Resumo
O objetivo deste artigo é refletir sobre as estratégias utilizadas por terapeutas ocupacionais pesquisadores no auxílio a Agentes Comunitários de Saúde (ACS) em seu processo de trabalho para o enfrentamento de problemáticas advindas da vida cotidiana, nos aspectos pessoais e profissionais. Optou-se pela pesquisa-intervenção realizada com 49 ACS dos Programas de Saúde da Família (PSF) e Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACs), da Secretaria Municipal de Saúde de uma cidade do interior do Estado de São Paulo - Brasil. A idade dos participantes variou de 19 a 56 anos, a maioria (42) do sexo feminino. Os dados foram coletados em oito encontros, com três grupos distintos, conduzidos pelas abordagens corporais e observação participante, com a finalidade de observar e comparar as reflexões surgidas. Foi possível realizar a análise qualitativa dos dados com base nas compilações dos materiais coletados nos grupos, como diários de pesquisa da observação participante e registros fotográficos. Desta forma, obtiveram-se as seguintes categorias: Heterogeneidade, Hierarquia, Imitação, Espontaneidade e Analogia. A estratégia da abordagem corporal proporcionou aos participantes uma maior autorreflexão quanto ao seu processo de trabalho. Os pesquisadores proporcionaram aos ACS diferentes vivências corporais com finalidade de identificação das necessidades, questões da vida cotidiana, na busca de soluções de problemáticas e resgate de papéis ocupacionais de cada participante, possibilitando-lhes uma oportunidade para envolver-se ativamente na construção de sua realidade existencial, a vivência de sua subjetividade, de modo a constituir-se como pessoa e a (re) significação de cenas do seu cotidiano.
Palavras-chave: Terapia Ocupacional; Grupo; Promoção de Saúde; Agentes Comunitários de Saúde
Abstract
The aim of this paper is to reflect on the strategies used by occupational therapists researchers to assist the Community Health Agents (ACS) in their work process for the facing of challenges arising from everyday life, in the personal and professional aspects. Intervention research held to 49 ACS of a family health program (PSF) and Community Health Agents program (PACS), the Municipal Secretary of Health of a city in the State of São Paulo-Brazil. The age of the participants ranged from 19 to 56 years old, most (42) female. The data were collected in eight meetings, with three distinct groups, conducted by the body approaches and participant observation to observe and compare the reflections arose. It was possible to carry out the qualitative analysis of the data from the materials collected in groups such as search as diaries participant observation and photographic records. Thus, we created the following categories: Heterogeneity, Hierarchy, Imitation, Spontaneity and Analogy. The body approach strategy provided participants a greater self-reflection about their work process. The researchers provided different body experiences to the ACSs to identify needs, issues of daily life, in search of problem solutions and rescue of occupational roles of each participant, allowing them an opportunity to actively engage in the construction of their existential reality, their subjectivity experience, to be a person and the (re) meaning of their daily life scenes.
Keywords: Occupational Therapy; Group; Health Promotion; Community Health Agents
1 Introdução
A escolha do cotidiano como uma posição teórico-metodológica da terapia ocupacional brasileira vem ganhando força desde a década de 90. Esse período demarca um rompimento com a interpretação positivista e propõe práticas com base em uma perspectiva crítica (Galheigo, 2012; Salles & Matsukura, 2013, 2015), a qual compreende o terapeuta ocupacional como um articulador social, cujo compromisso ético-político é promover a participação social e a emancipação de pessoas e coletivos (Galheigo, 2012, 2014).
Desta maneira, entende-se que o participante-alvo das ações da terapia ocupacional sejam pessoas, grupos ou populações, que sofrem efeitos segregativos do sistema vigente e, principalmente, uma não singularização e uma massificação de hábitos, resultando um condicionamento esmagador dos corpos e modos de subjetivação (Saito & Castro, 2011; Liberman et al., 2011), o que repercute diretamente na corporeidade, em seus contextos – incluindo o do trabalho – e projetos de vida, com desdobramentos significativos no cotidiano.
Sob esta ótica, Guimarães (2002) enfatiza que cotidiano e cotidianidade apresentam significados distintos, caracterizando a cotidianidade com objetivações mais elaboradas quando comparada ao conceito de cotidiano, sendo este entendido como uma dimensão do senso comum, levando em consideração tudo o que o ser humano é capaz de viver e sentir (sofrimentos, prazeres, alegrias, tristezas, destruições e construções).
Logo, Salles & Matsukura (2013) ressalta que é no cotidiano, por meio do processo histórico, que os homens aprendem com o meio social e se constituem, considerando o que foi construído no passado e almejando as possibilidades do futuro. Nesse sentido, “[...] a história é a substância da sociedade”, na qual o homem é aquele que possui a objetividade social, responsável pela construção e transmissão de toda e qualquer estrutura social (Heller, 2008, p. 12).
Com base nessa perspectiva, Heller (2008) aponta que, durante todo o percurso histórico, o homem é quem dá sentido à história, possibilitando espaço à vida cotidiana, colocando-a no centro desse acontecimento.
Dessa forma, o autor afirma que:
A vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho intelectual e físico [...] A vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. Nela, colocam-se “em funcionamento” todos os sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, ideias, ideologias (Heller, 2008, p. 31).
Para tanto, ao considerar que alguns desdobramentos do cotidiano repercutem na corporeidade, ou vice-versa, faz-se necessário destacar que esse conceito tem sustentado discussões e práticas no campo da terapia ocupacional.
A corporeidade pode ser compreendida como condição existencial no humano (Liberman et al., 2011), ou, ainda, pelo conjunto de sensações que despertam conexões com o corpo; sensações que se relacionam às vivências corporais, das quais constroem a compreensão do corpo como lugar do acontecer de si e como campo de organização de redes de sentido. Obstáculos, desafios e mudanças que transcorrem no processo do viver e de “fazer corpo” no mundo participam da corporeidade, a qual prossegue formando-se ao longo da vida (Castro et al., 2011).
Compreende-se, portanto, que todo fazer, toda experiência, toda atividade humana opera novas estruturações em um corpo. Assim, a terapia ocupacional tem pensado práticas que interferem na edificação desse corpo; buscando a valorização da singularidade e dos processos de subjetivação dos indivíduos e coletivos.
As atividades expressivas, incluindo as corporais, como os jogos teatrais, são uma aposta nas práticas da terapia ocupacional.
1.1 A abordagem corporal como estratégia
Aposta-se que as atividades expressivas, incluindo as corporais, como os jogos teatrais, oferecem espaços de recomposição de processos de subjetivação e de ressingularização dos participantes, pois essas atividades se constituem em linguagens de estrutura flexível e plástica capazes de permitir a troca de experiências e facilitar a comunicação entre pessoas, sobretudo quando a linguagem comum é insuficiente para exteriorizar vivências singulares (Castro et al., 2001), principalmente, em um contexto grupal.
De acordo com Liberman et al. (2011), a utilização de jogos teatrais pode ser considerada uma oportunidade para se aproximar do próprio corpo e do corpo do outro, revelando traços, modos de funcionamento, ativação de pensamento, memórias e imaginários como resultado desse encontro.
Tais práticas proporcionam o reconhecimento de si e a redescoberta de percepções não captadas ou esquecidas no desenrolar da vida cotidiana, as quais, muitas vezes, não atentamos em função da mecanização do fazer. Desta forma, as práticas corporais, principalmente em grupo, ampliam as formas de agenciamento dos participantes, que passam a apresentar novos laços efetivos, de confiança mútua, e expressam muita vontade de estar dentro da vida, nos seus modos únicos e singulares e não à sua margem. Portanto, para Saito & Castro (2011), as práticas corporais, como os jogos teatrais, são potencializadoras da vida e de novas redes sociais, além de serem instrumentos de emancipação e de reconstituição de histórias e contextos, promovendo novas formas de significação, emancipação e criação de sentidos.
De acordo com estudos desenvolvidos por Assad & Pedrão (2013), a utilização de práticas corporais, por meio do teatro espontâneo do cotidiano, constitui-se em importante ferramenta na assistência à saúde mental que proporciona um processo de construção criativa em busca de soluções para problemáticas da vida cotidiana.
Além de promover espaço de saúde e melhora da qualidade de vida, o uso de práticas corporais também é considerado como uma estratégia pedagógica que possibilita trocas de experiências entre todos os envolvidos (Toldrá et al., 2014).
Conforme apontado por Boal (2005), o teatro e as abordagens corporais, em suas práticas, constituem-se um espaço social e político, no qual ocorre a busca de transformações efetivamente sociais. De acordo com Boal (2005) e Spolin (2008), os jogos teatrais proporcionam vivências, reflexões e oportunidades de contato e incidem processos de subjetivação e emancipação, capazes de ressoar em âmbitos individuais e coletivos, pessoais e profissionais. Para tanto, considerou-se o cenário cotidiano de ACS para a presente investigação.
1.2 Agentes Comunitários de Saúde
Os ACS têm como função o desenvolvimento de ações de responsabilidade em conjunto com a Unidade Básica de Saúde, de forma a cumprir atribuições básicas, como: cadastrar e coletar dados das famílias; identificar situações de risco; desenvolver ações básicas de saúde que compreendam as mais diversas áreas com ênfase na promoção de saúde e prevenção de doenças; acompanhar as famílias mensalmente fazendo orientações quanto à utilização dos serviços de saúde; promover ações que conscientizem e mobilizem a população com relação ao saneamento básico e meio ambiente; informar a equipe multidisciplinar sobre a dinâmica social da comunidade; promover ações de controle de doenças endêmicas juntamente aos serviços de saúde (Beluci, 2003; Associação Paulista de Medicina, 2004; Malfitano, 2007).
É sabido que os Agentes Comunitários de Saúde, de modo geral, têm um trabalho muito exaustivo e delicado por lidarem com dificuldades cotidianas, como problemas e particularidades de diversas dimensões das suas famílias cadastradas, sendo que, muitas vezes, os próprios ACS é que têm de ajudar a resolvê-los. Além do mais, também se nota falta de preparo desses profissionais para trabalharem em equipe, o que implica conflitos interpessoais.
Desta forma, verifica-se a necessidade de um espaço de expressão das dificuldades e/ou desejos dos agentes, bem como do reconhecimento de potencialidades, minimizando problemáticas encontradas nos contextos individuais e coletivos. Mediante o exposto, o objetivo deste artigo é refletir sobre as estratégias utilizadas por terapeutas ocupacionais para auxiliar os Agentes Comunitários de Saúde no processo de trabalho para o enfrentamento de problemáticas cotidianas sob os aspectos pessoais e profissionais.
2 Método
Trata-se de uma pesquisa-intervenção realizada com 49 Agentes Comunitários de Saúde dos Programas de Saúde da Família (PSF) e Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACs), da Secretaria Municipal de Saúde de uma cidade do interior do Estado de São Paulo - Brasil, divididos em três grupos, nomeados de acordo com o local de trabalho: Grupo 1 – Casa dos Agentes (Bairro Santo Antônio) com 23 participantes, Grupo 2 – Praça da Criança (Bairro Vila Maria) com 15 e Grupo 3 – UBS (Bairro Altino Arantes) com 11.
Os participantes da pesquisa foram escolhidos pela coordenação do PSF e PACs. Uma vez selecionados, os agentes foram contatados pelos pesquisadores, momento em que conheceram os objetivos da pesquisa, e então solicitou-se a sua participação, com garantia de sigilo na divulgação dos dados. Foi então assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, tendo sido garantido que a não participação não implicaria demandas do seu trabalho. A idade dos participantes variou de 19 a 56 anos, sendo que 85,7% eram do sexo feminino, com a participação de apenas 7 homens.
Optou-se por fazer uma pesquisa-intervenção por ser esta uma prática de intervenção utilizada em pesquisa, a qual busca constituir uma grupalidade para além das hierarquias que regem as relações no âmbito da saúde, e assim compreender a complexidade da realidade investigada (Mendes et al., 2016). A pesquisa-intervenção foi realizada com pessoas cujas expectativas, motivações e interesses eram diversificados e muitas vezes diferentes, com conhecimentos, experiências e práticas distintas, sendo também necessário considerar as relações entre as pessoas que acompanham e as que são acompanhadas.
Realizaram-se grupos conduzidos pelas abordagens corporais (jogos teatrais) e os registros foram realizados por meio dos diários de pesquisa da observação participante, com implicação dos pesquisadores, com a finalidade de observar e comparar as reflexões surgidas em cada um dos grupos, em cada encontro, com todos os envolvidos no processo da prática de intervenção.
Para tanto, foram realizados 8 encontros com cada um dos três grupos, nos quais foram utilizados jogos teatrais (Boal, 2005; Spolin, 2008), práticas baseadas nos referenciais do teatro espontâneo e psicodrama (Aguiar, 1998; Moreno, 1975), além do repertório teatral próprio dos pesquisadores. Foram propostas dinâmicas de aquecimento e descontração no início de cada grupo, como: aquecimentos gerais para o corpo, dinâmicas gestuais de conhecimento do outro e de autoconhecimento, relaxamentos, oficinas com música para experimentação de ritmos e movimentos, atividades manuais, jogos lúdicos, jogos de observações e jogos para percepção de si e do outro. Em seguida, foram discutidas problemáticas cotidianas, das quais emergiram cenas de forma espontânea e improvisada.
Foi possível realizar a análise qualitativa dos dados com base nas compilações dos materiais coletados nos grupos, diários de pesquisa da observação participante e registros fotográficos. Desta forma, obtiveram-se as seguintes categorias:
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1
Heterogeneidade (forma como os participantes se relacionaram entre si e como esta relação influenciou positivamente ou negativamente no funcionamento do grupo);
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2
Hierarquia (o quanto cada grupo conseguiu expor problemáticas e questões de diversas situações cotidianas, emergindo umas mais que outras, ao mesmo tempo que uma assume centralidade diante de outras, em diferentes momentos);
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3
Imitação (capacidade que cada indivíduo possui para recriar e revivenciar, de forma criativa, as problemáticas levantadas em cada encontro com base em reproduções e imitações);
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4
Espontaneidade (capacidade que cada participante tem de expressar seus sentimentos e expor ao grupo de forma autêntica e espontânea) e;
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5
Analogia (capacidade de associar as cenas com o próprio cotidiano).
A fundamentação teórica de suporte para o desenvolvimento da pesquisa foi o referencial filosófico da Teoria sobre o Cotidiano de Agnes Heller. Nesse sentido, ressalta-se que “[...] a história é a substância da sociedade”, na qual o homem é aquele que possui a objetividade social, responsável pela construção e transmissão de toda e qualquer estrutura social (Heller, 2008, p. 12).
Para Salles (2011), é por meio do processo histórico que os homens aprendem com o meio social e se constituem, considerando o que foi construído no passado e almejando as possibilidades do futuro.
Neste contexto, a teoria de Agnes Heller revela que a vida cotidiana acontece nas produções e trocas de âmbito social entre as pessoas, destacando que essa inserção do indivíduo se constitui em uma trama de relações sociais nas diferentes atividades do dia a dia (Heller, 2008).
Quanto aos aspectos éticos, este projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Saúde Escola da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo – USP, sendo aprovado sob o número 584/07/COORD.CEP/CSE-FMRP-USP.
3 Resultados e Discussão
A análise qualitativa dos resultados foi realizada considerando-se conceitos de Heller que sustentam a teoria do cotidiano (Guimarães, 2002; Salles, 2011), com base nas compilações dos materiais coletados, quais sejam: grupos realizados, diários de pesquisa da observação participante e registros fotográficos, chegou-se às seguintes categorias: Heterogeneidade, Hierarquia, Imitação, Espontaneidade e analogia.
3.1 Heterogeneidade
Frente às características dos indivíduos, observou-se semelhanças e diferenças – idade, sexo, escolaridade, território de atuação, história de vida, entre outros – que implicam entraves e, ao mesmo tempo, avanços para o funcionamento do grupo. As diferenças possibilitaram um aprendizado de aproximação entre todos os integrantes. Nesta categoria, com base em narrativas sobre experiências particulares de cada agente comunitário de saúde durante as visitas domiciliares, por exemplo, foi possível compartilhar com o coletivo, de modo que todos refletissem sobre o que poderia ser mudado ou transformado em determinada situação do cotidiano de trabalho, para, em seguida, encenar e ressignificar as ações e formas de relações que foram abordadas em determinado contexto.
Abordar sobre heterogeneidade, de acordo com as ideias de Heller, é compreender que o cotidiano se dá entre o singular e o coletivo, entre os contextos micro e macro dos indivíduos (Salles & Matsukura, 2013, 2015). Contudo, para Heller (2008), a vida cotidiana é heterogênea porque existem diversos segmentos da atividade humana com diferentes graus de importância e significados (Heller, 2008) e o que torna essa composição, permeada pelas diversas atividades, desenvolve-se no percurso da história individual (Salles, 2011).
Identificou-se, ainda, que o compartilhamento das experiências e histórias pelos ACS, bem como a encenação destas, permitiu-lhes a troca de vivências cotidianas e a busca conjunta por soluções, apesar das características heterogêneas, proporcionando um pensamento mais reflexivo quando referido e direcionado ao “outro”. Notou-se o estabelecimento de vínculo entre os integrantes de cada grupo e como este foi se modificando ao longo do processo. Neste sentido, de acordo com Liberman et al. (2011), os jogos teatrais se utilizam de várias técnicas e abordagens corporais, as quais podem ser entendidas como estratégias possíveis de serem aplicadas por terapeutas ocupacionais por meio da aproximação do próprio corpo e do corpo do outro, revelando traços, modos de funcionamento e ativação de pensamentos.
As estratégias que se utilizam do corpo, com base em experiências culturais e artísticas, como no caso deste estudo, têm contribuído para o cenário da terapia ocupacional, desde uma perspectiva transversal, que diz respeito a todas as áreas ou campos de atuação. Com base no exposto, o compartilhar saberes de distintas pessoas implica que o terapeuta ocupacional também possa canalizar tensões que surgem entre essas pessoas nas diferentes formas de relações, facilitando um espaço de abertura, entendido como sensível, para que todos os envolvidos convivam socialmente (Castro et al., 2016).
Com base neste ínterim, Salles (2011) refere que é por meio do processo histórico que os homens aprendem com o meio social e se constituem, considerando o que foi construído no passado e almejando as possibilidades do futuro.
Com base na compreensão de que a vida cotidiana é também a vida do indivíduo, esta é particular e genérica, ou seja, o homem está sempre em relação com outros homens (Heller, 2008), pois o homem individual sempre se relaciona com o contexto social em um dado momento histórico, em uma trama de relações com outros homens que acontece no mesmo tempo e espaço (Salles, 2011).
É na vida cotidiana que se desenvolve a vida humana, por meio das relações sociais entre os homens, articulando-se entre a produção e reprodução social, entre o que é público e o que é privado (Heller, 2008). Vale lembrar que o homem só pode reproduzir quando assume uma função no contexto social por meio das objetivações que “[...] pressupõe uma ação do homem sob o objeto, transformando-o para seu uso e benefício” (Guimarães, 2002, p. 12).
Pelo fato de os homens nascerem na cotidianidade, eles “[...] assumem como dadas funções da vida cotidiana e as exercem paralelamente”, pois existe uma realidade de se construir uma relação com seu meio social como com sua própria experiência vivida (Heller, 2008, p. 38).
Neste sentido, pôde-se observar a heterogeneidade nos grupos dos ACS, destacando momentos e situações em que alguns indivíduos de determinados grupos apresentaram maior vínculo afetivo entre si, demonstrando ações de companheirismo uns para com os outros, enquanto em outros grupos os indivíduos revelaram um relacionamento mais aversivo, ou seja, de difícil contato, menos amigável, deixando claro que não conseguiam se relacionar de forma saudável, prejudicando no funcionamento de seu trabalho e em sua própria qualidade de vida.
Para Almeida (2003), no decorrer da vida, o ser humano passa por várias interações sociais, constituindo assim uma rede social interminável que permite a inserção e a interação com o outro em constantes trocas de experiências, as quais contribuem para o desenvolvimento de seu autoconhecimento, imposto pela comunidade na qual está inserido.
3.2 Hierarquia
Conforme observação realizada em campo, pôde-se ressaltar que os grupos conseguiram levantar várias problemáticas significativas: relacionadas ao trabalho, verbalizando que a população atendida pelo serviço público não tem informação sobre a função do agente comunitário; falas com conteúdos intrínsecos, de sentimentos de angústias, medos, limitações e frustrações perante situações que encontravam em determinadas visitas às casas e problemas de relacionamentos interpessoais.
Imersa nessa multiplicidade de esferas de atividades, destaca-se que a hierarquia é parte integrante da vida, quando uma determinada atividade assume um lugar central e determinante diante de outras formas de atividades (Heller, 2008), pois não é possível realizar tudo em um mesmo tempo, devendo-se selecionar e escolher a consequência das ações (Guimarães, 2002).
Durante a utilização de estratégias corporais em grupo, os participantes puderam refletir que existem muitas demandas em seu cotidiano de trabalho, porém, algumas necessitam ser priorizadas de acordo com a necessidade do usuário que está sendo atendido. Neste sentido, foi possível potencializar os integrantes a organizarem melhor suas rotinas, de modo a não sobrecarregá-los com os excessos de demandas laborais.
Portanto, entende-se que as cenas emergiram daquelas problemáticas mais significativas para os grupos. Para Castro et al. (2016), a abordagem corporal utilizada pelo terapeuta ocupacional como estratégia apresenta uma experiência estética e artística, facilita o acesso a elementos do cotidiano que, muitas vezes, são de difícil codificação, principalmente, quando as cenas são vivenciadas no singular.
3.3 Imitação
Sobre o processo de imitação, pôde-se observar que, em cada grupo, o processo criativo se deu de forma peculiar. Em alguns encontros, as cenas não se concretizaram, já em outros, foi possível revivenciar as problemáticas trazidas do cotidiano, com cenas carregadas de significados.
O processo de imitação contribui para a realização de um potencial criador, o qual tende a dar sentido e concretude às certas possibilidades de fatos ou acontecimentos reais.
Conforme Castro et al. (2016), pode-se dizer que a experiência de criação, entendida como estratégia terapêutica ocupacional, ofertada aos processos terapêuticos ocupacionais possibilita sair do aprisionamento da repetição e da vivência de situações de ruptura destituídas de sentido, permitindo ao indivíduo reinventar-se.
Neste sentido, a terapia ocupacional, ao estimular o processo de imitação por meio da criatividade, busca promover o contato entre os aspectos subjetivos e objetivos da realidade do indivíduo, permitindo um espaço para formas de expressão mais integradoras de personalidade.
Sob essa ótica, afirma-se que “não há vida sem imitação”, pois, sem a imitação, seria impossível o trabalho e o intercâmbio entre os homens, sendo que a mimese é tida como a ação possibilitadora de assimilação de tudo o que acontece no entorno. A mimese possibilita a relação do indivíduo com o meio social (Heller, 2008, p. 55).
Com base neste conceito de Heller, é importante que o terapeuta ocupacional, em sua prática cotidiana, utilizando-se da abordagem corporal como estratégia terapêutica, compreenda as formas de imitações, assim como os tipos de linguagens que estão imersos culturalmente, com base em caraterísticas pessoais e em características de grupos sociais (Castro et al., 2016), tal como foi possibilitado neste estudo.
Contudo, de acordo com Guimarães (2002), ressalta-se que a mimese pode ser compreendida como a primeira ação do cotidiano, porque as imitações sempre existiram na história da humanidade.
3.4 Espontaneidade
Observou-se que, nos três grupos, a abordagem corporal, por meio dos jogos teatrais, foi um veículo de expressão humana, por meio do qual o indivíduo revivenciou situações cotidianas, envolvendo concepções sociais, oportunizando todos a participarem de forma ativa e espontânea, por meio da expressão de seus sentimentos mais íntimos. Percebeu-se que os participantes dramatizaram suas problemáticas de forma descompromissada às formalidades, porém, de maneira espontânea.
Para Spolin (2003), a espontaneidade se dá quando o ser humano fica livre para atuar e inter-relacionar com o meio que o cerca, o qual está em constante transformação. Esta permite ao homem a libertação de padrões estáticos de comportamento, ampliando novas descobertas, experiências e expressões criativas.
Assim, Guimarães (2002) aponta a espontaneidade como uma das características da vida cotidiana, a qual tem relação com os comportamentos sociais ligados a ações não planejadas e sem considerar consequências no futuro, sendo reforçada por Heller (2008) como uma característica dominante da vida cotidiana, pois se apresenta nas formas de motivações particulares e/ou públicas.
Com base neste conceito de espontaneidade apontado por Heller, aproximando-se do cenário deste estudo, destaca-se que, a terapia ocupacional, utilizando de estratégias corporais, possibilita ao indivíduo que se expresse, articule e interaja com o outro de distintas formas, seja por meio de imagens, cores, sons e ritmos, apropriando-se do verbal e do não-verbal, com o objetivo de facilitar a compreensão subjetiva e as possíveis trocas cotidianas por meio das relações e expressões corporais consigo e com o outro (Castro et al., 2016).
3.5 Analogia
Constatou-se que em alguns temas, como relacionamento afetivo interpessoal e aspectos relacionados ao trabalho, houve uma reflexão subjetiva, com resolução de conflitos.
Conforme Ostrower (1987), as associações são espontâneas e estabelecem combinações que são interligadas a ideias e sentimentos, girando em torno de hipóteses do que seria possível ser mudado ou reformulado.
Para tanto, a analogia é colocada como sendo a classificação de homem contemporâneo com base em experiências já vividas e/ou conhecidas, sendo possível, em um primeiro momento, uma rápida orientação do homem singular para depois compreendê-lo (Heller, 2008).
Neste sentido, Guimarães (2002) e Salles (2011) complementam que todos esses conceitos, mencionados anteriormente nas categorias, articulam-se entre si e chamam a atenção para que se tome cuidado com a cristalização destes, de modo a não se voltar para uma alienação, entendendo que a vida cotidiana pode ser um campo propício para uma alienação quando o indivíduo vive uma vida restrita a normas e rotinas, caracterizada por um conformismo, em que ele assume papéis que são impostos pela sociedade de maneira não consciente.
Diante da realidade contemporânea, há uma necessidade de ampliar os conceitos e práticas que superem os modelos terapêuticos tradicionais para que as ações terapêuticas sejam facilitadas nos próprios territórios de vida das pessoas, ou seja, na comunidade, nos bairros, nos contextos em que as pessoas vivem o seu dia a dia (Castro et al., 2016).
Para tanto, a abordagem corporal – por meio dos jogos teatrais – utilizada neste estudo como estratégia terapêutica ocupacional pode ser considerada uma experiência que evoca forças vivas na subjetividade e nos corpos, conectando as pessoas sensorialmente ao seu entorno e realidade (Castro et al., 2016).
4 Considerações Finais
A abordagem corporal – por meio dos jogos teatrais – possibilitou aos participantes vivenciarem de forma expressiva, criativa e produtiva situações cotidianas, de modo que os envolvidos puderam refletir e (re) significar situações de seu cotidiano laboral.
Enquanto ser individual e parte integrante do grupo, os ACS trouxeram questionamentos atuais e resgate da própria história e dos papéis ocupacionais, permitindo a articulação entre o que é singular com o que é coletivo no processo de trabalho. A proposta de utilizar a abordagem corporal como estratégia terapêutica ocupacional com agentes comunitários de saúde possibilitou que os integrantes envolvidos pudessem experimentar, criar, (re-)vivenciar situações do cotidiano laboral, de modo a transformar suas ações, com base em saberes e trocas coletivas.
A pesquisa-intervenção oportunizou uma relação mais horizontal, de modo que diminuía os distanciamentos entre as relações terapeuta-usuário, possibilitando uma dinâmica grupal com aproximações das situações reais de trabalho e das próprias histórias de vidas.
As abordagens corporais (baseadas em jogos teatrais), utilizadas como estratégia terapêutica ocupacional, facilitaram todo o processo terapêutico, possibilitando a participação entre os integrantes.
Ao analisar todo o material com base na Teoria do Cotidiano, especialmente nos conceitos de Agnes Heller, observa-se que essa fundamentação teórica de suporte filosófico é de extrema relevância para sustentar a prática da terapia ocupacional, inclusive no que tange às estratégias corporais.
Desta maneira, o trabalho do terapeuta ocupacional, utilizando de abordagens corporais em sua prática clínica, possibilita aberturas para o encontro com o outro, favorecendo e facilitando o compartilhamento de experiências e transformações no cotidiano.
Todavia, vale ressaltar que este estudo não se dá por finalizado; ao contrário, abre outras tantas possibilidades, dentre elas, oferecer contribuições e informações úteis que possam orientar a busca de intervenções e ações no cuidado com base nas abordagens corporais no cenário da terapia ocupacional.
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O presente artigo é parte integrante do Trabalho de Conclusão de Curso de título “Teatro em Terapia Ocupacional: re-significando cenas do cotidiano”, realizado no Centro Universitário Claretiano de Batatais, São Paulo, Brasil. Pesquisa submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Saúde Escola da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo – USP, sendo aprovado sob o número 584/07/COORD.CEP/CSE-FMRP-USP.
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Como citar: Cirineu, C. T., Assad, F. B., & Uchôa-Figueiredo, L. R. (2020). A abordagem corporal como estratégia utilizada por terapeutas ocupacionais junto a agentes comunitários de saúde. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional. Ahead of Print. https://doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO1903
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Fev 2020 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 2020
Histórico
-
Recebido
03 Mar 2019 -
Revisado
10 Maio 2019 -
Revisado
29 Maio 2019 -
Aceito
17 Jun 2019