Open-access DISCURSOS DE PROFESSORES DE JUDÔ DO ESPÍRITO SANTO SOBRE AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS PARA AS CRIANÇAS

DISCOURSES FROM JUDO TEACHERS OF THE ESPÍRITO SANTO STATE ON PEDAGOGICAL PRACTICES FOR CHILDREN

RESUMO

O artigo tem como objetivo analisar, por meio dos discursos de professores de judô que trabalham com crianças, como eles conduzem as suas práticas de ensino com o público infantil. Trata-se de um estudo descritivo-interpretativo realizado com 33 professores do estado do Espírito Santo. Os dados foram produzidos por meio de questionário enviado pelo Google Forms. Os resultados indicam que os professores enfatizam os aspectos axiológicos, técnicos e o desenvolvimento motor em seus processos de ensino, que apontam para uma concepção universal de infância. Embora utilizem os jogos e as brincadeiras em suas aulas, os discursos sugerem uma apropriação instrumental dessas manifestações lúdicas, com pouco espaço para que as crianças tenham as suas subjetividades, agências e práticas autorais reconhecidas e valorizadas.

Palavras-chave: Judô; Criança; Ensino; Aprendizagem

ABSTRACT

The article aims to analyze, through the speeches of judo teachers who work with children, how they conduct their teaching practices with children. This is a descriptive-interpretative study carried out with 33 teachers from the state of Espírito Santo. Data were produced through a questionnaire sent by Google Forms. The results indicate that teachers emphasize axiological, technical, and motor development aspects in their teaching processes, which point to a universal conception of childhood. Although they use games and play in their classes, the discourses suggest an instrumental appropriation of these playful manifestations, with little space for children to have their subjectivities, agencies, and authorial practices recognized and valued.

Keywords: Judo; Kids; Teaching; Learning

Introdução

O judô é um dos esportes individuais mais praticados no mundo. Só no Brasil, são cerca de 2 milhões de praticantes1. Trata-se de uma modalidade tradicional, criada pelo professor Jigoro Kano, no Japão, em 1882, ancorada na disciplina, no respeito e na hierarquia. O objetivo do judô é desenvolver o físico e a mente de forma integrada2. Devido a essas características, o judô tem sido procurado por muitos pais como meio auxiliar na educação de seus filhos, resultando em um número expressivo de crianças que praticam esse esporte.

Segundo o Comitê Olímpico Internacional, o judô é um esporte completo, pois promove valores como a amizade, a participação e o respeito mútuo. Em detrimento de ser uma prática cultural e esportiva com uma filosofia direcionada à formação do cidadão, que prioriza valores importantes em todas as fases da vida humana, o judô é amplamente difundido pela Unesco, sobretudo, para crianças e adolescentes3.

Por ser um esporte que enfatiza a disciplina e a hierarquia, os processos de ensino-aprendizagem do judô têm ocorrido, majoritariamente, por meio do “modelo comando”4. Nesse modelo, os procedimentos pedagógicos estão centrados na figura do professor, que detém todo controle e direcionamento da aula, restando pouco espaço para que os sujeitos da aprendizagem tenham autonomia e para que as suas agências e práticas autorais sejam reconhecidas e valorizadas.

Diversos autores ratificam a predominância dos métodos tradicionais no ensino do judô5)-(6, que, ao submeterem os aprendizes a uma condição de passividade e de subalternidade, supervalorizam a imagem do mestre, a aprendizagem por meio da repetição de gestos técnicos e o caráter formativo-moral dessa modalidade esportiva.

E no caso do judô infantil, como os professores têm trabalhado com as crianças? Os modelos tradicionais de ensino têm prevalecido nas práticas docentes? Devido às especificidades do público infantil, os procedimentos de ensino do judô têm se diferenciado daqueles utilizados com os adultos?

Para responder essas questões que norteiam o estudo, o artigo tem como objetivo analisar, por meio dos discursos de professores de judô que trabalham com crianças, como eles têm conduzido as suas práticas de ensino com o público infantil. Do ponto de vista acadêmico, a realização desse estudo justifica-se pela incipiência de pesquisas que focalizam o discurso de professores sobre o ensino do judô infantil no contexto pesquisado7. No que tange a relevância social, o estudo poderá fomentar reflexões acerca do papel das crianças nos processos de ensino-aprendizagem dessa modalidade esportiva.

Métodos

Este estudo caracteriza-se como uma pesquisa qualitativa, de caráter descritivo-interpretativo. De acordo com Oliveira8, esse método de pesquisa pressupõe “[...] a descrição das características de determinada população ou fenômeno. São incluídas neste grupo as pesquisas que têm por objetivo levantar as opiniões, atitudes e crenças de uma população”.

Os sujeitos desta pesquisa são 33 professores, um representante de cada escola de judô registrada na Federação Espírito-Santense de Judô (FEJ). Essa amostra corresponde a 100% do total de escolas de judô do Espírito Santo cadastradas no banco de dados da Confederação Brasileira de Judô (CBJ), ou seja, 33 instituições que atuam em diferentes contextos (clubes, academias, escolas, projetos sociais, dentre outros espaços).

Os critérios de inclusão dos participantes foram: 1. ser professor de judô filiado à FEJ; 2. ter experiência mínima de seis meses atuando como professor de judô; 3. aceitar participar da pesquisa mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da Universidade Federal do |Espírito Santo (Parecer n. 4.602.267).

Em virtude da pandemia da Covid-19, os dados foram produzidos por meio de formulário eletrônico (Google Forms), enviado aos participantes via e-mail, com questões fechadas e abertas. Elaboramos um questionário com 11 questões fechadas relacionadas aos seguintes aspectos: caracterização dos sujeitos, formação profissional e atuação com o público infantil. O roteiro também apresenta três questões abertas sobre o papel do judô infantil, na concepção dos professores, os objetivos que eles buscam alcançar em suas aulas e os métodos adotados no ensino do judô para as crianças.

Os questionários foram disponibilizados aos professores entre os meses de abril e maio de 2020, fase mais aguda da pandemia, em que grande parte da sociedade brasileira estava em isolamento social. Nesse período, os 33 professores entrevistados estavam com as suas atividades docentes suspensas. Desse modo, as respostas dos professores são provenientes de suas experiências anteriores às restrições sanitárias impostas pela Covid-19.

No processo de análise, utilizamos a nuvem de palavras gerada pelo software Iramuteq, em diálogo com excertos das respostas dos participantes. O software foi desenvolvido por Pierre Ratinaud e permite fazer análises estatísticas sobre corpus textuais e sobre tabelas indivíduos/palavras9. No intuito de preservar o anonimato dos professores, utilizamos a letra P acrescida de numerais arábicos (P1 a P33) para designar as respostas dos entrevistados.

Resultados e discussão

Neste tópico, em um primeiro momento, descrevemos as características gerais dos participantes, como gênero, experiência com o judô infantil, graduação na modalidade e formação. Posteriormente, analisamos os seus discursos sobre o processo de ensino-aprendizagem do judô para crianças por meio de duas categorias gerais: objetivos do judô infantil e metodologias de ensino. Os professores entrevistados trabalham com crianças de 3 a 12 anos de idade em diferentes contextos, como academias, clubes, educação formal (curricular e extracurricular), projetos sociais e condomínios.

Dos 33 professores entrevistados, 29 são homens e 4 são mulheres. Essa predominância masculina reforça o estereótipo de que as lutas exigem virilidade, força e combatividade, características atribuídas aos homens, e que as mulheres são mais frágeis e podem se machucar10. Contudo, conquistas femininas no judô, como a medalha de ouro de Rafaela Santos, nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, e a medalha de bronze da atleta Mayra Aguiar, nas Olimpíadas de Tóquio, em 2021, contribuem para a desconstrução de representações que rotulam as mulheres como vulneráveis e inaptas à prática de lutas.

A maioria dos professores entrevistados possui uma ampla experiência no ensino do judô para crianças: 24 (73%) lecionam há mais de 10 anos; cinco (15%) têm de 7 a 10 anos de experiência; três docentes (9%) têm de 4 a 6 anos de experiência; e apenas um professor (3%) tem de 6 meses a 3 anos de experiência. O tempo elevado na docência com o judô infantil denota que os professores trabalham com as crianças por opção e não porque estão em início de carreira.

A experiência dos professores também se expressa em suas graduações. Dos 33 respondentes, 27 são graduados como Yûdanshas. Nessa graduação, o praticante recebe a faixa preta, símbolo de grande conquista e status na vida do judoca. Essa graduação é subdividida em cinco níveis, denominados dans. Cinco entrevistados são Kôdansha, que é uma graduação alcançada por quem dedicou a sua vida ao judô, imbuído pelo trabalho de difusão dos princípios educacionais e filosóficos da modalidade, sendo reconhecido por sua dedicação à prática, ao ensino e ao estudo do judô. Apenas um dos entrevistados é Dangai , etapa que é composta por 8 diferentes categorias, demarcadas pela cor da faixa que o praticante utiliza (branca, cinza, azul, amarela, laranja, verde, roxa e marrom). O professor entrevistado pertencente a essa etapa está na faixa marrom.

Quanto à formação profissional, apenas um dos 33 entrevistados não indicou sua formação. Vinte e seis deles possuem curso superior nas seguintes graduações: 19 são formados em Educação Física; três em Administração; dois em Economia; um é formado em História; e um possui formação em Nutrição. Embora a maior parte dos professores possua formação superior, Peset et al.11 alerta para um movimento de preservação das tradições e dos rituais do judô. Para os autores, grande parte dos rituais ainda está presente, fortalecendo as práticas que orientam o desenvolvimento do judô e resistências às mudanças trazidas pelos conhecimentos acadêmico-científicos. Essas resistências são direcionadas, sobretudo, às novas formas e métodos de ensino, na inovação do treinamento ou na transformação da didática existente há décadas.

Seis professores possuem a “formação artesanal”5, aquela forjada em suas trajetórias de vida no judô. Nessa perspectiva, é na observação, na oralidade e na relação cotidiana com o mestre/professor que o discípulo/aluno se desenvolve e assume pequenos trabalhos, repetindo aquilo que observou e vivenciou. Segundo Cunha12, nesse processo, o aprendiz incorpora uma dinâmica de atividades e, mediante várias tarefas, domina gradativamente o ofício docente.

Após a descrição e análise dos dados provenientes das questões fechadas, focalizamos, a seguir, como os professores conduzem as suas práticas de ensino com o público infantil. A Nuvem de Palavras 1, gerada pelo software Iramuteq, apresenta os termos mais presentes nas respostas dos entrevistados quando indagados sobre o papel do judô infantil e os objetivos que eles buscam alcançar em suas aulas:

Figura 1
Nuvem de Palavras 1 - objetivos/papel do judô infantil

A nuvem gerada pelo software compilou as palavras mais recorrentes nas respostas dos professores às questões referentes aos objetivos e ao papel do judô para as crianças. As palavras com maior número de incidência aparecem posicionadas mais ao centro da nuvem e com tamanho maior em relação às outras. Nesse sentido, a palavra “desenvolvimento” é a que mais se destaca na nuvem.

A palavra desenvolvimento é signatária de uma concepção de infância que considera a criança como um “vir a ser”, em que ela é vista pelas suas ausências e incompletudes, ou seja, pela ótica daquilo que ela ainda não é13. Nessa concepção, as crianças são colocadas na condição de anomia e de invisibilidade social, necessitando da intervenção dos adultos para que alcance o estatuto de seres ontologicamente plenos.

Sem negar a importância dos adultos nos processos de socialização e de desenvolvimento das crianças, concordamos com Prout14 quando fala da necessidade de superarmos a dicotomia entre “vir a ser” X “ser que é” nas ações educacionais destinadas às infâncias. Assim, ao mesmo tempo que precisamos oferecer condições para as crianças se desenvolverem em diferentes dimensões do comportamento humano (física, moral, cognitiva, afetiva e socioemocional), é necessário, também, que as consideremos como capazes de pensar e agir sobre si em seus mundos de vida. Para a Sociologia da Infância13),(15, as crianças não são “sujeitos passivos” em seus processos de socialização e de desenvolvimento. Como afirma Cohn16, os infantis não sabem menos do que os adultos, eles sabem outras coisas.

Dentre os diferentes aspectos relacionados ao desenvolvimento, destacam-se, nos discursos dos professores, aqueles vinculados ao campo axiológico, com ênfase em valores éticos e morais, como se evidencia nas seguintes palavras presentes na nuvem: moral, respeito, caráter, disciplina, valor social e cidadão. Os discursos dos professores em relação aos objetivos do judô, ratificam essa ênfase:

Ajuda na formação de caráter, ajuda na disciplina, traz bem-estar, a questão da parte motora e mental da criança (P6).

Importante para a formação de um cidadão mais completo, além de ajudar no desenvolvimento da saúde do aluno (P9).

Disciplina, respeito e desenvolvimento físico e mental (P13).

Auxiliar na formação de caráter e crescimento como indivíduo na sociedade (P20).

Disciplinar, educar e formar cidadãos do bem (P24).

É uma excelente ferramenta no processo de construção de valores, disciplinas, hierarquia, respeito, dentre outros, além de trabalhar efetivamente todos os benefícios das ciências do esporte (P27).

Educação e preparo físico diferenciado na formação do jovem através de suas regras e normas, por colaborar no desenvolvimento ético e moral utilizando seus princípios em situações de grupo, através do relacionamento de respeito mútuo (P33).

O foco no desenvolvimento axiológico coaduna com a filosofia difundida porJigoro Kano, criador do judô, e compartilhada por meio das representações sociais17 que circulam em nossa sociedade sobre essa modalidade esportiva. De acordo com Souza18:

[...] os valores são constituídos não apenas a partir da transmissão oral de significados, mas, em especial, a partir de uma educação desenvolvida por modelos e representações corporais de comportamentos e de atitudes, visando à construção de crenças coletivas de média ou longa duração.

Ao admitirmos o potencial educativo do judô para o desenvolvimento de um conjunto de valores, como respeito, disciplina, cidadania, dentre outros, salientamos que esses princípios não são intrínsecos a essa modalidade esportiva. Ou seja, o judô, em si, não é bom e nem é ruim. Ele é o que fazemos dele. Nesse sentido, a especialização precoce, o overtraining, a exigência da vitória a qualquer custo, são exemplos que podem trazer efeitos extremamente negativos para o desenvolvimento das crianças. Para Souza18, o esporte - aí incluímos o judô - é:

[...] uma prática corporal construída, vivenciada e modificada na interação dos homens na cultura, refletindo seus valores e gerando novos elementos valorativos, de tal modo que a sua forma e constituição dependerão sempre dos sentidos e significados que os indivíduos e os grupos sociais atribuem à sua prática.

Compreendemos que o judô não possui significados intrínsecos. Esse esporte está inserido na sociedade, que o significa, ressignifica e transforma. Portanto, o judô pode contribuir para construção educacional no campo dos valores, ancorado nos significados que damos a ele, especialmente, por se apresentar como uma manifestação sociocultural polissêmica19.

Outra dimensão associada à palavra desenvolvimento, identificada nos discursos dos professores, refere-se ao campo do desenvolvimento motor. A nuvem apresenta palavras como capacidade, habilidade, crescimento, coordenação, motor e físico, que remetem a esse campo. As seguintes descrições extraídas das respostas dos entrevistados evidenciam o foco no trabalho com o judô infantil visando o desenvolvimento motor:

Desenvolver as capacidades e habilidades motoras a partir de exercícios complementares (P10).

Trabalhar a coordenação motora e desenvolvimento na interação (P14).

Construção e desenvolvimento de habilidades motoras com direcionamento educacional. Desenvolver o interesse na modalidade para construção de habilidades (P15).

Crescimento, desenvolvimento neuromotor, formação e educação (P25).

Desde relações sociais, disciplina, desenvolvimento motor entre outros (P29).

De fato, o judô possui um rico acervo motor e, por meio de suas habilidades específicas, é possível desenvolver diversas capacidades coordenativas e condicionantes. Entretanto, nos discursos dos entrevistados, não há indícios que considerem o desenvolvimento motor como um processo em que “[...] o sujeito é ator do seu próprio desenvolvimento”20.

Percebe-se, assim, uma concepção universal de desenvolvimento motor, que considera todas as crianças como iguais. Nessa perspectiva, a maturação, que é um mecanismo regulatório endógeno, biologicamente determinado, é que exerce maior influencia no processo de desenvolvimento motor. Cabe destacar que diversas taxonomias associam as fases do desenvolvimento motor à idade cronológica do indivíduo. Dentre elas, destacamos: Gallahue e Ozmun21; Harrow22; Seaman e Depauw23. Nessa ótica, cabe aos professores, em suas intervenções pedagógicas, observar as demandas associadas a cada fase, como explicíta a resposta do professor que utiliza “[...] diversas metodologias combinadas, observando as fases de crescimento e aprendizagem” (P25) ou do docente que trabalha “[...] a parte técnica, adaptada a cada faixa etária” (P27).

Lima24 critica os métodos que tratam todos os praticantes de judô como iguais e que não observam o ensino fundamentado na individualidade do aluno. Manoel20 ao questionar os modelos desenvolvimentistas tradicionais, centrados na maturação, apresenta a visão sinergética. Para o autor:

[...] o peso da abordagem desenvolvimentista tradicional recaía sobre progressividade, continuidade, regularidade, padrões sequenciais, excepcionalidade no desempenho, e universalidade, e com a visão sinergética, o pêndulo oscila para a diversidade, descontinuidade, variabilidade, trilhas desenvolvimentistas, ubiquidade do desempenho, heterogeneidade.

Ao problematizarmos a visão estritamente maturacional do desenvolvimento, não negamos ou desconsideramos a importância da dimensão biológica nesse processo. Prout14 sinaliza outra dicotomia que precisa ser superada para que enxerguemos as crianças em sua totalidade: natureza X cultura. Se, por um lado, foi necessário ir além do olhar exclusivamente biológico na compreensão do desenvolvimento motor, também é preciso evitar a biofobia25, que secundariza o papel da maturação nesse processo. Embora pareçam contraditórios, universalidade e alteridade são duas dimensões que estão presentes, simultâneamente, no desenvolvimento motor dos indivíduos.

A Nuvem de Palavras 2 apresenta os termos mais recorrentes nas respostas do professores sobre os procedimentos utilizados no ensino do judô para as crianças:

Figura 2
Nuvem de Palavras 2 - procedimentos adotados no ensino do judô para as crianças

As palavras lúdico e brincadeira se destacam na nuvem e os termos jogo e ludicidade aparecem perifericamente, denotando que os professores se apropriam da dimensão lúdica no processo de ensino-aprendizagem do judô para as crianças. Assim como na educação formal, em que as brincadeiras, juntamente com as interações, constituem-se como eixos estruturantes da Educação Infantil26, o brincar assume uma centralidade no modo de ensinar o judô infantil para os professores entrevistados.

Entretanto, os discursos dos docentes apontam que, majoritariamente, os jogos e as brincadeiras assumem um caráter funcionalista, são apropriados como meio, como estratégia metodológica para atingir determinados objetivos27, como se observa nas seguintes descrições:

Misturando a metodologia tecnicista com a ludicidade que perpassa pela cultura corporal do movimento numa proporção adequada para o trabalho específico do esporte (P10).

Aplicando atividade recreativas com exercícios físicos e técnicas de judô (P14).

Desenvolvimento lúdico sem deixar de introduzir a parte esportiva e competitiva (P15).

Eu particularmente continuo com o judô tradicional, porém trabalho com o lúdico levando a criança a desenvolver os aspectos técnicos sem descaracterizar o judô kodokan (P21).

Divido a aula em momentos de ensino de atividades específicas do judô, atividades de desenvolvimento motor geral, técnica do dia, randori e um momento de descontração final, tudo de forma lúdica (P22).

Dependendo da idade, exercício lúdicos, aprende algumas técnicas de acordo com a idade e brincadeiras de acordo com a idade (P23).

Trabalho de forma simples e direta, usando brincadeiras alinhadas às técnicas de judô (P30).

Sempre introduzindo nas aulas brincadeiras e dinâmicas que serão úteis na construção do conhecimento técnico (P33).

De fato, por se constituir como uma linguagem típica da infância, a brincadeira se apresenta como recurso metodológico privilegiado para o ensino do judô infantil. Contudo, questionamos onde se encontra o “sujeito criança” nessas brincadeiras? Freire28 afirma que não é a atividade em si que determina se ela é jogo ou brincadeira, mas as relações subjetivas que os sujeitos estabelecem com ela. Não raro, é possível perceber crianças inseridas em atividades lúdicas, mas que não estão brincando, pois as relações que estabelecem com essas atividades não são mediadas pelo prazer, não são autodeterminadas e nem dão espaços para as suas práticas autorais e produções de culturas.

Em alguns casos, os professores utilizam-se das brincadeiras como recompensa, como um presente concedido às crianças por elas terem se dedicado ao treinamento: “Momento da brincadeira (reservo sempre os últimos 10 minutos para uma brincadeira escolhida democraticamente por eles, a fim de bonificá-los pelo esforço e a dedicação durante o treino)” (P27).

Consideramos possível conciliar os objetivos educacionais relacionados ao judô, sejam eles atrelados aos campos axiológico, técnico ou físico-motor, com brincadeiras que considerem o protagonismo e as agências das crianças, reconhecendo-as como construtoras ativas do seu próprio desenvolvimento e não como receptáculos vazios que precisam ser preenchidos pela racionalidade adultocêntrica. Para Sarmento29, nos processos educacionais com as infâncias, é preciso que haja:

Análise dos mundos da criança a partir de sua própria realidade, a auscultação da voz da criança como entrada na significação de seus mundos de vida e a aceitação das crianças como ser completo e competente, isto é, compreensível apenas a partir da aceitação da sua diferença face ao adulto.

Embora a maioria dos professores entrevistados se aproprie dos jogos e das brincadeiras de maneira instrumental, algumas vozes dissonantes reconhecem o inalienável direito de brincar das crianças e trabalham com essas manifestações da cultura lúdica infantil centradas no prazer, na motivação e no bem-estar delas, como se evidencia nos seguintes enunciados:

Muitas atividades lúdicas para motivar as crianças a gostarem e sentir-se à vontade e com judô bem básico (P2)

Ensino o esporte através de atividades e brincadeiras de forma divertida e com ludicidade (P11).

De forma lúdica onde a alegria e o prazer em participar das aulas seja o principal elemento motivador (P28).

Com base nesses discursos, identificamos mediações pedagógicas que valorizam a criança e suas culturas de pares. Para Reverdito e Scaglia30, mais importante que o esporte é o sujeito do esporte, nesse caso, a criança praticante de judô. Entretanto, a Nuvem de Palavras 2 apresenta alguns termos que denotam a ênfase em aspectos técnicos e de treinamento, visando a performance esportiva, como técnica, esporte, exercício e luta. Alguns excertos ratificam essa ênfase:

Aprender as técnicas iniciais do judô, junto aos amortecimentos de queda (P26).

Proporcionando que a criança aprenda técnicas esportivas e regras básicas (P31).

Alongamentos, aquecimento com técnicas do judô, teoria e prática das técnicas [...] (P9).

Desenvolvimento lúdico sem deixar de introduzir a parte esportiva e competitiva (P15).

Por meio desses dados, verificamos que há pouca diferença entre as demandas colocadas para os adultos daquelas destinadas às crianças. Os infantis, nesse caso, são tratados como homúnculos13, ou seja, como adultos em miniatura que possuem as mesmas necessidades que os adultos, só que em escalas menores. Contudo, Sarmento13 adverte que as relações que as crianças estabelecem com os adultos não são de incompletude, mas de alteridade. Em relação ao judô, a iniciação esportiva precoce é algo recorrente. Não raro, as aulas destinadas às crianças reproduzem os mesmos modelos adultos, centrados no treinamento e visando a performance esportiva.

Embora os modelos de ensino que reproduzem os procedimentos utilizados com os adultos estejam presentes nos discursos de muitos entrevistados, temos a hipótese de que a formação inicial de parcela significativa dos professores (três docentes têm formação inicial em Administração, dois em Economia, um História e um em Nutrição) contribui para que eles enfatizem os aspectos técnicos-motores no ensino do judô infantil. É pouco provável que esses professores tiveram acesso, em suas formações iniciais, às discussões sobre concepções de infância e desenvolvimento motor, inibindo, dessa forma, abordagens que consideram as especificidades das diferentes infâncias e das demandas atreladas a cada fase do desenvolvimento.

Conclusão

Os resultados indicam que os professores enfatizam os aspectos axiológicos, técnicos e o desenvolvimento motor em suas práticas de ensino do judô com as crianças, calcados em uma concepção universal de infância. Ainda que utilizem os jogos e as brincadeiras em suas aulas, os discursos dos professores sugerem uma apropriação instrumental dessas manifestações culturais lúdicas, com pouco espaço para que as crianças tenham as suas subjetividades, agências e práticas autorais reconhecidas e valorizadas.

Embora seja reconhecido o potencial dessa modalidade esportiva para o alcance das expectativas axiológicas desejadas, os dados produzidos e analisados não oferecem indícios de como essas metas serão alcançadas, sinalizando que os professores consideram esses valores como intrínsecos ao judô, independentemente da intencionalidade pedagógica subjacente à sua prática.

Sem a intenção de julgar ou de prescrever o que é certo, pois respeitamos as tradições do judô e o seu reconhecimento social e educativo, questionamos se a manutenção dessas tradições é compatível com um processo de ensino-aprendizagem que considera as crianças como sujeitos competentes para pensar e agir sobre si em seus mundos de vida. Caso seja, é necessário auscultá-las em relação aos seus desejos, necessidades e expectativas. Urge superar um olhar que só as vê pelas suas ausências e incompletudes e reconhecer as suas agências, as suas produções culturais e práticas autorais, pois as crianças, como seres sociais ativos, não recebem passivamente os produtos culturais que lhes são ofertados.

Nessa perspectiva, os jogos e as brincadeiras são considerados importantes manifestações lúdicas da cultura infantil pelas quais as crianças se relacionam com o mundo, com os outros e consigo mesma de maneira autônoma e criativa. Concordamos com Redin31 quando o autor afirma que os adultos querem que as crianças “[...] se socializem e, muitas vezes, socializar-se significa evitar conflitos, sentimentos ambíguos e comportamentos que possam sair da ordem”. Por isso, compreendemos que os jogos/brincadeiras precisam ser trabalhados para além de seu viés funcionalista, objetivando aprender os fundamentos do judô ou como recompensa pelo bom comportamento das crianças.

Por fim, sugerimos novas pesquisas que abordem as práticas pedagógicas em campo, verificando as aproximações e os distanciamentos entre discursos e ações, e, sobretudo, pesquisas que ouçam as crianças e as suas representações sobre as aulas de judô a elas destinadas. Vislumbramos, com isso, construir práticas de ensino-aprendizagens com as crianças e não para elas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Fev 2022
  • Revisado
    23 Mar 2022
  • Aceito
    04 Abr 2022
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