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O papel da terapia ocupacional na atenção primária à saúde: perspectivas de docentes e estudantes da área

Resumo

O objetivo desta pesquisa foi compreender as perspectivas de docentes e estudantes brasileiros sobre o papel da terapia ocupacional na Atenção Primária à Saúde (APS). Trata-se de estudo de caráter exploratório e com metodologia qualitativa realizado por meio de entrevistas semi-estruturadas com 17 docentes e de nove rodas de conversa com a participação de 67 estudantes. A análise temática revelou duas categorias: 1- Contribuições da terapia ocupacional para a Atenção Primária à Saúde; e 2- O papel específico da terapia ocupacional na Atenção Primária à Saúde, que se traduzem em oferta de cuidado integral, compreensão ampliada do contexto territorial, do cotidiano e ações dirigidas à promoção da participação nas atividades em diversas áreas da vida das pessoas atendidas. No entanto, a terapia ocupacional na Atenção Primária à Saúde necessita ser ainda mais explorada para que seja possível sistematizar e aprofundar o desenvolvimento de suas práticas na APS.

Palavras-chave:
Formação Profissional em Saúde; Sistema Único de Saúde; Ensino

Abstract

The objective of this research was to understand how perspectives of Brazilian professors and students on the role of occupational therapy in Primary Health Care (PHC). This is an exploratory study with a qualitative methodology, data provided through semi-structured interviews with 17 documents and nine conversation circles with the participation of 67 students. The thematic analysis revealed two categories: 1 - The contributions of occupational therapy for Primary Health Care and 2 - The specific role of occupational therapy in Primary Health Care. The contributions and the role of occupational therapy encompass the provision of comprehensive care, the understanding of daily life, and the promotion of participation in activities in different areas of the lives of the people assisted. However, occupational therapy can still be further explored so that it is possible to systematize the most detailed and in-depth way as practices in PHC.

Keywords:
Health Human Resource Training; Unified Health System; Teaching

Introdução

A Atenção Primária à Saúde (APS) ganhou relevância no Brasil a partir das influências de Alma-Ata sobre o nível de atenção abrangente e integral, da Reforma Sanitária e, nos anos 1990, quando o governo brasileiro constituiu o Sistema Único de Saúde e adotou a Estratégia de Saúde da Família (ESF). Esta última foi pensada como uma proposta de reorganização da APS, com o objetivo de ampliar o acesso universal à saúde, por meio de ações de promoção, prevenção de doenças e agravos e recuperação de saúde, fortalecendo a orientação familiar e comunitária em territórios geograficamente delimitados, além de promover a coordenação do cuidado, com articulação entre a rede de serviços de saúde e de outros setores (Fausto et al., 2017Fausto, M. C. R., Bousquat, A., Lima, J. G., Giovanella, L., Almeida, P. F., Mendonça, M. H. M., & Seid, H. (2017). Evaluation of Brazilian Primary Health Care From the Perspective of the Users Accessible, Continuous, and Acceptable? The Journal of Ambulatory Care Management, 40(2), S60-S70.; Starfield, 2002Starfield, B. (2002). Primary Care: balancing health needs services and technologies. Brasília: UNESCO/Ministério da Saúde.).

No entanto, mesmo diante de demandas epidemiologicamente complexas que se apresentam na APS, da diversidade de povos e do amplo território brasileiro, medidas políticas recentes têm prejudicado o fortalecimento da APS no Brasil, tornando-a mais seletiva, menos interprofissional e com o foco principal em procedimentos de atendimento individual por profissionais médicos.

No Brasil, desde o fim dos anos 1970, há terapeutas ocupacionais atuando na APS em Unidades Básicas e Centros de Saúde – UBS (Rocha & Souza, 2011Rocha, E. F., & Souza, C. C. B. X. (2011). Terapia ocupacional em reabilitação na atenção primária à saúde: possibilidades e desafios. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 22(1), 36-44.), mas, somente a partir de 2008, ampliou-se a presença de terapeutas ocupacionais nos serviços de APS para compor os recém-implantados Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF, que são equipes que ofertam apoio matricial clínico-assistencial e apoio técnico-pedagógico às equipes de ESF.

Além disso, já existem diversas experiências relatadas de formação de terapeutas ocupacionais na APS (Silva & Oliver, 2017Silva, R. A. S., & Oliver, F. C. (2017). Trajetória docente e a formação de terapeutas ocupacionais para a atenção primária à saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 62(21), 661-673.; Silva & Oliver, 2016Silva, R. A. S., & Oliver, F. C. (2016). Orientação teórica e os cenários de prática na formação de terapeutas ocupacionais na atenção primária à saúde: perspectivas de docentes. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 24(3), 469-483.) e, na última década, também há inserção de terapeutas ocupacionais em equipes da Atenção Domiciliar, Consultório na Rua e Atenção Básica Prisional (Brasil, 2017Brasil. (2017). Política Nacional de Atenção Básica . Brasília: Ministério da Saúde.; Silva & Oliver, 2017Silva, R. A. S., & Oliver, F. C. (2017). Trajetória docente e a formação de terapeutas ocupacionais para a atenção primária à saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 62(21), 661-673.).

A relevância em investigar as perspectivas de docentes e estudantes envolvidos com APS se deve ao aumento da inserção de terapeutas ocupacionais na APS no Brasil e das evidências apontadas em diferentes países sobre a necessidade de formação e prática da terapia ocupacional nesse nível de atenção em saúde (Donnelly et al., 2014Donnelly, C. A., Brenchley, C. L., Crawford, C. N., & Letts, L. J. (2014). The emerging role of occupational therapy in primary care. Canadian Journal of Occupational Therapy, 81(1), 51-61.; Killian et al., 2015Killian, C., Fisher, G., & Muir, S. (2015). Primary care: a new context for the scholarship of practice model. Occupational Therapy in Health Care, 29(4), 383-396.; Silva & Oliver, 2017Silva, R. A. S., & Oliver, F. C. (2017). Trajetória docente e a formação de terapeutas ocupacionais para a atenção primária à saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 62(21), 661-673.).

O estudo sobre as perspectivas de docentes e estudantes de terapia ocupacional acerca do papel de sua área profissional na APS é relevante, visto que um modelo de APS com equipes ampliadas melhora os indicadores de saúde da população (Macinko et al., 2009Macinko, J., Starfield, B., & Erinosho, T. (2009). The Impact of Primary Healthcare on Population Health in Low- and Middle-Income Countries. The Journal of Ambulatory Care Management, 32(2), 150-171.; Starfield, 2002Starfield, B. (2002). Primary Care: balancing health needs services and technologies. Brasília: UNESCO/Ministério da Saúde.).

Portanto, o objetivo desta pesquisa foi compreender as perspectivas de docentes e estudantes brasileiros sobre o papel da terapia ocupacional na APS.

Metodologia

Este estudo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa de mestrado em Terapia Ocupacional sobre a “Formação Graduada de Terapeutas Ocupacionais para o Cuidado na APS no Estado de São Paulo” (Silva, 2016Silva, R. A. S. (2016). A formação graduada de terapeutas ocupacionais para o cuidado na atenção primária à saúde no Estado de São Paul o (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.).

Trata-se de estudo exploratório, realizado por meio de abordagem qualitativa (Sampieri et al., 2013Sampieri, R. H., Collado, C. F., & Lucio, P. B. (2013). Metodologia de pesquisa. São Paulo: McGraw-Hill.), com a participação de 17 docentes com experiência de prática e ensino em terapia ocupacional na APS e de 67 estudantes de graduação de último ano que estudaram terapia ocupacional na APS.

Participantes

Em 2015, havia 43 cursos de terapia ocupacional no Brasil. Foi identificado que o estado de São Paulo possuía um dos cursos mais antigos e o maior número de cursos em funcionamento do país (14 cursos – equivalente a 32,55%), o que, em alguma medida, indica a relevância de se investigar este contexto (Brasil, 2015Brasil. Portal do e – MEC. (2015). Número de cursos de Terapia Ocupacional do Brasil. Recuperado em 26 de maio de 2015, de http://emec.mec.gov.br/
http://emec.mec.gov.br/...
; Palm, 2012Palm, R. C. M. (2012). Catálogo Latinoamericano de Asociaciones, Carreras y Postgrados de Terapia Ocupacional. Curitiba: CLATO.). Os 14 cursos (cinco públicos e nove privados) foram convidados a participar da pesquisa por meio de contatos telefônicos e por correio eletrônico com seus coordenadores. Aceitaram participar docentes e estudantes de nove cursos, sendo cinco de instituições públicas e quatro de instituições privadas.

Os nove cursos participantes emitiram autorizações por escrito e facilitaram o contato do pesquisador com os docentes responsáveis pelo ensino em APS e com os estudantes de graduação do último ano. Por meio de correio eletrônico, foram realizados convites aos docentes, sendo que 17 participaram e estão caracterizados na Tabela 1.

Tabela 1
Docentes de cursos de Terapia Ocupacional.

Estudantes de graduação de último ano dos nove diferentes cursos foram convidados a participar do estudo e 67 aceitaram o convite e estão caracterizados na Tabela 2, o que se traduziu na realização de uma Roda de Conversa em cada um dos cursos participantes da pesquisa.

Tabela 2
Estudantes de graduação de último ano.

Coleta de dados

O trabalho de campo foi realizado entre abril e outubro de 2015. Todos os participantes foram informados sobre o objetivo da pesquisa e os procedimentos éticos e metodológicos para a coleta de dados. O estudo foi realizado nos nove cursos localizados em nove diferentes cidades do Estado de São Paulo, Brasil.

Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os docentes e rodas de conversa com os estudantes.

Os roteiros orientadores das entrevistas semi-estruturadas e das rodas de conversa foram desenvolvidos pelos pesquisadores e, posteriormente, submetidos à avaliação de sete especialistas que participaram voluntariamente do estudo: cinco professoras do ensino superior com experiência de pesquisas em APS e duas terapeutas ocupacionais que atuavam na APS.

Instrumentos para a coleta de dados

Entrevistas

As entrevistas com 17 docentes totalizaram 11 horas e 26 minutos de duração, foram registradas com gravador de voz e transcritas na íntegra. O Roteiro de Entrevista com docente responsável pelo ensino da APS foi constituído por dez perguntas, as quais abordavam: 1- a trajetória de formação profissional do docente e sua inserção na APS; 2- as metodologias de ensino-aprendizagem adotadas; 3- as atividades de ensino, de assistência e de pesquisa desenvolvidas; 4- os suportes institucionais para garantir a formação na APS; 5- a identificação dos serviços territoriais e comunitários onde as atividades de formação prática se realizam; 6- a modalidade de gestão dos serviços de APS da cidade; 7- os responsáveis pelo acompanhamento dos estudantes no campo de prática da APS; 8- o conceito de cuidado utilizado pelos terapeutas ocupacionais na APS; 9- os desafios da formação em APS; 10- as mudanças e/ou ajustes necessários para garantir uma formação qualificada de terapeutas ocupacionais na APS.

Rodas de Conversa

As nove rodas de conversa com a participação de 67 estudantes foram registradas em gravador de voz e em câmera de vídeo, em um total de 10 horas e 34 minutos. O Roteiro de Rodas de Conversa para Estudantes de Graduação de último ano foi constituído por seis perguntas norteadoras e buscou compreender, por meio da interação entre os estudantes: 1- os conceitos utilizados de Atenção Primária à Saúde; 2- as disciplinas relativas à APS que foram cursadas; 3- as atividades e experiências que desenvolveram nos serviços de APS durante a formação; 4- os conceitos sobre o cuidado realizado por terapeutas ocupacionais na APS; 5- a avaliação da formação para APS; 6- os desafios e as mudanças necessárias para o ensino desse campo.

Análise de Dados

Os áudios das Entrevistas e das Rodas de Conversa foram transcritos na íntegra. Em seguida, foram aplicados procedimentos da análise temática propostos por Braun & Clarke (2006)Braun, V., & Clarke, V. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), 77-101.. Todos os dados foram organizados e revisados, sendo realizada leitura e releitura das transcrições; codificação inicial de dados; agrupamento dos códigos em temas relevantes; esses temas foram revisados pela terceira autora do artigo, que não participou da coleta de dados; os temas foram definidos e nomeados; e, por fim, houve a interpretação e análise dos dados.

Após a aplicação da análise, chegou-se a duas categorias: 1- As contribuições da terapia ocupacional para a APS; e 2- O papel específico da terapia ocupacional na APS.

Não houve conflito de interesses entre os pesquisadores e os participantes da pesquisa.

Considerações Éticas

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Carlos, Brasil. A identidade dos participantes foi preservada e em lugar de seus nomes foram escolhidos códigos numéricos. Todos os participantes concordaram com o proposto formalmente por meio de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Resultados

Perspectivas de docentes

As contribuições da Terapia Ocupacional para a Atenção Primária à Saúde

As docentes apontaram diferentes perspectivas que promovem contribuições, aproximações e revelam o potencial da terapia ocupacional para qualificar a APS. Essas perspectivas estão ancoradas em pressupostos da APS ampliada, como: integralidade, equidade, acesso, intersetorialidade e o cuidado em rede de atenção à saúde.

Essas características podem ser observadas nos discursos sobre essas contribuições para uma APS abrangente e o cuidado em saúde baseado na integralidade.

[...] articulação de ações [na APS] tem que ser dentro do contexto do que a própria terapia ocupacional tem de know-how para contribuir. Então eu posso fazer uma órtese para você ao mesmo tempo estou lidando com a dinâmica dentro da família, pensando na sua inclusão dentro do trabalho do mesmo jeito que eu posso estar articulando isso junto com a equipe. [...] Quando você está lá na atenção primária você vai na casa e vê a história [...] Então eu acho que a terapia ocupacional tem um potencial enorme na atenção primária [...] o mundo inteiro está dizendo - a saída é o fortalecimento da atenção primária (Docente 6 – Curso 3).

A terapia ocupacional possui essa perspectiva de integralidade e de conseguir fazer e efetivar a proposta da Atenção Primária, de tirar o foco da doença, de enxergar essa pessoa para além da doença [...] enxergando as potencialidades (Docente 16 – Curso 9).

As docentes reconhecem que tanto a APS como a terapia ocupacional são pautadas pelo cuidado integral, com objetivo de atender às necessidades em saúde, promover e ampliar a autonomia das pessoas e coletividades, tornando-as progressivamente menos dependentes dos serviços de APS.

O Terapeuta Ocupacional é um profissional que pode transformar muito a lógica do [serviço de APS], porque a maioria dos profissionais quer olhar para a doença, e aí a gente fica institucionalizando as pessoas dentro [do serviço de APS]. Por exemplo, [serviço de APS] que promovem grupos de caminhada, por que eles precisam ser permanentes? Não é preciso provocar autonomia nos sujeitos? [...] (Docente 15 – Curso 9).

Eu acho que a terapia ocupacional chega muito como uma provocadora nesse campo [da APS] [...] vem olhar muito mais a questão de poder fazer com que essas pessoas tenham autonomia, tenham independência, e que sejam também responsáveis pelo próprio cuidado (Docente 16 – Curso 9).

As docentes reconhecem o potencial da APS para promover equidade na assistência, justificando que a terapia ocupacional poderia aumentar a oferta de cuidado às pessoas com deficiência e em sofrimento psíquico, clientela raramente atendida na APS. Da mesma maneira, amplia-se também o acesso a serviços de terapia ocupacional para populações frequentemente atendidas pela APS, por exemplo, pessoas com doenças crônicas não-transmissíveis (Hipertensão Arterial Sistêmica, distúrbios osteomusculares, Diabetes) e mesmo a população em geral, em ações de promoção, prevenção e reabilitação ofertadas por terapeutas ocupacionais

O cuidado da terapia ocupacional na APS é [...] pensar os casos de saúde mental, de disfunção física, de pessoas em situação mais gritante de exclusão, de idosos [...] Agora uma outra coisa é como a terapia ocupacional vai conversar com aquilo que são os transtornos ou as problemáticas prevalentes na APS: como o diabetes, a hipertensão, a gestação, com o pré-natal, com as doenças infectocontagiosas, etc. Ou não, a gente não vai dialogar na Atenção Primária com essas questões? (Docente 3 – Curso 2).

O fato de você ter o terapeuta ocupacional na APS não significa, por exemplo, atendimento à pessoa com deficiência ou com transtorno mental, pelo contrário, na discussão geral da Atenção Primária, o atendimento a todos, a não hierarquia de populações, essas pessoas ficam de novo de fora [...] (Docente 4 – Curso 2).

As pessoas atendidas pela Terapia Ocupacional na APS podem ser acompanhadas simultaneamente por diversos serviços que contribuam para a resolutividade de suas necessidades por meio do cuidado intersetorial e articulado em redes, exigindo de todos os profissionais, inclusive do terapeuta ocupacional, competências para o trabalho colaborativo e interprofissional.

Para a natureza de trabalho que o Terapeuta Ocupacional faz, o cuidado na APS tem que passar por uma perspectiva intersetorial e em rede [...] porque a população para qual ele está olhando, normalmente, está em interface com diferentes temáticas, com diferentes problemáticas, com diferentes áreas [...] (Docente 4 – Curso 2).

O papel específico da terapia ocupacional na Atenção Primária à Saúde

As docentes apontam que o conceito de cotidiano pode embasar o cuidado integral da terapia ocupacional na APS, pois, a partir deste, é possível contextualizar a participação das pessoas em suas atividades em diferentes áreas da vida e criar estratégias de proteção aos fatores de risco para diferentes patologias, além de promover a participação social. Nesse sentido, o cotidiano é compreendido de forma ampla como o contexto em que se realizam as ocupações.

Em relação ao cuidado específico do terapeuta ocupacional [...] olhar para as áreas de desempenho, para as ocupações cotidianas que esse indivíduo consegue, ou que tem dificuldade, ou que não consegue realizar [...] quanto que aquela sua condição implica no cotidiano, nas tarefas que ela realiza, nas ocupações que ela tem [...] além de pensar os papéis dos familiares, da rede de suporte social como a vizinhança, da utilização dos equipamentos que tem na comunidade, ou até fora dela, para a maior participação social (Docente 8 – Curso 4).

Eu penso terapia ocupacional na APS, eu penso muito na palavra cotidiano, eu acho que quando a gente está aqui na APS, olhamos para o cotidiano dessa população e aonde tá, de repente, o fator de risco que vá desenvolver algum problema futuramente que vai parar lá nas clínicas de reabilitação, aí pode ser uma depressão, um Alzheimer, um Acidente Vascular Encefálico, uma situação de dependência química, de acidentes, de queimaduras [...] (Docente 10 – Curso 6).

As docentes relatam o caráter generalista da atuação do terapeuta ocupacional na APS, sendo um profissional com habilidades variadas, tendo expertise na promoção de atividades/ocupações significativas, no manejo de tecnologia assistiva, e também com habilidades de caráter mais relacional junto a famílias e comunidades, e de trabalho colaborativo e articulado em redes.

Na TO, eu fazia um grupo de artesanato para mulheres, em vez de colocá-las no grupo de psicoterapia, colocava no grupo de convivência e de fazer coisas, estimular assim a descobrir potencialidades, mulheres voltarem ao mercado de trabalho, pensar nas suas ocupações, ocupações mais significativas para mulheres de periferia que só estão cuidando de casa e dos filhos (Docente 1 – Curso 1).

Então eu acho que o cuidado do terapeuta ocupacional [na APS], é: [...] se eu precisar de uma cadeira adaptada, uma adequação postural em cadeira de rodas eu vou ter que saber fazer; Se eu precisar fazer um manejo de situações de relacionamento em família, eu tenho que saber fazer; Se eu precisar fazer uma interferência, uma articulação intersetorial de maneira que a inclusão ocorra na escola, eu tenho que saber fazer [...] (Docente 6 – Curso 3).

As docentes também consideram a importância das várias possibilidades de ação e de não focalizar as intervenções nas patologias e disfunções, mas na identificação de necessidades da clientela, que devem ser avaliadas nos encontros, buscando-se compreender como as pessoas constroem seus cotidianos e se engajam nas suas ocupações.

O terapeuta ocupacional pode fazer na APS atendimento individual, atendimento grupal, intervenção na comunidade, intervenção na ambiência, intervenção em territórios, na cidade, ações de promoção, prevenção, intersetorialidade, enfim eu acho que tem muita coisa (Docente 3 – Curso 2).

O que o terapeuta ocupacional consegue produzir e criar ações [na APS] que não sejam somente a ampliação de diagnóstico da doença? (Docente 4 – Curso 2).

Perspectivas de estudantes

As contribuições da terapia ocupacional para a Atenção Primária à Saúde

De maneira geral, os estudantes identificaram contribuições e proximidades das práticas em terapia ocupacional com a APS, como podemos observar nos discursos sobre a importância do cuidado integral em saúde, a compreensão do contexto social, a possibilidade de ampliação do acesso a terapeutas ocupacionais por diferentes populações devido ao caráter generalista das intervenções, e ao cuidado intersetorial e em rede de atenção à saúde.

Um olhar muito integral, de olhar o território e olhar onde está tudo lá dentro (Roda de Conversa 1, Curso 1).

Olhar na APS para o contexto social e isso integrando na saúde [...] (Roda de Conversa 4, Curso 4).

Os estudantes relataram o engajamento em ações de cuidado a pessoas com deficiências motoras e sensoriais, a pessoas com sofrimento psíquico e a pessoas com patologias crônicas, reiterando a importância e reconhecendo as experiências variadas de atenção generalista, intersetorial e de organização do trabalho em rede.

Uma questão do curso foi formar um Terapeuta Ocupacional generalista [...] (Roda de Conversa 3, Curso 3).

O grande trunfo da Terapia Ocupacional, [na APS], é que ela não é uma profissão só da saúde, a Terapia Ocupacional é uma profissão que atua na educação, no social. Ela transita entre essas três áreas[...] (Roda de Conversa 5, Curso 5).

Vemos importância na articulação intersetorial, por que vemos a necessidade de conversar com a rede de serviços [...] (Roda de Conversa 3, Curso 3).

O papel específico da Terapia Ocupacional na Atenção Primária à Saúde

Quanto à especificidade da terapia ocupacional, os estudantes apontam que o papel na APS tem como objetivos: facilitar, reconhecer e promover a participação dos indivíduos nas ocupações realizadas no cotidiano e nos territórios em que vivem, promover uma maior participação das pessoas nos diferentes contextos sociais e comunitários e potencializar suas habilidades a partir das intervenções nesse cotidiano.

A terapia ocupacional trabalha com o cotidiano, considerando o que a pessoa faz, o que tem vontade de fazer e o que deixou de fazer [...] temos que ver sua história de vida, a forma como a pessoa faz uma determinada atividade, o que aquela atividade significa para pessoa (Roda de Conversa 1, Curso 1).

O terapeuta ocupacional pode estar organizando o cotidiano [...] é um profissional, que a gente percebia nas discussões da APS, que tínhamos um potencial, que é da nossa formação, que é olhar o cotidiano desse usuário, independentemente de ter alguma condição relacionada à doença ou não (Roda de Conversa 2, Curso 2).

[...] Quando falamos assim “vou fazer um cuidado” na atenção primária, a pessoa já pensa necessariamente qual é a técnica, qual é o procedimento, mas eu acho que vai ser “qualquer ação” que potencializa a participação do sujeito na vida, através da potencialização de suas habilidades, sejam sociais, sejam físicas, afetivas, cognitivas [...] (Roda de Conversa 8, Curso 8).

O terapeuta ocupacional busca olhar as dificuldades de inserção nas ocupações e as possíveis estratégias para melhorar essas dificuldades, pensando em todas as dimensões do ser humano: física, emocional, mental, social e espiritual (Rodas de Conversa 4, Curso 4).

Os estudantes expressaram diversas possibilidades de ações e abordagens da terapia ocupacional na APS, com destaque para o atendimento em grupo e com enfoque na prevenção de agravos, promoção e educação em saúde, além de ações no domicílio.

Podemos trabalhar com orientação, com palestras, com grupos de atividade física, grupo de gestantes, grupo de pacientes hipertensos e depressivos, orientação à família, grupos terapêuticos, atividades laborais, eu acho que atenção primária tem tudo a ver com a Terapia Ocupacional [...] (Roda de Conversa 7, Curso 7).

Acho que os grupos são uma ferramenta importante para essa prática na atenção primária, por que as vezes esse território tem demandas que se repetem e que podem ser elaboradas em grupo (Roda de Conversa 3, Curso 3).

Terapia Ocupacional tem contribuições, não apenas na promoção e prevenção, mas também no cuidado dessas pessoas que têm lesões, e que muitas vezes estão em casa, sem outros acompanhamentos (Rodas de Conversa 2, Curso 2).

As visitas domiciliares também ajudam a entender como esse sujeito vive em sua casa, suas relações interpessoais, o que pode ser modificado, tanto no espaço físico quanto social (Roda de Conversa 4, Curso 4).

Discussão

No cenário mundial, em diferentes sistemas de saúde, a APS tem se destacado como estratégia governamental que visa à melhoria das condições sanitárias a partir da ampliação do acesso da população a serviços de saúde, e tal fato foi destacado pelas docentes.

Pesquisadores de diferentes países que investigaram a terapia ocupacional na APS indicam uma tendência da profissão para este nível de atenção à saúde, no entanto, apontam que poucos estudos têm abordado as contribuições específicas e evidências de suas práticas (Donnelly et al., 2016Donnelly, C. A., Leclair, L. L., Wener, P. F., Hand, C. L., & Letts, L. J. (2016). Occupational therapy in primary care: results from a national survey. Canadian Journal of Occupational Therapy, 83(3), 135-142.; Bolt et al., 2019Bolt, M., Ikking, T., Baaijen, R., & Saenger, S. (2019). Scoping review: occupational therapy interventions in primary care. Primary Health Care Research and Development, 20(e28), 1-6.; Silva & Oliver, 2019Silva, R. A. S., & Oliver, F. C. (2019). Identificação das ações de terapeutas ocupacionais na atenção primária à saúde no Brasil. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional, 3(1), 21-36.).

Mesmo com a inserção da terapia ocupacional na APS, ainda falta tornar evidente as contribuições específicas acerca do que faz e/ou do que poderia ser realizado por terapeutas ocupacionais neste contexto de prática (Metzler et al., 2012Metzler, C. A., Hartmann, K. D., & Lowenthal, L. A. (2012). Health Policy Perspectives-Defining primary care: envisioning the roles of occupational therapy. The American Journal of Occupational Therapy, (66), 266-270.; Andrade & Falcão, 2017Andrade, A. S., & Falcão, I. V. (2017). A compreensão de profissionais da atenção primária à saúde sobre as práticas da terapia ocupacional no NASF. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 25(1), 33-42.) – de modo a fortalecer a formação e atuação dos profissionais. Dessa forma, seria estratégica a sistematização e o detalhamento do que se faz, para que seja possível uma melhor comunicação sobre terapia ocupacional para as equipes de APS e para a população sobre o escopo e os objetivos da terapia ocupacional nesse nível de atenção (Andrade & Falcão, 2017Andrade, A. S., & Falcão, I. V. (2017). A compreensão de profissionais da atenção primária à saúde sobre as práticas da terapia ocupacional no NASF. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 25(1), 33-42.; Donnelly et al., 2013Donnelly, C. A., Brenchley, C., Crawford, C., & Letts, L. J. (2013). The integration of occupational therapy into primary care: a multiple case study design. BMC Family Practice, 60(14), 60-72.).

Nessa direção, as perspectivas das docentes e dos estudantes expõem contribuições e papel da terapia ocupacional para a APS, na medida em que concebem as intervenções a partir da integralidade do cuidado em saúde, considerado fator essencial para práticas mais eficazes, inclusive para o acompanhamento de pessoas sem uma doença diagnosticada.

O termo integralidade (comprehensive care) está presente no discurso e orientações de organismos internacionais ligados a programas de APS e de promoção de saúde (Fracolli et al., 2011Fracolli, L. A., Zoboli, E. L. P., Granja, G. F., & Ermel, R. C. (2011). The concept and practice of comprehensiveness in Primary Health Care: nurses perception. Revista da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, 45(5), 1135-1141.), e consiste em um dos atributos essenciais da APS ao lado de outros, como: atenção ao primeiro contato, longitudinalidade e coordenação do cuidado. Também precisam ser considerados os atributos derivados, como a orientação familiar, comunitária e a competência cultural (Starfield, 2002Starfield, B. (2002). Primary Care: balancing health needs services and technologies. Brasília: UNESCO/Ministério da Saúde.).

A integralidade em saúde pode assumir diferentes sentidos, entre eles, a garantia de oferta de práticas de cuidado de cunho preventivo, curativo e reabilitador para atender públicos diversos em um sistema de saúde (Silva et al., 2017Silva, M. V. S., Miranda, G. B. N., & Andrade, M. A. (2017). Diverse meanings of comprehensiveness: between the presupposed and the experienced in a multi-disciplinary team. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 62(21), 589-599.; Fracolli et al., 2011Fracolli, L. A., Zoboli, E. L. P., Granja, G. F., & Ermel, R. C. (2011). The concept and practice of comprehensiveness in Primary Health Care: nurses perception. Revista da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, 45(5), 1135-1141.). Uma prática integral e ampliada proporciona abertura para outros aspectos que não aqueles ligados diretamente às patologias, mas que também considera as questões relativas à subjetividade e aos contextos sociais em que as pessoas vivem, como foi destacado pelos estudantes. Nesse sentido, afirma-se a importância das ações territoriais e comunitárias, como parte das diretrizes para a formação profissional na APS, já que essas características contribuem para o fortalecido da integralidade neste nível de atenção.

Devido à característica da APS de ser porta de entrada preferencial para o cuidado em saúde da população, por vezes, esse nível de atenção demanda outros suportes e assistência para produzir resolutividade, o que foi apontado pelas docentes e estudantes como a dimensão do cuidado intersetorial e em rede de atenção à saúde, como sendo importante para o trabalho da terapia ocupacional na APS. Nesse tocante, Avelar & Malfitano (2018)Avelar, M. R., & Malfitano, A. P. S. (2018). Entre o suporte e o controle: a articulação intersetorial de redes de serviços. Ciência & Saúde Coletiva, 23(10), 3201-3210. avaliam que a integração das redes e a intersetorialidade precisam ser construídas na prática de maneira a favorecer uma atenção integral às necessidades e à construção de ações que respondam de modo adequado às problemáticas de determinado território e população.

Em relação ao papel específico da terapia ocupacional na APS, tanto docentes como estudantes enfatizaram a relevância da compreensão da vida cotidiana como requisito para planejar as intervenções voltadas ao desempenho e à participação ocupacional das pessoas atendidas, o que está presente nas reflexões de Hasselkus (2018Hasselkus, B. R. (2018). The meaning of everyday occupation: research and practice. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 29(1), 80-84., 2006Hasselkus, B. R. (2006). The world of everyday occupation: real people, real lives. The American Journal of Occupational Therapy, 60(6), 627-640.) ao afirmar que as ocupações cotidianas estão presentes em todos os momentos e lugares de nossas vidas e que a compreensão do significado das ocupações cotidianas pode ser definidora da prática da terapia ocupacional.

No Brasil, pesquisadores da terapia ocupacional se interessam pelo conceito de cotidiano adotado por autores da filosofia, como Lukács, Heller e Certeau. Essas influências têm embasado a seguinte compreensão:

A terapia ocupacional se interessa pelas atividades realizadas pelos sujeitos, e essas atividades são desempenhadas no dia a dia, na vida cotidiana. É a partir dessas atividades que as pessoas se relacionam entre si, participam do processo produtivo da sociedade, vivenciam a cultura da qual fazem parte e se tornam quem elas são (Salles & Matsukura, 2015Salles, M. M., & Matsukura, T. S. (2015). Estudo de revisão sistemática sobre o uso do conceito de cotidiano no campo da Terapia Ocupacional na literatura de língua inglesa. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 23(1), 197-210., p. 266).

Galheigo (2003)Galheigo, S. M. (2003). O cotidiano na terapia ocupacional: cultura, subjetividade e contexto histórico-social. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 14(3), 104-109. sustenta que o cotidiano traz em si a marca da singularidade da pessoa, está conformado a partir da história de vida, das necessidades, valores, crenças e afetos dos sujeitos. Isso se dá de tal modo que, ao percebermos a singularidade do cotidiano de determinada pessoa, também temos acesso a aspectos de sua coletividade, suas redes de sociabilidade e aos significados atribuídos às atividades que realiza.

Dessa forma, percebe-se que empreender esforços na compreensão do cotidiano enquanto aporte teórico-conceitual e prático (Galheigo, 2020Galheigo, S. M. (2020). Terapia ocupacional, cotidiano e a tessitura da vida: aportes teórico-conceituais para a construção de perspectivas críticas e emancipatórias. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(1), 5-25.) pode ser uma forte característica para o papel da terapia ocupacional na APS brasileira, pois as atividades se desenvolvem em contextos de vida singulares, que refletem aspectos socioculturais, territoriais e históricos (Galheigo, 2003Galheigo, S. M. (2003). O cotidiano na terapia ocupacional: cultura, subjetividade e contexto histórico-social. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 14(3), 104-109.).

Tendo as noções de integralidade e o conceito de cotidiano como base para o desenvolvimento do papel específico da terapia ocupacional na APS, as docentes e os estudantes apresentaram diferentes possibilidades de ação, que estão em consonância com os achados da revisão da literatura de Cabral & Bregalda (2017)Cabral, L. R. S., & Bregalda, M. M. (2017). A atuação da terapia ocupacional na atenção básica à saúde: uma revisão de literatura. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 25(1), 179-189., que sintetizaram e identificaram as práticas de terapeutas ocupacionais brasileiras na APS. Nessa revisão, foram descritas as ações compartilhadas com outros profissionais da APS, como aquelas em educação em saúde; de articulação em redes e com outros serviços (intersetorialidade); as reuniões de equipe; as ações comunitárias; a atenção domiciliar; as abordagens grupais e as oficinas terapêuticas.

Outro aspecto significativo apresentado no estudo citado foi a prática de apoio matricial de terapeutas ocupacionais às equipes de referência da Estratégia de Saúde da Família (ESF) – que contribuem a partir de seus conhecimentos específicos para que as equipes possam responder de forma mais qualificada às necessidades das pessoas atendidas por meio de práticas interprofissionais (Cabral & Bregalda, 2017Cabral, L. R. S., & Bregalda, M. M. (2017). A atuação da terapia ocupacional na atenção básica à saúde: uma revisão de literatura. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 25(1), 179-189.).

Quanto ao papel específico da terapia ocupacional na APS, pode-se indicar que está articulado à maneira como terapeutas ocupacionais abordam as atividades e ocupações em suas diferentes modalidades de intervenções, o que ainda carece de maior detalhamento (Jacinto et al., 2017Jacinto, B. O., Rodrigues, C. S., Maxta, B. S. B., & Tomasi, A. R. P. (2017). O apoio matricial em saúde realizado por terapeutas ocupacionais no Sistema Único de Saúde. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 25(1), 191-201.).

As docentes e estudantes atribuem à profissão o papel de promover a participação do sujeito nas diferentes áreas de sua vida, levando em consideração o contexto social, territorial e o cotidiano das pessoas acompanhadas. Para dar conta desse papel específico, os profissionais devem se fundamentar em conhecimentos e habilidades específicas da terapia ocupacional (Metzler et al., 2012Metzler, C. A., Hartmann, K. D., & Lowenthal, L. A. (2012). Health Policy Perspectives-Defining primary care: envisioning the roles of occupational therapy. The American Journal of Occupational Therapy, (66), 266-270.), nos atributos essenciais e derivados da APS (Starfield, 2002Starfield, B. (2002). Primary Care: balancing health needs services and technologies. Brasília: UNESCO/Ministério da Saúde.) e em uma prática interprofissional.

Experiências no Canadá apontam uma discreta inserção da terapia ocupacional na APS, sendo relatadas com maior frequência intervenções relacionadas à prevenção de quedas em idosos, à promoção da mobilidade, à triagem cognitivo-perceptual e à segurança no domicílio, sendo que os atendimentos podem ser realizados nos serviços, em espaços comunitários e nos domicílios (Donnelly et al., 2016Donnelly, C. A., Leclair, L. L., Wener, P. F., Hand, C. L., & Letts, L. J. (2016). Occupational therapy in primary care: results from a national survey. Canadian Journal of Occupational Therapy, 83(3), 135-142.). Os terapeutas ocupacionais canadenses usam o termo função como sendo o objetivo de suas práticas. O que mais importa é conseguir realizar as atividades que necessitam ou aquelas que desejam realizar, conferindo menor relevância ao diagnóstico clínico e à patologia apresentada pela clientela (Donnelly et al., 2014Donnelly, C. A., Brenchley, C. L., Crawford, C. N., & Letts, L. J. (2014). The emerging role of occupational therapy in primary care. Canadian Journal of Occupational Therapy, 81(1), 51-61.).

Em estudo realizado na Noruega, foi identificado o número pequeno de terapeutas ocupacionais que trabalham na perspectiva da promoção da saúde e que, quando terapeutas ocupacionais realizam essa prática, predomina a abordagem com indivíduos e não em um nível sistêmico e social. Embora a prática de promoção de saúde ainda não seja tão difundida, os autores identificaram que os conceitos-chave na terapia ocupacional para promoção da saúde são ocupação significativa e a participação (Holmberg & Ringsberg, 2014Holmberg, V., & Ringsberg, K. C. (2014). Occupational therapists as contributors to health promotion. Scandinavian Journal of Occupational Therapy, 21(2), 82-89.).

Na realidade brasileira, terapeutas ocupacionais que atuam na APS têm desenvolvido um amplo escopo de práticas [de perfil: generalista, interprofissional, específica e baseada na pessoa] em interface com os atributos da APS e voltado para todas as fases do ciclo de vida. Essas práticas contemplam a prevenção de doenças e agravos, promoção e educação em saúde, apoio matricial (clínico-assistencial e técnico-pedagógico) – sendo desenvolvidas por meio de atenção individual, familiar, grupal, em rede, intersetorial e territorial – o que pode contribuir para resultados positivos dos indicadores de APS e para o cuidado integral à saúde da população (Silva, 2020Silva, R. A. S. (2020). A prática de terapeutas ocupacionais na Atenção Primária à Saúde no Brasil (Tese de doutorado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.).

Quanto ao perfil da clientela atendida pela terapia ocupacional na APS, as docentes entrevistadas expressaram o seguinte dilema: devem priorizar intervenções com a população em geral atendida nos serviços de APS ou priorizar a atenção às populações mais vulneráveis e em situação de maior isolamento domiciliar, por exemplo, as pessoas com diagnósticos psiquiátricos e pessoas com deficiência, mobilidade reduzida e/ou restrição nas atividades e participação social? A resposta a esse dilema é um caminho a ser construído, de tal maneira que as práticas de terapeutas ocupacionais na APS busquem melhorar as condições de saúde e a produção de vida, além de diminuir as inequidades sociais e as situações de sofrimento e adoecimento nos diferentes grupos populacionais, que apresentam dificuldades de participação na vida cotidiana.

Considera-se ainda que tal dilema pode estar relacionado a diferentes trajetórias de inserção da terapia ocupacional na APS no Brasil, que provavelmente em seu início reproduziu a lógica do trabalho em serviços especializados. Mas, também, deve-se ressaltar o número reduzido de terapeutas ocupacionais no país, pouco menos de 20 mil profissionais, e a existência de apenas 32 cursos ativos, no ano de 2018. Portanto, os poucos terapeutas ocupacionais que trabalham na APS acabam por atuar em regiões de maior vulnerabilidade social e são mais demandados pelas equipes de APS a atender pessoas com deficiências e/ou com sofrimento mental.

Por outro lado, a literatura nacional aponta que a terapia ocupacional na APS, no Brasil, tem direcionado suas ações a diferentes populações, de todas as faixas etárias, como pessoas com necessidades relacionadas à saúde mental, pessoas com deficiências, pessoas com doenças crônicas, pessoas em situação de vulnerabilidade social, além de cuidado a famílias, cuidadores informais e aos profissionais das equipes da APS (Jacinto et al., 2017Jacinto, B. O., Rodrigues, C. S., Maxta, B. S. B., & Tomasi, A. R. P. (2017). O apoio matricial em saúde realizado por terapeutas ocupacionais no Sistema Único de Saúde. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 25(1), 191-201.).

Tal fato se difere, por exemplo, da realidade do contexto canadense, onde os atendimentos de terapia ocupacional na APS são mais direcionados a adultos e a idosos (Donnelly et al., 2016Donnelly, C. A., Leclair, L. L., Wener, P. F., Hand, C. L., & Letts, L. J. (2016). Occupational therapy in primary care: results from a national survey. Canadian Journal of Occupational Therapy, 83(3), 135-142.), como também a pessoas com patologias crônicas complexas, que apresentam uma restrição significativa nas ocupações e na participação (Donnelly et al., 2014Donnelly, C. A., Brenchley, C. L., Crawford, C. N., & Letts, L. J. (2014). The emerging role of occupational therapy in primary care. Canadian Journal of Occupational Therapy, 81(1), 51-61.).

A compreensão de diferentes perspectivas (de docentes e estudantes) que constituem a formação graduada de terapeutas ocupacionais para APS em diálogo com a literatura da área demonstrou caminhos já constituídos de problematização e sistematização da área no ensino. De alguma maneira, os achados deste estudo contribuem para o diálogo na área e uma inserção pertinente e contextualizada da profissão neste nível de atenção à saúde.

Considerações Finais

As perspectivas apresentadas por docentes e estudantes (mesmo que apresentem diferenças na elaboração dos discursos) indicam características do papel da terapia ocupacional para a APS, sendo possível reconhecer a relevância dessas contribuições para a crescente consolidação da profissão neste nível de atenção à saúde. No entanto, ainda há caminhos a serem trilhados e desafios a serem enfrentados no sentido de construir um maior detalhamento do papel da terapia ocupacional na APS.

Reconhecer a importância da noção de um cuidado integral e ampliado, do conceito de cotidiano enquanto contexto de realização das ocupações, da variedade de práticas realizadas e da diversidade e a complexidade das condições de saúde e de vida de populações atendidas pelos terapeutas ocupacionais no contexto brasileiro pode contribuir para aprofundar o debate e o intercâmbio no Brasil, regionalmente (América Latina) e com experiências de outros países, mesmo considerando a diversidade de organização e atribuições da APS nos diferentes sistemas de saúde nos países.

Esta pesquisa contribui para a constituição do papel da terapia ocupacional na APS, ao mesmo tempo que incentiva o aprofundamento da compreensão das práticas para possibilitar fundamentação teórico-metodológica pertinente e coerente tanto para a ampliação dessas práticas como para a formação de futuros profissionais.

Limitações da pesquisa

Trata-se de uma pesquisa de caráter exploratório, com o intuito de apresentar aspectos da formação teórica e prática nos serviços de APS, por meio das perspectivas de docentes e estudantes que desenvolvem atividades de ensino e aprendizagem na APS em nove cursos da área do estado de São Paulo, Brasil.

A pesquisa foi circunscrita à realidade de nove cursos brasileiros, o que não possibilita generalizações, mas sugere a reflexão sobre os desafios a serem enfrentados pela terapia ocupacional na APS.

  • Como citar: Silva, R. A. S., Nicolau, S. M., & Oliver, F. C. (2021). O papel da terapia ocupacional na atenção primária à saúde: perspectivas de docentes e estudantes da área. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 29, e2927. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO2214
  • Fonte de Financiamento

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

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Editado por

Editora de seção

Profa. Dra. Adriana Miranda Pimentel

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    25 Dez 2020
  • Revisado
    12 Fev 2021
  • Aceito
    12 Fev 2021
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