Resumo
Este artigo trata do relato de experiência do projeto de extensão ResisTO em parceria com uma política pública municipal numa capital do nordeste voltada à população dissidente de gêneros e sexualidades. O relato está organizado em três partes: na primeira parte, o projeto de extensão é apresentado e contextualizado; na segunda parte, discute-se a terapia ocupacional social, seu histórico e a aproximação com as discussões sobre gêneros e sexualidades; a terceira parte contém a trajetória das ações desenvolvidas e as parcerias realizadas ao longo dos seis anos de existência do projeto, elencando e refletindo sobre os principais desafios e a potencialidade do trabalho desenvolvido. O projeto tem se dedicado a ações e reflexões que tomam como base a análise dos marcadores sociais da diferença — em especial, gêneros e sexualidades — e da interseccionalidade. Ancora-se também no referencial teórico-metodológico da terapia ocupacional social e nas políticas públicas voltadas à população LGBTQIAP+. Ao longo dos seis anos de execução do projeto, por meio de diferentes ações, foi possível promover o acesso a um conhecimento democrático problematizando a essencialização das diferenças e desigualdades, buscando formas para uma convivência pautada no respeito e na solidariedade, produzindo estratégias que respondem às necessidades dos sujeitos - individuais e coletivos, visando construir e ampliar os direitos sociais e produzindo reflexões e ações democráticas.
Palavras-chave: Terapia Ocupacional; Perspectiva de Gênero; Políticas Inclusivas de Gênero; Sexualidade
Abstract
This study addresses the experience report of the ResisTO university extension project in partnership with a municipal public policy in a state capital in northeastern Brazil aimed at the gender and sexuality dissenting population. The report is organized into three parts: in the first part, the extension project is presented and contextualized; the second part discusses social occupational therapy, its history, and the approach to debates on gender and sexualities; the third part presents the trajectory of the actions developed and the partnerships carried out over the six years of the project’s existence, listing and reflecting on the main challenges and the potential of the work developed. The project has been dedicated to actions and reflections that are based on the analysis of social markers of difference—especially, genders and sexualities—and intersectionality. It is also anchored in the theoretical-methodological framework of social occupational therapy and public policies aimed at the LGBTQIAP+ population. Over six years of project execution, through different actions, it was possible to promote access to democratic knowledge questioning the essentialization of differences and inequalities, seek ways of living together based on respect and solidarity, produce strategies that respond to the individual and collective needs of subjects, aiming to build and expand social rights and producing reflections and democratic actions.
Keywords: Occupational Therapy; Gender Studies; Gender-Inclusive Policies; Sexuality
Apresentação
O ResisTO é um projeto de extensão do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) que integra as atividades do Laboratório Metuia UFPB/UNCISAL, que é um dos Núcleos1 da Rede Metuia - Terapia Ocupacional Social, uma rede interinstitucional que conta atualmente com seis núcleos em universidades públicas do Brasil. Essa rede tem se responsabilizado pelo desenvolvimento de estratégias de ensino, pesquisa e extensão em terapia ocupacional social.
A extensão universitária, em especial, tem a função de promover o desenvolvimento e o equacionamento de problemáticas sociais a partir dos conhecimentos produzidos dentro da universidade e fora dela.
A Extensão Universitária é o processo educativo, cultural e científico que articula o Ensino e a Pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre Universidade e Sociedade. A Extensão é uma via de mão-dupla, com trânsito assegurado à comunidade acadêmica, que encontrará, na sociedade, a oportunidade de elaboração da práxis de um conhecimento acadêmico. No retorno à Universidade, docentes e discentes trarão um aprendizado que, submetido à reflexão teórica, será acrescido àquele conhecimento. Esse fluxo, que estabelece a troca de saberes sistematizados, acadêmicos e popular, terá como consequências a produção do conhecimento resultante do confronto com a realidade brasileira e regional, a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da Universidade. Além de instrumentalizadora desse processo dialético de teoria/prática, a Extensão é um trabalho interdisciplinar que favorece a visão integrada do social (Nogueira, 2000, p. 11).
Além disso, nos últimos anos, “podemos perceber que a extensão universitária se transformou em um instrumento de inter-relação da universidade com a sociedade, de oxigenação da própria universidade e de democratização do conhecimento acadêmico por meio da troca de saberes com as comunidades” (Figueiredo et al., 2022, p. 3).
O projeto de extensão aqui retratado tem realizado ações por meio dos recursos e tecnologias sociais da terapia ocupacional social, destacando-se as Oficinas de Atividades, Dinâmicas e Projetos. Esses recursos e tecnologias foram traçados para possibilitar a criação de vínculos, aproximação e interação direta com os cotidianos de diversos indivíduos, grupos e populações juntos aos quais o projeto desenvolveu suas reflexões e ações, articulando, assim, diferentes níveis da política pública para ampliar o acesso aos direitos sociais e ao exercício de cidadania (Lopes et al., 2014).
Nesse sentido, este texto se propõe a relatar algumas das ações planejadas, executadas e avaliadas pela equipe do projeto ResisTO. O relato está organizado em três partes principais: uma introdutória, acerca da terapia ocupacional social, seu histórico e a aproximação com as discussões sobre gêneros e sexualidades; uma segunda contendo a trajetória das ações desenvolvidas e as parcerias realizadas ao longo dos seis anos de existência do projeto e, por último, reflexões sobre as experiências apresentadas, elencando os principais desafios e potencialidade do trabalho desenvolvido.
Terapia Ocupacional Social, Gêneros e Sexualidades
A terapia ocupacional social surge atrelada aos movimentos de contestação da vida social no Brasil que, intensificando as organizações por direitos sociais nas décadas de 1970 e 1980, culmina no processo de redemocratização da sociedade brasileira com o fim da ditadura militar (Barros et al., 2002).
Partindo dessa relação histórica com o contexto social, em um momento de ampliação dos direitos sociais, a produção da cidadania como um elemento essencial para a compreensão de Estado democrático no Brasil, a ideia de campo social começa a ganhar contornos na terapia ocupacional, principalmente a partir de críticas feitas por terapeutas ocupacionais aos fundamentos de suas ações profissionais, que naquele momento não poderiam levar em conta somente uma dimensão individual das problemáticas enfrentadas pelos sujeitos junto aos quais produzia suas ações.
Ao mesmo tempo, as terapeutas ocupacionais começam a atentar nas discussões sobre o impacto das instituições e da vida asilar em algumas populações, em diálogo com movimentos como a Reforma Psiquiátrica, a Reforma Sanitária e movimentos sociais que produziam reflexões sobre o processo de desinstitucionalização, bem como sobre os riscos de medicalização das problemáticas sociais (Barros et al., 2002).
Autores da sociologia e da filosofia começam a ser fundamentais para a compreensão de outras dimensões da realidade social e das relações que se tecem no cotidiano, fundamentando importantes análises das terapeutas ocupacionais, contribuindo para que a profissão deixasse de focar exclusivamente o campo da saúde, passando a refletir e produzir ações no campo da educação e no campo social (Barros et al., 2002).
Assim sendo, a atuação do campo social vai se originando a partir de ações conjuntas com as populações marginalizadas e, em razão da grande desigualdade social existente no Brasil, a terapia ocupacional busca fundamentar-se e criar suas bases teóricas e metodológicas com o objetivo de justiça, condições de vida mais dignas e acesso a direitos sociais (Galheigo et al., 2018).
Nesse contexto,
a terapia ocupacional social começa a ser desenhada com referenciais, métodos e técnicas próprios, específicos e para além das possibilidades de atuação profissional no campo da saúde, o que, ao invés de segregar e segmentar a prática profissional, tem contribuído diretamente para a ampliação dos campos de atuação e das possibilidades de inserção profissional em setores de políticas públicas até então não ocupados por terapeutas ocupacionais (Monzeli, 2022, p. 5).
A terapia ocupacional social passa a ser desenhada enquanto uma perspectiva teórico-metodológica a partir dos textos de Barros et al. (1999), Barros et al. (2002) e Barros et al. (2007).
Dessa forma, inicia-se, por meio de estudos sobre cultura e sociedade, a busca por novos referenciais teóricos, mais complexos e históricos, para que os sujeitos fossem compreendidos como seres sociais inseridos em uma cultura. Além disso, a terapeuta ocupacional passa a ser compreendida como uma agente de transformação social que busca atender às necessidades reais da população e coloca-se como parceira para a transformação do contexto no qual atua em conjunto (Barros et al., 2002).
Com o avanço das pesquisas, ações e reflexões, a terapia ocupacional social acaba se fundamentando em ao menos dois principais movimentos teóricos, que vão contribuir para as delimitações teóricas e metodológicas produzidas, seja por causa de fundamentações influenciadas por uma perspectiva materialista histórica que aponta para problemáticas que surgem da questão social, ou por reflexões embasadas nos estudos socioantropológicos sobre cultura, que apontam para leituras sobre diferenças culturais e interculturalidade (Monzeli, 2022).
Desde a década de 2010, a terapia ocupacional social tem produzido fundamentos e ações junto à população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queer, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais e outras identidades (LGBTQI+2 ), colocando a necessidade de se discutir os temas de gênero e sexualidade por compreendê-los como categorias de diferença social, ou seja, temas relevantes para a análise de situações de opressão, violência e negligência de direitos sociais e que, exatamente por isso, deveriam ser levadas em consideração para as reflexões e ações da terapia ocupacional social (Monzeli, 2022).
Esses sujeitos e grupos têm, historicamente, no Brasil, a restrição ao acesso a direitos sociais básicos como educação, saúde, assistência social, trabalho, bem como o não reconhecimento de suas experiências em diversas esferas da vida social (Braga et al., 2020).
O Coletivo Universitário de Dissidência Sexual - Chile (CUDS) - grupo criado em 2002 que realiza ações a partir de releituras da teoria queer considerando a realidade regional, foi o primeiro a problematizar o conceito de Diversidade Sexual e substituí-lo pelo termo Dissidência Sexual ao lançarem uma revista impressa com publicações de vários integrantes do coletivo em 2005 (Colling, 2015). O conceito de dissidência sexual traz uma ideia de oposição à “diversidade”, que articula uma compreensão de normalização e tolerância. Além disso, dissidência sexual considera os saberes locais, fugindo de discursos reproduzíveis do norte-americano queer que permeiam o multiculturalismo. Nesse sentido, a dissidência trabalha mais com a ideia de diferença do que de diversidade, o que coloca foco na produção de hierarquias e desigualdades sociais (Colling, 2019).
Dessa forma, uma das possíveis justificativas para a produção de reflexões e ações da terapia ocupacional social junto à população dissidente de gêneros e sexualidades pode estar na compreensão de que essa população, por encontrar-se fora do padrão heteronormativo, é alvo de diversas formas de violência, opressão e negligência de direitos sociais (Monzeli, 2022).
Além disso, apesar de ser uma população bastante diversa entre si, é possível observar que é composta por grupos que vivenciam injustiças sociais em seus cotidianos (Monzeli, 2022), o que pode ser compreendido pelas dimensões de redistribuição de renda, reconhecimento de diferenças culturais e representação de demandas políticas (Fraser, 2002).
Histórico de Ações Desenvolvidas e Parcerias Realizadas
O projeto ResisTO tem se dedicado a ações e reflexões que tomam como base a análise dos marcadores sociais da diferença — em especial, gêneros e sexualidades — e da interseccionalidade (Crenshaw, 2018). No que se refere especificamente à terapia ocupacional, o projeto utiliza o referencial teórico-metodológico da terapia ocupacional social e se apoia nas políticas públicas voltadas à população LGBTQIAP+.
A seguir, apresentamos as ações elaboradas e executadas pelo ResisTO desde sua criação.
Ano 1 - início do projeto na Universidade Federal da Paraíba
As práticas desenvolvidas pelo projeto de extensão tiveram início em 2017 em razão da necessidade, por parte de estudantes e docentes de terapia ocupacional, de se promover espaços de estudo e debate sobre a questão social e outras problemáticas sociais, abrangendo temas como direitos sociais, naturalização das violências e diversas formas de opressão às categorias de diferença social.
Esse projeto surge, então, da necessidade de inclusão do debate acerca dessas temáticas no ambiente acadêmico, tendo em vista que percebia-se uma fragilidade nas discussões relacionadas à perda dos direitos sociais num momento de crise da democracia brasileira (Braga et al., 2020), propondo reflexões sobre os retrocessos que se referem às políticas sociais, bem como diferentes situações de violência que estudantes de terapia ocupacional vivenciavam, naquele momento, em seus cotidianos.
Assim sendo, compreende-se que estudar e debater esses temas “exige uma construção, desconstrução e reconstrução constante sobre como os processos normativos incidem nas formas de viver” (Melo, 2016, p. 219). No segundo semestre de 2017, o projeto realizou formações e discussões sobre a questão social, sobre o fundamentalismo religioso e seus atravessamentos no cotidiano e nas instituições, sobre a naturalização e invisibilização das violências, bem como promoveu um sarau cultural no bloco da terapia ocupacional intitulado “Sarau ResisTO: arte como forma de resistência” (Figura 1), com diversas manifestações artísticas e culturais, com o objetivo de sensibilizar as comunidades acadêmica e externa acerca do preconceito e da discriminação às diferenças.
Sarau “ResisTO: arte como forma de resistência”. Fotografia das primeiras ações do projeto.
A partir dos encontros com estudantes e docentes de terapia ocupacional, neste primeiro ano de existência do projeto, verificou-se a necessidade de ampliar o debate para além dos muros da universidade, considerando os temas já abordados, com foco nas temáticas específicas de gêneros e sexualidades.
Ano 2 - estabelecimento da parceria com a Coordenadoria Municipal de Promoção à Cidadania LGBT e Igualdade Racial
Visando alcançar a população LGBTQIAP+ e com o objetivo de conhecer os programas e serviços voltados a esse público na cidade de João Pessoa, foi iniciada, em 2018, uma parceria com a Coordenadoria Municipal de Promoção à Cidadania LGBT e Igualdade Racial, que é um órgão criado pela Lei Municipal nº 12.400 de 2012 com o objetivo de implementar e monitorar programas e ações que combatam as desigualdades sociais no que se refere às categorias de gênero, sexualidade, questões étnico-raciais e religiosidade.
Inicialmente, em parceria com a Coordenadoria Municipal, o ResisTO utilizou as Oficinas em suas ações com o intuito de abordar os temas de gêneros e sexualidades, bem como situações de privação de direitos e os movimentos de resistência frente a diferentes situações de violência. Algumas Oficinas foram realizadas em casas de acolhimento institucional voltadas a pessoas em situação de rua em João Pessoa. Essas oficinas proporcionaram o diálogo acerca dos direitos sociais de seus usuários com o intuito de fortalecer vínculos sociais e afetivos e ampliar o debate sobre os marcadores sociais de diferença e as formas de enfrentar possíveis situações de preconceito e violência entre os usuários desses espaços (Souza et al., 2011).
Além disso, foram utilizadas outras estratégias, como as rodas de conversa que aconteciam em espaços públicos, como o “Bate Papo na Lagoa: diversidade sexual e identidade de gênero” (Figura 2), que aconteceu no Parque Sólon de Lucena, localizado no centro de João Pessoa, e no espaço da própria Coordenaria Municipal, a partir das demandas trazidas pelos usuários do serviço ou elencadas pela equipe de profissionais. Outros temas importantes para esses encontros foram a falta de visibilidade lésbica, trans e travesti no movimento social, trazendo também discussões sobre interseccionalidade, problemáticas de gênero, sexualidade e questões étnico-raciais, bem como debates sobre masculinidades e saúde de homens trans, gays e bissexuais que utilizam os serviços ofertados pela Coordenadoria Municipal.
Nesse ano, foram investidos esforços na formação dos discentes por meio de práticas e embasamento teórico sobre os marcadores sociais da diferença. Foram realizadas formações com base em referências como terapia ocupacional social, teoria queer e marcadores sociais da diferença, abordando temas como a problematização dos binarismos identitários, heteronormatividade, patriarcado e lutas de classe. Em suma, nesses encontros era comum o compartilhamento de conhecimentos, compreensões, inquietações e desdobramentos em diversas temáticas de lutas e resistências.
Ano 3 - realização de oficinas de atividades, dinâmicas e projetos nas escolas municipais de João Pessoa
A parceria com a Coordenadoria Municipal possibilitou, a partir de 2019, outras articulações junto a alguns setores da política pública municipal, como a Secretaria Municipal de Saúde, a Secretaria de Educação e Cultura e a Secretaria Extraordinária de Políticas Públicas para as Mulheres. Essas parcerias possibilitaram conhecer a rede de serviços voltados à população LGBTIAP+, assim como elaborar, sistematizar e ofertar diferentes propostas de reflexão e ação.
Durante o ano de 2019, partindo da demanda da Coordenadoria Municipal, foram realizadas oficinas em escolas públicas de João Pessoa com o objetivo de discutir, junto aos estudantes do Ensino Fundamental, problemáticas relacionadas a gêneros, sexualidades, questões étnico-raciais e diversidade religiosa (Braga et al., 2022).
Ao longo do ano, foram realizadas oficinas com alunos do 8° e 9° anos de escolas municipais da cidade com o objetivo de promover um debate sobre as diferenças e compreender como elas atravessam o cotidiano de adolescentes na escola. Inicialmente, a proposta pretendia realizar quatro ações em cada escola, abarcando ao menos uma escola de cada polo de ensino do município; contudo, com o início das articulações e a criação de vínculos com os estudantes e professores da primeira escola onde foram realizadas as Oficinas, foi elencada a demanda de que se aprofundassem as práticas nesta instituição e, assim os extensionistas do projeto juntamente com os estudantes dessa escola pensaram em outras temáticas importantes para serem abordadas, como a violência no interior da escola, os privilégios e as desigualdades, as diversas formas de opressão, assim como diferentes constituições familiares, entre outras.
Essas Oficinas utilizaram diferentes estratégias, planejadas de acordo com cada tema proposto, como por exemplo a produção conjunta de uma linha do tempo sobre as questões étnico-raciais no Brasil, dinâmicas com etiquetas para demarcar percepções, preconceitos e experiências sobre cada parte do corpo, intensificando os debates sobre gêneros e sexualidades, a criação de uma caixa de significados, que trazia dúvidas e questionamentos sobre os temas de gêneros e sexualidades e a elaboração de uma estratégia denominada “Corrida dos Privilégios”3 , que materializava as discussões sobre desigualdades enfrentadas em nossos cotidianos, entre outras estratégias disparadoras para abordar os temas propostos. A Figura 3 mostra a imagem da Corrida dos Privilégios.
Essas oficinas possibilitam, a partir de uma proposta lúdica e prática, reconhecer as demandas e limitações desse grupo, conectar-se com seus membros e aprender com as diversas singularidades encontradas. Apropriando-se das tecnologias sociais da terapia ocupacional social e das reflexões do educador Paulo Freire, essas ações buscaram construir relações mais horizontalizadas e apostar na dialogicidade, que pressupõe uma escuta sensível, somada a um esforço intencional de estar inteiramente com o outro e compartilhar, naquele momento, seu mundo, suas experiências e seus valores (Freire, 1987).
As escolas são um ambiente onde é possível transformar as vivências dos estudantes e professores. São um espaço de socialização e aprendizado e, portanto, o potencial construtivo do ambiente escolar deve ser reconhecido e utilizado como possibilidade de transformação da realidade social, compreendendo que “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda” (Freire, 2000, p. 67).
Portanto, esses recursos e métodos de ação, para além das contribuições junto aos adolescentes das escolas municipais, serviram como norteadores para guiar as práticas de estudantes extensionistas deste projeto, oferecendo instrumentos para lidarem com as temáticas que surgem da violência às identidades e subjetividades dessa população.
Por meio dessas ações, foi possível orientar e instrumentalizar estudantes, professores e servidores que, por muitas vezes, têm seus direitos sociais negados, sobre como lidar com questões que perpassam seu cotidiano.
Portanto, as Oficinas realizadas nas escolas possibilitaram reflexões acerca das diferenças, buscando contribuir para o combate às violências no âmbito da escola e fora dela, da mesma maneira que, possibilitaram a oferta de espaços para construções coletivas e convivência, promovendo o diálogo e a reflexão na direção da proteção e defesa dos direitos de adolescentes; ao mesmo tempo, essas ações promoveram o desenvolvimento e a formação técnica e política de estudantes de graduação, para atuação em escolas e espaços comunitários; a produção de materiais acadêmicos/bibliográficos, tal qual, a divulgação dessa experiência em produções acadêmicas.
Ano 4 - atividades remotas e reorganização do projeto em razão da pandemia de COVID-19
Como em 2019 os objetivos do Projeto foram atendidos de forma bastante satisfatória, em 2020, a Coordenadoria Municipal propôs ampliar as discussões tirando o foco dos estudantes e passando a realizar a formação e capacitação dos professores e demais servidores das escolas municipais. O principal motivo elencado para essa proposta de alteração no foco das ações estava na identificação, por parte da Coordenadoria Municipal, de que parte das situações de violência ocorridas no contexto escolar poderia estar relacionada à falta de capacitação e de formação continuada dos professores, da mesma forma que dos demais profissionais da escola.
Dessa maneira, foi elaborada uma proposta de Oficina voltada para os professores e demais profissionais das escolas públicas municipais de João Pessoa, principalmente pela identificação da importância de produzir um diálogo conjunto com esses atores, entendendo que os marcadores sociais da diferença estão presentes nos cotidianos, seja no nível pessoal ou profissional, e que a escola é um equipamento social relevante para diferentes grupos sociais.
Ademais, foram elaboradas, por meio das Oficinas, a discussão de casos que apresentavam diferentes situações de violência cometida no contexto escolar, para que a equipe de servidores e gestores pudessem refletir sobre elas, e que possíveis atitudes e encaminhamentos pudessem ser tomados.
A ideia inicial era realizar a formação em pelo menos uma escola de cada polo educacional da cidade. Logo após a realização da Oficina na primeira escola, foi identificado o caráter pandêmico da COVID-19, o que fez com que as atividades fossem suspensas por tempo indeterminado.
Durante o período de isolamento social decorrente da pandemia de COVID-19, foi preciso rever as estratégias do Projeto e foi feito um investimento na formação de seus integrantes através de plataformas virtuais. Foi possível utilizar os espaços virtuais para intensificar a formação teórica, abordando os principais temas propostos pelo Projeto, além da discussão de estratégias de articulação com a Coordenadoria Municipal e com os movimentos sociais LGBTQIAP+ para executar e divulgar ações realizadas pelo Projeto nesse período de restrição de circulação e isolamento social.
Como não foi possível continuar com a proposta de realização das Oficinas previstas para a formação dos profissionais das escolas, elaboramos, confeccionamos e distribuímos uma cartilha virtual intitulada “Oficina das diferenças: uma estratégia de enfrentamento às violências nas escolas municipais de João Pessoa”4 .
Essa cartilha foi organizada com o objetivo de oferecer elementos para a formação dos profissionais da escola no sentido de disparar o debate sobre os temas de gênero, sexualidade, questões étnico-raciais e diversidade religiosa. O material oferece referenciais teóricos, estratégias de dinâmicas disparadoras para discussões sobre os temas propostos e sugestões de livros, filmes e músicas que trabalham esses temas de diferentes modos.
Ano 5 - continuidade das ações remotas e início do retorno presencial
Em 2021, com a intensificação da pandemia de COVID-19, a universidade seguiu com as atividades remotas e, exatamente por isso, o Projeto deu continuidade às ações de formação teórica junto aos estudantes extensionistas, intensificando as leituras sobre terapia ocupacional social e os temas relacionados ao foco do Projeto.
A proposta de encontros de formação teórica para os estudantes extensionistas foi uma estratégia utilizada para a formação no que se refere às principais temáticas trabalhadas no ResisTO, articulando a prática da terapia ocupacional social e objetivando a capacitação de profissionais para ampliar suas perspectivas de ação, principalmente no campo social, contribuindo para o processo de formação e desenvolvimento de ações coerentes às demandas dos grupos sociais que vivenciam diferentes situações de injustiça social (Monzeli, 2022).
Outra estratégia utilizada no período de distanciamento social foi a proposta de elaboração de um livro que contasse o processo de criação da Coordenadoria Municipal e apresentasse um histórico de ações realizadas por esse órgão municipal. Essa ideia surgiu pela identificação do pouco registro que se tinha tanto dos motivos de criação desse equipamento, quanto de todas as ações já realizadas. Assim, foi publicado, em 2021, o livro “Políticas públicas como lugar de resistência: o centro de cidadania LGBT de João Pessoa”5 , organizado pelos coordenadores do ResisTO.
No segundo semestre de 2021, as ações dos serviços públicos municipais de João Pessoa começaram a retornar ao formato presencial e, desta forma, a Coordenadoria Municipal nos convidou a pensar nas próximas estratégias de ação em conjunto.
A partir da demanda da Coordenadoria Municipal, principalmente em razão da mudança de gestão municipal e de grande parte das equipes que atuavam nos equipamentos públicos municipais, o projeto construiu uma proposta que visava capacitar e formar os profissionais dos serviços municipais de João Pessoa no que se refere às temáticas de gênero, sexualidade, questões étnico-raciais e diversidade religiosa.
Essas ações tinham o objetivo de capacitar os servidores municipais para a garantia de um atendimento humanizado, independente do setor de política pública que estivessem inseridos, não reproduzindo, em seus atendimentos, violências à população LGBTQIAP+, proporcionando um ambiente acolhedor e democrático que articule políticas públicas e promova o exercício da cidadania, ampliando o acesso aos direitos sociais dessa população.
Dessa forma, foram traçadas estratégias específicas para abordar as capacitações dos servidores de diferentes setores das políticas públicas para que, naquele espaço, eles pudessem levantar questionamentos e esclarecer eventuais dúvidas.
Em 2021, foi possível realizar as Oficinas com o foco na formação e capacitação em três instituições: no Sistema Nacional de Empregos (SINE-PB), num Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil e no Centro de Línguas Estrangeiras de João Pessoa (CELEST-JP). Para cada equipamento público foi pensada uma abordagem específica, com temas relacionados ao foco do trabalho de cada serviço.
Nessas Oficinas, pudemos perceber que grande parte dos servidores possuíam muitas dúvidas no que se refere desde conceitos como identidade de gênero e orientação sexual, até sobre a utilização do nome social, uso de banheiros, entre outros temas.
Ano 6 - intensificação das ações presenciais e capacitação de servidores municipais de João Pessoa, PB
No primeiro semestre de 2022, demos continuidade às ações presenciais em parceria com a Coordenadoria Municipal, capacitando servidores de diferentes instituições públicas de João Pessoa. Realizamos Oficinas em dois Centros de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde e em um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil.
Nessas Oficinas foram criadas diferentes estratégias para abordar as demandas de cada equipe, como apresentação de vídeos, “nuvem de ideias”, estudos de caso, discussões sobre legislações referentes aos direitos da população LGBTQIAP+ e criação interativa do “biscoito sexual”6 (Figura 4), que é uma forma simples de apresentar as nomenclaturas de identidade gênero, orientação sexual, sexo biológico e expressão de gênero.
Foi possível verificar que, na maioria dos encontros, os profissionais tinham muita dificuldade com as nomenclaturas e a diferenciação entre elas, assim como na compreensão do que se referia a identidade de gênero e orientação sexual. Dessa forma, as estratégias utilizadas se tornaram importantes ferramentas para debater e desmistificar essas temáticas com os servidores, que puderam, por meio dessas ações, visualizar, conhecer e debater essas questões de forma lúdica e interativa.
Capacitar as equipes multiprofissionais dos equipamentos públicos municipais sobre os atravessamentos e especificidades da população dissidente de gêneros e sexualidades está em acordo com o plano da Política Nacional de Saúde Integral LGBT (Brasil, 2013), proposto como: “Inserção das temáticas referentes à saúde LGBT nos processos de educação permanente dos(as) gestores(as) e profissionais de saúde do SUS. Produção de materiais e estratégias educativas destinadas à promoção, proteção e recuperação da saúde da população LGBT” (Brasil, 2013, pp. 29-30).
A proposição dessas Oficinas teve como foco equipamentos de diferentes setores da política pública, como serviços de atenção à saúde, educação, trabalho, entre outros. É importante ressaltar que essa proposta contribui para diversos setores assistenciais às populações LGBTQIAP+, por objetivar garantia de acesso, permanência e segurança ao buscar diferentes atendimentos.
Nesse sentido, o projeto ResisTO, nesses últimos anos, buscou capacitar, instrumentalizar e orientar os profissionais dos serviços públicos municipais de diferentes setores a produzir práticas democráticas e inclusivas, respeitando as diferenças no que se refere às temáticas de gêneros e sexualidades.
Considerações Finais
O projeto de extensão ResisTO tem investido esforços, ao longo dos últimos anos, no fortalecimento da política pública municipal voltada à população dissidente de gêneros e sexualidades de João Pessoa através do desenvolvimento de ações e propostas em parceria com a Coordenadoria Municipal de Promoção à Cidadania LGBT e de Igualdade Racial.
Partindo da compreensão de que a terapia ocupacional social faz uso das atividades “como um recurso mediador do trabalho de aproximação, acompanhamento, apreensão das demandas e fortalecimento dos sujeitos individuais e coletivos para os quais direciona sua ação” (Lopes et al., 2014, p. 595), o projeto ResisTO utilizou diferentes recursos e tecnologias como estratégia para a aproximação, compreensão das demandas e garantia dos direitos sociais da população dissidente de gêneros e sexualidades, visando fortalecer os espaços de pertencimento e circulação, bem como o exercício da cidadania.
Através das tecnologias sociais da terapia ocupacional social e de outras estratégias de ação, foi possível construir espaços de convivência, identificação, escuta, reflexão coletiva, produção de acolhimento e articulações intersetoriais. Assim, buscamos, por meio de diferentes ações, possibilitar o acesso a um conhecimento democrático, problematizando a essencialização das diferenças e desigualdades, buscando formas para uma convivência pautada no respeito, na solidariedade e na garantia dos direitos sociais.
Ademais, o Projeto tem fomentado a formação técnica de estudantes de graduação, em especial em terapia ocupacional, para a atuação em diferentes setores de políticas públicas e espaços comunitários, por meio do embasamento teórico sobre os marcadores sociais da diferença e a terapia ocupacional social. Os estudantes têm vivenciado diversas possibilidades de ação em equipamentos sociais e, ao mesmo tempo, construído propostas de articulação da rede social de suporte, trabalhando de forma interprofissional e intersetorial.
Essas experiências têm permitido aos estudantes conhecer e utilizar as tecnologias da terapia ocupacional social como recursos para aproximação, levantamento de demandas e reflexão acerca das interseccionalidades e dos atravessamentos na vida cotidiana da população dissidente de gêneros e sexualidades.
Destaca-se também, a articulação dos conhecimentos produzidos nos espaços de extensão universitária com as dimensões do ensino e da pesquisa em terapia ocupacional, uma vez que as ações elaboradas no projeto ResisTO se desdobraram em pesquisas de iniciação científica, trabalhos de conclusão de curso e trabalhos de conclusão de residência, relacionando-se com atividades de ensino.
Assim, o Projeto se mantém em resistência a uma onda conservadora e a um movimento de desmantelamento e fragilização das políticas públicas voltadas à população dissidente de gêneros e sexualidades (Braga et al., 2020). Frente a tantas violações e violências, em uma sociedade que ainda visa constantemente a reprodução de corpos pela reificação da heteronormatividade, apostamos em uma leitura interseccional da realidade social, buscando produzir estratégias que respondam às necessidades dos sujeitos - individuais e coletivos, visando construir e ampliar as possibilidades em que a vida pode acontecer, em que os direitos e a democracia sejam garantidos e ampliados.
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O Projeto METUIA foi fundado em 1998 com o objetivo de reunir profissionais de maneira interinstitucional das Universidades Federal de São Carlos (UFSCar); Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC- Campinas) e Universidade de São Paulo (USP) que viriam a se debruçar acerca das temáticas da terapia ocupacional social a partir de ações e reflexões por meio do ensino, pesquisa e extensão. Atualmente, enquadra-se como a Rede Metuia, composta por seis núcleos: USP, UFSCar, PUC-CAMPINAS, UFPB/UNCISAL, UNB e UFES.
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Utiliza-se o termo dissidências de gêneros e sexualidades como categoria de análise no texto; no entanto, a categoria identitária LGBTQIAP+ será acionada em alguns momentos, uma vez que esse é o termo que vem sendo utilizado pela política pública parceira do projeto de extensão universitária para se referir à essas populações.
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A proposta era reunir os estudantes em fila horizontal na extremidade da quadra (simulando um ponto de partida) e, a partir de 20 questionamentos acerca de seus privilégios, pedir aos que já tivessem passado pelas situações selecionadas, dar um passo à frente, e para os que não detivessem determinado privilégio, dar um passo atrás. As frases selecionadas referiam-se a temas como racismo e violência institucional e, conforme os jovens iam avançando ou regredindo no percurso, seria possível refletir sobre suas oportunidades, que retratam seus privilégios e não acessos que impossibilitam o seu exercício de cidadania.
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O livro Políticas Públicas como lugar de resistência: O Centro de Cidadania LGBT de João Pessoa é uma coletânea que nasce da luta por direitos humanos e dignidade de vida da população LGBTQIAP+ na cidade de João Pessoa. Tem como objetivo tornar público a implementação da política pública municipal direcionada à essa população, evidenciando sua organização, ações e parcerias, assim como a história e presença do movimento social na cidade.
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“Biscoito Sexual”, comumente chamado “Biscoitona”, consiste em um recurso confeccionado e adaptado pelos extensionistas a partir da necessidade de abarcar as categorias e nomenclaturas relacionadas às temáticas de gênero e sexualidade de forma lúdica durante as Oficinas. Trata-se de um desenho dessemelhante a um Gingerbread (biscoito de gengibre) dividido nas categorias de identidade de gênero, orientação sexual, sexo e expressão de gênero. É um recurso amplamente utilizado e divulgado na Internet com múltiplas adaptações, que tem como objetivo proporcionar uma melhor comunicação com o interlocutor acerca dessas temáticas. Nas Oficinas, as filipetas contendo as nomenclaturas referentes a cada parte da “Biscoitona” foram distribuídas aos participantes para que eles as colocassem nos locais correspondentes às categorias para posterior discussão e reflexão sobre suas diferenças.”
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Como citar: Monzeli, G. A., Braga, I. F., Goes, J. S., Silva, D. A., Marques, L. Z. M., Angelo, S. M. W., Monteiro Filho, L. D., & Batista, M. C. M. D. (2023). Terapia ocupacional social, gêneros e sexualidades dissidentes: experiências a partir da extensão universitária. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 31, e3390. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoRE259533901
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Fonte de Financiamento
PROBEX - Programa de Bolsas de Extensão - Universidade Federal da Paraíba.
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Editado por
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Editora Convidada
Profa. Dra. Gabriela Pereira Vasters
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Jul 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
08 Ago 2022 -
Revisado
19 Ago 2022 -
Aceito
10 Jan 2023