perceber continuamente desqualificado vai retraindo as ideias, as falas, a iniciativa, causa vergonha. Esse relato nos remete ao sofrimento ético-político que nasce a partir das relações sociais em que se é tratado reiteradamente como uma pessoa sem valor ou inútil (Sawaia, 1999).

A escassez material e a experiência da pobreza, quando entendidas como processos naturais, podem obstaculizar a emancipação humana e a espontaneidade criadora. Circulam uma série de narrativas que procuram justificar acriticamente as discrepâncias e os abismos sociais, como a noção da meritocracia, por exemplo. As práticas psicodramáticas podem contribuir com um olhar de estranhamento para estas assimetrias por meio da reflexividade do método psicodramático. Neste sentido, Blatner (1997) demonstra que o processo essencial contido em uma sessão de psicodrama seria a possibilidade de reflexão sobre as cenas que se desvelam diante dos participantes, que reagem à ação com alto grau de consciência. Nessa perspectiva, Merengué (2020) propõe a descontinuidade dos fluxos conscientes e inconscientes como ferramenta de atuação política: “Se intercepto esses mesmos fluxos, parando a cena, duvidando do gesto, congelando a fala, não facilito a fluência do conservado, impositivo, opressivo” (p. 47). Ainda nesta vertente, o referencial socionômico pode ganhar capacidade crítica ao utilizar sua epistemologia para entender o contexto social mais amplo, como a questão da desigualdade social, por exemplo.

O estigma associado aos moradores de periferias e a vinculação entre pobreza e menos valia, inclusive no coinconsciente social brasileiro, são aspectos psicossociais que servem para a manutenção dos poderes hegemônicos. A dominação reveste-se de uma natureza simbólica, pois as outras classes podem se sentir superiores, se distinguindo e mantendo distância em relação às camadas populares. E é uma dominação material, pois é interessante para as classes hegemônicas que existam grupos sem perspectivas de futuro que podem ser explorados com baixos salários ou trabalhos precários (Souza, 2017). O conceito de humilhação social, de Gonçalves Filho (1998), sugere que as questões psicológicas desse sofrimento possuem uma tonalidade política que pode ser vivenciada em diversas dimensões: na corporeidade, nas relações de trabalho, no local onde se vive.

Os entrevistados narraram ainda a invisibilidade do bairro em relação aos órgãos públicos da cidade. A entrevistada 5 entende que a ausência do Estado pode ter prejudicado a adesão ao distanciamento social: “Deveria ter um apoio maior do poder público, sabe? Pra poder conscientizar mesmo a população... Saber que tem um apoio, saber que tem alguém que se importe, eu acho que pra mim seria o ideal”.

A vivência do desamparo a partir da sensação de falta de importância que o Estado confere às comunidades periféricas se conecta com a noção de invisibilidade pública, conforme aponta Gonçalves Filho (2004), sofrimento político perpassado pelo apagamento. O próprio ordenamento das cidades corrobora esse impedimento por meio da demarcação explícita dos grupos que são vistos e acessam direitos e dos que são “incluídos marginalmente na brutal desigualdade” (Svartman & Galeão-Silva, 2016, p. 340).

As medidas de isolamento social são percebidas por duas entrevistadas como sendo da ordem do privado, cada um elabora individualmente as formas de proteção. O excesso de liberdade individual se contrapõe ao caráter essencialmente relacional da noção de liberdade: “Hoje, acreditamos que não somos sujeitos submissos, mas projetos livres, que se esboçam, e se reinventam incessantemente” (Han, 2018, p. 9). O poder atual opera oferecendo uma ilusão de liberdade por meio do consumo e da rápida circulação de informações. Nesse sentido, a entrevistada 6 compartilha: “Acho que isso mudou bastante, agora é praticamente cada um por si, cada um se protegendo, de uma forma que acha que tem que proteger, né?”. Em contraste, o enfoque relacional da socionomia é político na medida em que “não se encerra no indivíduo, mas o transborda” (Merengué, 2020, p. 48) e estaria na contramão desse ideário individualista.

O negacionismo diante dos riscos da pandemia foi um tema que emergiu das entrevistas. Houve dois tipos de negacionismo: um exercido pelas classes hegemônicas, e outro vivenciado pelos sujeitos excluídos. Os entrevistados compartilharam a percepção de que o poder público do município cede à pressão dos empresários locais para retornar às atividades presenciais, contrariando as indicações de distanciamento social. Conforme observa Carreteiro (2020), há um discurso que circula em que economia e vida são antagônicas e incompatíveis: “A bandeira defendida é que a vida econômica deve ser retomada rapidamente. No entanto, a pandemia existe, ela escarra a morte, a finitude, as condições indignas de morrer e a ausência dos rituais de despedida” (p. 18).

O negacionismo e a banalização da morte foram aspectos refletidos pelos entrevistados, como relata a entrevistada 5: “Parece que nunca existiu [a pandemia]. Parece que pra eles [os moradores do bairro] é algo como se fosse uma doença qualquer, porque eles estão acostumados a perder pessoas, né. Pra eles isso é bem natural”.

A entrevistada 4 relaciona este negacionismo percebido na periferia como algo ligado à classe social, como um grupo de pessoas que possuem menos acesso à informação de qualidade:

Porque quando você é pobre você tem uma cultura diferente de uma pessoa rica. A pessoa quando ela é pobre, pensa assim: “Se eu não morri, se eu não peguei até hoje eu não vou pegar mais. Ah, usar máscara é bobeira. Eu já gripei, fulano já gripou e não deu nada”.

As pessoas excluídas podem sentir que suas vidas valem menos. Há mortes que comovem mais, há vidas que valem mais. E estas não são as de jovens negros moradores de periferias, mulheres negras, quilombolas, ribeirinhos, indígenas, etc. Essa é a mensagem reiteradamente veiculada no Brasil ao longo de sua história, desde a invasão deste território.

O governo federal, orientado a partir de uma pauta ideológica de extrema direita, defende a utilização de medicamentos sem eficácia comprovada, minimiza o enorme número de mortos e o luto, desencoraja a utilização de máscaras de proteção: “Na recusa do dever constitucional de proteção da vida, o Estado brasileiro abandona parte da população, construindo uma estratégia de genocídio” (Moreira et al., 2020, p. 8). A ausência de dados consistentes que incluam raça nos boletins epidemiológicos torna invisível o acesso desigual aos serviços de saúde mediado pelas estruturas racistas (Santos et al., 2020). Nesse sentido, Moreira et al. (2020) pontuam:

Reconhecer as vidas perdidas em que os corpos mortos são marcados por gênero, cor e classe também é um movimento importante para a compreensão das condições sociais, econômicas e políticas que possibilitam uma maior exposição à morte para algumas e alguns. (p. 13)

Nesta categoria, foram apresentadas vivências de pessoas excluídas e as consequências do neoliberalismo para as suas subjetividades. As ideologias neoliberais fomentam a individualização da experiência humana, a culpabilização dos pobres pela desigualdade, a redução do amparo oferecido pelo Estado e a banalização da morte de pessoas pobres. O saber do psicodrama pode ser uma ferramenta relevante para análises críticas da desigualdade social, desvelando seus processos injustos. No caso do presente trabalho, a epistemologia psicodramática foi utilizada como referencial analítico para se entender experiências de pessoas de comunidades periféricas no contexto da pandemia. O saber psicodramático pode contribuir para tornar mais clara a naturalização da desigualdade social brasileira. Por ser um sistema que aborda a interseção entre o individual e o coletivo e valorizar as intervenções grupais, o psicodrama pode afirmar a coletividade e a vida comunitária, servindo como contraponto ao ideário neoliberal vigente.

Enfrentamentos e resistências

Esta categoria reúne práticas e iniciativas individuais e coletivas de cuidado e enfrentamento. A exclusão social se deixa entrever: se é preciso resistir, resiste-se a algo, a uma ideia, a uma tendência, à violência. Ao cuidar de si e do outro, resiste-se ao isolamento e ao individualismo, criam-se possibilidades outras de posicionamento no mundo, pequenas insurgências nascidas no comum.

Ocupar a mente e criar uma rotina, manter encontros com poucas pessoas em ambiente doméstico, realizar atividades prazerosas como assistir séries de televisão, meditar e evitar sobrecarga de informações foram recursos citados pelos participantes que os ajudaram a se sentirem bem no contexto da pandemia da COVID-19 e do distanciamento social. As práticas de cuidado e autocuidado contribuem de maneira relevante para que sofrimentos decorrentes das situações de quarentena não se cronifiquem (Fundação Oswaldo Cruz, 2020).

Nesse sentido, a entrevistada 5 ressaltou que a conexão com outras pessoas por meios virtuais foi um aspecto significativo em momentos de ansiedade. Ela relatou que falar sobre seus sentimentos com amigos foi muito positivo. Espaços em que fosse possível falar sobre sentimentos e trocar ideias e recursos que ajudam no período de distanciamento social se mostraram possibilidades potentes de troca para as juventudes. Vale destacar a célere produção de informações e de referências para psicoterapia e acolhimento psicológico em ambiente virtual, inclusive a partir dos referenciais do psicodrama. Por outro lado, é relevante questionar em que medida esses serviços são acessíveis aos sujeitos periféricos.

Na pandemia irrompem o inédito, a imprevisibilidade, o luto, a morte. A entrevistada 5 relatou que mudanças bruscas foram disparadas em seu cotidiano e compartilhou a tentativa de “levar coisas boas pra também não ser uma experiência vazia”. Esse esforço remete aos processos espontâneos criados que podem favorecer a recuperação de si enquanto presença diante de rompimentos em que se esvaem os sentidos de existência (Naffah Neto, 1979).

Os recursos coletivos de cuidado e solidariedade foram relatados pelos entrevistados. Alguns exemplos: a produção e a distribuição de máscaras artesanais, a oferta de atividades lúdicas para crianças em meios virtuais, a contribuição mais intensa na campanha do agasalho e a construção de uma horta como iniciativa realizada no período de distanciamento social.

O entrevistado 1 constatou que “o sentimento de pertencimento na comunidade se tornou mais forte nessa pandemia, no intuito de as pessoas quererem cuidar do lugar onde elas moram, isso é muito importante”. A utilização e ocupação de pracinhas da comunidade, a criação de jardins perto de casa e de casinhas para cachorros foram algumas ações citadas.

A pertença, dessa forma, fortaleceu-se ao cuidar de onde se vive e pela participação na comunidade e no espaço público. Pode-se perceber recusas aos modos de subjetivação neoliberais que fomentam a privatização dos espaços e o descrédito do comum. Por meio da espontaneidade criadora e das aberturas de percepção que podem levar os sujeitos a transformarem a si e ao mundo, as práticas psicodramáticas podem se vincular a processos de resistência. É importante mencionar que o presente trabalho se constitui como uma análise das experiências de pessoas da periferia a partir da epistemologia psicodramática. Pode indicar caminhos para a escuta do sofrimento e das potências de sujeitos excluídos nas intervenções sociátricas. Em articulação com os contextos grupais e sociais, como experiência coletiva, elas podem favorecer a emersão de outras narrativas, que os sujeitos produzem sobre si mesmos, em contraposição a formas prescritas de existência.

A mobilização de redes de solidariedade tem perpassado a vivência da pandemia nas favelas e periferias (Lima et al., 2021). Uma das noções de comunidade discutidas por Svartman e Galeão-Silva (2016) se refere à convivência ética que pode culminar em processos nos quais a comunidade se vê radicalmente comprometida com a construção de condições democráticas em que estão envolvidas ação e reflexão na mirada de um horizonte utópico.

A espontaneidade como processo coletivo pode ser consonante com as resistências comunitárias e favorecer o encontro e fortalecimento no grupo, bem como a recusa de subjetividades homogêneas e capturadas pela sociedade de consumo. O cuidado coletivo transcende os contextos individuais e remete à noção de saúde coletiva e ampliada.

Vale salientar que não se trata de romantizar a crise sanitária e psicossocial, nem de entendê-la como oportunidade para empreender ou de desconsiderar as ausências do Estado brasileiro. É importante, no entanto, considerar reações criativas e de potências quando se analisa os processos de violência (Sawaia, 2020b). Se, por um lado, há processos que produzem vulnerabilidades, por outro lado, existem redes de solidariedade.

A partir do diálogo com a epistemologia psicodramática, percebe-se que as pessoas excluídas vivem experiências de despotencialização e de fechamento, que podem minar a espontaneidade entendida como um processo de abertura e de construção de continuidade e de sentido com o mundo (Naffah Neto, 1979). Por outro lado, as experiências coletivas de solidariedade que ocorrem em comunidades periféricas podem se contrapor ao desamparo e desprezo recebidos de parte da sociedade. A presença ativa na realidade é recuperada, podendo fazer emergir outras narrativas: “Os movimentos sociais, as minorias, os desvios criativos só podem ser possibilitados por recusas criativas em se submeter às produções subjetivas dominantes” (Vieira, 2017, pp. 65).

Nesse sentido, a entrevistada 4 destaca o Espaço Prainha, iniciativa local que procura fomentar bons encontros na comunidade e pode contribuir como contraponto à noção de desvalor vivida pelos moradores do bairro Santo Antônio. Trata-se de uma organização comunitária que oferece um espaço para realização de aulas, oficinas e atividades propostas por moradores do bairro, da cidade ou da universidade. São compartilhadas experiências diversas sobre ser morador da comunidade. De um lado, vivências marcadas pelo desvalor em relação aos demais habitantes da cidade, causando vergonha e fechamento. Por outro lado, ser da comunidade implica no engajamento e na abertura dos moradores nas atividades realizadas no espaço comunitário como via de resistência diante da estigmatização. As vivências comunitárias podem ser uma forma de enfrentamento da humilhação social por meio das trocas relacionais e sociais (Svartman & Galeão-Silva, 2016). Nas atividades clínicas ou sócio educacionais, como psicodramatistas, podemos problematizar a qualidade do acolhimento e da escuta que oferecemos, levando-se em conta os contextos de desigualdade social. A realidade da exclusão social nos leva a inquirir se possuímos referenciais teóricos consistentes que levam em conta a experiência de sujeitos marginalizados (Vieira, 2019).

Embora as pessoas das comunidades periféricas estejam em situação de vulnerabilidade, entendida como escasso acesso a políticas sociais protetivas (Romagnoli, 2015), tais grupos sociais não são marcados pela fragilidade. Pelo contrário, por meio do fortalecimento da vida comunitária e da vivência coletiva, encontram-se possibilidades de cuidado de si e do outro que mitigam os efeitos da pandemia e da desigualdade social. Com os recursos da epistemologia e da metodologia socionômica, os psicodramatistas podem contribuir para dar mais visibilidade às vivências de grupos marginalizados, desvelando o descompromisso histórico do Estado e de parte da sociedade com a desigualdade social brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A produção das subjetividades brasileiras se dá em uma base material e social que concentra o poder na mão da elite dominante. As condições de vida das classes subalternizadas aparecem de forma muito escassa nas teorias psicológicas. A crise provocada pela pandemia da COVID-19 revela as condições precárias nas quais a maioria da população brasileira vive e, ao mesmo tempo, aprofunda as exclusões já existentes. Os depoimentos de jovens moradores de comunidades periféricas analisados nesta pesquisa podem revelar questões estruturais da nossa sociedade, como o neoliberalismo que individualiza e privatiza as experiências. A complexidade da crise que é sanitária, econômica, política e social atinge de maneira diferente os grupos vulneráveis.

D’Andrea (2020) destaca a potência de uma epistemologia periférica, em que as pessoas que compartilham subjetividades periféricas produzem conhecimento sobre si. Esta é uma limitação deste estudo, já que os autores que realizaram interlocuções com os jovens entrevistados não são moradores de periferias. Vale salientar que o fato de uma das autoras conhecer de antemão três entrevistados pode ter condicionado essas entrevistas, configurando-se como outra limitação deste estudo.

Esperamos que a presente pesquisa possa estimular a comunidade psicodramática e os cientistas periféricos a produzirem teorizações e métodos que sejam capazes de lançar luz à relação entre subjetividade e desigualdade social.

AGRADECIMENTOS

Não aplicável.

  • DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA
    Os dados estarão disponíveis mediante pedido.
  • FINANCIAMENTO
    Não aplicável.

REFERÊNCIAS

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Editado por

  • Editora de seção: Luzia Lima-Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2021
  • Aceito
    18 Dez 2021
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