Open-access ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA E EMPODERAMENTO DE TREINADORAS PORTUGUESAS

STRATEGIES OF RESISTANCE AND EMPOWERMENT OF PORTUGUESE WOMEN COACHES IN SPORTS

RESUMO

Considerando que a participação das mulheres no esporte tem evidenciado desigualdade e assimetria de gênero nas várias funções e âmbitos de atuação, esta pesquisa tem como objetivo analisar como a hegemonia dos homens na função de treinador é negociada e contestada por mulheres que ocupam esta posição. Para tanto, foram entrevistadas 37 treinadoras portuguesas que atuam em esporte individuais e coletivos. Os resultados indicam que a presença no cargo de treinadora não garante uma contestação a esta hegemonia. O caráter generificado atribuído à esta ocupação promove situações discriminatórias que exigem das mulheres ações de empoderamento e agência para que possam modificar estruturas que tendem a perpetuar sua sub-representação.

Palavras-chave: Mulheres; Esporte; Gênero; Empoderamento

ABSTRACT

The participation of women in sports is the subject of analysis of several studies that continuously evidence inequality and asymmetry in relation to men in the different spheres of activity within this field. The objective of this study is to comprehend male hegemony as coaches and how it is accepted and/or contested in the sports environment by identifying attitudes that incorporate this male dominance or that contradict and resist it. The sample of this study is composed of interviews with 37 Portuguese female coaches in both individual and team sports. The results indicate that the presence of women in leadership positions in sports, such as of head coach, does not ensure in itself an objection to male hegemony. It becomes necessary that women incorporate the concept of “agency” in order to identify and implement strategies that resist and consequently change the patriarchal structures that perpetuate the underrepresentation of women in coaching sports.

Keywords: Women; Sports; Gender; Empowerment

Introdução

O tema da participação das mulheres no esporte tem sido objeto de análise de vários estudos em diferentes contextos culturais, os quais têm evidenciado uma situação de desigualdade e assimetria em relação à participação dos homens nas várias funções e âmbitos de atuação. No caso específico de mulheres treinadoras identificam-se estudos que permitem categorizar alguns domínios explicativos da sua sub-representação: estrutural, organizacional e análise relacional. No primeiro domínio, é frequente o uso da teoria das influências estruturais1, centrando a análise na proporção de mulheres na função de treinadora de atletas/equipes e os aspectos que contribuem para essa realidade. Da análise desses estudos, inferia-se que o aumento do número de mulheres treinadoras promoveria maior poder, o que, por sua vez, exerceria influência e controle sobre quem detivesse esse cargo2. Dessa forma, o abandono desse cargo pelas mulheres tenderia a diminuir, aumentando as oportunidades de iniciarem carreira como treinadoras e nela progredirem.

No domínio organizacional, os estudos evidenciam quais são os critérios adotados para selecionar as pessoas responsáveis por treinar atletas/equipes e quem tem poder para defini-los. O conceito da reprodução homóloga1 parece explicar a continuidade de um número diminuto de mulheres treinadoras. Este conceito, inicialmente concetualizado por Kanter, prediz que um grupo dominante dentro de uma organização (nesse caso homens) se esforçará para manter cuidadosamente o poder e o privilégio, reproduzindo-se sistematicamente à sua própria imagem. Essa reprodução sistemática é realizada pela contratação e promoção de outros homens. Se o ambiente de quem exerce a função de treinador/a é dominado por homens e estruturado pelas suas normas e valores, as mulheres dificilmente serão indicadas ou aceitas. Nesse domínio, identifica-se a prática da discriminação como uma barreira à entrada de mulheres na carreira de treinadoras3.

Dentre quem exerce as funções de orientar e treinar, as treinadoras foram identificadas como grupo minoritário e marginalizado4, com remunerações inferiores e menores incentivos para progredir na carreira, comparadas aos homens, e ainda apresentaram baixas expectativas e aspirações quanto às suas carreiras5. Além disso, o sexo de quem exerce a função de treinador/a principal tem impacto direto na composição dos membros de uma equipe técnica, independentemente da modalidade esportiva6. Os estudos que recorrem à análise relacional pretendem romper com a tendência da ênfase na quantificação das diferenças entre homens e mulheres responsáveis por treinar atletas/equipes, que sugerem os homens como os melhores para esse cargo7,8.

Considerando que as desigualdades de gênero no âmbito do esporte provêm de sua estruturação como um espaço de hegemonia masculina, as práticas e relações dominantes na função de treinadora decorrem de normas e valores culturais determinados pelos homens, o que restringe as mulheres a modificarem as circunstâncias que dificultam seu acesso e atuação nesse cargo9. Para Gramsci, hegemonia descreve uma forma de controle mais persuasivo do que coercivo, dependente da produção e manutenção de valores e crenças em que se apoiam as estruturas de poder e as relações sociais existentes, operando essencialmente de um modo subtil como forma de persuasão ideológica. Parece claro que a hegemonia vivida, enquanto estrutura de poder, é sempre um processo e não uma forma de dominação simples e passiva, levando-nos, esse conceito, a refletir sobre a forma como se produzem, reproduzem, contestam e modificam os significados que legitimam a dominação masculina, também no desporto10.

Para o alcance de mudanças na vida das mulheres, é frequente recorrer-se ao conceito de “empoderamento”, que implica revisitar e desafiar as estruturas e mecanismos de poder que marginalizam as mulheres em espaços ou áreas de ação em que as desigualdades de gênero estão profundamente enraizadas. Empoderamento (empowerment), ou capacitação, é um conceito introduzido pelo movimento feminista nos anos de 1970, no sentido da emancipação das mulheres e da promoção da igualdade de gênero. Empoderamento pode e deve ser entendido como um processo de continuidade e mudança, sempre em curso11.

Outro conceito que interessa a esta pesquisa é o de “agência”12, o qual implica entender que as pessoas exibem agência quando atuam de forma não esperada, considerando as formas como as instituições moldam as atitudes e ações, as crenças e as tradições interiorizadas. Como efeito, “agência nunca é uma coisa em si, mas sempre faz parte do processo do que Giddens chama de estruturação: o fazer e refazer de formações sociais e culturais mais amplas”13. Destacando os elementos de ação (motivação, intencionalidade e racionalidade), agência não deve considerar os atos conscientes dirigidos a um fim; não deve ser definida pela intenção, mas sim, pela capacidade de gerar ações, de poder atuar de outra forma e, implicitamente, de poder. O poder entendido como a capacidade que o indivíduo tem de intervir no decurso dos acontecimentos alterando-os12. Pode dizer-se que a noção de agência tem dois campos de significado, não sendo meramente um ou outro: um significado diz sobre a intencionalidade e o fato de perseguir projetos e, o outro significado tem a ver com poder, com o fato de atuar em contextos de relações de desigualdade, assimetria e forças sociais13.

Assim, as pessoas, como agentes, são capazes de introduzir mudanças, mas podem deixar de sê-lo quando perdem essa capacidade de influenciar o social. A agência das mulheres não pode ser concebida fora da hierarquia de gênero e dos contextos estruturais e institucionais9, e resulta, em parte, do fato de as mulheres a usarem dentro dos limites das regras e recursos existentes14.

Considerando que a definição de agência não é fixa ou universal15, pretende-se com este estudo identificar as estratégias desenvolvidas pelas mulheres para desafiar os constrangimentos culturais, estruturais e individuais que enfrentam quando atuam na função de treinadoras de atleta/equipes. Ou seja, analisa como as mulheres negociam com a hegemonia masculina nessa função, identificando algumas atitudes individuais e coletivas que incorporam essa hegemonia ou, ao contrário, que a contrariam e a ela resistem. Para tanto, restringimos a análise ao contexto esportivo de Portugal.

Métodos

A pesquisa integra o projeto Garimpando Memórias, que foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul sob o número 2007710. O estudo apresenta um recorte qualitativo, cuja definição dos sujeitos se deu a partir de uma amostragem aleatória e intencional16.

Participantes

Participaram da pesquisa 37 treinadoras de Portugal. As participantes apresentam diversas características relativas à idade, às modalidades esportivas (individuais e coletivas), aos escalões (formação ou seniores) das equipes/atletas que treinam. Para o corpus empírico da investigação contemplamos treinadoras de esportes individuais e coletivos: handebol, basquetebol, futebol, futsal, natação, ginástica, voleibol, rugby, patinação artística, dança, tênis, xadrez, karatê, vela, atletismo e desporto adaptado.

A idade das participantes varia entre 17 e 50 anos, sendo que 43% têm menos de 30 anos e 56% das treinadoras entrevistadas atuam em esportes coletivos.

Tabela 1
Número de treinadoras considerando a idade, situação familiar, nível de escolaridade, atividade profissional na área da EF e do desporto, e as que têm outras ocupações profissionais para além de serem treinadoras

No que diz respeito à dimensão familiar, a maioria das treinadoras é solteira ou separada (68%) e 60% são mães; 62% apresentam nível de escolaridade superior, sendo que 49% têm essa formação em Educação Física. No que se refere à ocupação, 89% das entrevistadas têm outra profissão, além de serem treinadoras, mesmo quando são profissionais de desporto (16%). As outras profissões (para além de professoras de EF ou profissionais de desporto) são muito variáveis desde técnicas administrativas, agentes dos serviços de transportes públicos ou engenheiras informáticas, perfazendo 54% das participantes (ver Tabela 1).

Procedimentos

Os dados analisados provêm de entrevistas semiestruturadas individuais, as quais foram registradas em gravador digital, após o conhecimento e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por todas as participantes. O roteiro contemplou questões sobre os fatores que limitam a plena participação ou subvalorizam a atividade de treinadora, incidindo em temas como: o acesso ao cargo de treinadora, a atuação e permanência na carreira, a conciliação entre a vida profissional (incluindo a atividade de treinadora) e familiar, as condições de treino e a opinião relativa à sub-representação de mulheres treinadoras. Na parte final das entrevistas, possibilitou-se a cada treinadora a oportunidade de complementar ou desenvolver alguma das suas respostas, caso o desejassem. Para preservar o anonimato das participantes utilizamos pseudônimos.

As entrevistas foram integralmente transcritas e depois sujeitas a uma análise interpretativa decorrente do tratamento da informação pelo programa QSRNVivo10. O processo de análise dos dados de uma investigação qualitativa caracteriza-se por ser sistemático, contínuo, mas não rígido, e só deve terminar com a emergência de regularidades17, pelo que foi sendo desenvolvido até nenhuma nova informação emergisse da análise de dados adicionais.

Procedeu-se a uma análise indutiva dos dados, isto é, as categorias de análise não foram impostas num momento precedente à sua recolha e análise, mas emergiram dos próprios dados. Assim, no presente estudo, permitiu expor à consciência e levar a uma reflexão um conjunto de significados e práticas das treinadoras, no que diz respeito ao efeito de gênero, relevando sobretudo duas dimensões: a do empoderamento e da discriminação.

Resultados e Discussão

Da acomodação ao empoderamento

Da análise dos dados emergiram quatro categorias principais referentes à classificação das atitudes das treinadoras no que diz respeito à hegemonia masculina nessa profissão e à hierarquia de gênero identificada no contexto do esporte: atitudes de acomodação e de incorporação, de resistência e de empoderamento.

Quando associamos a essas categorias um dos atributos das participantes (treinar uma modalidade coletiva ou uma individual), a análise evidencia maior frequência relativa de ocorrências nas categorias de resistência/empoderamento nas afirmações das treinadoras das modalidades coletivas (40,9%), em comparação às afirmações das treinadoras de modalidades individuais (28,6%). Nas atitudes categorizadas como acomodação e incorporação, as declarações das treinadoras das modalidades individuais apresentam frequência mais elevada na categoria acomodação (42,8%) que as de modalidades coletivas (22,7%).

Podemos situar no discurso das treinadoras atitudes de acomodação e de incorporação, decorrentes da anuência à hierarquia de gênero que valoriza os homens, afirmações que revelam a integração/incorporação de uma ideologia hegemônica que as subordina. Nesse sentido, destacam-se as formas como incorporaram o papel maternal e o integram nas suas funções de treinadoras.

Lia: O meu marido também é do desporto, mas de uma modalidade diferente […] Entretanto, e após o nascimento da minha filha, as solicitações aumentaram e tive que passar a estar os dois dias do fim de semana no clube. Tinha que a levar comigo ainda no carrinho de bebê. O meu marido não ficava com ela e isso tem muito a ver com a mentalidade e sobretudo com os antecedentes familiares.

Algo que emerge nessas categorias é o modo como se acomodam à ideia de que o esporte masculino é, e continuará a ser, mais valorizado, ou como interiorizam que as treinadoras têm que ser muito melhores que os seus pares homens para poderem ver o seu trabalho igualmente reconhecido.

Luísa Pt: Mas têm que ser [as treinadoras] muito melhores que os homens. Na sociedade em geral e ainda mais no desporto, a mulher, para se impor, tem que ser muito melhor que os concorrentes para os ultrapassar. Não só os preconceitos como a vida do dia a dia.

Também as características associadas ao masculino aparecem como referência na função de treinar atletas/equipes, apontando-se, inclusive, ao maior índice de força associado ao corpo dos homens como indispensável para essas mesmas funções.

Rosa: Considero que na Artística Feminina é fundamental a presença de um treinador. […] é necessário a força de um homem para ajudar a ginasta a aprender a fazer certo tipo de movimento.

A incorporação de estereótipos e de papéis sociais de gênero é revelada, e é patente uma acomodação à hierarquia que designa uma subvalorização das funções e constrange a atuação e a progressão na carreira de treinadoras. Emerge um estado de consciência acerca das dificuldades que serão travadas e do percurso tortuoso que será trilhado quando se pretende continuar nessa função. Primeiro, é sempre necessário saber gerir a surpresa desencadeada nos outros; depois, saber desenvolver estratégias que permitam lidar com os constrangimentos impostos, seja os de âmbito pessoal ou aqueles inerentes à função de treinadora, e avançar no percurso.

Paula: Quando veem uma mulher treinadora ficam surpreendidos. […] Nós sabemos que vamos enfrentar dificuldades na vida pessoal por causa da nossa vida profissional. Acabamos por ter muito mais força.

Odete: Temos que trabalhar com eles e conseguir um ponto de equilíbrio. Para nós mulheres é muito mais difícil e há muitas que desistem pelo caminho porque não estão para engolir certos sapos. Eu também já engoli alguns e aprende-se muito.

Com um menor número de ocorrências, estão presentes declarações que revelam intenções de resistir à hegemonia masculina, que exteriorizam estratégias esporádicas de resistência, mas sem repercussões no contexto. São estratégias que permitem sobreviver no ambiente hegemônico de uma cultura de/para o masculino, sem qualquer impacto no percurso das jovens que pretendam iniciar a carreira de treinadora. Essas estratégias não provocam alterações no caminho a trilhar, o qual somente algumas conseguem fazer com êxito.

Já nas atitudes que designamos de empoderamento, identificam-se estratégias pelas quais se pretende contrariar a dominância do masculino, mas com repercussões no contexto do exercício da profissão de treinadora. O principal fator apontado pelas treinadoras que revelam essas atitudes, relaciona-se com o nível cultural das pessoas, com a vontade de que a sociedade não mais se organize em torno dessa hierarquia de gênero, completamente impregnada nas tradições, crenças, instituições e na educação.

Isa: É algo que é cultural e nos é imposto há séculos. Como é que queremos igualdade, se não fazemos por isso?

Júlia: Há um papel decisivo de quem está na escola na formação das pessoas. Temos que educar pessoas que tenham capacidade de intervenção, crítica, etc. E nós continuamos com um ensino demasiado autocrático.

Uma das razões explicativas da menor representação de mulheres no cargo de treinadoras fundamenta-se no conceito da “reprodução homóloga”1. Isso significa que quem tem a responsabilidade de selecionar e recrutar treinadores/as adota critérios vinculados a normas e valores de um ambiente exclusivamente masculino. Pela dominância de homens nos cargos de direção das organizações e estruturas do esporte, as mulheres dificilmente são indicadas para treinar atletas/equipes, mesmo sendo detentoras de currículo e formação superiores. E, quando indicadas, as situações que enfrentam exigem que apresentem constantemente provas da sua competência e responsabilidade para o exercício do cargo.

Vera: Quando me convidaram para treinar homens perguntaram-me se eu estava preparada para os treinar. E eu respondi: “Estou”. Mas são eles a minha preocupação. Será que eles estão preparados para serem liderados por uma mulher?

Ana: […] e cada vez há mais jogadoras e treinadoras a serem formadas, não percebo como é que não há mais treinadoras no activo. Os dirigentes que fazem as escolhas, muitas vezes não é por competência, é por conhecimento e “amiguismo”.

Nesse domínio associado ao conceito de reprodução homóloga, emerge o tema que mais se realça no discurso das treinadoras: a discriminação. Essa palavra encerra em si uma carga pejorativa que afasta o reconhecimento de situações e ações, nesse caso, de discriminação baseada no sexo das pessoas. Parece haver certo pudor em reconhecer a existência da discriminação, um conceito que certamente não faria mais sentido ser evocado na sociedade moderna, legislada com base nos princípios da igualdade. E, apesar de por vezes mencionarem que não se sentem discriminadas, ao relatarem algumas situações concretas de seu cotidiano, aparecem dados que caminham na contramão dessa afirmação. Suas falas estão permeadas por afirmações que negam a existência de discriminação nos contextos onde atuam, e simultaneamente descrevem situações dela decorrentes.

Amélia: Eu nunca senti nenhuma discriminação, mas o poder de limitar a nossa entrada é uma realidade. Se temos que ter determinado curso para treinarmos outras equipas e outros níveis de competição e o acesso aos mesmos é limitado, isso é a realidade do poder que abre ou fecha a porta discricionariamente.

A discriminação é, em alguns casos, incorporada de tal modo que uma atitude de raiz cultural passa a ser da ordem da natureza, como que enquadrada num determinismo biológico, aceita e inibidora de qualquer tipo de contestação ou resistência. No entanto, as descrições de situações de discriminação, direta e indireta, são frequentes e incidem sobre a questão da remuneração das treinadoras.

Manuela: Também quando estive como profissional na Federação, havia homens, com a mesma função que eu, que ganhavam mais.

A discriminação em relação à remuneração repercute nas possibilidades de formação das treinadoras. Dentre as entrevistadas, a baixa (e por vezes inexistente) remuneração do cargo de treinadora impossibilita o investimento na formação, devido aos valores exigidos nos cursos que, por sua vez, são obrigatórios dependendo dos escalões e/ou níveis de competição em que atuam. A baixa remuneração é um assunto muito focado e figura, somada à falta de reconhecimento do trabalho desenvolvido, como um dos principais impedimentos de ascensão na carreira.

Mané: O que acontece é que os treinadores são muito mais bem pagos, o que facilita depois o acesso à formação. Podem despender parte da verba que recebem nos cursos, enquanto as mulheres vão ter que retirar dos orçamentos familiares.

Vera: Eu paguei os cursos que fiz do meu bolso, mas também já tinha a minha vida estabilizada. O curso de nível 3 custa 1750 euros. A maior parte das pessoas não tem condições e, como tal, só há seis mulheres com esse curso em Portugal. E destas seis, apenas duas estão a exercer.

Sónia: Foi preciso começar a treinar masculinos para ganhar algum dinheiro. […]. Por isso a discriminação começa logo nas remunerações.

O ciclo parece vicioso. As menores remunerações atribuídas às treinadoras - ou por serem mulheres ou porque treinam equipes femininas - impossibilitam-nas, entre outras situações, de investir mais em sua formação, a qual obrigatoriamente devem possuir para poderem treinar escalões e equipes de maior pretígio e, infere-se, mais bem remuneradas.

A generificação da ocupação do treino e sua necessária desconstrução

As reduzidas taxas de feminização no cargo de treinadora estão devidamente ilustradas em múltiplos estudos, por meio de dados que apenas permitem apresentar o estado da situação, inequivocamente desigual, de mulheres e de homens nessa profissão. Dados sobre o enquadramento do esporte federado em Portugal, em 2010, apresentam uma percentagem muito baixa de mulheres inscritas como treinadoras: 15,4% do total de treinadores, as quais atuam em 47 federações esportivas18.

O esporte é um domínio da vida social que contribui ativamente para a construção do gênero noutras esferas da vida das pessoas. Por sua vez, os clubes e associações desportivas, as instituições e estruturas que regem e organizam o esporte possuem tradições, valores e regras marcadas pelo gênero, configurando-as como espaços de segregação, que influenciam qualquer iniciativa de foro organizacional inovadora em relação às mulheres19.

A análise dos dados das entrevistas permitiu elencar vários tipos de posicionamentos e atitudes das treinadoras acerca do ambiente, caracteristicamente de dominância e valorização do masculino, onde têm de atuar. Com grande expressão, encontramos referências à incorporação de comportamentos e papéis que socialmente se esperam das mulheres, as quais sempre as (re)colocam numa posição subalterna ou as impedem de ascender a outro posicionamento na sua carreira de treinadora. Tais referências apontam que as mulheres estão habilitadas com mais competência para treinar escalões de formação e, portanto, apresentam déficit de características e atributos imprescindíveis ao treinamento de atletas/equipes de escalão sênior ou de nível competitivo superior.

A incorporação desses ditames do papel das treinadoras, em tudo condizentes com os da sociedade em geral que as sub-representa em vários campos sociais, sugere uma perpetuação da hegemonia masculina e da hierarquia de gênero que manterá, ou fará diminuir, a representação de mulheres na função de treinadoras. Os discursos relativos à masculinidade estão associados a influentes papéis de gestão e de treino, contrastando com os discursos relacionados à feminilidade que aparecem ligados a papéis de menor poder, muito vinculados ao ensino. Tais papéis, assim como os discursos que os informam, são reificados e tidos como certos dentro das organizações20. Com efeito, a incorporação e acomodação pelas treinadoras dos papéis sociais de gênero na sociedade, e refletidos no espaço cultural do esporte, das normas e valores da masculinidade, acabam por torná-las inábeis na identificação das discriminações de que são alvo e impotentes para serem agentes de mudança na hierarquia de gênero.

As estratégias adotadas pelas treinadoras para lidar com as discriminações e os constrangimentos organizacionais são esporádicas e ajustadas a um tempo e a um contexto. Os relatos geralmente se situam em experiências afetadas por relações de nível micro, de situações e interações do cotidiano. Caracterizam-se por serem estratégias que se estruturam a partir da incorporação das regras e valores vigentes no típico ambiente masculino de treinadores, e permitem às treinadoras a sobrevivência nesse sistema alicerçado numa hierarquia de gênero. Parece que a questão centra-se na ambição de ser capaz de ascender a esses lugares, adaptando-se às exigências e aos constrangimentos impostos pelo simples fato de ser mulher. O respeito alcançado pelos pares de profissão é essencial para o sucesso de liderar o processo de treino, mas é um respeito condicionado. As mulheres têm que provar a si mesmas que conseguem ascender ao nível mais alto da competição e, para tal, têm que trabalhar muito mais que os seus colegas homens8.

As declarações das treinadoras entrevistadas confirmam o esforço que precisam desenvolver para conseguirem o reconhecimento e a consideração dispensados aos seus colegas treinadores. Seus relatos sugerem que, nas funções de liderança de atletas/equipes, um homem tem que provar a sua incompetência antes de perder o lugar, enquanto uma mulher tem que demonstrar as suas capacidades por um tempo considerável até ser reconhecida como os seus colegas homens e para conseguir o que eles têm desde o início da carreira21.

A constatação de um número expressivamente maior de treinadores do que de treinadoras no alto rendimento sugere uma tendência: quanto mais elevado (ou visível) é o nível de competição de equipes/atletas, maior é a supremacia masculina18. A baixa representação de treinadoras nos níveis mais elevados de competição limita as possibilidades de carreira no esporte e reforça estereótipos sobre as capacidades de liderança das mulheres22. Essa sub-representação assume maior importância pela representação simbólica, que pode se constituir na motivação e expetativas das mulheres atletas23, algumas das quais relatam sentir menos discriminação quando são treinadas por uma treinadora3. Em modalidades esportivas como o futebol e o futsal parece existir um monopólio cultural que privilegia quase exclusivamente treinadores, além de assegurar um permanente questionamento à legitimidade do desempenho dessa função por uma mulher19,24.

Aquele que decide quem será responsável por liderar atletas/equipes também afirma uma cultura de dominação masculina por um processo de seleção discriminatório. Os gestores de uma organização são os responsáveis pela composição da sua estrutura e tendem a selecionar e recrutar elementos semelhantes a si, em termos de educação e gênero, reproduzindo uma cultura na qual não são rompidas as assimetrias de gênero existentes nesse campo. O menor número de mulheres numa organização identifica-as como um grupo minoritário, constantemente observado, que as conduz a um excesso de desempenho. Por outro lado, essa relação leva a uma polarização de estereótipos dos dois grupos, cujos integrantes do grupo minoritário terão que lutar permanentemente pelo reconhecimento das suas qualidades e competências como elementos, profissionais ou não, pertencentes a um grupo1.

Num estudo desenvolvido por Wilkerson25, os critérios de valor subjetivo no processo de seleção são decisivos. Nele, percebe-se que a capacidade de formar atletas com um forte caráter competitivo e a competência para maximizar o potencial de cada atleta secundarizam, ou tendem a ignorar critérios objetivos como as certificações profissionais, os resultados obtidos nessa função, a experiência ou o grau de certificação de formação para treinar. São identificáveis as barreiras à qualificação das mulheres como treinadoras, bem como os mecanismos que as impedem de obter mais formação, uma vez que, frequentemente, parecem atuar mesmo antes de se iniciar a formação19.

As treinadoras foram explícitas nessa matéria. A formação lhes é indiretamente dificultada pelos valores monetários que implica, não podendo recorrer às remunerações que auferem, pelo fato de estas serem de valor simbólico, ou mesmo inexistentes. Os cursos de atualização e de formação são exigidos em termos regulamentares para poderem exercer funções em escalões e competições mais prestigiantes. Para essas treinadoras, os mecanismos que as afastam de investirem na sua formação são evidentes, e as opções das organizações esportivas reforçam essa discriminação, como ilustra o seguinte exemplo:

Mané: Todas as vezes que a Federação exigiu que o treinador para estar no banco teria que ter determinado nível, o clube, que é de bairro, sujeitava-se a pagar o que um treinador de fora pedia. Fazia-o com muito esforço, em vez de investir na formação de uma das treinadoras do clube. Quase sempre deu mau resultado porque as pessoas que vinham não tinham aquele amor ao clube que nós temos. Poderiam investir nas treinadoras do clube que se dedicam muito e conhecem bem as jogadoras e os particulares do clube. É preconceito. Eles próprios não se apercebem, mas é.

Esse mecanismo produz uma barreira discriminatória, a qual afeta as treinadoras que pretendem investir nas suas carreiras, impedindo-as de avançar para situações mais prestigiantes e de maior poder. Esse aspecto é metaforicamente designado como “teto de vidro” e pretende remeter as mulheres à invisibilidade27. Outra leitura desse conceito sugere a metáfora representada pela imagem de uma “parede de vidro”, dada a visível desigualdade de oportunidades vivenciada por homens e mulheres ao buscarem ascender ao cargo de treinador/a, uma vez que ainda se considera fora do normal, inesperada e não aceita, como a norma na sociedade, a transposição dessa parede pelas mulheres27.

Conclusões

Após analisarmos as entrevistas, identificamos que no contexto português as mulheres que conseguem alcançar lugares de treinadoras de nível competitivo são respeitadas. Contudo, de forma geral, não se contestam as normas e valores subjacentes ao árduo percurso conquistado, nitidamente pautado por uma ideologia conservadora em relação aos papéis de gênero. A agência de mulheres é definida, não na mera intenção, mas na capacidade de ação; não na finalidade, mas na capacidade de intervir casualmente numa sequência de acontecimentos. Dessa forma, a ação implica a possibilidade de poder atuar de outra forma e, de modo subjacente, ter poder12. No entanto, é preciso notar - e os resultados do presente estudo assim o exigem - que o conhecimento acerca das circunstâncias de ação e de suas possíveis repercussões é determinado pelo desigual poder que incide sobre essas circunstâncias. Deve-se considerar as limitações do presente estudo, desde a forma de recrutamento das participantes, que voluntariamente se disponibilizaram para falar sobre o tema, não sendo estabelecidos critérios exclusivos. No entanto, foram envolvidas treinadoras de diferentes modalidades desportivas, individuais e coletivas, incluindo treinadoras que já tivessem experiência em competições masculinas.

Agente é aquele capaz de introduzir mudança, e o poder é crucial em todo esse processo. O processo de mudança implica o comprometimento de mulheres e de homens, e a agência das mulheres deve também ser representada em relação a estruturas macro. Além disso, a agência não pode ser concebida fora da hierarquia de gênero estabelecida e dos contextos estruturais e institucionais9, o que implica afirmar que a presença de mulheres atuando como treinadoras não garante por si só uma contestação à hegemonia masculina nesse campo. É necessário que elas se constituam agentes para atuarem na identificação e implementação de estratégias que não só resistam, mas mudem as estruturas conservadoras que tendem a perpetuar sua sub-representação nas funções de poder e liderança no esporte.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    13 Nov 2018
  • Revisado
    30 Ago 2019
  • Aceito
    01 Set 2019
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