RESUMO
Em línguas românicas, a posição canônica do adjetivo é a pós-nominal. Observou-se, porém, que, embora a maioria dos adjetivos seja apenas pós-nominal em línguas românicas, alguns poucos adjetivos aparecem somente como pré-nominais, e há um grupo, mais extenso, que pode vir antes ou depois do núcleo, com mudança de sentido. Apesar desses três padrões distribucionais, para a abordagem cartográfica, há apenas duas fontes sintáticas: relativas reduzidas (associadas a adjetivos pós-nominais, de interpretação extensional) e projeções funcionais, que incluem todos os adjetivos pré-nominais e alguns pós-nominais, identificadas pela interpretação intensional. Propomos que aqueles adjetivos que são licenciados em italiano tanto antes quanto depois do núcleo nominal estão em uma projeção funcional, DegP, e são comparativas implícitas. As diferentes interpretações (intensional e extensional) são fruto de diferenças no domínio de onde provém o parâmetro de comparação, e não de fontes sintáticas diversas. Portanto, propomos que nem a distribuição nem a interpretação de adjetivos em línguas românicas podem ser explicadas apenas com base na fonte sintática. Defendemos a necessidade de recorrer a um componente semântico. Adotamos a semântica de graus. Todos os adjetivos móveis (licenciados tanto na posição atributiva canônica quanto na outra) em um corpus do italiano passaram nos testes independentes como sendo adjetivos de grau.
Palavras-chave: Posição de adjetivos atributivos em italiano; Interface sintaxe- semântica; A gramática dos adjetivos graduáveis em línguas românicas
ABSTRACT
The canonical position of the adjectives in Romance languages is post-nominal. However, it is observed a triparted distribution: although the majority of the romance adjectives is exclusively post-nominal, a very few adjectives can be only pre-nominal, and a relatively numerous group of adjectives can come after and also before the nucleus, with a change in meaning. Despite those distributional patterns, for the cartography approach there are only two syntactic sources for adjectives: a reduced relative (always post-nominal, leading to extensional interpretation) and functional projections, which include all pre-nominal adjectives and some post-nominal adjectives, responsible for the intensional interpretation. We propose that those adjectives that are licensed in Italian both before and after the nominal head are in a functional projection, DegP, and are implicit comparatives. The difference in interpretation (intensional and extensional) is a byproduct of the distinct domains from which the comparison parameter comes from, and not determined by the syntax. Neither the distribution nor the interpretation of adjectives in Romance languages can be explained solely based on the syntactic source. We defend the need to resort to semantics, adopting a degree semantics. All flexible adjectives (licensed in both the canonical and non-canonical positions) in a corpus of Italian were identified as gradable adjectives by independent tests.
Keywords: The position of attributive adjectives in Italian; Syntax-semantics interface; The grammar of gradable adjectives in Romance languages
Universais linguísticos quanto à sintaxe e à semântica dos adjetivos atributivos
A abordagem cartográfica propõe uma ordem universal básica para os componentes sintáticos, com as diferenças interlinguísticas sendo explicadas por inversão da mesma sequência (espelhamento), através de movimentos específicos ou em função dos diferentes locais onde ocorre merge. Enquanto em línguas anglogermânicas, como o inglês, verificamos grande rigidez em relação ao posicionamento dos adjetivos adnominais, sendo eles sempre pré-nominais (“the blue bird”/ *the bird blue”), em línguas como o português brasileiro a posição canônica dos adjetivos é a inversa, a pós-nominal (*“o azul pássaro”/ “o pássaro azul”) .
Em línguas românicas, o posicionamento do adjetivo atributivo em relação ao núcleo nominal é bem menos rígido que nas anglogermânicas, proporcionando uma janela única para a percepção da relação entre o tipo de fonte sintática e a interpretação associada ao adjetivo atributivo, segundo Cinque (2014). Esse autor, a maior autoridade da abordagem cartográfica sobre a sintaxe dos adjetivos adnominais, toma a interpretação intensional de todos os adjetivos que ocorrem pré-nominalmente em italiano (e nas demais línguas românicas) (p.ex., “un alto funzionario” “um alto funcionário”) como evidência de que os adjetivos linearizados antes do nome nas línguas românicas têm apenas um tipo de fonte sintática, a chamada modificação direta ou projeção funcional. Entre os adjetivos pós-nominais, encontramos tanto interpretações intensionais (“un problema serio” “um problema sério”) quanto extensionais (“l’insegnante serio” “o professor sério”, que pode ser interpretado como um professor sisudo, com semblante fechado), o que é tomado como evidência de que os adjetivos linearizados após o núcleo nominal em românicas podem provir de duas fontes sintáticas: modificação direta ou projeção funcional (nos de interpretação intensional, ou seja, em “um problema sério”, o problema específico do qual se está falando é avaliado como inerentemente grave, de difícil solução) ou modificação indireta ou relativa reduzida (associado à interpretação extensional, ou seja, a uma leitura restritiva: no conjunto dos professores, o adjetivo “sério” seleciona um deles, descartando os demais por não apresentarem a propriedade da seriedade).
No caso de línguas anglogermânicas, há menor transparência, porque as duas fontes sintáticas são linearizadas antes do núcleo nominal, pois, embora o adjetivo permaneça sempre na mesma posição em relação ao nome modificado, ele admite duas interpretações: “a serious problem” pode ser interpretado como um problema marcado pela sua importância ou pelo alcance de suas consequências, demandando portanto consideração cuidadosa (leitura intensional); ou seja, “serious”, em “a serious problem”, pode ser identificado como tendo a fonte sintática modificação direta, enquanto “a serious teacher” é uma pessoa que se distingue dos colegas de profissão por ter semblante fechado, não ser dado a brincadeiras (leitura extensional), o que indica que esse adjetivo tem como fonte sintática uma modificação indireta.
Em línguas românicas, o fato de adjetivos pré-nominais terem sempre leitura intensional e de a leitura extensional ser encontrada exclusivamente em adjetivos linearizados após o nome mostra que somente a modificação direta pode terminar a derivação sintática em posição mais alta que o núcleo nominal, bem como mostra que a modificação indireta está restrita a uma posição mais baixa que o núcleo nominal ao fim da derivação sintática. Um parâmetro sintático ligado ao movimento do núcleo nominal explica as diferentes posições canônicas em anglogermânicas e românicas.
O contraste leitura intensional versus leitura extensional é desdobrado em muitas outras propriedades semânticas, associadas a cada uma das duas fontes sintáticas naquelas construções em que ocorrem os adjetivos adnominais.
Observe-se que, no quadro 1, a linearização depois do núcleo poderia corresponder a qualquer uma das duas fontes propostas. Indicamos ali somente a interpretação concernente à fonte chamada de modificação indireta, pois a interpretação gerada pela modificação direta seria a mesma verificada quando os adjetivos são linearizados antes do núcleo. Em suma, na abordagem cartográfica, há duas fontes sintáticas possíveis para os adjetivos, a modificação direta, que pode aparecer na linearização das línguas românicas antes ou depois do núcleo, e a modificação indireta, que só vem linearizada após o núcleo nominal. O adjetivo linearizado antes do núcleo não apresenta ambiguidade, pois somente uma fonte, a modificação direta, é linearizada aí. Os adjetivos pós-nominais são ambíguos por essa linearização ser possível como produto de uma ou de outra fonte. Como saber identificar a fonte do adjetivo pós-nominal, então? Pela sua interpretação. Cada uma das fontes tem sua interpretação própria. A abordagem cartográfica entende, portanto, que a interpretação do adjetivo adnominal é um reflexo exclusivo e direto de sua fonte sintática.
Sem dúvida, as intuições distintivas de interpretação associadas à linearização pós-nominal (ordem canônica) ou pré-nominal (ordem não-canônica) em línguas românicas são indisputáveis. Os exemplos de Cinque (2014) são do italiano, mas, como falantes de português, reconhecemos imediatamente a não-ambiguidade dos nominais modificados por adjetivos linearizados antes do núcleo e a ambiguidade (em que uma das leituras é necessariamente distinta da obtida na outra ordem) quando o adjetivo segue o nome na ordem linear. Diante desses fatos empíricos, vamos então assumir com Cinque (1990, 1999, 2010, 2014) que existam duas fontes sintáticas possíveis para os adjetivos adnominais, uma direta (projeção funcional) e outra indireta (relativa reduzida). Assumimos ainda que a modificação direta pode ser linearizada antes e depois do núcleo, e a indireta, somente depois. Logo, duas fontes são encontradas em adjetivos adnominais pós-nucleares, mas apenas uma em adjetivos pré-nucleares.
Vamos assumir, além disso, que a posição predicativa (quando o adjetivo é o predicador sentencial, selecionando semanticamente seu argumento em função sintática de sujeito sentencial) possa gerar a mesma leitura obtida pela fonte sintática da modificação indireta (ou relativa reduzida), pois a interpretação obtida é idêntica àquela associada a essa fonte quando o adjetivo é pós-nuclear. Vejamos:
a. Meu carro é vermelho.
b. Há um objeto de minha propriedade que tanto é um objeto que se classifica como um carro quanto é um objeto de cor vermelha.
a. [Meu carro vermelho] está na garagem.
b. [Há um objeto de minha propriedade que tanto é um objeto que se classifica como um carro quanto é um objeto de cor vermelha] e esse objeto está dentro da garagem.
Dada a interpretação de “vermelho” em (1) e em (2) ser igual, é razoável supor que tenhamos nos dois casos uma relativa reduzida (ou modificação indireta). Em geral, os adjetivos do PB que são licenciados em posição canônica quando adjuntos (linearizados após o núcleo nominal) também podem assumir a função de predicadores sentenciais. Mas muitos deles não podem vir como adjuntos na posição não-canônica, ou seja, precedendo o núcleo nominal:
*[O vermelho carro] está na garagem.
Bem, dado que a posição adjunta pré-nuclear é exclusiva da fonte modificação direta (ou projeção funcional), segundo Cinque. parece razoável supor então que adjetivos como “vermelho”, não-licenciados fora da posição canônica atributiva, sejam sempre construídos numa única fonte sintática: a modificação indireta. A maior parte dos adjetivos das línguas românicas deve ser sintaticamente como “vermelho”, daí a ordem canônica ser a pós-nominal. Isso explica fatos importantes sobre os adjetivos nas línguas românicas. Mas isso não é tudo, pois esse não é o único comportamento distribucional encontrado entre os adjetivos dessas línguas. Certos adjetivos são licenciados justamente apenas antes do núcleo, e não podem funcionar como predicado sentencial:
a. Pedro é um mero soldado.
b. Pedro é um militar sem importância alguma, ou seja, na hierarquia militar, ele não vai além da posição mais baixa de todas, a de um soldado raso.
a.*Pedro é um soldado mero.
b. *O soldado é mero.
Dada a interpretação de (4) ser típica da fonte modificação direta, o fato de adjetivos como “mero” não poderem funcionar como predicadores sentenciais (5b) corrobora nossa hipótese de que essa função sintática é realizada com a fonte relativa reduzida. Podemos pensar então que esses adjetivos com interpretação exclusivamente intensional são sempre construídos como projeções funcionais. Eles se comportam de forma bem diferente da maioria dos adjetivos das línguas românicas, mas eles formam um grupo bem reduzido em número, o que justifica que sejam vistos como exceção, como irregularidades na fase aquisição da linguagem. Além de “mero”, quantos outros adjetivos exclusivamente pré-nominais há? Bem poucos. “Futuro”, “pretenso”, “reles”, “putativo”, “alegado”, “suposto”... A associação do item lexical a uma única fonte sintática dá conta dos fatos examinados até aqui e explica as interpretações dos adjetivos, adotando a visão cartográfica de que a interpretação é gerada pela fonte sintática.
Porém, o cenário se complica bastante quando examinamos adjetivos que podem tanto assumir função predicativa quanto vir depois do núcleo nominal (com a mesma interpretação de quando funcionam como predicador sentencial, ou seja, com a interpretação típica da modificação indireta) ou mesmo antes do núcleo nominal (com a interpretação associada à modificação direta):
a. A menina é pobre.
b. A menina não tem dinheiro.
a. [A menina pobre] estava faminta.
b. [A menina que não tem dinheiro] tinha muita fome.
a. A pobre menina (rica) ficou órfã muito nova.
b. A menina digna de dó (e que tem muito dinheiro) perdeu os pais ainda muito jovem.
Examinando os dados (6) e (7), com base na interpretação dos adjetivos, a criança em fase de aquisição poderia concluir que “pobre" é um adjetivo como “vermelho", ou seja, que “pobre” tem como fonte sintática a modificação indireta. Porém, diferentemente de “vermelho", “pobre" também é licenciado antes do núcleo nominal, com a interpretação intensional típica da fonte projeção funcional (8). Diante de desafios como esse, devemos aceitar que algumas entradas lexicais de adjetivos estão associadas a determinada fonte sintática, mas que existem adjetivos na língua, tais como “pobre”, que tanto podem ser construídos numa fonte sintática quanto na outra? Como? Por quê? Se a intenção discursiva definisse a fonte sintática para todo e qualquer adjetivo das línguas românicas, estaria tudo bem, mas vimos que a grande maioria dos adjetivos que ocupa a posição canônica adnominal não é licenciada na outra posição adnominal, o que indica que esse posicionamento não é livre em geral. Então é inesperado que um conjunto de adjetivos possa ser construído (se tomamos como evidência da fonte a interpretação) com duas fontes sintáticas. É importante observar, também, que o número desses adjetivos com flexibilidade como atributivos não é reduzido como o da classe de “mero”, e, consequentemente, não se justificaria tratá-los como irregularidades do sistema, que a criança pode rotular como exceções à regra de que uma entrada lexical de modificador adnominal deve vir associada com sua própria fonte sintática. No grupo a que pertence “pobre”, estão, por exemplo, “alto”, “grosso”, “largo”, “caro”, “grande”, “magro”, “curto”, “possível”, “diferente”, “famoso”, “antigo”, “falso”, “bom”, “simples”, “belo”, “longo”, “claro”, “sério”, “feio”, “importante”, “pequeno” e muitos outros mais.
Comportamentos distribucionais distintos de grupos de adjetivos do PB já haviam sido notados em Müller, Negrão e Nunes-Pemberton (2002), porém as classes apontadas pelas autoras não são as mesmas que propomos. A questão que surge, assumidas as três classes por nós apontadas, é como dar conta da distribuição sintática dos adjetivos de línguas românicas na fase de aquisição. Existem, na proposta cartográfica, duas fontes sintáticas, mas, segundo os dados examinados acima, há três padrões distribucionais gerais bem distintos para os adjetivos. Explicar a interpretação como um resultado da fonte sintática não é o bastante; é necessário ainda associar cada um dos itens lexicais em questão a uma fonte sintática específica, para assim dar conta dos fatos da aquisição. Proporemos, neste artigo, uma maneira de conciliar as duas fontes sintáticas com a distribuição tripartite dos adjetivos em línguas românicas, olhando especialmente para o italiano. O tratamento que advogamos assume, junto com as duas fontes sintáticas propostas pela cartografia para os adjetivos adnominais, uma divisão semântica dos adjetivos em classes independentemente aferíveis, mediante testes independentes. Seguindo a proposta de Gomes e Sudré (2021), propomos que a identificação de duas fontes sintáticas é necessária, mas não suficiente para dar conta do comportamento distribucional dos adjetivos em línguas românicas. É preciso também distinguir semanticamente entre adjetivos graduáveis e não-graduáveis. Gomes e Sudré (2021) mostraram, para o PB, que todos os adjetivos adnominais licenciados tanto em posição canônica quanto na não-canônica se comportam como adjetivos graduáveis. Aplicamos a mesma abordagem ao italiano. Submetemos um conjunto de adjetivos do italiano com a mesma mobilidade quando modificando sintagmas nominais argumentais aos mesmos testes identificadores dessa classe semântica e também aferimos, para o italiano, que somente os adjetivos graduáveis são licenciados tanto antes quanto depois do núcleo nominal.
Este artigo vai tratar desse tema, propondo uma solução conciliatória entre as duas fontes sintáticas e os três padrões distribucionais. Na próxima seção, vamos apresentar a semântica de graus e a proposta de Gomes e Sudré (2021) para o português. Na seção seguinte, vamos descrever os procedimentos adotados para o exame dos adjetivos do italiano. Finalmente, vamos apresentar as conclusões compatíveis com esses fatos, dada essa semelhança entre essas duas línguas românicas, o italiano e o PB, e expor o que entendemos que os achados da pesquisa dizem sobre a interface sintaxe-semântica na área da modificação de nomes por adjetivos.
A semântica de graus e seus efeitos na gramática dos adjetivos em PB
Morfologicamente, nas línguas indo-europeias, os adjetivos concordam em número e gênero com os nomes que modificam. Semanticamente, adjetivos introduzem propriedades; sintaticamente, são modificadores dos nomes com os quais concordam (Kennedy, 2012). As relações sintáticas mantidas com os nomes modificados podem ser atributivas (quando o produto da modificação do nome pelo adjetivo é argumento de um predicado) ou predicativas (o adjetivo provê o predicador sentencial principal e toma o nome em posição de sujeito como seu argumento). A interpretação da maioria dos adjetivos é intersectiva, ou seja, há acarretamentos da forma atributiva para a predicativa, como vemos no exemplo abaixo:
(9) a. Bill é um gato cinza bonito.
b. Bill é bonito.
c. Bill é cinza.
Todas as situações que renderem (9a) verdadeira também, necessariamente, renderão (9b) e (9c) verdadeiras. Ou seja, (9a) acarreta (9b) e (9c), configurando um teste de intersectividade: o gato chamado Bill pertence tanto à classe dos objetos cinza quanto à classe dos objetos bonitos, ou seja, está na intersecção dos dois conjuntos, o das coisas cinzas e o das coisas bonitas. Partee (1995) mostrou que nem todos os adjetivos passam por esse teste:
(10)
a. Francis é um cirurgião habilidoso.
b. Francis é habilidoso.
(11)
a. Francis é um violinista.
b. Francis é um violinista habilidoso.
As situações em que (10a) é verdadeira não permitem concluir que (10b) também seja. Francis pode muito bem ser habilidoso como cirurgião, mas não com bricolagem, por exemplo, e (10b) pede que a habilidade dele se aplique a qualquer coisa que ele venha a fazer. Também não temos uma relação de acarretamento entre (11a) e (11b), considerando (10a). É bem possível que Francis seja um cirurgião de grande habilidade e toque violino, mas que não seja virtuoso neste instrumento. Isto é, a habilidade dele não necessariamente se expande para outros domínios, além do da sua atuação como cirurgião.
O fato de nem todos os adjetivos caberem no tratamento da intersectividade aplicado a modificadores em geral gerou problemas empíricos e teóricos para a Semântica Formal, visto que se buscava chegar a um tratamento de base que pudesse acomodar todo e qualquer adjetivo, recorrendo ao princípio da composicionalidade. A semântica de graus, na linha de Bolinger (1972), Klein (1980) e, mais tarde, de Kennedy (1997), contribuiu para o retorno ao tratamento generalizado dos adjetivos como intersectivos, mostrando que muitos dos adjetivos que, à primeira vista, não se conformam a testes de intersectividade são altamente dependentes do contexto (Heim; Kratzer, 1998), e, uma vez explicitada a informação do contexto que precisa ser computada para a verificação do valor de verdade das sentenças, esses adjetivos passam em testes como (9), tal como veremos em (13), apesar da falha em (12).
(12)
a. Anita é uma formiga grande.
b. Anita é um animal.
c. Anita é um animal grande.
O exemplo (12) não resulta nos nexos lógicos que se espera que um modificador intersectivo apresente. Embora (12a) acarrete (12b), não acarreta (12c). Na linha da semântica de graus, isso acontece porque ‘grande’ é um adjetivo graduável, que leva as sentenças em que figura a serem interpretadas como comparações implícitas, isto é, como comparativas de superioridade em que um dos termos de comparação é recuperado do contexto. “Anita é grande” pode ser parafraseada por “Anita é maior que x ”, em que x não corresponde a nenhum componente realizado em (12a), mas é retirado do contexto. A presença do nome “formiga” restringe a busca desse x ao domínio dos indivíduos que são elementos do conjunto das formigas, resultando na interpretação de que o tamanho de Anita supera o tamanho comum para as formigas. Já em (12c), em vez de “formiga” , o nome que precede o adjetivo é “animal”, o que determina que o segundo termo de comparação, x , seja buscado entre os elementos do conjunto dos animais; ou seja, o que (12c) diz é que o tamanho de Anita supera o tamanho normal dos animais. Ora, a espécie formiga é um subconjunto do conjunto dos animais, mas essa espécie é uma das de menor tamanho entre as das espécies pertencentes ao reino animal. Ser uma formiga grande não garante ser maior que outros animais, como um cachorro, um gato ou um cavalo, por exemplo. Então o problema em (12) é provocado pela não-manutenção do mesmo parâmetro de tamanho em (12a) e em (12c), dado que a busca de x tem alcances diferentes nas duas sentenças. Se controlarmos o exemplo para que domínio de busca de x seja mantido igual, o acarretamento típico da interseção aparece:
(13)
a. Anita é grande para uma formiga.
b. Anita é um animal.
c. Anita é um animal grande para uma formiga.
Vemos que o teste da intersectividade funciona perfeitamente em (13): sempre que (13a) for verdadeira, (13b) e (13c) também o serão. A conclusão então é que adjetivos de grau são intersectivos, embora apresentem um componente não-vozeado, que não tem realização material na sentença, mas é proveniente do contexto.
Adotaremos uma semântica de graus em linha com Kennedy e McNally (2005), que examinaram mais de 1.500 dados retirados do British National Corpus e verificaram uma distribuição complementar na modificação de adjetivos participais pelos intensificadores “well”, “very” e “much”. A especialização desses advérbios não pode ser explicada pela sintaxe nem pela morfologia. Os autores explicam a complementaridade mostrando que esses intensificadores do inglês selecionam semanticamente adjetivos de grau com certa estrutura escalar.
Os adjetivos de grau nessa teoria comportam-se como comparativas implícitas, com um dos termos de comparação não pronunciado, mas preenchido contextualmente, formando comparativas implícitas ou de superioridade, como “grande”, tal como explicado no tratamento dos exemplos (12) e (13), ou de inferioridade, como “pequeno”: “Anita é uma formiga pequena” significa o mesmo que “Anita é menor que x ”, sendo esse x buscado dentro do domínio das formigas.
Os adjetivos de grau mapeiam o referente do nome que modificam ao grau correspondente à sua medida em relação a determinada propriedade (“grande” e “pequeno” estão na escala da propriedade de GRANDEZA). Por exemplo, se a formiga Anita mede 1,0 centímetro, ela será mapeada ao ponto correspondente a essa medida na escala, como vemos na Figura 1:
Escalas são graus de uma mesma propriedade, ordenados por grau de grandeza, como pontos numa régua. Começam no valor zero e vão até o infinito. Combina-se ao adjetivo de grau um morfema de grau nulo, pos, que introduz a busca pelo outro termo de comparação no contexto, e a relação comparativa requerida para a verificação do valor de verdade da sentença. Suponhamos que Anita seja comparada a uma formiga faraó, a Rita, de 0,2 cm.
A Figura 2 mostra que Anita tem o maior grau de tamanho na comparação estabelecida, atendendo às condições de verdade de uma comparativa de superioridade, como “Anita é uma formiga grande”. Mas poderíamos retirar do contexto qualquer outro termo de comparação, como, por exemplo, uma formiga Camponotus, o Hércules, de 2,5 cm. Ele seria mapeado acima de Anita na escala, como vemos na Figura 3:
No seguimento comparativo, Anita está no extremo inferior, e, portanto, as condições de verdade de “Anita é uma formiga grande” não são atendidas nessa comparação implícita. No cenário representado, seriam atendidas as condições de verdade de “Hércules é uma formiga grande”, mantendo-se a relação de superioridade, ou as da sentença “Anita é uma formiga pequena”, uma comparativa implícita de inferioridade, visto que Anita apresenta o menor grau de tamanho.
Por isso o contexto faz tanta diferença: mapeado sempre ao mesmo grau da escala, o tamanho de Anita não é necessariamente nem o maior nem o menor extremo da comparação. É sua posição relativamente ao outro termo que determinará se as condições de verdade da comparativa implícita são ou não atendidas. Conforme o termo a ser escolhido no contexto, a sentença será considerada verdadeira ou falsa.
Há ainda comparativas implícitas de igualdade, em que um estado prototípico do referente do nome fornece um termo de comparação e o estado desse mesmo referente na situação descrita pela sentença será tomado como o outro termo, requerendo-se igualdade ou desigualdade entre os termos comparados. Por exemplo, na escala de LIMPEZA, a sujeira se acumula, aumentando de grau desde zero até infinito, mas, para um objeto estar limpo, é preciso exibir, na situação relevante, um estado idêntico ao de zero graus de sujeira. “O prato está limpo” é então uma comparação de igualdade, que requer que o prato seja julgado, nas circunstâncias, como similar a um prato completamente desprovido de sujeira. “O prato está sujo” é uma variante da comparação de igualdade, que podemos chamar de uma comparação de “desigualdade”: a verdade dessa sentença requer que o prato apresente, no momento do julgamento do valor de verdade, um estado dissemelhante ao de zero graus de sujeira. Um prato com pouca sujeira ou com muita sujeira não está limpo.
Os adjetivos graduáveis podem ser identificados por alguns testes, que os separam dos adjetivos sem grau, segundo Kennedy e McNally (2005). O primeiro deles é o teste dos polos opostos. Dada a maneira como uma escala (TAMANHO) é construída, dois polos da mesma propriedade são lexicalizados: um polo lexicaliza a comparativa de superioridade (“grande”) e outro, a de inferioridade (“pequeno”). Portanto, está previsto que todo adjetivo de grau tenha um polo oposto. Os intensificadores são vistos como modificadores de graus, e só modificam propriedades escalares de certa natureza. Assim, espera-se que os adjetivos graduáveis possam ser intensificados, mas que os adjetivos sem grau não aceitem intensificação. Espera-se ainda que os adjetivos graduáveis sejam aceitáveis em comparativas explícitas, visto que são analisados como sentenças comparativas sem a realização de um dos termos de comparação. Vejamos alguns exemplos:
(14)
a. O contrário de “grande” é ...? “Pequeno”.
b. O contrário de “bucal” é ...? Não existe um oposto.
(15)
a. O adjetivo aceita intensificação? Sim. “Esta formiga é muito grande”.
b. O adjetivo aceita intensificação? Não. *“Este enxaguante é muito bucal”.
(16)
a. O adjetivo é licenciado em comparativas? Sim. “Anita é tão grande quanto Rita”.
b. O adjetivo é licenciado em comparativas? Não. *“Este enxaguante é tão bucal quanto aquele outro”.
Pelo desempenho dos adjetivos nos testes de (14) a (16), concluímos que “grande” passou nos testes, sendo um adjetivo graduável, e que “bucal” não passou, sendo, portanto, um adjetivo sem graus.
Além desses testes independentes, Gomes e Sudré (2021) associam algumas propriedades distribucionais aos adjetivos graduáveis, que os distinguem dos sem grau em PB: apenas os adjetivos graduáveis são licenciados em exclamativas curtas e em miniorações:
(17)
a. Você viu aquela formiga? Que grande! (formiga grande)
b. Você viu aquela enxaguante? *Que bucal! (enxaguante bucal)
(18)
a. Eu considero Anita uma formiga grande.
b.*Eu considero esse enxaguante bucal.
Aplicando os testes aos adjetivos do PB que são licenciados tanto antes do núcleo nominal quanto depois, Gomes e Sudré (2021) verificaram que todos passaram nos testes como adjetivos graduáveis. Adjetivos sem grau não apresentam essa mesma distribuição. As autoras defendem, a partir disso, que, na fase de aquisição, há evidências independentes disponíveis de que alguns adjetivos pertencem e de que outros não pertencem à classe semântica dos adjetivos graduáveis. Essa classificação semântica permite à criança identificar quais adjetivos de sua língua materna poderão burlar a posição canônica no uso atributivo.
As entradas lexicais dos adjetivos sem grau estão sempre associadas a uma única fonte sintática: aqueles que são licenciados apenas antes do nome modificado, como “mero”, têm sempre como fonte sintática a modificação direta, e aqueles que são licenciados como predicadores sentenciais e também na posição atributiva canônica são sempre construídos na fonte sintática de modificação indireta. Quanto aos adjetivos graduáveis, as autoras propõem que eles também têm uma fonte sintática única: a modificação direta, aquela que, segundo a cartografia, pode ser licenciada tanto antes quanto depois do núcleo nominal em línguas românicas. Essa projeção funcional é o sintagma de graus, ou DegP, proposto por Corver (1991), Zamparelli (1993) e outros sintaticistas para expressões de grau, e adotada por Kennedy (1997). O núcleo dessa projeção é o morfema de grau abstrato “pos”; o adjetivo graduável é seu complemento e seu especificador pode ser ocupado por um intensificador. Essa configuração explica sintaticamente por que adjetivos não-graduáveis não podem ser intensificados: eles não têm essa camada acima deles, e, portanto, não há locus para alojar o intensificador.
Assumindo que a entrada lexical de um adjetivo graduável é sempre uma projeção funcional, mais especificamente uma expressão de graus, como se explica então que a interpretação não permaneça a mesma quando o adjetivo está posposto e quando ele está anteposto ao núcleo nominal?
Aqui a proposta de Gomes e Sudré (2021) se afasta da de Cinque (2014). Para Cinque, a fonte sintática é a única produtora da interpretação dos adjetivos atributivos. Para as autoras, é preciso considerar a natureza semântica do adjetivo graduável, que vai buscar fora dos componentes materiais da sentença um dos termos da comparação implícita. A diferença está na restrição do domínio de onde poderá ser retirado esse termo de comparação, que não está materializado na sentença.
O adjetivo linearizado em posição canônica tem sua fonte abaixo do NumP (sintagma de número), o que permite a busca do termo de comparação ausente na sentença em qualquer lugar, até mesmo no contexto conversacional. A liberdade é total. Portanto, quanto à propriedade de altura, um “funcionário alto” pode ser comparado à média dos funcionários de certo estabelecimento, à média de altura dos homens da idade dele, à média de altura de seus conterrâneos etc., permitindo a criação de diversas interpretações extensionais e restritivas (em que se separa uma parte do conjunto nominal examinado).
Porém, quando temos o adjetivo graduável antes do nome, isso indica que a projeção funcional DegP que o aloja, está acima de NumP, ou seja, na periferia esquerda do sintagma nominal estendido. Há uma razão para as interpretações intensionais serem realizadas em línguas românicas somente com o adjetivo anterior ao núcleo nominal: é nessa região da projeção nominal estendida que ficam os componentes sintáticos realizadores de aspecto nominal, dos parâmetros temporais e de localização da situação (eventualidade) de que o referente do nominal participa, sequenciamentos temporais etc. Trata-se de outra fase na derivação sintática, e o nominal (abaixo de NumP) já foi marcado com suas características de definitude, número, especificidade etc. O tipo de referência para o núcleo nominal já foi negociado.
Com a projeção funcional DegP localizada nessa região superior ao NumP, o domínio de onde virá o segundo termo da comparação implícita fica restrito à situação em que o referente do nominal está inserido. Essa operação é deflagrada pela área sintática ocupada pela projeção funcional, que coloca o adjetivo em uma fase derivacional diferente da do nome. Em termos semânticos, a operação resultante é de restrição de domínio. O adjetivo está ligado lexicalmente a certa propriedade escalar e precisa promover uma comparação implícita de certa natureza entre o referente do nominal por ele modificado e um segundo termo, que, nessa configuração sintática, está limitado: só pode ser algo ligado ao domínio da situação que contém o indivíduo denotado pelo nome. Isso porque aquela área da árvore é dedicada exclusivamente a marcadores situacionais. O resultado dessa restrição de domínio é uma leitura intensional. O domínio onde será buscado o termo de comparação não-pronunciado é determinante para a interpretação obtida, como exemplificado abaixo:
(19)
a. Fui atendido pelo funcionário alto.
b. Domínio para a retirada do termo de comparação: livre.
c. Interpretação extensional: o termo da comparação não-realizado abertamente na sentença pode ser escolhido livremente no contexto, e uma das opções é o falante escolher comparar a altura do funcionário, por exemplo, à altura média dos seus conterrâneos; assim, ele é comparado em altura física com a média dos brasileiros.
d. Paráfrase: Fui atendido por alguém que é funcionário (no estabelecimento relevante) e cuja altura é a maior entre os termos comparados, o que é o mesmo que dizer que esse funcionário é maior em tamanho físico que a maioria dos brasileiros.
(20)
a. Fui atendido pelo alto funcionário.
b. Domínio para a retirada do termo de comparação: restrito.
c. Interpretação intensional: termo retirado dos marcadores da situação de que participa o referente do nome: por exemplo, o funcionário é comparado em altura administrativa com os colegas de trabalho que são parte da mesma organização.
d. Paráfrase: Fui atendido por alguém que é funcionário (no estabelecimento relevante) e cuja altura na hierarquia organizacional é a maior entre os termos comparados, o que é o mesmo que dizer que esse funcionário tem um cargo mais importante que a maioria dos seus colegas.
Portanto, as diferenças de interpretação encontradas em adjetivos graduáveis conforme antecedam ou sigam o núcleo nominal na linearização não precisam ser tomadas como evidência da existência de fontes sintáticas diferentes para uma mesma palavra. No caso, os adjetivos graduáveis estão sempre em modificação direta, visto que essa é a fonte que, nas línguas românicas, pode ser linearizada tanto antes quanto depois do núcleo. As nuances interpretativas advêm da semântica, visto que esses adjetivos precisam buscar um termo de comparação fora dos componentes materiais da sentença. Pelo fato de NumP estar na fronteira entre duas fases da derivação sintática e de a região da projeção estendida do sintagma nominal acima de NumP ser reservada para marcadores situacionais, quando o adjetivo está acima do núcleo, há restrições para a escolha do parâmetro de comparação contextual. Por isso a interpretação de adjetivos graduáveis antepostos ao núcleo é sempre intensional (ele é alto na hierarquia organizacional de que faz parte). Quando o adjetivo graduável está abaixo de NumP, linearizado depois do nome, outros domínios estão acessíveis para a retirada do parâmetro contextual, inclusive outros indivíduos que façam parte do mesmo domínio nominal podem ser escolhidos (ele é alto para um homem que trabalhe nesse lugar).
Testagem em italiano
Em PB, Gomes e Sudré (2021) propuseram a existência de três subdivisões para os adjetivos. Primeiramente, há os adjetivos que ocupam só a posição atributiva não-canônica, ou seja, precedem o nome, como em (“um mero estudante”/ *“um estudante mero”). Em segundo lugar, há o grupo dos adjetivos que aparecem apenas em posição atributiva canônica (posposto ao nome), como em (“um carro vermelho”/ *“um vermelho carro”). A terceira parte é composta pelos adjetivos que são licenciados tanto antes como depois do nome, com mudança de sentido, como em (“a pobre menina”/ “a menina pobre”), podendo aparecer também em forma predicativa (“essa menina é pobre”).
Segundo as autoras, esse terceiro comportamento é identificado como uma classe semântica especial, a classe dos adjetivos graduáveis. Sob a perspectiva de Kennedy e McNally (2005), “os adjetivos graduáveis são aqueles que apresentam gradabilidade e que denotam função de medição que mapeiam indivíduos ao grau que correspondem à medida da proporção que eles exibem em uma escala”. Eles são identificados através de testes.
Uma vez que Cinque (1990, 1999, 2010, 2014) propõe um parâmetro entre as línguas românicas e as anglo-saxônicas, em termos da posição do adjetivo atributivo, que vem a ser aquele adjetivo interno a sintagmas nominais argumentais, então os fatos encontrados em italiano são generalizados por ele para o espanhol, para o português e para todas as demais línguas românicas. A previsão é que uma explicação para o comportamento de uma certa língua românica possa ajudar a explicar o comportamento de todas as outras línguas românicas. Tendo isso em mente, nos propusemos a verificar se a proposta feita para o português por Gomes e Sudré (2021) também daria conta dos fatos do italiano, ou seja, se aqueles adjetivos que são licenciados em italiano tanto antes quanto depois do núcleo nominal modificado são também os de grau.
Tomamos os adjetivos da gramática “Italiano Facile: percorso semplificato di grammatica, dos autores Asnaghi, Manzo, Nicolaci e Rocco (2013), como nosso corpus inicial para o estudo. Separamos 32 adjetivos como nossa amostra primária. Nossa primeira tarefa foi construir sentenças com os adjetivos para verificar quais eram licenciados em posição de predicado sentencial e quais não. As sentenças resultantes constam do quadro 1. Trazemos alguns exemplos de (21) a (27). Nos exemplos, (a) mostra a sentença formulada em italiano, (b) fornece a tradução para o português, e (c) apresenta a paráfrase da sentença em italiano, para clarificar sua interpretação. As sentenças em italiano foram submetidas à interpretação de um falante nativo.
Depois de construir as sentenças em italiano, verificamos quais desses adjetivos poderiam ser empregados adnominalmente somente depois do núcleo nominal, quais exclusivamente antes dele e quais são aceitáveis se colocados tanto antes quanto depois do núcleo nominal. Tal verificação foi realizada com a montagem de sentenças por uma das autoras, graduanda em italiano. As sentenças resultantes dessa etapa foram a seguir exibidas a um falante nativo de italiano , que, por meio da introspecção, acessando sua gramática inata, indicou se as sentenças soavam naturais ou não e se as julgava passíveis de serem produzidas por falantes da língua italiana. Esse passo de elicitação com um nativo nos mostrou que a distribuição dos adjetivos em italiano é a mesma vista no PB.
Em italiano, a maioria dos adjetivos só pode ocupar a posição canônica quando adnominal e é também licenciada em posição predicativa, com a interpretação típica da fonte modificação indireta:
a. La mia macchina è rossa.
b. “O meu carro é vermelho.”
c. Há um objeto de minha propriedade que tem tanto a propriedade de ser um carro quanto tem a propriedade de ser da cor vermelha.
a. [La mia macchina rossa] è nel garage.
b. “[O meu carro vermelho] está na garagem.”
c. [Há um objeto de minha propriedade que tem tanto a propriedade de ser um carro quanto tem a propriedade de ser da cor vermelha] e esse objeto está dentro da garagem.
d.*[La mia rossa macchina] è nel garage.
Há também em italiano um número bem reduzido de adjetivos que só são licenciados antes do núcleo nominal, nunca após, e que jamais são licenciados como predicadores sentencias, sempre gerando, quando a sentença é bem formada, a interpretação típica da fonte modificação direta:
a. Pedro è il mio futuro marito.
b. “Pedro é o meu futuro marido.”
c. Pedro não é meu marido no momento da fala, mas o será num momento posterior.
a.* Pedro è il mio marito futuro.
b. *“Pedro é o meu marido futuro.”
c. * Il mio marito è futuro.
Além de a maioria dos adjetivos poder ser associada à fonte indireta, e de haver um pequeno número de adjetivos que pode ter sua entrada lexical associada apenas à direita, há ainda em italiano, como em PB, aquele grupo de adjetivos de número nem tão grande nem tão reduzido, que aparece tanto depois do núcleo nominal e em função de predicador sentencial, com a leitura típica de relativa reduzida, quanto é licenciado também antes do núcleo nominal, aí sempre com leitura típica de projeção funcional:
a. La ragazza è povera.
b. “A menina é pobre.”
c. A menina não tem dinheiro.
a. [La povera ragazza] aveva fame.
b. “[A pobre menina] tinha fome.”
c. [A menina que não tem dinheiro] tinha muita fome.
a. La povera ragazza (ricca) rimase orfana in tenera età.
b. “A pobre menina (rica) ficou órfã muito cedo.”
c. A menina digna de dó (e que tem muito dinheiro) perdeu os pais ainda muito jovem.
Tendo estabelecido quais adjetivos na nossa mostra se comportavam como “povera”, sendo licenciados na posição atributiva canônica e também na não-canônica, além de poderem figurar como predicadores sentenciais, nós, como segundo passo, aplicamos a esses adjetivos que podem gerar as interpretações típicas das duas fontes sintáticas os testes semânticos independentes que separam adjetivos graduáveis de adjetivos não-graduáveis.
O quadro 2 apresenta os adjetivos retirados da amostra, divididos em três grupos, quanto à posição do adjetivo dentro da sentença. Na primeira coluna à direita do rótulo “adjetivos”, mostramos o adjetivo em posição atributiva, ou seja, dentro de um sintagma nominal, posposto ao nome modificado (tal como “alto”, em “È un funzionario alto” - “Ele é um funcionário alto”). Na segunda coluna à direita do rótulo “adjetivos”, mostramos o adjetivo em posição atributiva, anteposto ao nome modificado (tal como “alto”, em “È un alto funzionario” - “Ele é um alto funcionário”). Na terceira e derradeira coluna, marcamos a aceitabilidade do mesmo adjetivo, aparecendo isolado, sem estar dentro de um sintagma nominal, na função de predicado sentencial (tal como para “alto”, em “Lui è alto” - “Ele é alto”). Nessa coluna da fronteira direita do quadro 1 não há exemplos (não reproduzimos as sentenças que foram avaliadas) por falta de espaço. Nosso primeiro objetivo era localizar, entre os adjetivos elencados, quais seriam licenciados nas três posições. Somente esses seriam submetidos aos testes que identificam adjetivos de graus (marcamos este grupo com cor cinza claro no quadro 2).
Desprezaríamos para o teste de graus os adjetivos que se mostrassem aceitáveis somente em posição atributiva, e somente quando estivessem precedendo o nome modificado (como ‘futuro’, em “È lui il futuro sindaco” “Ele é o futuro prefeito”/ * “È lui il sindaco futuro”/ *“Il sindaco è futuro”) (as linhas em cinza mais escuro no quadro 2), bem como não testaríamos aqueles adjetivos que pudessem vir isolados como predicado sentenciais e também pudessem ser empregados atributivamente na posição canônica, mas não fossem aceitos na posição atributiva não-canônica (dentro de um sintagma nominal, antecedendo o nome) (tal como “quadrato”, em “il tavolo quadrato può ospitare quattro persone”/ “A mesa quadrada comporta quatro pessoas”/ *“Il quadrato tavolo può ospitare quattro persone” e “Quel tavolo è quadrato”/ “Aquela mesa é quadrada”) - as linhas que contêm estes últimos estão em branco na quadro 2. Cada grupo inclui exemplos que demonstram quais adjetivos podem ser utilizados em posição pós-nominal, pré-nominal e em predicado sentencial.
Dos 31 adjetivos da amostra, 22 (as linhas sombreadas de cinza mais claro no quadro) podem ser usados nas duas posições atributivas e, também, na predicativa. Segundo nossa hipótese, esses 22 deveriam passar nos testes independentes para encontrar adjetivos graduáveis e os outros 9, que apresentam distribuição sintática diversa, deveriam falhar nesses testes, ou seja, esses 9 não seriam adjetivos de grau.
Os testes aplicados consistiram em avaliar a aceitação em construções intensificadoras, como (“Questo tavolo è molto grande” / “Essa mesa é muito grande” ou “Quest'acqua è molto liquida”/ *“Essa água é muito líquida”). Além disso, foram examinadas as participações em construções comparativas, como (“Questo edificio è grande quanto quello” / “Este prédio é tão grande quanto aquele” e *“Quest'acqua è più liquida dell'altra”/ *“Essa água é mais líquida que a outra”). Por fim, foi verificada a existência de opostos ou contrários para validar a classificação como adjetivos de grau (o posto de “grande” “grande” é “piccolo” “pequeno”, mas não há um oposto óbvio para “liquido” “líquido”, pois o que não está em estado líquido pode estar tanto em estado gasoso quanto pode estar em estado sólido). Essa verificação foi feita por meio de elicitação com um falante nativo, com pedido de que fosse fornecido o termo contrário (p. ex.: uma coisa que não é alta é... resposta: “baixa”.). A seguir, na quadro 3, vamos mostrar como cada item lexical se comportou nesses testes.
Verificamos que os adjetivos que podem ser empregados atributivamente tanto antes quanto após o núcleo nominal em italiano passaram nos testes que identificam os adjetivos graduáveis, e aqueles que só podem ser usados numa posição não passaram.
Portanto, os testes indicam que os 22 adjetivos da amostra examinada que são licenciados tanto antes quanto depois do núcleo nominal em italiano foram classificados como graduáveis, enquanto os outros 9, que não apresentam essa flexibilidade, não sendo licenciados em ambas as posições atributivas, não são adjetivos de grau. Há clara correlação entre as características distribucionais dos adjetivos em italiano e o pertencimento ou não à classe semântica dos adjetivos graduáveis. A testagem da amostra em italiano obteve resultados semelhantes aos descritos para o PB por Gomes e Sudré (2021).
À guisa de conclusão
O objetivo principal deste estudo é compreender de que maneira uma criança em fase de aquisição pode dominar a relação entre a posição do adjetivo na sentença e sua interpretação semântica, levando em conta os fatos distribucionais das línguas românicas. Para tanto, reproduzimos em italiano os testes que haviam sido feitos por Gomes e Sudré em PB. Os achados apontam para um mesmo comportamento nas duas línguas, permitindo pensar em um parâmetro sintático-semântico que abranja todas as línguas românicas, em linha com a cartografia.
Cinque (2010, 2014) propôs a existência de duas fontes sintáticas para a interpretação dos adjetivos nas línguas românicas: a relativa reduzida (adjetivos pós-nominais) e a projeção funcional (adjetivos que podem ocorrer antes e depois do nome). Segundo essa proposta, adjetivos antes do nome possuem uma única interpretação e uma única fonte, a projeção funcional, como em “altas horas”. Adjetivos pós-nominais com interpretação intensional também têm como fonte a projeção funcional, como em “um problema sério”. Para adjetivos pós-nominais com interpretação extensional, faz-se uso da relativa reduzida, como em “um homem velho”. Para o autor, a interpretação intensional (obtida com os adjetivos pré-nominais) é fruto direto da construção sintática funcional, enquanto a interpretação restritiva (obtida com adjetivos pós-nominais) é fruto de uma construção em relativa reduzida. Porém, essa proposta não conversa com o mapeamento da distribuição dos adjetivos em três grupos, tanto em PB como em italiano, e, por isso, obrigaria a assumir que um bom número de adjetivos pode ser construído tanto numa fonte sintática como na outra, dado gerarem interpretações intensionais e extensionais, e permitir essa duplicidade de fontes para uma mesma palavra seria muito confuso para a fase da aquisição da linguagem.
Com resultados positivos dos testes e a confirmação de um comportamento uniforme dos adjetivos de grau em italiano, outra hipótese que levantamos e comprovamos é a existência de um padrão posicional e semântico para essas línguas românicas. Mantivemos a essência da proposta cartográfica, em que a posição dos adjetivos em relação ao núcleo nominal e a fonte sintática influenciam na sua interpretação, acrescentando apenas a ideia de restrição de domínio para a busca do segundo termo da comparação implícita a essa explicação.
Neste artigo, discutimos sobre o licenciamento dos adjetivos em posição atributiva no PB e na língua italiana, destacando suas posições canônicas (pós-nominais) e suas posições pré-nominais. Com a aplicação dos testes independentes para avaliar o comportamento dos adjetivos em ambas as línguas, encontramos um padrão posicional e semântico consistente nas línguas românicas. Essa descoberta tem implicações para a compreensão dessas línguas, para o ensino de idiomas e desenvolvimento de materiais didáticos.
Agradecimentos
Agradecemos aos pareceristas anônimos pela leitura cuidadosa do artigo e pelas muitas sugestões que contribuíram para a melhoria deste artigo. Naturalmente, todos os erros remanescentes são de responsabilidade dos autores.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Set 2024 -
Data do Fascículo
May-Aug 2024
Histórico
-
Recebido
04 Dez 2023 -
Aceito
21 Maio 2024