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Considerações sobre a ciência e a tecnologia

Considerations on science and technology

Consideraciones sobre la ciencia y la tecnología

Resumo

No presente artigo, procuramos discutir a ciência e a tecnologia como forças produtivas e instrumentos ideológicos controlados e determinados pelo capital para produção crescente de mais-valor. A leitura sobre o tema foi realizada à luz da compreensão da relação entre Ser Humano e Natureza, mediada pelo trabalho, e das especificidades que ela possui no capitalismo. Em nosso entendimento, a produção científica e a consequente materialização em tecnologias não se processam isoladamente das relações de produção existentes, estando diretamente ligadas a elas. Para tanto, sustentamos nossa análise no método do materialismo histórico-dialético a partir das categorias de totalidade, mediação e contradição, que nos permitem fazer a leitura da realidade concreta.

Palavras-chave:
ciência; tecnologia; forças produtivas

Abstract

In the present article, we search to discuss science and technology as productive forces and ideological instruments controlled and determined by capital to enhance the production of plus-value. We read the theme based on comprehension of the relations between Humankind and Nature mediated by work and its specificities in capitalism. In our understanding, the scientific production and the consequent materialization in technologies do not occur isolated from the existing relations of production as long as they are related to it. For this, we sustain our analysis on the historical-dialectical materialism method through the categories of totality, mediation, and contradiction, which allow us to read the concrete reality.

Keywords:
science; technology; productive forces

Resumen

En este artículo, buscamos discutir la ciencia e la tecnologia como fuerzas productivas y instrumentos ideológicos revisado y determinado por el capital para la producción creciente de plusvalía. La lectura sobre el tema se realizó a la luz de la comprensión de la relación entre Ser Humano y Naturaleza, mediada por el trabajo, y de las especificidades que tiene en el capitalismo. A nuestro entender, la producción científica y la consiquiente materialización en tecnologias no se procesan aisladas de las relaciones de producción existentes, estando directamente vinculadas a ellas. Para ello, apoyamos nuestro anilísis en el método del materialismo histórico-dialéctico desde las categorias de totalidad, mediación y contradicción, que nos permiten hacer la lectura de la realidade concreta.

Palabras clave:
ciencia; tecnología; fuerzas productivas

Introdução

A técnica – expôs Settembrini – subjugava cada vez mais a natureza, pelas comunicações que criava, pelas redes de estradas e telégrafos que construía, e pelas vitórias que conquistava sobre as diferenças de clima; dessa forma apresentava-se como o meio mais seguro para aproximar os povos, para favorecer o contato entre eles, para levá-los a acordos humanos, para destruir os preconceitos existentes, e, finalmente, para estabelecer a união universal. (Thomas Mann, A Montanha Mágica).

Assim como nessa pequena parte do diálogo entre o Sr. Settembrini e Hans Castorp, personagens de A Montanha Mágica (1924), a capacidade produtiva e destrutiva da ciência e da tecnologia torna-as alvos constantes de debate, acadêmico ou não. Se a necessidade de perpetuação e renovação das discussões sobre o tema é indiscutível, inclusive para o seu próprio desenvolvimento posterior, não é raro o aparecimento de leituras que o deslocam da sua sustentação material básica – o trabalho – e das condições sócio-históricas específicas que o permeiam – as do capitalismo. É impossível pensar um sem o outro.

É nesse sentido que almejamos discutir acerca do tema, refletindo no primeiro momento sobre a relação umbilical entre Ser Humano e Natureza pela mediação do trabalho, entendendo-a como o processo que concede ao primeiro a possibilidade da formação do conhecimento do mundo e da técnica como meio de intervenção humana contínua. Logo após, construímos algumas reflexões sobre o papel da ciência e da tecnologia como força produtiva da humanidade, detendo-se nas formas como isso se realiza sob a égide do capital e, por consequência, da propriedade privada dos meios de produção e do trabalho assalariado. Por fim, entendendo que o processo da luta de classes se processa também na produção do conhecimento, refletimos sobre algumas formas em que a ciência e a tecnologia são utilizadas como instrumentos ideológicos da burguesia no sentido de perpetuar o atual modo de sociabilidade humana, assentada no antagonismo entre capital e trabalho.

Trabalho, conhecimento e técnica

Enquanto ser natural, biológico, o Ser Humano tem na Natureza a base para a continuidade da sua vida em suas necessidades mais básicas, porque fisiológicas, mas é somente por meio do trabalho que a ação da reprodução é possível, permitindo o controle e a regulação humana do seu metabolismo com ela, ao mesmo tempo modificando-a e modificando-se à medida que age para apropriar-se da matéria, tornando-a útil para sua própria vida (MARX, 2017aMARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção de capital. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2017a.).

A modificação progressiva do Ser Humano dá-se devido ao ato do trabalho, que não se encerra em si: o seu produto não se limita à efetiva realização ou não da posição teleológica previamente construída, pois resulta também no crescimento do conhecimento acerca dos seres por meio da reflexão das suas propriedades na consciência humana (LUKÁCS, 2018aLUKÁCS, Georg. Para a ontologia do ser social: obras de Georg Lukács volume 14. Maceió: Coletivo Veredas, 2018a.). Nesse sentido, o trabalho propicia a transformação da Natureza e do próprio Ser Humano.

O conhecimento do mundo revela-se fundamental na construção do agir humano, capacitando-o a intervir nos seres da Natureza a seu favor numa escala maior, pois “[...] como suas propriedades, relações, circunstâncias existem objetivamente, independente da consciência humana, somente por um correto tornar-se-conhecido, posto em movimento pelo trabalho, podem ser feitos úteis” (LUKÁCS, 2018b, p. 563LUKÁCS, Georg. Prolegômenos e para ontologia do ser social: obras de Georg Lukács volume 13. Maceió: Coletivo Veredas, 2018b.). Portanto, a apreensão dos elementos que compõem a os seres surge como necessidade da reprodução humana, visto que “apenas com base em um conhecimento ao menos imediatamente correto das qualidades reais das coisas e processos, pode a posição teológica no trabalho realizar sua função alteradora” (LUKÁCS, 2018b, p. 565LUKÁCS, Georg. Prolegômenos e para ontologia do ser social: obras de Georg Lukács volume 13. Maceió: Coletivo Veredas, 2018b., grifos nossos). Assim, se as legalidades dos seres não são propriamente compreendidas, a posição teleológica não se sucede conforme o planejado, e o objetivo almejado não é alcançado. A necessidade de respeitar as legalidades como meio para sua reprodução implica no fato de que:

Ao chamar em auxílio novos poderes que a natureza física ocultava no seu seio, o homem supera realmente o obstáculo momentâneo, realiza o projeto imediato, mas se torna efetivamente mais dependente da natureza em geral, numa salutar relação que dialeticamente se transmuta na contrária. [...] A compreensão dialética explica, portanto, que só vença parecendo ser vencido. (PINTO, 2005, p. 161PINTO, Álvaro Vieira. O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. v. 1.).

Ressalta-se que na teoria da ontologia lukacsiana para dar existência objetiva ao previamente idealizado, o indivíduo deve transformar através do trabalho o que foi/é ideal (desejável) em real. Essa apreensão não é somente mediata, não permanece como conhecimento limitado a um acontecimento particular. Por meio do contato com a Natureza, a consciência humana permite num grau gradativamente mais elevado a faculdade de abstrair e generalizar os detalhes de cada objeto que entra em contato (LUKÁCS, 2018aLUKÁCS, Georg. Para a ontologia do ser social: obras de Georg Lukács volume 14. Maceió: Coletivo Veredas, 2018a.).

Concomitantemente, “esse processo espontâneo de generalização se objetiva ‘teoricamente’ na linguagem, paralelamente com sua aplicação na práxis do trabalho” (LUKÁCS, 2018a, p. 347LUKÁCS, Georg. Para a ontologia do ser social: obras de Georg Lukács volume 14. Maceió: Coletivo Veredas, 2018a., grifos nossos). Simultaneamente ao trabalho e à socialização do Ser Humano, o desenvolvimento da linguagem permite que o conhecimento não permaneça apenas em um sujeito individual, podendo ser compartilhado e perpassado entre as gerações e as sociedades. Dessa maneira, ele não se conserva como representação ideal dos fenômenos, materializando-se nas mais diversas formas e combinações e revelando um grau específico de compreensão da Natureza. N’A Ideologia Alemã, Marx e Engels (2009, p. 44MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009., grifo dos autores) destacam o surgimento da linguagem enquanto necessidade da socialização do homem ao afirmar que “[...] a linguagem é a consciência real prática, [...] a linguagem só nasce, como consciência, da necessidade [Bedürfnis], necessidade orgânica [Notdurft] do intercâmbio com outros homens.”

Na esteira dos processos de abstração e da universalização, constituem-se também novos modos de intervenção, seja na capacidade sempre renovada de apropriar-se dos demais seres naturais pré-existentes ao ser social, seja na produção de novos objetos – inclusive daqueles que já não possuem nenhuma analogia na natureza –, ação realizada pela habilidade humana de unir e transformar o existente, produzindo novas combinações por meio dos elementos que existem apenas em potência, como possibilidade na natureza (LUKÁCS, 2018aLUKÁCS, Georg. Para a ontologia do ser social: obras de Georg Lukács volume 14. Maceió: Coletivo Veredas, 2018a.; PINTO, 2005PINTO, Álvaro Vieira. O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. v. 1.). Por sua vez, isso propicia ao ser social a capacidade de gerar novas respostas a problemas velhos e de criar outras perguntas, isto é, de questionar-se constantemente à proporção que apreende o mundo a sua volta e o reflete renovadamente na consciência.

A satisfação das necessidades humanas, sustentada na relação entre o trabalho e a natureza, se desdobra mediada por um conjunto de meios (MARX, 2017aMARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção de capital. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2017a.). Como afirma o referente autor, “os momentos simples do processo de trabalho são, em primeiro lugar, a atividade orientada a um fim, ou o trabalho propriamente dito; em segundo lugar, seu objeto e, em terceiro, seus meios.” (MARX, 2017a, p. 256MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção de capital. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2017a.). Esses últimos não se restringem às ferramentas de trabalho (da enxada às máquinas), incluindo também os procedimentos necessários para executar o objetivo almejado (PINTO, 2005PINTO, Álvaro Vieira. O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. v. 1.).

A mediação entre trabalho, conhecimento e técnica, interação entendida como um contínuo processo que concede, enquanto possibilidade, a resolução e a superação dos problemas concretos da reprodução humana pela satisfação de suas necessidades, quer biológicas, quer socialmente construídas, tornando-as supérfluas à medida que desenvolve suas forças produtivas. Como assevera Mészáros:

[...] assim como a necessidade natural original é historicamente deslocada e se torna uma restrição supérflua e intolerável a partir do ponto de vista tanto do indivíduo quanto do metabolismo em geral, da mesma forma, do “luxo” anteriormente supérfluo e geralmente inacessível torna-se vitalmente necessário não apenas do ponto de vista dos indivíduos separados, mas, sobretudo, com respeito à reprodução continuada das condições elementares recém-criadas da vida social enquanto tal. (MÉSZÁROS, 2011a, p. 209MÉSZÁROS, Itsván. Estrutura social e formas de consciência II: a dialética da estrutura e da história. São Paulo: Boitempo, 2011a., grifo do autor).

Nesse contexto, gradualmente, o mundo externo ao ser social torna-se cognoscível, o que não significa um movimento linear, mas dialético: regressivo e progressivo; repleto de continuidades e descontinuidades expressas no espaçotempo.

A técnica surge, de um lado, pela carência do ser social, ou seja, pelo imperativo de saciar constantemente suas necessidades biológicas e sociais, e, por outro, pela capacidade deste de refletir sobre as propriedades do mundo em sua consciência, de modo mais detalhado. Por ser fruto da ação humana, das posições teleológicas, ou seja, do ato unitário da consciência e do trabalho posto em movimento para satisfazer um fim específico, ela é sócio-histórica, portanto, forjada e utilizada em relações de produção historicamente específicas. Como afirmou Marx (2008, p. 47)MARX, Karl. Prefácio. In: _____. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Expressão Popular, 2008. p. 45-50.: “[...] os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais”. Como força produtiva, a técnica constitui-se como um componente ativo na reprodução da sociedade, pois a sustenta e a limita em suas possibilidades em um determinado tempo histórico.

Ciência e tecnologia como forças produtivas

Para Pinto (2005)PINTO, Álvaro Vieira. O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. v. 1. há quatro significados do termo tecnologia: a) como a teoria (o logos) da técnica; b) como sinônimo de técnica, o sentido mais utilizado; c) como o conjunto de todas as técnicas de que dispõe uma determinada sociedade num tempo histórico específico; e d) como a ideologização da técnica, a ideologia da técnica. Eles não são excludentes, pelo contrário, não raro, entrelaçam-se no uso.

No parágrafo inicial d’O Capital, Marx (2017) argumenta que a riqueza na sociedade capitalista aparece como uma enorme coleção de mercadorias. A afirmação do autor indica a existência de relações de produção historicamente específicas que generalizam a troca de objetos e de forças produtivas capazes de gerá-los abundantemente. Nesse contexto, impõem-se como imperativo a propriedade privada dos meios de produção e o trabalho assalariado e de determinada capacidade produtiva sempre ascendente, visto que a irrefreável produção da riqueza abstrata é seu pressuposto e fim último.

O capital revela-se como uma relação social incontrolável que tendencialmente aprisiona todos os elementos da vida humana e não-humana (orgânica e não-orgânica) como componentes passíveis de garantir a sua própria acumulação ampliada. À medida que se desenvolve e se expande mundialmente, fálo elevando a saltos quantitativos e qualitativos3 3 “Só nos tempos modernos entramos na fase em que começa a predominar o ritmo de substituição qualitativa, o que representa novo ciclo no processo de evolução tecnológica. [...] Não percebe tratar-se de um fato necessário no curso do processo histórico, em virtude do esgotamento de um ciclo do progresso da tecnologia, o de prevalência quantitativa, e da abertura de outro, onde a disputa pelo troféu da dominação e o incremento do processo tecnológico têm de fazer-se por via da melhora qualitativa da produção, frequentemente em forma de saltos espetaculares, conforme o recente aproveitamento da energia nuclear” (PINTO, 2005, p. 260-261). as forças produtivas como instrumento de aumento da produtividade e, por consequência, da exploração das duas únicas fontes de valor, o trabalho e a natureza (MARX, 2017aMARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção de capital. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2017a.). Para tanto, submete os seus desígnios àqueles que possuem o comando dos meios de produção – não o controle do sistema –, pois somente assim podem se materializar como personificações do capital.

Como fanático da valorização do valor, o capitalista força inescrupulosamente a humanidade à produção pela produção e, consequentemente, a um desenvolvimento das forças produtivas sociais e à criação de condições materiais de produção que constituem as únicas bases reais possíveis de uma forma superior de sociedade, cujo princípio fundamental seja o pleno e livre desenvolvimento de cada indivíduo. O capitalista só é respeitável como personificação do capital. [...] Além disso, o desenvolvimento da produção capitalista converte em necessidade o aumento progressivo do capital investido numa empresa industrial, e a concorrência impõe a cada capitalista individual, como leis coercitivas externas, as leis imanentes do modo de produção capitalista. Obriga-o a ampliar continuamente seu capital a fim de conservá-lo, e ele não pode ampliá-lo senão por meio da acumulação. (MARX, 2017a, p. 667MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção de capital. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2017a., grifos nossos).

Corolários dos imperativos do capital, a ciência e a tecnologia são convidadas a criar os instrumentos, capital constante (fixo e circulante), para engendrar as engrenagens da exploração, pilar da acumulação ampliada. Logo, sua apropriação não é mera casualidade, mas imposição fixada aos capitalistas pelo capital para preservar sua posição de personificação.

Aqui, a divisão entre produção e apropriação revela-se em sua crueldade. Aos produtores reais da riqueza, os trabalhadores urbanos e rurais e os camponeses, os produtos da acumulação de conhecimento da humanidade aparecem como propriedades do capital e não deles, os verdadeiros criadores. Não somente aparecem, como agem contra eles com o objetivo de explorá-los e produzir maistrabalho (mais-valor): “a ciência, que força os membros inanimados da maquinaria [...], não existe na consciência do trabalhador, mas atua sobre ele por meio da máquina como poder estranho, como poder da própria máquina'' (MARX, 2011, p. 581MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011.).

A dinâmica de exploração e de criação da riqueza abstrata reflete-se na relação entre ciência e tecnologia. Nota-se: no período da Revolução Industrial, mesmo com o avanço, de um lado, das ciências e, de outro, das técnicas da produção, não havia uma unidade entre os dois. Hobsbawn (2020) apresenta um caso acerca que ilustra essa situação: segundo ele, enquanto a máquina a vapor rotativa foi produzida por James Watt, nos finais do século XVIII, a teoria adequada ao maquinário a vapor só foi desenvolvida décadas depois, em 1820, pelo francês Carnot.

À época da Revolução, o desenvolvimento da técnica não se sucedia necessariamente pelas descobertas da ciência; pelo contrário, geralmente, ele era a base pela qual a ciência conduzia suas investigações. Isso não significa dizer que o conhecimento científico não estava atrelado à produção, mas que não estava vinculado diretamente à classe dos capitalistas ou ao Estado, sendo estimulado e gerado por eles. Nesse sentido, ele desenvolvia-se “[...] como uma propriedade social generalizada incidental à produção [...]” (BRAVERMAN, 1976, p. 156, tradução nossa4 4 No original: “[...] as a generalized social property incidental to production […]” ).

Sob a necessidade incessante da expansão da criação de riqueza imposta pelo capital aos capitalistas na forma da concorrência, a ciência e a tecnologia – elas mesmas transformadas em mercadorias, como já indicou Marx (2011)MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011. nos Grundrisse – foram incorporadas ao planejamento do processo produtivo, quer na empresa privada, quer no Estado. Para tanto, racionalizou-se sua produção, aproximando no tempo as fases que compõem a Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), unindo-as às três etapas principais da mudança tecnológica – invenção, inovação e difusão –, eliminando o aspecto acidental do processo (SANTOS, 1987SANTOS, Theotonio dos. Revolução científico-técnica e acumulação de capital. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.). Com isso, “a luta pela apropriação dos resultados do trabalho científico converte-se num campo de ação cada vez mais decisivo para o êxito econômico das empresas [...]” (SANTOS, 1983, p. 62SANTOS, Theotonio Dos. Revolução científico-técnica e capitalismo contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 1983.).

O contínuo achatamento da pesquisa científica/tecnológica à racionalidade capitalista revela-se como produto dos desdobramentos da ampliação da produção e apropriação dos valores criados (e expropriados) por parte dos capitalistas em sua incessante luta, corporificada na concorrência. As disputas desdobram-se na concentração e centralização de capitais, traço inerente à lei da geral da acumulação de capital. Como explica Marx (2017): se há na primeira somente o acúmulo – numa passagem do primeiro livro d’O Capital, o autor indica concentração e acumulação como sinônimos5 5 “E é especialmente isso que distingue a centralização da concentração, que não é mais do que outra expressão para a reprodução em escala ampliada.” (MARX, 2017a, p. 702, grifos nossos) ; na segunda, há a união de capitais individuais, ou seja, a expropriação de capitalistas por capitalistas e a consequente conversão de diversos capitais menores em alguns poucos maiores. Todavia, cabe ressaltar que os dois processos levam a acumulação em escala ampliada. A centralização só se distingue da concentração “pelo fato de ´pressupor apenas a repartição alterada dos capitais já existentes e em funcionamento, sem que, portanto, seu terreno de ação esteja limitado pelo crescimento absoluto da riqueza social ou pelos limites absolutos da acumulação.” (MARX, 2017a, 701-702MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção de capital. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2017a.).

Como efeito, “[...] a centralização amplia e acelera, ao mesmo tempo, as revoluções na composição técnica do capital, que aumentam a parte constante deste último à custa de sua parte variável, reduzindo, com isso, a demanda relativa de trabalho” (MARX, 2017a, p. 703MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção de capital. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2017a.). União que também se sucede entre capitais de tipos distintos, como afirma Lenine (1976) ao explicar a convergência entre capital bancário e industrial.

Enquanto ferramenta da acumulação, a ciência e a tecnologia tornam-se subserviente a criação de mais-valor pelo aumento da produtividade do trabalho e pela redução dos custos de produção. Como resultado, não somente é exigido que produzam para o capital, criando produtos e processos, mas que o façam de modo mais útil, isto é, mais lucrativo possível.

Passa-se a demandar da ciência a geração de tecnologia, pois apenas desse modo ela pode ser lucrativa às personificações do capital, esse processo é denominado por Mészáros (2011a, p. 324)MÉSZÁROS, Itsván. Estrutura social e formas de consciência II: a dialética da estrutura e da história. São Paulo: Boitempo, 2011a. como “tecnologização da ciência”. Nesse cenário, as linhas de demarcação da produção intelectual - da divisão da “ciência pura” e “ciência aplicada” a entre “negócios” e “academia” - são retraçadas e alinhadas com o objetivo de adequarem-se às necessidades do complexo militarindustrial (MÉSZÁROS, 2014MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2014.).

Nas mãos de pequenos grupos de capitalistas, o monopólio e o controle da produção de ciência e tecnologia representa também a sua imobilidade, pois “[...] como todo o monopólio, o monopólio capitalista gera inevitavelmente uma tendência para a estagnação e para a decomposição” (LENINE, 1979, p. 649LENINE, Vladmir I. O imperialismo, fase superior do capitalismo (ensaio popular). In: _____. Obras escolhidas. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1979. t. 1.). No interesse de se apropriar de quantias cada vez maiores do mais-valor, criam-se restrições, sancionando o que deve ou não ser estudado/produzido e quando (ou se) pode ou não ser lançado no mercado.

Esse processo atua num sentido defensivo, visando proteger as empresas dos desequilíbrios provocados pelas mudanças tecnológicas. Ao mesmo tempo, este processo age no sentido de controlar as condições da mudança tecnológica, ajustando-a às necessidades da acumulação capitalista. Ao controlar a produção de tecnologia, a empresa monopolista poderá então utilizá-la de maneira ofensiva, como uma arma na concorrência pela busca de maiores lucros. (SANTOS, 1983, p. 58-59SANTOS, Theotonio Dos. Revolução científico-técnica e capitalismo contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 1983.).

Conjuntamente, o Estado também atua na mediação do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, agindo como programador, organizador, financiador e formador de pessoal científico, ação imposta pela lógica capitalista, visto que, em certas situações, os capitais individuais não conseguem financiá-las (SANTOS, 1983SANTOS, Theotonio Dos. Revolução científico-técnica e capitalismo contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 1983.; 1987SANTOS, Theotonio dos. Revolução científico-técnica e acumulação de capital. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.). Especialmente nas fases de maior risco e custo ou que (ainda) não são lucrativas, pois inexiste mecanismo de legitimação da propriedade intelectual, a pesquisa científica é executada pela máquina estatal ou pelo setor privado financiado com dinheiro público - neste último caso, não raro, ocorre de ser a máquina estatal o investidor e o consumidor dos produtos resultantes (SANTOS, 1987SANTOS, Theotonio dos. Revolução científico-técnica e acumulação de capital. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.), a exemplo do complexo militar-industrial apresentado e criticado por Mészáros (2014)MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2014.. Sobre a relação entre as empresas privadas e a produção científica/tecnológica voltadas para questões militares, Santos (1987, p. 21)SANTOS, Theotonio dos. Revolução científico-técnica e acumulação de capital. Petrópolis: Editora Vozes, 1987. destaca:

Mas é preciso assinalar que a invenção ou inovação militar está profundamente condicionada pelo interesse das empresas — que limitam o horizonte da Pesquisa e desenvolvimento — orientando-a em direção àquelas que são mais rentáveis e que não são necessariamente as empresas mais eficientes militarmente.

Nesse cenário, delineia-se uma divisão do trabalho intelectual entre o público e o privado, em que esse último abocanha as áreas mais lucrativas. Desse modo, “é por isso que as empresas se dedicam de preferência ao desenvolvimento final de produtos ou processos, cujas características principais foram definidas nas etapas de pesquisa básica e aplicada” (SANTOS, 1987, p. 13SANTOS, Theotonio dos. Revolução científico-técnica e acumulação de capital. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.).

Desse modo, a divisão do trabalho entre Estado e iniciativa privada é realinhada a depender do grau de risco, dos custos para a execução e da possibilidade de rentabilidade, capacitada pela criação dos instrumentos de regulamentação. Sobre esse último ponto, cabe salientar que é também função do Estado a criação desses dispositivos. É a máquina estatal que salvaguarda os direitos de propriedade privada das invenções e inovações, legitimando-os e permitindo a exclusividade do seu uso e/ou comercialização e punindo aqueles que ousarem desrespeitar a norma. Como regulador do intercâmbio, a superestrutura jurídica e política sanciona e protege o material alienado e os meios de produção, utilizando-se das diversas formas de violência, permitindo a usurpação da riqueza social pelas personificações do capital (MÉSZÁROS, 2011aMÉSZÁROS, Itsván. Estrutura social e formas de consciência II: a dialética da estrutura e da história. São Paulo: Boitempo, 2011a.; 2011bMÉSZÁROS, Itsván. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011b.).

Surge a categórica exigência da conformação de ferramentas legais de normatização do controle exclusivo dos descobrimentos científicos/tecnológicos a nível nacional e internacional, materializados nas ferramentas de patenteamento. Essas são criadas e expandidas para objetos até então não patenteáveis: de material genético (animais, plantas e do próprio Ser Humano) às “[...] técnicas de investigação e manipulação [...], algo muito frequente no domínio da genética” (GARCIA, 2006, p. 983GARCIA, José Luís. Biotecnologia e biocapitalismo global. Analíse Social, Lisboa, vol. XLI, n. 181, p. 981-1009, 2006.).

Como somente pode ser realizada através da estrutura jurídica e política, a criação das leis de patenteamento é exigida aos países via pressão das empresas multinacionais. Elas atuam tanto internamente, nos seus países de origem, quanto externamente, influenciando diretamente os governos dos países estrangeiros ou indiretamente por meio das instituições e organizações multilaterais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional – FMI – e Organização Mundial do Comércio – OMC –). Caso emblemático dessa atuação foi analisado por Chesnais (1996)CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996. ao observar a atuação dos grupos estadunidenses na Rodada do Uruguaia, pontuando que:

Os grandes grupos americanos sempre deram a maior importância a essa proteção. Foram eles que impuserem no GATT, ao fim da Rodada Uruguai, a adoção dos TRIP, aspectos comerciais dos direitos de propriedade intelectual (trade-related aspects of intelectual proprety rights). O tratado que fechou a negociação, em dezembro de 1993, abrange disposições importantes para organizar [...] [a] proteção da “propriedade intelectual”. Impõe que todos os países, qualquer que seja seu nível de renda e de desenvolvimento, adotem, até o fim do século, sistemas de proteção como os vigentes nos países capitalistas avançados, a começar pelos EUA. (CHESNAIS, 1996, p. 164CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.).

Essa movimentação desenvolve-se por duas razões: nos países onde as empresas multinacionais possuem atividades e/ou julgam haver capacidade de explorar os seus inventos, o patenteamento serve de preparação para a produção local, para exportação e para a venda ou a concessão da licença das suas patentes; de outro lado, naqueles Estados onde isso não ocorre, ele protege contra situações de imitação e/ou de usufruto sem o pagamento de royalties por outras companhias nacionais ou estrangeiras (CHESNAIS, 1996CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.).

Assim, diante do sistema sociometabólico vigente, a estruturação da ciência e da tecnologia se dá balizada pela relação Estado, capital e trabalho, que converge na direção da viabilização da exploração desse último, garantindo a extração de maisvalor e a realização do capital através dos mais distintos meios proporcionados pelo avanço das forças produtivas.

A condução das relações socioeconômicos de produção, inclusive aquelas relacionadas às áreas de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), pela força incontrolável do capital tem como efeito último o apagamento da distinção entre consumo e destruição (MÉSZÁROS, 2014MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2014.). Como forma de condicionar maior velocidade do primeiro, desviam-se os esforços da ciência e da tecnologia para a produção e introdução de “falsas inovações” com reduzido tempo útil de uso, pois são destinadas a envelhecer socialmente, contribuindo para a comprar de novos produtos (SANTOS, 1987SANTOS, Theotonio dos. Revolução científico-técnica e acumulação de capital. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.).

Por outro lado, como já alertava Luxemburgo (2018, p. 34)LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução?, In: LOUREIRO, Isabel. Rosa Luxemburgo: textos escolhidos (1899-1914). 3. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2018. p. 1-112. v. 1., “o militarismo também se transformou de motor do desenolvimento capitalista em uma doença capitalista”. Nas últimas décadas, essa realidade também é alertada por Mészáros (2014)MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2014.: os investimentos em pesquisa direcionadas ao complexo militar-industrial elevam ao máximo a capacidade de destruição da vida humana, o que leva, hoje, a pensar que “[...] qualquer aumento nos poderes de produção é também, simultaneamente, um aumento nos poderes de destruição” (MÉSZÁROS, 2011a, p. 59MÉSZÁROS, Itsván. Estrutura social e formas de consciência II: a dialética da estrutura e da história. São Paulo: Boitempo, 2011a., grifos do autor).

Expressa na luta de classes, a contradição entre capital e trabalho reverbera também na produção da ciência e da tecnologia. Elas são utilizadas como ferramenta para apresentar os interesses da burguesia como os de todos os sujeitos da sociedade (MARX; ENGELS, 2009MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009.) e para amenizar os conflitos que explodem à medida que as contradições são aprofundadas. Nesse sentido, elas tornam-se instrumentos ideológicos da burguesia.

Ciência e tecnologia como instrumento da ideologia burguesa

Escrito por Marx nos finais de janeiro de 1873, o posfácio à segunda edição do primeiro volume d'O Capital descreve a situação da economia política após a vitória política da burguesia, na França e na Inglaterra, da seguinte maneira: “a partir de então, a luta de classes assumiu, teórica e praticamente, formas cada vez mais acentuadas e ameaçadoras. Ela fez soar o dobre fúnebre pela economia científica burguesa” (MARX, 2017b, p. 86MARX, Karl. Posfácio da segunda edição. In: _____. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção de capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017b. p. 83-91., grifo nosso). Mais que uma explicação acerca da economia política, a afirmação do autor alemão oferece a sustentação para pensar a conjuntura da produção intelectual sob o controle do capital e o comando das suas personificações. Nesse contexto, ela torna-se presa e limitada aos horizontes da propriedade privada, da exploração dos reais produtores da riqueza, dos trabalhadores e camponeses, e da tendência à mercadorização de todos os aspectos da reprodução da vida humana e não-humana.

A aceitação acrítica dos pressupostos da relação capitalista por parte do conjunto de cientistas e intelectuais que partem do “ponto de vista do capital”, levaos a restringir suas análises as características parciais, não estruturais, das contradições do sistema. Por conseguinte, entregando para elas soluções paliativas, isto é, instrumentais. Isso ocorre porque, em sua condição de subordinação aos ditames dominantes, a ciência “[...] não pode deixar de se orientar para a implementação mais eficaz possível dos imperativos que definem a natureza e os limites inerentes do capital, assim como do seu medo necessário de funcionamento nas mais variadas circunstâncias” (MÉSZÁROS, 2014, p. 267MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2014., grifos do autor). Desse modo, as considerações de Marx sobre a economia política continuam a ecoar até o presente, especificamente na seguinte afirmação: “não se tratava mais de saber se este ou aquele teorema era verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo, se contrariava ou não as não as ordens policiais” (MARX, 2017b, p. 86MARX, Karl. Posfácio da segunda edição. In: _____. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção de capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017b. p. 83-91., grifos nossos).

A defesa do sistema sociometabólico dominante revela o seu caráter apologético ao tentar legitimá-lo das mais distintas formas, mesmo que, para isso, seja necessário distorcer o real, modelando-o aos propósitos da classe dominante. Isso joga luz à outra face da ciência sob o julgo do capital: a sua decadência. Os contornos desse último ponto caracterizam-se pela submissão aos efeitos da divisão do trabalho e das deformações morais e psíquicas, agravadas e embelezadas pelos autores (LUKÁCS, 2015LUKÁCS, György. Marx e o problema da decadência ideológica. In: VEDDA, Miguel; COSTA, Gilmaisa; ALCÂNTARA, Norma. Anuário Lukács 2015. São Paulo: Instituto Lukács, 2015. p. 97-150.). Explicita o autor (2015, p. 103): “O processo espontâneo da decadência científica opera em estreito contato com a apologia consciente e venal da economia capitalista.”

Nesse contexto, no plano teórico, a diversidade de formas de análise da realidade conflui em direção à anuência aos termos do discurso ideológico dominante, transformando o teor do debate em uma verdadeira “batalha de capas de livros” (MÉSZÁROS, 2009, p. 30MÉSZÁROS, Itsván. Estrutura social e formas de consciência: a determinação social do método. São Paulo: Boitempo, 2009.). Encobertas sob o véu do “discurso racional neutro”, as alterações metódicas e/ou metodológicas voltam-se para si mesmas, não para o aprimoramento da capacidade de captar e analisar as propriedades do real.

Torna-se uma faca metodológica que não tem intenção de cortar, mas somente de ser afiada eternamente (MÉSZÁROS, 2014MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2014.). Não comprometida a investigar o concreto em seu movimento contraditório, resta a aceitação e a incorporação da (ir)racionalidade do capital como limite último da humanidade – e não do próprio capital –, entendendo-o como único sistema sociometabólico possível, tão só suscetível de pequenos ajustamentos garantidos com o auxílio das inovações científico/tecnológicas.

Assim, a conciliação aos pressupostos do capital resulta na eternização das relações de produção vigentes, elemento presente, em maior ou menor grau, nas inúmeras teorias, mesmo naquelas da última moda, como o Estruturalismo e o Pósestruturalismo. Terry Eagleton (2003)EAGLETON, Terry. After Theory. New York: Basic Books, 2003. apresenta suas considerações acerca delas, afirmando que:

A nova moda intelectual, o estruturalismo, era radical em algumas direções e tecnocrata em outros. Se desafiava a ordem social dominante, também a refletia. O pós-estruturalismo e o posmodernismo demonstrariam a mesma ambiguidade, subvertendo os fundamentos metafísicos da sociedade da classe média com algo próprio do seu relativismo de mercado. Ambos, posmodernistas e neoliberais, são desconfiados com normas públicas, normas impositivas, valores inerentes, hierarquias dadas, códigos consensuais e práticas tradicionais. Apenas os neoliberais admitem que eles rejeitam tudo isso em nome do mercado. Os posmodernistas radicais, pelo contrário, combinam sua aversão com um envergonhado e prudente comercialismo. (EAGLETON, 2003, p. 29EAGLETON, Terry. After Theory. New York: Basic Books, 2003., tradução nossa6 6 No original: “Structuralism, the new intellectual fashion, was radical in some ways and technocratic in others. If it challenged the prevailing social order, it also reflected it. Post-structuralism and postmodernism were to prove similarly ambiguous, subverting the metaphysical underpinnings of middle-class society with something of its own market-type relativism. Both postmodernists and neo-liberals are suspicious of public norms, inherent values, given hierarchies, authoritative standards, consensual codes and traditional practices. It is just that neo-liberals admit that they reject all this in the name of the market. Radical postmodernists, by contrast, combine these aversions with a somewhat sheepish chariness of commercialism.” ).

Suas considerações estão direcionadas à incapacidade do pensamento estruturalista e pós-estruturalista em romper com as amarras do capital, aceitando-as como limite último da humanidade. Essa barreira teórica (e também prática) refletese nas análises e soluções encontradas aos problemas reais, restringidas à ideia das “pequenas mudanças”, do “pouco a pouco”, seguramente adaptadas ao quadro geral da ordem estrutural dominante, “pois qualquer ideia de modificar a estrutura socioeconômica em si [...] teria de ser peremptoriamente condenada pela ‘pósmodernidade’ como um ‘grande relato’ inadmissível.” (MÉSZÁROS, 2011a, p. 326MÉSZÁROS, Itsván. Estrutura social e formas de consciência II: a dialética da estrutura e da história. São Paulo: Boitempo, 2011a., grifos do autor).

Essa leitura teórica do “pouco a pouco” alia-se à ideia da tecnologia como instrumento de salvação, capaz de solucionar as questões da humanidade. Nesse ponto, retira-se o caráter estrutural dos problemas, relacionado os desdobramentos das relações de produção, apagando seu caráter social e transformando-o em uma questão puramente instrumental, passível de ser resolvida através de “[...] soluções estritamente pertencentes ao âmbito da ciência e da tecnologia.” (MÉSZÁROS, 2009, p. 21MÉSZÁROS, Itsván. Estrutura social e formas de consciência: a determinação social do método. São Paulo: Boitempo, 2009.. “Ou seja, uma expectativa de resolver os problemas identificados sem a necessidade de uma intervenção substancial no plano da própria estrutura social contestada de forma antagônica” (MÉSZÁROS, 2009, p. 19-20MÉSZÁROS, Itsván. Estrutura social e formas de consciência: a determinação social do método. São Paulo: Boitempo, 2009.).

Na utilização da ciência e da tecnologia como recurso ideológico de apaziguamento dos conflitos sociais, engendrados pelo aguçamento das contradições da relação capital-trabalho, elas são apropriadas e representadas como um deus ex machina capaz de resolver, instrumentalmente, o que possui socialmente a sua raiz.

Reflexões Conclusivas

O discurso da globalização está prenhe da defesa de que o fim das fronteiras entre os países conduz à necessidade do avanço tecnológico como definidor do diferencial de competitividade na escala mundo para a sobrevivência no mercado globalizado. Nesse contexto, insere-se como desafio a necessidade de gerir a inovação na indústria, melhorar a capacidade inovadora, como fator impulsionador da economia nacional e, por consequência, garantir o desenvolvimento capitalista.

Embora fora apresentado a partir dos finais dos anos 1980, o cenário desse debate teve sua base teórica analítica sustentada nos estudos de Joseph A. Schumpeter, enaltecido por seus estudiosos como “profeta do desenvolvimento capitalista” por propor a correlação direta entre o nível de investimento, de inovações tecnológicas, com o de desenvolvimento econômico. Enquadrado como pertencente a escola neoclássica da economia, sua principal obra, Teoria do desenvolvimento econômico (1911), parte do pressuposto de que só com a inovação tecnológica é que as nações poderiam dar os grandes saltos de crescimento em direção ao desenvolvimento.

O que não é inserido na explicativa é que a essência da garantia de expansão capitalista só se efetua pela subsunção real do trabalho ao capital. No capitalismo, o progresso da ciência e da tecnologia – cada vez mais controlado e determinado – é a manifestação da necessidade do capital em movimentar todas as engrenagens para produzir mais-valor crescentemente. As forças produtivas capazes de liberta e qualificar o Ser Humano no sentido da sua plenitude são utilizadas para sua destruição, movimento que toma contornos mais drásticos a cada ano que passa. Por fim, o que se buscou ressaltar neste texto é que a ciência não só é submetida ao capital (coisificação) como se torna ao mesmo tempo capital. “A ciência e a tecnologia corporificadas nas instalações do capital confirmam a ‘necessidade’ da relação de subsunção do trabalho” (GALVAN, 1986, p. 269), colocando o Estado como mediador desse processo.

O que se pode concluir é que a interpretação positivista da ciência e do “progresso científico” infinito passou a ser útil para a idealização de uma ordem pseudo natural da autoexpansão da lógica do desenvolvimento do sistema social capitalista, da negação da centralidade do trabalho, o que implica a negação da teoria social crítica, portanto, das contradições sociais.

  • 3
    “Só nos tempos modernos entramos na fase em que começa a predominar o ritmo de substituição qualitativa, o que representa novo ciclo no processo de evolução tecnológica. [...] Não percebe tratar-se de um fato necessário no curso do processo histórico, em virtude do esgotamento de um ciclo do progresso da tecnologia, o de prevalência quantitativa, e da abertura de outro, onde a disputa pelo troféu da dominação e o incremento do processo tecnológico têm de fazer-se por via da melhora qualitativa da produção, frequentemente em forma de saltos espetaculares, conforme o recente aproveitamento da energia nuclear” (PINTO, 2005, p. 260-261PINTO, Álvaro Vieira. O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. v. 1.).
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    No original: “[...] as a generalized social property incidental to production […]”
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    “E é especialmente isso que distingue a centralização da concentração, que não é mais do que outra expressão para a reprodução em escala ampliada.” (MARX, 2017a, p. 702MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção de capital. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2017a., grifos nossos)
  • 6
    No original: “Structuralism, the new intellectual fashion, was radical in some ways and technocratic in others. If it challenged the prevailing social order, it also reflected it. Post-structuralism and postmodernism were to prove similarly ambiguous, subverting the metaphysical underpinnings of middle-class society with something of its own market-type relativism. Both postmodernists and neo-liberals are suspicious of public norms, inherent values, given hierarchies, authoritative standards, consensual codes and traditional practices. It is just that neo-liberals admit that they reject all this in the name of the market. Radical postmodernists, by contrast, combine these aversions with a somewhat sheepish chariness of commercialism.”

Agradecimentos

À Capes, pelo apoio financiero à pesquisa.

Referências

  • BRAVERMAN, Harry. Labor and monopoly capital: the degradation of work in the twentieth century. New York; London: Monthly Review Press, 1974.
  • CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.
  • EAGLETON, Terry. After Theory. New York: Basic Books, 2003.
  • GALVÁN, Cesare Giuseppe. Subsunção Real e História da Tecnologia. Revista Ensaio, São Paulo, n. 15/16, p. 267-279, 1986. Número Especial.
  • GARCIA, José Luís. Biotecnologia e biocapitalismo global. Analíse Social, Lisboa, vol. XLI, n. 181, p. 981-1009, 2006.
  • HOBSBAWM, Eric John. A era das revoluções: 1789-1848. 44. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz & Terra, 2020.
  • LENINE, Vladmir I. O imperialismo, fase superior do capitalismo (ensaio popular). In: _____. Obras escolhidas. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1979. t. 1.
  • LUKÁCS, Georg. Para a ontologia do ser social: obras de Georg Lukács volume 14. Maceió: Coletivo Veredas, 2018a.
  • LUKÁCS, Georg. Prolegômenos e para ontologia do ser social: obras de Georg Lukács volume 13. Maceió: Coletivo Veredas, 2018b.
  • LUKÁCS, György. Marx e o problema da decadência ideológica. In: VEDDA, Miguel; COSTA, Gilmaisa; ALCÂNTARA, Norma. Anuário Lukács 2015. São Paulo: Instituto Lukács, 2015. p. 97-150.
  • LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução?, In: LOUREIRO, Isabel. Rosa Luxemburgo: textos escolhidos (1899-1914). 3. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2018. p. 1-112. v. 1.
  • MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011.
  • MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção de capital. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2017a.
  • MARX, Karl. Posfácio da segunda edição. In: _____. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção de capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017b. p. 83-91.
  • MARX, Karl. Prefácio. In: _____. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Expressão Popular, 2008. p. 45-50.
  • MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
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  • MÉSZÁROS, Itsván. Estrutura social e formas de consciência: a determinação social do método. São Paulo: Boitempo, 2009.
  • PINTO, Álvaro Vieira. O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. v. 1.
  • SANTOS, Theotonio dos. Revolução científico-técnica e acumulação de capital. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.
  • SANTOS, Theotonio Dos. Revolução científico-técnica e capitalismo contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 1983.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2022
  • Aceito
    18 Abr 2022
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