RESUMO
Este trabalho buscou pesquisar as relações de um grupo de jovens moradores de regiões periféricas de uma cidade do interior de Minas Gerais com os espaços de casa e da cidade, por meio dos significados e das experiências vivenciadas nesses locais, em interlocução com o referencial teórico do psicodrama. As metodologias utilizadas foram: relato de experiência de um sociodrama realizado antes da pandemia de Covid-19 e, posteriormente, entrevistas semiestruturadas analisadas por meio da teoria fundamentada nos dados. A ocupação dos espaços comunitários de forma criativa, a extensão das relações solidárias no bairro, a praça como espaço da diversidade e também de repressão foram resultados encontrados. O psicodrama pode contribuir como ferramenta significativa para análise dos contextos sociais e espaciais em interlocução com os processos subjetivos de forma crítica, reafirmando seu compromisso social e o direito à cidade.
PALAVRAS-CHAVE
Psicodrama; Periferia; Cidades; Exclusão social
ABSTRACT
This work aimed to investigate the relationships of a group of young people living in suburb regions of a city in the interior of Minas Gerais with social places, based on the meanings and experiences in the home and city environments, in dialogue with the theoretical framework of psychodrama. The methodologies used were experience report of a sociodrama performed before the COVID-19 pandemic and, subsequently, semi-structured interviews analyzed by grounded theory methodology. The occupation of community places in a creative way, the extension of solidarity relationships in the neighborhood, the square as a space of diversity and also of repression were the research findings. Psychodrama can contribute as a significant tool for the analysis of social and spatial contexts in dialogue with subjective processes in a critical way, reaffirming its social commitment and the right to the city.
KEYWORDS
Psychodrama; Suburb; Cities; Social exclusion
RESUMEN
Este trabajo buscó investigar las relaciones de un grupo de jóvenes que viven en regiones periféricas de una ciudad del interior de Minas Gerais con los espacios del hogar y de la ciudad, a partir de los significados y experiencias en esos ambientes, en diálogo con el referencial teórico del Psicodrama. Las metodologías utilizadas fueron: relato de experiencia de un sociodrama realizado antes de la pandemia de la Covid-19 y, posteriormente, entrevistas semiestructuradas analizadas mediante Teoría Fundamentada en los Datos. La ocupación de los espacios comunitarios de forma creativa, la ampliación de las relaciones solidarias en lo barrio, la plaza como espacio de diversidad y también de represión fueron los resultados encontrados. El psicodrama puede contribuir como una herramienta significativa para el análisis de los contextos sociales y espaciales en diálogo con los procesos subjetivos de una manera crítica, reafirmando su compromiso social y el derecho a la ciudad.
PALABRAS CLAVE
Psicodrama; Periferia; Ciudades; Exclusión social
Introdução
As maneiras como se ocupam os espaços da cidade, suas significações e usos, assim como impedimentos de acesso aos recursos existentes, podem indicar tanto mecanismos estruturais de opressão e repressão quanto processos coletivos de resistência permeados pela espontaneidade criadora. Considerar a dimensão do espaço como produtora de subjetividades possibilita a construção de análises mais complexas dos contextos sociais pelo campo da psicologia, enquanto a invisibilização dessa relação serviria somente à manutenção das desigualdades vividas (Nogueira, 2009Nogueira, M. L. M. (2009). Subjetividade e materialidade: cidade, espaço e trabalho. Fractal: Revista de Psicologia, 21(1), 69–85. https://doi.org/10.1590/S1984-02922009000100006
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). A dimensão espacial não se reduz a uma membrana sobre a qual se caminha e se vivenciam as experiências; é produzida pelas relações que se dão nela e com ela e produtora dos sujeitos, em influência mútua: “Podemos olhar a cidade aprendendo a ler em seu desenho, nas formas de nossos modos de vida, concretas-materiais, a lógica social que as engendra” (Nogueira, 2009Nogueira, M. L. M. (2009). Subjetividade e materialidade: cidade, espaço e trabalho. Fractal: Revista de Psicologia, 21(1), 69–85. https://doi.org/10.1590/S1984-02922009000100006
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, p.74).
As restrições decorrentes da pandemia de Covid-19 impactaram diretamente a convivência nos os espaços públicos e privados, a sua utilização e as maneiras de se relacionar com eles e neles. No entanto as condições para a prática do isolamento social e para a proteção foram marcadas pela desigualdade, intensificando exclusões que já eram vivenciadas por populações vulnerabilizadas. O criador da socionomia, Jacob Levy Moreno, ressaltou o esforço do psicodrama em integrar todas as dimensões vividas pelos sujeitos, sem negligenciar o espaço (Moreno, 1966Moreno, J. L. (1966). Psiquiatria do século XX: função dos universais: tempo, espaço, realidade e cosmos. Cepa.). Este trabalho desenvolveu-se com base no pressuposto de que há escassez de material teórico que analisa a questão da desigualdade social e das tensões vividas no espaço da cidade pelo referencial socionômico, apesar de se considerar que Moreno trabalhou exaustivamente com grupos de pessoas marginalizadas, inclusive em seus territórios e localidades onde viviam.
A partir dos conceitos do psicodrama, buscou-se investigar os usos e sentidos atribuídos aos espaços de casa e da cidade, também com os impactos da pandemia, por um grupo de jovens moradores de regiões periféricas de uma cidade do interior de Minas Gerais. As suas expressões e percepções foram mapeadas por meio de um sociodrama e de entrevistas. Espera-se contribuir para a interlocução do campo da socionomia com os processos de exclusão social, fortalecer o seu compromisso social e evidenciar tensões relativas à efetivação do direito à cidade, consideradas também com base nos atravessamentos de classe social, gênero e raça.
DESENVOLVIMENTO
Metodologia
Este trabalho adotou o referencial epistemológico das pesquisas qualitativas em ciências humanas e sociais, que busca a compreensão dos significados que sujeitos e grupos sociais constroem sobre as suas experiências, levando-se em consideração o contexto em que foram vivenciadas (Goldenberg, 2004Goldenberg, M. (2004). A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais (8ª ed.). Record.).
Os resultados encontrados resultam de dois momentos distintos de coleta de informações. O primeiro refere-se ao relato de experiência de um sociodrama realizado em 2019 com a presença de 15 jovens incluídos em um programa de formação profissional cujo foco era conhecer as experiências em relação ao espaço na cidade pesquisada e ampliar o diálogo acerca delas. No segundo momento, após o início da pandemia de Covid-19, em 2020, ocorreram sete entrevistas semiestruturadas com alguns desses jovens – e outros indicados por eles – com o intuito de investigar os significados tecidos sobre a vivência nos espaços da cidade, tanto comunitários como domésticos, nesse contexto. A seguir, encontram-se as descrições de cada etapa da pesquisa.
Sociodrama
O programa de formação profissional vinculado a um órgão público da cidade pesquisada prevê atividades educativas com o objetivo de contribuir com processos de inclusão de jovens em situação de vulnerabilidade social. Uma das autoras executou um projeto com um grupo de jovens que moram em bairros periféricos, que contou com rodas de conversa, oficinas e sociodramas, denominado de Projeto Raízes. A participação foi facultativa, tendo os jovens contribuído com a escolha das temáticas trabalhadas: que cidade queremos, oficina de construção poética no rap, derivas urbanas, racismo e resistências.
O primeiro encontro desse projeto aconteceu na sede do programa de formação profissional e contou com a realização de um sociodrama para conhecer as relações dos jovens com a cidade e com os espaços de lazer e, especialmente, o que o grupo gostaria de transformar. Os aquecimentos foram construídos com base nas orientações de Yozo (1995)Yozo, R. Y. K. (1995). 100 jogos para grupos: uma abordagem psicodramática para empresas, escolas e clínicas. Ágora. sobre jogos dramáticos, seguidos pela dramatização e pelo compartilhamento.
Entrevistas
Entre setembro e novembro de 2020 foram realizadas sete entrevistas semiestruturadas. Como participantes da pesquisa, buscaram-se sujeitos tendo em vista dois critérios: a disponibilidade de relatar sobre a vivência da pandemia na casa, na comunidade e na cidade; e ser morador de um bairro periférico, considerado como tal conforme exclusões urbanas e socioeconômicas (D’Andrea, 2020D’Andrea, T. (2020). Contribuições para a definição dos conceitos periferia e sujeitas e sujeitos periféricos. Novos Estudos – CEBRAP, 39(1), 19–36. https://doi.org/10.25091/s01013300202000010005
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). Uma das pesquisadoras conhecia três participantes do programa de formação profissional, e estes indicaram os outros entrevistados. Entre as vantagens metodológicas da entrevista semiestruturada, está a possibilidade de exploração detalhada de aspectos da vida sobre os quais os entrevistados tenham experiências significativas combinadas com insights significativos durante o processo. Representa uma técnica flexível que permite ao entrevistador seguir orientações de tópicos e ideias emergentes (Charmaz, 2009Charmaz, K. (2009). A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Artmed.).
Os participantes foram inicialmente contatados por aplicativo de mensagens e autorizaram uma chamada telefônica para explicação dos objetivos da pesquisa. Foi elucidado que poderiam se negar a participar ou desistir da entrevista a qualquer momento. Após aprovação e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, as entrevistas foram agendadas e sua gravação foi autorizada, por meio da plataforma virtual Zoom. Uma vez que não foi possível fazer a chamada de vídeo com as duas últimas participantes, essas entrevistas deram-se somente por meio de ligação telefônica sem imagens. Após o entendimento de que a pergunta de pesquisa havia sido respondida, não se buscaram novos sujeitos.
Este manuscrito é parte integrante do projeto de pesquisa da Universidade Federal de Jataí intitulado Aspectos psicossociais da desigualdade social e a dimensão subjetiva da subcidadania: possibilidades de análises do psicodrama, coordenado por um dos autores. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás, sob o Certificado de Apresentação de Apreciação Ética número 33548120.0.0000.8155.
Seguem na Tabela 1 algumas informações relativas ao perfil dos entrevistados, identificados com nomes fictícios como forma de garantir seu sigilo.
Os participantes responderam a questões relacionadas às suas experiências durante a pandemia em casa e nos ambientes públicos. Os princípios da teoria fundamentada nos dados foram adotados como estratégia metodológica. Nesse método de investigação, os dados são coletados e analisados com o objetivo de construir novos conceitos com base neles, evitando-se a adoção de hipóteses preconcebidas (Charmaz, 2009Charmaz, K. (2009). A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Artmed.).
Não se ater aos estudos clássicos nem aos conceitos teóricos estabelecidos permite o engajamento do pesquisador no processo de perceber a realidade haja vista novas perspectivas, evitando a mera reprodução de saberes já consagrados. A teoria fundamentada nos dados propõe, como diretriz metodológica, o agnosticismo teórico, ou seja, o reconhecimento de que a equipe de pesquisa entra em contato com o campo de investigação influenciada por conhecimentos disciplinares já existentes, mas lidando com essas bases sem apego excessivo. Representa a busca em perceber a realidade por novos olhares, novos ângulos ainda não mapeados (Charmaz, 2009Charmaz, K. (2009). A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Artmed.).
Para a investigação presente, a equipe de pesquisa pretendia compreender como pessoas que moram em regiões periféricas vivenciaram os espaços público e privado na pandemia. De que maneira o pertencimento de classe poderia afetar essas vivências e imprimir especificidades? Ao mesmo tempo, cultivamos uma abertura para receber relatos de outras vivências para além dessa pergunta inicial.
As entrevistas foram transcritas integralmente em editor de texto e codificadas. A cada informação, foi atribuído um código: palavras ou pequenas frases que buscavam resumir e representar as experiências que estavam sendo compartilhadas. Em uma primeira aproximação do material, a codificação inicial foi utilizada como uma primeira tentativa de nomear ou criar um nome ou pequena frase que representasse analiticamente os segmentos de dados, isto é, os trechos das entrevistas. Mediante a codificação, pretendeu-se promover insights teóricos sobre a realidade estudada (Charmaz, 2009Charmaz, K. (2009). A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Artmed.).
Com o refinamento da análise, a codificação focalizada foi utilizada buscando revisar os códigos iniciais que eram mais abertos, gerando códigos mais focados e aprimorados. Os autores também anotaram memorandos de temas que perceberam subjacentes aos depoimentos. Do processo analítico, emergiu uma categoria mais ampla representando os resultados da pesquisa: “espaço e subjetividade – pandemia na periferia”. Essa categoria contempla experiências trazidas pelos entrevistados das relações com os e nos espaços públicos e privados e temáticas que emergiram delas, como as ocupações dos espaços comunitários, acesso e produção de cuidado e os impactos nas relações familiares.
A seguir, são apresentados e discutidos os resultados tanto das entrevistas como do sociodrama.
RESULTADOS
Sociodrama: relato de experiência
Foi proposto um aquecimento inespecífico com movimentação corporal por meio de alongamentos e de circulação na sala, e incentivou-se a percepção do ambiente para trazer a atenção ao momento presente. Para iniciar a interação entre o grupo, foram sugeridos cumprimentos divertidos entre os participantes. O aquecimento específico abordou a temática da cidade e buscou trabalhar o vínculo grupal da seguinte maneira: cada jovem compartilhou um aspecto que considerava positivo e outro negativo da localidade em que vive. A demanda por direitos e a vivência cultural por meio do rap foram os dois âmbitos mais relatados pelos jovens, que se dividiram sociometricamente em dois grupos. Foi fornecido material (cartolina e canetas) para que construíssem um mapa da cidade com base na temática escolhida e dessem um nome para a faceta da cidade ali representada.
O primeiro grupo, unido pela reivindicação de direitos, escolheu o irônico nome de Maryork para sua cidade ilustrada, em referência à pretensão do município de ser turístico, como Nova York, Estados Unidos, sem oferecer qualidade de vida nem acesso a direitos a seus moradores. No mapa (Fig. 1), desenharam equipamentos e serviços públicos, como ônibus, museu, hospital, escola e o chafariz da praça. Escreveram as suas reivindicações: mais esportes, dedicação, união, coletividade, cultura, segurança, educação, respeito, livros, água e valorização da cultura. Denunciaram a violência, o desrespeito e a ignorância, que também atravessam suas experiências na cidade.
O segundo grupo nomeou seu mapa como Raizlândia, em alusão ao nome do Projeto Raízes, representando a importância do rap para seus participantes. No mapa construído (Fig. 2), retrataram a batalha de rap que acontece na praça central e alguns elementos da cidade pesquisada, como o trem de ferro e o centro de referência da juventude. Algumas das palavras que escolheram foram: resistência, força, expressão, cultura. Foram borrados na imagem os nomes dos participantes para preservar o seu sigilo.
Posteriormente, foi solicitado que cada grupo, após apresentar a cidade por suas perspectivas, trouxesse o mapa para a terceira dimensão e construísse uma cena que o representasse. O grupo Maryork – Direitos elaborou uma sequência de três situações em que os direitos não eram atendidos e as pessoas não foram escutadas: em uma sala de aula repleta de alunos desinteressados, o professor tenta proferir a aula; num ônibus lotado, os passageiros são chacoalhados; e uma mulher machuca-se e depara com a indiferença do recepcionista do posto de saúde para o qual é levada. A plateia foi estimulada a emitir solilóquios e as palavras mais marcantes foram “indiferença” e “desrespeito”.
O grupo Raizlândia – Cultura, por sua vez, construiu uma cena em que os jovens estão aproveitando a batalha de rap que costumam frequentar na praça central da cidade. O clima de descontração é abruptamente interrompido por policiais que os abordam violentamente. São submetidos a uma batida policial, com mãos na parede, sob gritos. A cena foi pausada: o participante que estava no papel de policial relatou incômodo, e os participantes que estavam na praça demonstraram indignação.
Em seguida, houve o compartilhamento, em que os participantes trocaram sobre essas sensações. A cena é frequente, relataram, além de apontar o teor racista dessas intervenções, que ocorrem sobretudo com os jovens negros que estão na praça, numa tentativa de criminalizar sua presença no local.
Entrevistas: espaço e subjetividade – pandemia na periferia
Na categoria que emergiu das entrevistas se entrelaçam as lógicas sociais e espaciais por meio das relações que têm se dado nos e com os espaços públicos e privados durante a pandemia. Essas relações atravessam as subjetividades, acionando ou bloqueando maneiras de experimentar, de perceber e de se posicionar. A experiência na periferia é o ponto de partida em comum, revelando fronteiras ora mais rígidas, ora mais fluidas entre espaços comunitários e domésticos, periféricos e centrais.
O bairro de moradia foi apresentado enquanto comunidade, lugar de solidariedade e também de medo da contaminação pelo coronavírus. Se a fronteira entre a periferia e a região central da cidade foi mais demarcada na fala dos participantes, no bairro de moradia a diferenciação entre a casa e o espaço público foi trazida de forma mais fluida, no sentido de que esses dois âmbitos podem não se diferenciar. Daniela refere-se à comunidade como família, em que há ajuda mútua e contato. Carlos observa:
Acho que o lar, quando você faz parte de uma periferia, subentende-se o lugar que você mora como um todo. Como esse bairro, como essa vila, enfim, essa favela, esse lugar que você vive. Então, estar em casa na periferia é muito diferente de você estar em casa na sua habitação. Casa, pra quem mora na periferia, é a comunidade.
Essas fronteiras relativas, por outro lado, podem implicar a percepção de que na comunidade, experienciada como casa-comunidade, não é necessário se proteger da pandemia, com o uso de máscara e álcool gel. Carlos observou que, para ir ao centro da cidade, os moradores geralmente aderem a esses cuidados. A casa onde se habita e se pode ficar à vontade é algo mais ampliado para as pessoas da periferia, de acordo com as pessoas entrevistadas. Os laços de intimidade e de pertencimento são tecidos para além do restrito espaço doméstico. Tal aspecto, que implica uma postura relaxada e livre de tensões por estar na própria habitação, pode elucidar a não utilização das medidas protetivas no espaço da comunidade. Por outro lado, pode também significar certo negacionismo e banalização da morte.
A vulnerabilidade dos moradores de comunidades periféricas insere essas pessoas em circuitos de morte que não são experimentados por outras classes sociais. Ou seja, pode-se morrer mais facilmente, seja pela ação de operações policiais, seja pelo parco acesso aos serviços de saúde e condições de vida precárias que vulnerabilizam. Além disso, temos um histórico de humilhações sociais que colocam as pessoas marginalizadas como ligadas a uma subcidadania, desprovidas de dignidade (Souza, 2021Souza, J. (2021). Como o racismo criou o Brasil. Estação Brasil.). As pessoas de comunidades periféricas podem perceber suas vidas como descartáveis ao interiorizar essas mensagens de menos-valia emitidas por parte da sociedade.
Em relação aos espaços públicos por onde se transita, Carlos percebeu novas e criativas ocupações para gerar renda nas ruas e praças. Observou que, mesmo antes da pandemia, “isso não acontecia, a comunidade ocupar as praças, porque não existiam muitos espaços a serem ocupados. Esses espaços começaram a existir na comunidade”.
A praça central, palco de uma das cenas do sociodrama, foi citada por cinco participantes como o local mais relevante de sociabilidade. Para Carlos, esse é o lugar democrático, dos encontros, que acolhe as juventudes em suas diversidades.
Nas entrevistas, as percepções sobre adesão ao distanciamento social nas comunidades não foram homogêneas. A equipe de pesquisa tinha como pressuposto a ideia de que haveria adesão maciça dos participantes ao distanciamento social, no entanto nas entrevistas foi possível perceber que três dos sete jovens mantinham os encontros presenciais e permaneciam frequentando os espaços públicos, como as praças da cidade. Tornou-se evidente um viés de classe social na medida em que a equipe de pesquisa era composta de pessoas de classe média, enquanto os entrevistados eram da classe popular. O privilégio da classe média de poder estudar e trabalhar em casa de forma remota não foi percebido entre as pessoas das classes populares que continuaram com seus trabalhos presenciais. Foi necessária, então, a reformulação de uma questão da entrevista que pressupunha que os jovens estavam afastados dos encontros presenciais e dos espaços públicos.
Em relação ao espaço da casa, a pandemia modificou as experiências para cinco entrevistados. Interrupção das aulas presenciais e do curso técnico, realização de compras apenas uma vez por semana, dificuldade de organização do tempo para serviços domésticos e aulas online, não poder mais levar as crianças para brincarem no campinho, sair apenas em situações de urgência foram alterações citadas. Ficar tanto tempo nesse ambiente evocou estranhamento, sensação de estar aprisionado, ócio e preocupações. Para Daniela e Patrícia, manter as crianças em casa foi um desafio, principalmente em relação à falta de espaço para brincar. Oferecer acesso a atividades recreativas na internet ou visitar outras moradias mais amplas foram recursos encontrados. No âmbito familiar, houve maior convivência, o que se apresentou como possibilidade – até então inédita nas temporalidades aceleradas do dia a dia – e também como desafio para Robson. Foi compartilhada a experiência de distribuição das atividades de cuidado da casa baseada na solidariedade por Carlos e Robson, de acordo com as possibilidades de cada um, sem sobrecarregar ninguém. Patrícia, no entanto, pontuou a sobrecarga experimentada no cuidado dos filhos.
Dessa maneira, o distanciamento social deflagrou modificações nas relações em casa, na comunidade e na cidade. Há jovens que se afastaram da convivência coletiva por conta das medidas sanitárias e outros que não, porém estes sentiram medo nos encontros. Os espaços comunitários foram ocupados de novas formas criativas e vivenciados como casa-comunidade na periferia para os entrevistados, o que, por um lado, representou a possibilidade de um lugar de acolhimento e, por outro, trouxe medo na pandemia. A praça central da cidade é um local protagônico para o grupo, que revelou também tensões entre uma ocupação elitizada e outra popular. As novas formas criativas de ocupação do espaço foram tecidas por meio do fortalecimento da comunidade. Laços de solidariedade e cuidados coletivos foram criados, como a fabricação e distribuição de máscaras artesanais, a construção de uma horta e de jardins comunitários e de casinhas para cachorros. As pessoas entrevistadas relataram que o senso de pertencimento à comunidade se fortaleceu, talvez pela compensação diante da negligência do Estado e de parte da sociedade com a periferia, desvios criativos coletivos de recusa ao ordenamento neoliberal individualizante e desagregador.
DISCUSSÃO
No sociodrama realizado a ocupação de uma praça localizada na porção central da cidade foi abordada de forma ambivalente. Citada e encenada enquanto lugar de subversão e de liberdade, também apareceu como espaço de repressão. O compartilhar contou com a mobilização do grupo em relação à última cena, por se tratar de uma situação recorrente: a polícia intervém em apenas uma parte do espaço, ocupada pela batalha de rap e por esses jovens, geralmente moradores de periferias. Os participantes negros apontaram o racismo estrutural, bem como diversas violências que já viveram nesse local. Coração e Carneiro (2018)Coração, C. R.; Carneiro, F. D. B. (2018). De quem é a praça Gomes Freire?: as disputas simbólicas no espaço jardim e as representações da imprensa de Mariana-MG. Logos, 25(1), 70–85. https://doi.org/10.12957/logos.2018.35877
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evidenciam as disputas que ocorrem nessa praça, com demarcações simbólicas e tensões entre uma ocupação elitizada e nichos populares.
As intervenções policiais hostis em relação aos jovens que estão na praça simplesmente expressando-se e relacionando-se representam episódios em que se manifestam aspectos históricos e sociais brasileiros. A escravidão dos povos africanos é a instituição brasileira mais duradora, produzindo efeitos atuais; a dicotomia entre casa-grande e senzala ainda permanece influenciando os padrões de sociabilidade no país. Existem espaços na cidade reservados à elite e à classe média branca e que não podem ser ocupados pelas camadas populares. Há também distinção moral entre os grupos que teriam maior valor e os grupos menos valorizados, ou até mesmo considerados “menos humanos”. Os pobres e negros seriam pertencentes a este último grupo (Brum, 2019Brum, E. (2019). Brasil: construtor de ruínas. Um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro. Arquipélago Editorial.; Souza, 2021Souza, J. (2021). Como o racismo criou o Brasil. Estação Brasil.).
Os poderes vigentes no Brasil pretendem manter a desigualdade social e racial como forma de permanência dos ganhos materiais da elite e dos privilégios da classe média e da branquitude. Ou seja, a relação entre classes no Brasil é marcada pelo cultivo do desprezo às classes populares, que podem continuar a ser exploradas e servir de escoadouro do ódio das demais classes, que se sentem superiores moralmente (Souza, 2021Souza, J. (2021). Como o racismo criou o Brasil. Estação Brasil.). O espaço comunitário, seja ele vivido em um sociodrama, seja vivido nos encontros entre os jovens na praça, pode representar possibilidades de questionamento dessas valorações morais que permeiam o cotidiano brasileiro. Os jovens podem se descolar desse imaginário desqualificador que perpetua a desigualdade.
Moreno (2008, p. 143)Moreno, J. L. (2008). Quem sobreviverá?: fundamentos da sociometria, da psicoterapia de grupo e do sociodrama. Daimon. discute a ideia de “espontaneidade produtiva popular”, pretendendo nomear as forças revolucionárias de um grupo que impelem a mudanças que desafiam a ordem vigente. As forças espontâneas e criativas da comunidade podem produzir outras formas de sensibilidade que escapem aos olhares de desprezo provenientes dos preconceitos racistas e classistas. Podem-se também perceber esses afetos de desprezo como forças sociométricas de repulsa dirigidas aos grupos populares. Moreno (2020, p. 53)Moreno, J. L. (2020). Sociometria: método experimental e a ciência da sociedade. Febrap. argumenta que “o grau de invisibilidade da estrutura da sociedade humana, de sua sociodinâmica, é muito maior que o indivíduo único”. Os preconceitos escravocratas brasileiros seriam correntes afetivas de repulsa em relação aos pobres e negros, atualizados pela branquitude e pelas elites, que impedem o acesso dos grupos excluídos a condições de cidadania, de serem tratados pelo Estado e por parte da sociedade como dignos de reconhecimento.
Naffah Neto (1997)Naffah Neto, A. (1997). Psicodrama: descolonizando o imaginário (2ª ed.). Plexus. problematiza o ofuscamento das condições materiais e históricas e sua relação com o sofrimento na obra de Moreno. O autor propõe a noção de papéis históricos, atravessados pelas relações de dominação/resistência amplas e estruturantes. Os papéis sociais consistem em expressões microssociais ou manifestações instituídas nas relações interpessoais que refletem, em um contexto reduzido, os processos históricos e as forças mantenedoras das contradições vigentes. Ou seja, os papéis históricos marcam as relações de oposição entre dominador/dominado ou opressor/oprimido, refletindo as contradições estruturais de uma sociedade dividida em classes sociais, dinâmica que se repete nos papéis sociais. (Naffah Neto, 1997Naffah Neto, A. (1997). Psicodrama: descolonizando o imaginário (2ª ed.). Plexus.).
Apostamos que o psicodrama, como um saber psicossociológico, pode trazer contribuições para o desvelamento dos processos de exclusão social. Pretende-se sondar a socionomia como um campo de análises e ações diante de um dos maiores problemas brasileiros, entre eles a imensa desigualdade social. O nosso olhar que elege a desigualdade social como uma das grandes feridas brasileiras é acompanhado por autoras(es) como Bock (2016)Bock, A. M. B. (2016). Psicologia e desigualdade social. Revista Psicologia, Diversidade e Saúde, 5(2), 255–262. https://doi.org/10.17267/2317-3394rpds.v5i2.1112
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, Safatle (2020)Safatle, V. (2020). Bem-vindo ao estado suicidário. Edições N-1. e Souza (2021)Souza, J. (2021). Como o racismo criou o Brasil. Estação Brasil.. Ao resgatar o conceito de papéis históricos, torna-se mais evidente para o psicodramatista a dinâmica das classes sociais que produz pessoas exploradas, por um lado, e privilegiadas, por outro. As transformações da sociedade, sempre em processo e nunca como algo acabado, se dariam de maneira semelhante ao que acontece no processo psicodramático. Pelo deslocamento de percepções, o protagonista, representante do drama coletivo, questiona os papéis, os palcos e os enredos desempenhados (Naffah Neto, 1997Naffah Neto, A. (1997). Psicodrama: descolonizando o imaginário (2ª ed.). Plexus.).
Uma das cenas do sociodrama trouxe à tona a sensação de desrespeito e indiferença nos contextos públicos de educação, transporte e saúde. Em ambas as dramatizações surgiram demandas a partir de processos excludentes: seja para a efetivação de direitos, para serem escutados, ou para poderem usufruir o espaço público. As cenas em que se manifesta o não ser ouvido podem representar as humilhações sociais vividas cotidianamente pelas pessoas excluídas. Representam um sofrimento diante da não autorização da palavra, de não poder ter voz nos espaços sociais, o que pode gerar a sensação de falta de poder sobre a própria vida (Delfin et al., 2017Delfin, L., Almeida, L. A. M. de & Imbrizi, J. M. (2017). A rua como palco: arte e (in)visibilidade social. Psicologia & Sociedade, 29(1), 1–10. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2017v29158583
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). As humilhações sociais podem deteriorar paulatinamente as possibilidades de uma participação ativa, atuante e transformadora da sociedade contida no conceito de espontaneidade (Naffah Neto, 1997Naffah Neto, A. (1997). Psicodrama: descolonizando o imaginário (2ª ed.). Plexus.).
Nas entrevistas, por sua vez, o centro da cidade figurou como um local em que é preciso se proteger, com o bairro sendo vivenciado como casa-comunidade. A extensão da dimensão privada e o cultivo de relações solidárias são refúgios que se fortalecem diante dos possíveis traçados excludentes da cidade? Uma noção de comunidade apresentada por Svartman e Galeão-Silva (2016)Svartman, B. P. & Galeão-Silva, L. G. (2016). Comunidade e resistência à humilhação social: desafios para a psicologia social comunitária. Revista Colombiana de Psicología, 25(2), 331–349. https://doi.org/10.15446/rcp.v25n2.51980
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se relaciona aos bons encontros, aos vínculos estabelecidos que levam em conta a alteridade e a não instrumentalização das relações.
A ideia da casa-comunidade trazida pelos jovens pode representar um antídoto comunitário em relação à versão atual do capitalismo: o neoliberalismo. As ideologias neoliberais colonizam as subjetividades e direcionam as políticas de Estado. Destacam os desempenhos individuais, ofuscando as condições estruturais de classe, raça, gênero... Com esse progressivo abandono do Estado, como contraponto, as pessoas das comunidades precisam fortalecer os laços sociais solidários. Talvez a ideia de casa-comunidade passe pela criação de uma rede de proteção em um mundo produtor de desamparo. Fortalecer os laços comunitários pode ser uma importante contribuição da socionomia, com seus conceitos e práticas psicossociais.
Pereira e Diogo (2009)Pereira, E. & Diogo, N M. F. (2009). Interfaces entre psicologia social comunitária e psicodrama. Psicologia: Teoria e Prática, 11(2), 145–160. Recuperado em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-36872009000200011&lng=pt&tlng=pt
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elencam possibilidades de troca entre o psicodrama e a psicologia social comunitária conforme afinidades teóricas e metodológicas e a centralidade do compromisso social para os dois campos. O trabalho em contextos coletivos e com processos grupais, pressupostos característicos do psicodrama, parece amortecido por uma tendência à individualização, segundo as autoras. A socionomia, no entanto, pode contribuir de forma potente em contextos comunitários. O diálogo com a dimensão do espaço, no próprio processo de construção do cenário em uma cena, “transforma, então, o drama em investigação, desencadeando uma ação conscientizadora, uma prática reflexiva” (Pereira & Diogo, 2009Pereira, E. & Diogo, N M. F. (2009). Interfaces entre psicologia social comunitária e psicodrama. Psicologia: Teoria e Prática, 11(2), 145–160. Recuperado em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-36872009000200011&lng=pt&tlng=pt
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, p. 157).
A cidade pode ser compreendida como palco em que não apenas se desenrolam os enredos dos grupos, mas em que se oferece e se reflete as condições ou os impedimentos para os movimentos conservadores e espontâneos. Revela sobre as relações sociais em seus traçados, no que está evidente e no que está velado, processos que atravessam as subjetividades (Nogueira, 2009Nogueira, M. L. M. (2009). Subjetividade e materialidade: cidade, espaço e trabalho. Fractal: Revista de Psicologia, 21(1), 69–85. https://doi.org/10.1590/S1984-02922009000100006
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). Questionar como os grupos e sujeitos (não) circulam, onde e por que contribui com a desnaturalização das desigualdades na experiência da cidade. Evidencia também os desafios para a construção e efetivação do direito à cidade: acesso pleno aos recursos existentes por todas as populações e garantia da vivência democrática nos espaços públicos, relacionados à pluralidade dos cidadãos que a habitam (Fórum Social Mundial Policêntrico, 2006Fórum Social Mundial Policêntrico (2006). Carta Mundial pelo Direito à Cidade. Fórum Social Mundial Policêntrico.).
Nesse sentido, tanto as informações e histórias compartilhadas pelos entrevistados quanto as cenas dramatizadas no sociodrama trouxeram à tona dinâmicas de exclusão e de resistências nos espaços da cidade vividas pelos participantes. A cena da batalha de rap, por exemplo, mostra a presença e ocupação dos jovens na praça central e a cidade como local da festa e dos bons encontros, que possibilita a realização da autonomia e da liberdade coletiva – outra faceta possível do direito à cidade (Tavolari, 2016Tavolari, B. (2016). Direito à cidade: uma trajetória conceitual. Novos Estudos – CEBRAP, 35(1), 93–109. https://doi.org/10.25091/S0101-3300201600010005
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). A abordagem policial, por outro lado, representa uma tentativa de regulação e moralização das expressões possíveis na dimensão pública por meio da repressão institucionalizada.
Os espaços comunitários que começam a existir conforme as presenças e as relações que neles/com eles se desenrolam, como trouxe um dos entrevistados, podem se contrapor à privatização do espaço e ao descrédito do comum, facetas neoliberais que se manifestam nos centros urbanos. O psicodrama público é um recurso que pode propor diálogos, investigar essas relações e colaborar com processos de transformação na medida em que “permite ao cidadão questionar-se a respeito dessa forma de homem produzida e, assim, outro cidadão se torna possível” (Greeb, 2014Greeb, M. (2014). Socioterapia porque ninguém fica louco sozinho. In M. P. F. Wechsler & R. F. Monteiro (Eds.), Psicodrama em espaços públicos: práticas e reflexões (pp. 7–9). Ágora., p. 8).
No que se refere às recusas aos ideais neoliberais individualistas e competitivos, na cena do grupo Maryork, no sociodrama, os participantes reconheceram-se como portadores de direitos e suas vozes ecoaram como protagônicas, porque enunciavam demandas coletivas (Naffah Neto, 1997Naffah Neto, A. (1997). Psicodrama: descolonizando o imaginário (2ª ed.). Plexus.). As relações comunitárias podem fomentar processos espontâneos de reflexões acerca de si e das forças mantenedoras das ordens vigentes, por meio do corpo em ação (Vieira, 2017Vieira, É. D. (2017). O psicodrama e a pós-modernidade: espontaneidade como via de resistência aos poderes vigentes. Revista Brasileira de Psicodrama, 25(1), 59–67. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20170007
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).
O acirramento das desigualdades de gênero também foi um aspecto evidenciado nas entrevistas, fosse pela dificuldade de manter as crianças em casa, fosse pelo desgaste relacionado à sobrecarga das mães no que tangia ao cuidado dos filhos. Moreira et al. (2020)Moreira, L. E., Alves, J. S., Oliveira, R. G. de & Natividade, C. (2020). Mulheres em tempos de pandemia: um ensaio teórico-político sobre a casa e a guerra. Psicologia & Sociedade, 32(e020014), 1–19. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2020v32240246
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analisam uma série de assimetrias na experiência das mulheres durante a pandemia, que também ocuparam grande parte dos postos de serviços considerados essenciais na área da saúde, intensificando a vulnerabilidade à contaminação pelo coronavírus. As autoras discutem, ainda, como ao longo da história qualquer situação emergencial, extrema ou violenta atinge as mulheres de maneira mais intensa. Bhatia (2020)Bhatia, A. (2020). Mulheres e Covid-19: cinco coisas que os governos podem fazer agora. ONU Mulheres. Recuperado de http://www.onumulheres.org.br/noticias/mulheres-e-covid-19-cinco-coisas-que-os-governos-podem-fazer-agora/
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defende a criação de medidas específicas para as mulheres que contem com sua participação efetiva na formulação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A socionomia pode oferecer ferramentas para conhecer as relações entre espaço e subjetividade que conectem experiências subjetivas, sociais e históricas. A sociatria possibilita acolher sofrimentos e suscitar processos de transformação por meio de processos espontâneos criadores.
Algumas limitações deste estudo consistem no fato de uma das autoras conhecer previamente três entrevistados, o que pode ter condicionado as informações fornecidas. A ausência do recurso do vídeo nas duas últimas entrevistas pode, ainda, ter comprometido o estabelecimento do vínculo entre as participantes e a entrevistadora. Uma vez que os autores não são moradores de periferias, não partem de uma epistemologia periférica, em que os próprios sujeitos periféricos constroem o conhecimento sobre si (D’Andrea, 2020D’Andrea, T. (2020). Contribuições para a definição dos conceitos periferia e sujeitas e sujeitos periféricos. Novos Estudos – CEBRAP, 39(1), 19–36. https://doi.org/10.25091/s01013300202000010005
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). Vale ressaltar que a categoria emersa das entrevistas é uma proposta de organização dos conteúdos que não se propõe a definir nem abarcar definitivamente a complexidade das experiências relatadas.
Outra limitação deste estudo consistiu em não solicitar a autodeclaração racial aos entrevistados ao investigar as relações tecidas com os espaços público e privado durante a pandemia. Como autores brancos, compreendemos que a racialização é um aspecto fundamental para discussão das desigualdades e dos privilégios reproduzidos no Brasil e que a consideração das múltiplas dimensões que constituem os sujeitos possibilita que o campo da psicologia evite partir de padrões hegemônicos e supostamente universais em pesquisas e estudos (McCormick-Huhn et al., 2019McCormick-Huhn, K., Warner, L. R., Settles, I. H. & Shields, S. A. (2019). What if psychology took intersectionality seriously? Changing how psychologists think about participants. Psychology of Women Quarterly, 43(4), 445–456. https://doi.org/10.1177/0361684319866430
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). A ausência dessa informação, fruto talvez da nossa branquitude e do privilégio racial (DiAngelo, 2018DiAngelo, R. (2018). Fragilidade branca. Revista Eco-Pós, 21(3), 35–57. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v21i3.22528
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), foi percebida e posteriormente transformada em uma busca em pautar mais a racialização como constitutiva das subjetividades e relações.
Um benefício observado por Andreia na entrevista foi a possibilidade de poder falar sobre o que experienciou no contexto pandêmico: “É importante pra mim falar disso, sabe, é bom, sabe, colocar pra fora um pouco do que a gente sentiu, do que eu senti, né, durante esse tempo. É bom falar sobre os sentimentos que ocorreram na pandemia”. Uma vez que a crise sanitária e psicossocial deflagrou o inédito, a imprevisibilidade e o luto coletivo, compreender os efeitos dessas experiências sobre as diversas populações se apresenta como um campo de estudos relevante também no contexto pós-pandêmico.
Destaca-se a possibilidade da utilização da epistemologia psicodramática como referencial analítico para a compreensão dos processos intersubjetivos e sociais, bem como a potência do trabalho em contextos coletivos com grupos subalternizados, vocação originária do psicodrama com seu compromisso social.
AGRADECIMENTOS
Não se aplica.
-
FINANCIAMENTO
Não se aplica.
DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA
Não se aplica.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
31 Jul 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
02 Fev 2023 -
Aceito
20 Jun 2023