RESUMO
Em texto redigido na última década do século XX, o crítico Antonio Candido destaca a importância da crônica para a história da literatura brasileira, uma vez que o gênero proporcionou a muitos autores nacionais relevante projeção no meio literário. Acrescentamos a isso, o vigor que a crônica pode manter transformando-se em documento histórico - um retrato, um ponto de vista de seu tempo capaz de reverberar no presente. Nessa perspectiva é que se propõe a leitura de João do Rio, considerado como um dos maiores cronistas do fim do século XIX e início do XX. Conciliando ficção e realidade, ou ainda, imaginação e informação, ele esculpe a sociedade brasileira em sua obra, permitindo imagens nítidas do que, no presente, pode ser apontado como a estrutura política e social do Brasil, desde os tempos coloniais. Com uma linguagem marcada pelo sarcasmo, como destaca Candido, a obra de João do Rio reitera, na atualidade, a relevância de pensarmos o Brasil em sua história, na medida em que apresenta uma crítica evidente à sociedade brasileira do início do século XX, que se tornou mais aguda hoje. E é esse o objetivo do estudo aqui apresentado, ou seja, destacar em três textos de João do Rio, intitulados “A peste”, “A galeria superior” e “Crimes de amor”, temas que evidenciam, em pleno século XXI, traços de um Brasil atrasado e anacrônico, ainda marcado pela desigualdade social, pelo racismo e pela violência contra as mulheres, evidenciando o que denominamos aqui de trilogia da miséria: desproteção de crianças e adolescentes pobres, vitimização dos homens nos crimes passionais e privilégios de classe em períodos de crises sanitárias. Com o estudo em questão, verificamos o quanto a escrita de João do Rio, 100 anos após sua morte, ainda se revela um importante testemunho literário de um Brasil no qual a violência se manifesta de formas diversas em seus modos mais desiguais de convivência social.
PALAVRAS-CHAVE: João do Rio; miséria brasileira; literatura e crítica social
ABSTRACT
In a text written in the last decade of the 20th century, critic Antonio Candido highlights the importance of the newspaper column for the history of Brazilian literature, as the genre provided many national authors with a relevant projection in the literary world. We add the vigor that the column retains by being transformed into a historical document - a portrait, a point of view of its time capable of reverberating in the present. From this perspective, this study proposes reading João do Rio, considered one of the greatest columnist of the late 19th and early 20th centuries. Reconciling fiction and reality, or even imagination and information, João do Rio’s work sculpts Brazilian society, allowing clear images of what, in the present, can be seen as Brazilian political and social structure since colonial times. With sarcastic language, as highlighted by Candido, João do Rio’s work reiterates, nowadays, the relevance of thinking about Brazil in its history insofar as it presents an evident criticism - intensified nowadays - of Brazilian society at the beginning of the 20th century. The objective of this study is to highlight, based on three texts by João do Rio, “A peste” [The Plague], “A galeria superior” [Upper Gallery], and “Crimes de amor” [Love Crimes], themes that confirm, in the 21st century, traits of a backward and anachronistic Brazil, still marked by social inequality, racism, and violence against women, revealing what we call here “the trilogy of misery”: lack of protection for poor children and adolescents, victimization of men in crimes of passion, and class privileges in times of health crisis. With the study in question, we verify how much João do Rio’s writings -one hundred years after his death - still reveal an important literary testimony of a Brazil in which violence emerges in different ways in its most unequal manners of social coexistence.
KEYWORDS: João do Rio; Brazilian misery; literature and social criticismo
O cronista e a cidade
Considerado o maior cronista da Belle Époque literária brasileira, o conhecido e polêmico João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto, manteve estreita ligação com a literatura e o jornalismo, fato comum no Brasil do final do século XIX e início do século XX. Com uma carreira reconhecida na imprensa nacional, João do Rio evidenciava em seus escritos uma simbiose impressionante entre arte e vida “prefigurando assim as metáforas lancinantes dos modernistas” ( ANTELO, 1997, p. 19). Como literato, publicou contos, romances e textos dramáticos. Como jornalista, dedicou-se à reportagem, à crônica e à crítica. Aliás, foi com um texto sobre a peça Casa de boneca, de Ibsen, que o jovem jornalista João do Rio inaugurou seu longo percurso pela imprensa nacional. Trata-se do texto intitulado Lucinda Simões, uma crítica teatral. Sua atuação como crítico de arte, sobretudo da dramaturgia, levou-o a se tornar um dos maiores defensores do teatro, estando ele entre os criadores da SBAT (Sociedade Brasileira dos Autores Teatrais), da qual foi o primeiro presidente.
É possível verificar, na produção escrita do cronista carioca, o uso recorrente de termos como: cena, personagem, palco, espetáculo, ator, encenação, cenário e plateia, o que evidencia a relação do autor com o teatro. 1 E essa relação não está restrita à literatura e ao jornalismo, mas se estende por sua própria vida. Em João do Rio convivem em harmonia duas personalidades: a de espectador e a de personagem ( DOMINGUES, 1998). Como personagem, ele desfila sua imagem de homem de sucesso pelas ruas do Rio, 2 nas duas primeiras décadas do século XX, provocando olhares curiosos e difamações, principalmente dos companheiros literatos. Nesse sentido, dois bons exemplos são Humberto de Campos e Antônio Torres, jornalistas da revista D. Quixote, conhecida por seu viés humorístico. Na opinião do biógrafo Raimundo Magalhães Júnior, porém, “Na época, confundia-se humorismo com agressão e, a título de gracejo, eram publicadas mofinas personalíssimas, não raro com o travo do preconceito racial” ( MAGALHÃES JR., 1978, p. 291).
Em uma das edições de D. Quixote salta aos olhos o tom racista do comentário de Adolfo Paixão, que se refere a João do Rio como “mulatinho pernóstico”. Outra evidência de racismo ficou a cargo de José do Patrocínio Filho, que, após agredir João do Rio nas dependências do jornal Cidade do Rio, faz menção ao cronista carioca como “aquele negróide que eu acabei de castigar” ( MAGALHÃES JR., 1978, p. 26). Não bastasse a conotação negativa à raça, Zeca do Patrocínio exalta a agressão como punição, como que aludindo ao tratamento dado aos escravos.
Dentre os ataques sofridos pelo cronista carioca, ganha relevo, ainda, os cometidos pelo jornalista Antônio Torres, na revista ABC, e pelo escritor Monteiro Lobato. O primeiro, em publicação de 1920 no semanário Gil Blas, expressa, em uma só publicação, o seu preconceito racial e homofóbico, quando, em tom de deboche, escreve “Paulo Barreto, que se diz fidalgo, apesar da sua beiçorra etiópica e do seu prognatismo camítico, fundou aí um jornal que ele chama Pátria, mas que deve ser chamado de Mátria (porque, em se tratando de Paulo Barreto, tudo é feminino)” ( RODRIGUES, 1981, p. 13). O segundo, ao assinar em 1918 uma crítica ao romance A correspondência de uma estação de cura, acusa João do Rio de plagiar Eça de Queirós e de ter “ideias simiescas”. A atitude de Lobato é reprovada por Antonio Candido na edição do romance de João do Rio, publicada em 1992. Naquela oportunidade, no prefácio à obra, Candido assinala a atitude preconceituosa de Lobato que, na opinião do crítico, o faz “descer a alusões racistas, numa grosseria tacanha que contrasta com o lado generoso do seu caráter” ( CANDIDO, 1992, p. 18).
De acordo com alguns estudiosos e biógrafos de João do Rio, as agressões e as críticas não o abalavam. Para Luiz Edmundo, o cronista da Belle Époque carioca é indiferente “a todas essas misérias e torpezas”, às quais ele reage “superior e displicente [...] com um sorriso que nos faz mal, porque é sorriso falso e procurado, um sorriso de máscara, como que feito de papelão ou de pano” ( EDMUNDO, 1987, p. 222). No nosso ponto de vista, no entanto, João do Rio lidada com as agressões numa atitude blasé, assumindo, como defesa, ares de superioridade, pois, como ele mesmo defende, “Depois do transformismo, moda passada em ciência e moda em voga em cena: a vida é palco, onde cada um representa seus papéis” ( CANDIDO, 1992, p. 11).
Com relação às injúrias raciais, ao que tudo indica, há outros motivos para que elas não atinjam João do Rio. Para Rodrigues (1996), “O filho de Florência não se considerava negro, nem o era pelo condescendente conceito brasileiro” ( RODRIGUES, 1996, p. 144). 3 O biógrafo, porém, destaca o fato de não ser “inverossímil a versão de que sua foto oficial para a Academia tenha sido muito retocada, principalmente o nariz, de perfil, acintoso” ( RODRIGUES, 1996, p. 144).
Como escritor e jornalista, o autor de A alma encantadora das ruas registra o grande espetáculo que a sociedade carioca representa cotidianamente. Aliás, ele mesmo, no discurso de pose na Academia Brasileira de Letras, se define como “o espectador incompleto dessa sociedade que se constitui, [...] aquele que fixa tumultuariamente alguns aspectos do esplêndido espetáculo” ( MAGALHÃES JR., 1978, p. 128).
E é dessa forma, como quem assiste a um espetáculo, que Paulo Barreto se remete ao Rio de Janeiro da Belle Époque:
Por hábito, sentara-me a uma das mesas do terraço da confeitaria, os olhos perdidos na contemplação da Avenida, àquela hora vaga tão cheia de movimento e ruído. (...) Nas calçadas uma dupla fila de transeuntes sempre a renovar-se, o cinema colossal de homens das classes mais diversas, operários e dândis, funcionários públicos e comerciantes, ociosos e bolsistas, devagar ou apressados ao lado de uma multicor galeria de mulheres (...) À beira das calçadas, a pouco e pouco os pingos de gás dos combustores formavam uma tríplice candelária de pequenos focos, longos rosários de contas ardentes, e era aqui o estabelecimento; mais adiante, o incêndio das montras faiscantes, de espaço a espaço as rosetas como talhadas em vestes d’Arlequins dos cinematógrafos, brasonando de pedrarias irradiantes as fachadas. Ah! Os contos de fadas que são as cidades! ( RIO, 1910, p. 237-238).
Sendo assim, o cronista se transforma numa espécie de personagem passe-partout, postura que lhe permite “ler” a cidade com todas as suas belezas e contradições. O que, como enfatizamos em publicação anterior, “pode ser visto também em sua obra, na qual retrata tanto a elegância e a futilidade dos salões da alta sociedade, quanto reflete as injustiças sociais, as misérias e as mazelas que esta mesma cidade esconde nos becos sórdidos, nas ruelas imundas, nos ‘livres acampamentos da miséria’” ( DOMINGUES, 1998, p. 10), título de uma das suas mais famosas crônicas.
A matéria-prima do cronista carioca é esse espetáculo cotidiano do Rio de Janeiro em transformação. Assim sendo,
Seus textos são fragmentos da nova metrópole emergente e basta reuni-los para termos um panorama da sociedade em (trans)formação, que, acima de tudo, valoriza a imagem. Resultado, é preciso exibir-se cotidianamente nas ruas da moderna Capital Federal que, transformada em palco, se toma o espaço ideal para quem pretende ser visto, ser admirado, ser imitado. ( DOMINGUES, 1998, p. 45).
Essa teatralização da vida do Rio de Janeiro das duas primeiras décadas do século XX João do Rio projeta em suas crônicas e nelas identifica-se facilmente a mão desse espectador do cotidiano, que registra a sua época. O que o arguto escritor coloca em cena é o dia a dia de uma sociedade que ele, flanêur do seu tempo, conheceu nas ruas da capital do Brasil em pleno momento de modernização.
A obra do cronista carioca, no entanto, se amplia em muitos sentidos, na medida em que apresenta as cenas do espetáculo da cidade, incluindo até o que ela quer encobrir, como os presídios, as favelas, o comércio de drogas, a prostituição e a miséria. Seus textos são capazes de refletir, então, “os dejetos, os resíduos da burguesia, tudo o que ela quer ocultar, afastar, negar como resultado de sua busca insana por poder e status”. ( DOMINGUES, 2005, p. 30). Longe da ideia de modernização como um processo harmônico e sem confrontos, o Brasil agrário e escravista, que pretende estabelecer-se à imagem e semelhança da Europa, não consegue se afastar das lógicas patrimonialistas e racistas postas em prática desde sua colonização, gerando uma sociedade marcada por profundas desigualdades, injustiças e intolerâncias. 4
A margem e o centro, o culto e o iletrado, as variações e as diferenças do povo que compõem o contexto brasileiro em modernização não escapam à percepção de João do Rio, que circula em esferas de lá e de cá retratando seus meandros e denunciando suas desordens e hipocrisias. Nesse sentido, as crônicas de João do Rio, como bem observa Antelo (1997), apresentam a “disponibilidade observadora da sociedade em devir”. (p. 19). É essa realidade que encontramos nos textos que aqui nos propomos a analisar e que nos permitem uma relação com a nossa atualidade, pois são o “reflexo de um tempo e uma cultura - um mediador simbólico, em um ambiente urbano de alteridade e produção cultural” ( SIQUEIRA, 2004, p. 81).
Trilogia da miséria
Os textos selecionados para esse estudo compõem duas das mais famosas obras de João do Rio. Os títulos “A galeria superior” e “Crimes de amor” foram publicados em 1905 na Gazeta de Notícias e, posteriormente, inseridos na coletânea A alma encantadora das ruas. Nessa obra, os dois textos fazem parte de uma série de crônicas selecionadas com o subtítulo “Onde às vezes termina a rua”. O conto intitulado “A peste”, por sua vez, foi publicado no livro Dentro da noite, no ano de 1910. Em ambos os livros encontramos uma galeria de personagens que configuram o lado cruel, miserável e sombrio da metrópole que se pretendia civilizada. São homens, mulheres e crianças marginalizados e excluídos que, como já observado, não deixam de ser percebidos pelo olhar curioso e sensível do jornalista João do Rio.
Tanto no texto “A galeria superior” como em “Crimes de amor” temos a descrição de duas casas de detenção, como eram denominados os presídios brasileiros no início do século XX. Os espaços têm um “ar de hospedaria da infâmia a beira da vida” ( RIO, 1997, p. 328), com poucas diferenças e muitas semelhanças com o atual contexto das instituições penais brasileiras. Em ambas as crônicas, encontram-se encarcerados homens, jovens e até crianças, presos por crimes diversos, desde os mais inofensivos, como os crimes de vadiagem e ofensas físicas, até os crimes hediondos, como o estupro de duas crianças de sete e 10 anos. A superlotação, a sujeira das celas e o aspecto dos presos impressionam o narrador visitante que entra em contato com aqueles ambientes levando-o a se sentir como Dante quando passeia “pelos círculos do inferno” ( RIO, 1997, p. 333)
Crianças pobres: construção da criminalidade
Aos olhos do cronista, é evidente a falha do Estado no papel de socialização dos presos, o que o leva a comparar a detenção a uma escola do crime, na qual as celas são cubículos onde “rapazes, dias antes honestos, fazem o mais completo curso de delitos e infâmias de que há memória” ( RIO, 1997, p. 330-331). A falta de ocupação dos presos e de organização na separação deles, por sua vez, são as causas da reincidência, pois “ao lado de respeitáveis gatunos” encontram-se crianças ingênuas e uma série de “seres que o desleixo das pretorias torna criminosos” ( RIO, 1997, p. 330).
Nos textos de João do Rio tornam-se evidentes duas das maiores mazelas do nosso país, a desigualdade social e o consequente descaso da justiça com os pobres, a quem ele denomina os desprotegidos da sorte que, além de serem presos por cometerem infrações leves, são esquecidos nos presídios à espera de um julgamento justo. Na percepção do cronista, essas são as maiores produtoras da criminalidade.
A sensibilidade do arguto escritor fica evidente ao se deparar com a miséria e as injustiças sociais do nosso país, que se revelam de diversas formas. Dentre elas, destaca-se a preocupação com uma questão que ainda se faz presente, a menoridade penal. Abandonados pelo estado, alijados dos direitos fundamentais, muitos de nossos jovens acabam inseridos na criminalidade, um meio de sobrevivência para alguns, tendo como destino certo a morte ou a privação da liberdade. E o cronista alerta “Recolhidos à sombra, nesse venenoso jardim, onde desabrocham todos os delírios, todas as nevroses, é certo que a criança, sem apoio lá fora, hostilizada brutalmente pela sorte, acabará voltando”. ( RIO, 1997, p. 332-333).
Diante do cenário com o qual se depara, o cronista contesta, ainda, a atuação da polícia brasileira, uma vez que a instituição não age na prevenção e vai na contramão do que se espera dela, pois atua opressivamente na consequência. Assim sendo, ao invés de prevenir o aumento da criminalidade,
Que fazemos nós? Agarramos uma criança de catorze anos porque deu um cascudo no vizinho, e calma, indiferente, cinicamente, começamos a levantar a moral desse petiz dando-lhe como companheiros, durante os dias de uma detenção pouco séria, o Velhinho, punguista conhecido, o Bexiga Fraga, batedor de carteira e um punhado de desordeiros da Saúde. ( RIO, 1997, p. 334).
Como em grande parte da obra de João do Rio, fica claro, nos textos aqui analisados, a postura crítica do autor. Neles, é possível encontrar a denúncia contra o sistema carcerário brasileiro, a justiça e a postura perniciosa da polícia. Para o autor, o sistema carcerário é perverso, sobretudo, quando negligencia sua função de proteção e, ao contrário, produz o delinquente. João do Rio parece antecipar o pensamento de Michel Foucault ( 1989), que afirma ser na passagem pelo sistema de justiça que a delinquência marca o sujeito e não, necessariamente, no ato criminoso; referimo-nos, aqui, ao que o teórico denomina de ‘microfísica do poder’. O cronista observa, por exemplo, que o comando das instituições não é delegado a um profissional com conhecimento na área, mas é dado “a cidadãos protegidos sem a mínima noção do que vem a ser um estabelecimento de detenção” ( RIO, 1997, p. 333).
Para João do Rio, a ação do Estado, ao que tudo indica, é a maior incentivadora dos delitos e a maior formadora de criminosos, pois, sem uma divisão dos presos dentro dos presídios e com a morosidade da justiça, ampliam-se as chances de um pequeno infrator tornar-se um cruel assassino. Sendo assim, “em meio do charco, fatalmente destinada a desaparecer, a inocência, atirada ali pela incúria das autoridades, floresce” ( RIO, 1997, p. 330). Uma vez jogados no cárcere, seja por qualquer motivo, abre-se uma série de possiblidade de inserção no mundo do crime e da crueldade. Nesse sentido, “a Detenção é a escola de todas as perdições e de todas as degenerescências” ( RIO, 1997, p. 332) e o cronista desabafa “Chega a revoltar a inconsciência com que a sociedade esmaga as criaturas desamparadas” ( RIO, 1997, p. 331)
O cárcere como lugar da escória, de tudo aquilo que a sociedade mantém à margem, tem a marca da escravidão negra que assola a dignidade social e política no Brasil desde o século XVIII. Tanto em “A galeria superior” quanto em “Crimes de amor”, como veremos nos dois casos que citaremos mais à frente, a massa encarcerada é negra na maioria de suas personagens.
Quando algum desconhecido passa, deixam tudo, precipitam-se, alguns nus, outros em ceroulas, e há como um diorama sinistro e caótico - negros degenerados, mulatos com contrações de símios, caras de velhos solenes, caras torpes de gatunos, cretinos babando um riso alvar, agitados, delirantes, e as mãos, mãos estranhas de delinqüentes, finas e tortas umas, grossas algumas, moles e tenras outras, que se grudam aos varões de ferro com o embate furioso de um vagalhão. ( RIO, 1997, p. 329, grifos nossos).
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2022, a população carcerária brasileira é composta por 67,5 % de pessoas negras, demonstrando que a desproteção de negros segue no rumo da criminalização desde a abolição legal da escravatura. Opressão e discriminação de oportunidades são elementos chave na análise histórica da constituição das classes sociais no Brasil, mesmo considerando a intenção republicana.
O mesmo anuário acima referido mostra que 50% das vítimas de assassinato em 2021, no Brasil, estavam entre 12 e 29 anos, sendo que do total de vítimas 77,9% são negras; confirmando, mais uma vez, a percepção de João do Rio, numa realidade que se arrasta até os dias atuais.
Diferente do início do século XX, após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, o adolescente que comete um ato infracional não pode ser julgado como um adulto, tampouco ser confinado em estabelecimento destinado aos adultos. No entanto, a lei não muda a mentalidade e os “privilégios” legais para a menoridade se aplicam apenas aos filhos das classes abastadas. Crianças e adolescentes pobres seguem vistos como restos, degenerescências, privadas do direito à educação, moradia, alimentação e lazer dignos. Os estabelecimentos destinados aos adolescentes autores de atos infracionais seguem tão insalubres e desumanos quanto os cárceres visitados por João do Rio.
A infância pobre brasileira permanece desprotegida do Estado e da sociedade, constituindo-se massa à margem das políticas sociais de cidadania. Vêm das classes economicamente vulneráveis as crianças e adolescentes que precisam se integrar precocemente no mundo do trabalho, que buscam sustento nas ruas, que compõem a maioria das evasões escolares, tornando-se a população mais sujeita ao ingresso no mundo do crime. Ora, se a maioria da população brasileira pobre economicamente se compõe de pessoas negras, em suas variações de cor de pele, não é difícil perceber a origem dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas internadas em instituições de confinamento. 5
Quando a vítima é o algoz
É preciso destacar, porém, uma diferença pontuada entre os presos dos dois espaços descritos nos escritos de João do Rio aqui analisados. Enquanto no texto “A galeria superior” são apresentados aos leitores os encarcerados por crimes diversos, misturando-se aqueles de maior periculosidade até os que foram presos por razões menos infundadas, em “Crimes de amor” o destaque é para os assassinos confessos, aqueles que matam, justamente, em nome do amor.
A confissão, no entanto, não se limita ao fato de os detentos assumirem seus crimes. Ela se amplia em todos os aspectos e, nesse sentido, está a diferença entre os demais criminosos e os assassinos passionais, pois estes
[...] chegam mesmo a reviver detalhes insignificantes. Ao passo que os gatunos, os incendiários e os homicidas vulgares, mesmo tendo a cumprir sentenças longas, negam sempre o crime; essas vítimas da paixão não se cansam de contar a história, cada vez com maior número de minúcias e mais abundância de memória. ( RIO, 1997, p. 316).
Ao fazer referência a essa particularidade, a crônica marca o sofrimento que acompanha o assassino mesmo ao rememorar o crime - ele não se arrepende, mas segue sofrendo do amor destruído. É possível identificar, em “Crimes de amor”, um aspecto comum na obra de João do Rio, a figura da mulher como causadora da desgraça do homem ( DOMINGUES, 2005). Como é possível perceber, já no primeiro contato com o texto, o assassino é apresentado como “vítima” da sua paixão e as mulheres como as responsáveis pelas agressões a elas impostas. Essa referência fica mais clara ainda na fala de um dos detentos. Ao ser questionado por que havia matado sua mulher, ele responde “Porque ela quis”. ( RIO, 1997, p. 317).
Nas palavras da historiadora Lilia Schwarcz (2019),
A “rotinização” do comportamento masculino machista e agressivo pode ser observada nos resultados de uma enquete recente, na qual 30% dos homens brasileiros consultados afirmaram acreditar que uma mulher que veste roupas curtas é culpada pelo assédio ou está pedindo para sofrer atos violentos. Velha saída que culpabiliza a vítima pela prática do delito. ( SCHWARCZ, 2019, p. 185).
A forma como o cronista apresenta essa relação entre o criminoso e a vítima se assemelha ao que conhecemos hoje como feminicídio, e, em grande medida, vem ao encontro da lógica patriarcal, ainda vigente na atualidade, que tem levado a várias discussões sobre esses crimes que, aliás, crescem assustadoramente no nosso país, resultando em uma espécie de genocídio contra as mulheres. Segundo dados publicados no já referido Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2022, foram registradas 1341 vítimas de feminicídio em 2021 no Brasil. Importante ressaltar que 81,7% foram mortas pelo companheiro ou ex-companheiro, segundo estatística do mesmo anuário.
Voltando ao texto “Crimes de Amor”, encontramos, ao que parece, uma série de justificativas do cronista para as atitudes cruéis dos companheiros assassinos. Já na primeira entrevista no cárcere, merece destaque o que parece ser a justificativa para o crime, nos dando a impressão que o narrador se coloca como um aliado do criminoso:
- Por que está aqui? - Porque matei. Nas prisões há duas coisas revoltantes: o cinismo que nega e o que confessa com uma afronta. Aquela frase breve tinha, porém, o cunho de uma dolorosa sinceridade. ( RIO, 1997, p. 317).
Aquele que mata por amor é merecedor de crédito - é sincero - e tem abrigo na dor de ter sido traído. Diante daqueles homens, desgraçados pela paixão, o cronista se sensibiliza:
Com os corações em sangue, vi uma coleção de assassinos, desde um velho lamentável até uma criança honesta, postos fora da sociedade pelo desvario, pela loucura que a paixão sopra no mundo. A mulher que os poetas levam a cantar, Vênus inconsciente e perversa, Lilith, lendária, surgia nessa ruína, perdendo, estragando, corroendo, matando, e eu sentia, no olhar e no gesto de cada uma das vítimas do amor, o desejo de guardar o perfil das suas destruidoras. Oh! Esses seres, que Schopenhauer denominava animais de cabelos compridos e ideias curtas, que formidável poder de destruição cometem! ( RIO, 1997, p. 325-326).
Fazendo uma leitura dos textos assinados por João do Rio em diálogo com a atualidade, vemos o quanto eles são reveladores dos traços estruturantes de uma sociedade patriarcal que marca profundamente a história do nosso país. Culpar a mulher pela violência sofrida expõe a todos nós o nível de atraso ao qual estamos submetidos, desnudando a hegemonia do poder masculino que sustenta a sua defesa investindo em um discurso machista que se quer como justificativa para as práticas punitivas. Tal atitude é reveladora, também, de uma postura hierárquica de gênero: a mulher como propriedade do homem.
Por certo, a referência patrimonialista da sociedade brasileira ajuda a compreender por que ainda temos o maior número de violência contra a mulher dentro da sua própria casa, sendo os maridos e companheiros os maiores abusadores e assassinos. Nesse sentido, tornam-se ilustrativos os dados publicados em 2022 no anuário já referido, segundo o qual, “Entre 2020 e 2021, vimos um acréscimo significativo de 23 mil novos chamadas de emergência para o número 190 das polícias militares solicitando atendimento para casos de violência doméstica” ( FBSP, 2022, p. 166), no Brasil.
O patrimonialismo, aprendido nos processos de submissão coloniais, concebe o negro, o pobre e a mulher como inferiores e, portanto, próprios à dominação e exploração. Também a hierarquia entre os gêneros, que se intersecciona à condição de raça e de classe social, garante aos homens proteção moral e jurídica entre si, o que se revela discursivamente na obra de João do Rio na voz do guarda da prisão ao proclamar: “Pobre homem! Tentou suicidar-se e é preciso uma vigilância extrema para que não tente outra vez contra própria vida” ( RIO, 1997, p. 320).
Na crônica “Crimes de amor”, a vitimização do assassino vai desde o homem mais velho: “Aproximo-me, e dos fundos vejo surgir um velho preto, magro, seco, com olhar ardente e a cabeça branca” ( RIO, 1997, p. 317); até o mais jovem rapaz: “Minutos depois, surgia, trazido pelo guarda, um pardinho cor azeitona, dessas fisionomias honestas, alheias a devassidões” ( RIO, 1997, p. 322). João do Rio ratifica a estrutura social que encarcera pobres e negros ao mesmo tempo em que se apieda dos assassinos “vítimas do amor”. É na adjetivação das vítimas que se encontra o compadecimento com uns e a indignação com outros. Suas personagens, no cotidiano das cidades, expressam a lógica cultural e a moral que designa, desde lá, lugares sociais diferenciados aos gêneros, à raça e às classes econômicas, no Brasil das hierarquias.
Medidas sanitárias e proteção. Para quem?
Finalizando o que denominamos de trilogia da miséria em diálogo com a atualidade, nos debruçamos sobre o texto “A peste”, publicado em 1910. O ambiente que serve de cenário para esse conto é o Rio de Janeiro do início do século XX, uma cidade assolada e assustada pela epidemia da varíola, que “rebentava em purulências toda a cidade” ( RIO, 1910, p. 196).
A epidemia que tematiza a narrativa de João do Rio é tão assustadora como a causada pelo novo Coronavírus que surge no mundo em 2019. Assim como o Coronavírus, essa é uma doença altamente contagiosa, que leva à morte e “Cada dia aumenta mais, cada dia aumenta” ( RIO, 1910, p. 197). Por se tratar de um vírus que se propaga por gotículas respiratórias no ar (tosse ou espirro), pela saliva, pelo contato com a pele e pelo toque em uma superfície contaminada, a varíola trouxe inúmeras dificuldades para os responsáveis pela saúde pública da frágil república brasileira dos primeiros anos do século XX, resultando em um cenário que se aproxima em gravidade e extensão da crise sanitária vivida nos nossos dias.
As cenas descritas pelo atento jornalista carioca, já no início do conto, podem levar um leitor desavisado a considerar que se trata de uma narrativa dos dias atuais, pois assim como no Brasil do início do século XXI, quando vivemos uma epidemia de extensão planetária, encontramos aqueles que entendem a gravidade da situação e, consequentemente, a necessidade de cuidados básicos e isolamento social. Mas, na contramão da emergência sanitária, encontram-se os que negam a situação, ridicularizam os cuidados básicos e se sentem inatingíveis pela doença. Dentre eles está aquele que “Um mez atrás ria dessa epidemia [sic]. Para que pensar em males cruéis, nesses males que deformam o físico, roem para todo o sempre ou afogam a vida em sangue podre? Para que pensar?” ( RIO, 1910, p. 195-196).
Enquanto muitos se recusam a enxergar a gravidade da situação, outros se desdobram em busca de remédios e vacinas para a cura da doença, como os profissionais da saúde, incansáveis no tratamento dos doentes, lidando com a superlotação dos hospitais, obrigados a enfrentar uma situação para a qual eles não têm solução. Ao contrário dos poucos que podem ficar mais seguros em isolamento social, médicos e enfermeiros “movem-se com a precipitação triste a que a morte obriga os que ficam.” ( RIO, 1910, p. 199).
E foram muitos os brasileiros que precisaram ficar diariamente cara a cara com o vírus. É notório, no nosso país, que a classe trabalhadora, na qual estão incluídos os profissionais da saúde e os mais frágeis economicamente, foi a mais atingida pela pandemia da Covid-19. Sem condições de se manter em isolamento, inúmeros trabalhadores desse país se expunham à doença em transportes coletivos lotados ou em seus próprios locais de trabalho. Por outro lado, milhares perderam seus empregos, sendo obrigados a se expor à contaminação, dia e noite, em filas gigantescas à espera do Auxílio Emergencial.
Os mais pobres são, também na pandemia de 2019-2020, os que mais sofreram quando atingidos pela doença, seja nas filas dos postos de saúde a espera de atendimento ou de um teste para a Covid, seja nos hospitais públicos, muitos dos quais sem recursos suficientes para atender a tantos doentes. Dessa forma, repete-se os cenários de caos e as cenas dantescas, do início do século XX durante a epidemia da varíola, tão bem descritas por Luciano Torres, personagem do conto “A Peste”. Segundo o personagem, o hospital é um lugar “com o ar indiferente” ( RIO, 1910, p. 199), no qual
há mulheres pálidas e desgrenhadas que esperam novas dos seus doentes, há velhos, há homens de face desfeita, uma série de caras em que o mistério da morte [...] incute um apavorado respeito e uma sinistra revolta. Quantas mães sem filhos! Quantos pais à espera da certeza da morte dos filhos! Quantos filhos ali, apenas para tratar do enterro dos que lhe deram o ser. ( RIO, 1910, p. 199).
A narrativa nos faz ver o quanto, apesar de tão longe, estamos perto do Brasil dos primeiros anos do século XX. Nos aproximamos daquele contexto na medida em que somos surpreendidos por uma doença que se mostra um perigo para todos, sendo, portanto, “uma experiência, digamos, ‘democrática” ( BRIZOLA, 2014, p. 21). No entanto, enquanto naquele período os pobres eram isolados no lazareto, os ricos perambulavam pela cidade frequentando teatros e salões sociais e, quando infectados, tinham o direito de serem cuidados em suas próprias casas. No contexto atual, porém, enquanto os ricos tinham o benefício de ficarem isolados no conforto de suas casas, ou receberem tratamentos de ponta em hospitais particulares, os pobres foram obrigados a manter suas rotinas de trabalho, se amontoar em filas de bancos ou morrer nos corredores dos hospitais a espera de recursos básicos como medicamentos para intubação ou oxigênio. Não há como negar, as pandemias, de agora e de outrora, escancaram a desigualdade social no nosso país.
É preciso ter fim
Por que ler João do Rio hoje? A resposta pode estar na necessidade de refletirmos sobre a história para que se possa estabelecer nexos, continuidades e rupturas entre passado e presente. Como alerta Schwarcz (2019, p. 236):
Vivemos um período de recessão democrática, de cisão social em torno de questões comportamentais, terreno fértil para que velhas feridas históricas sejam mobilizadas por políticos que, de forma oportunista, pretendem ter saudades de um tempo que não volta e que, em parte, jamais existiu. ( SCHWARCZ, 2019, p. 236).
É preciso lembrar, escarafunchar a história à contrapelo e refletir sobre os mitos de unidade, pacificidade, harmonia nacional - esse é um passado que nunca existiu. A proximidade da narrativa de João do Rio com a nossa realidade traz à tona o quanto estão enraizados na construção desse país aspectos arcaicos que surgiram com a formação colonialista desde antes da ideia de nação. A espoliação sofrida por um longo processo colonial e a desigualdade resultante de séculos de escravidão e de exclusão dão origem às mazelas que o cronista carioca desvela no mosaico da urbs que se quer moderna e civilizada. Nesse sentido, “O discurso da crônica, em João do Rio, é o discurso de uma minoria sem história que tenta contar a História.” ( ANTELO, 1992, p. 157). Portanto, pode-se dizer que sua obra evidencia, em pleno século XXI, traços de um Brasil marcado pela desigualdade social, pelo racismo, pela luta de classes e pela violência contra as mulheres.
No que se refere ao racismo, vale ressaltar o fato do autor não explicitar suas origens negras, ainda que esse seja um dos aspectos mais usados por seus inimigos para atingi-lo. João do Rio não trouxe de forma direta para a sua obra a denúncia do preconceito racial que ele próprio viveu. Aliás, em seus textos, é possível encontrar termos que denotam o distanciamento da sua percepção sobre a sua condição racial, evidenciada nos termos pejorativos usados por ele em relação aos negros, como ocorre, por exemplo, em expressões “negros degenerados” e “mulatos com contrações de símios” ( RIO, 1997, p. 329), usadas por ele para caracterizar os encarcerados do conto “A galeria superior”.
O distanciamento de João do Rio com a negritude já é percebido por João Carlos Rodrigues, na biografia que assina no final do século XX. Naquele momento, o biógrafo destaca, como já apontamos anteriormente, que o cronista “não se considerava negro, nem o era pelo condescendente conceito brasileiro” ( RODRIGUES, 1996, p. 144). Aliás, tal distanciamento se encontra marcado, inclusive, na linguagem da qual o cronista faz uso. De acordo com Rodrigues, “Em As religiões do Rio só se refere aos afro-brasileiros na terceira pessoa, ‘eles’, e não ‘nós’.” ( RODRIGUES, 1996, p. 144).
A leitura da obra de João do Rio, bem como outras referências sobre o autor e sua obra, nos leva a sugerir que a sua relação com a questão do racismo seja uma evidência da eugenia em voga naquele momento. No Brasil, na virada do século XIX e parte do século XX, a eugenia prestava-se ao branqueamento da população como condição de desenvolvimento e, consequentemente, salvação do país dos efeitos da miscigenação do branco com o negro, aos olhos dos europeus. 6
O liberalismo e a Europa como metas para o ingresso na modernidade fizeram da brutalidade da escravidão no Brasil uma realidade a ser negada, escondida sob os mais diversos artifícios humanistas: a ‘amizade’ entre negrinhas e sinhás, negros forros tornados exemplares e não exceções, a ‘caridade’ e a ‘fraternidade’ com que senhores e senhoras tratavam os escravos domésticos, por exemplo. Entretanto, tanto em “A galeria superior” quanto em “Crimes de amor”, o que vemos é uma maioria de negros e pobres encarcerados. Ao tencionar o passado ‘civilizado’ da sociedade brasileira, João do Rio escancara a permanência da escravização de negros e pobres para além do ato abolicionista da Lei Áurea. O ato jurídico que extinguiu a escravidão não foi efetivo na guerra contra os negros, a lei apenas remodelou o racismo.
Em “A galeria superior” enfatizamos a desproteção de crianças e jovens que, guardados sob responsabilidade do Estado, são confinados em lugares insalubres, onde a “aglomeração torna-os hostis” ( RIO, 1997, p. 327); espaços destinados à ‘ressocialização’, mas que, na realidade da crônica e do país, “Há confabulações de ódio, murmúrios de raiva, risos que cortam como navalhas” ( RIO, 1997, p. 327).
Já em “Crimes de Amor” destacamos que a divisão social que hierarquiza homens e mulheres ratifica as relações patriarcais vigentes no Brasil desde tempos coloniais. O narrador, que se aliança aos criminosos passionais, acusa a vítima de incitar o crime e respalda o criminoso beirando inocentá-lo, chamando-lhe de vítima “Pois vejamos as vítimas do amor!” ( RIO, 1997, p. 316). Um desajuste social indulgente que se perpetua, resultando na opressão, no abuso e no feminicídio vertiginosos em tempos atuais.
No último texto sobre o qual nos debruçamos, intitulado “A peste”, seguimos João do Rio que encaminha a narrativa tal e qual a doença: avançando dos subúrbios para os centros, dos mais expostos aos mais protegidos, fazendo rastro de destruição e morte. No entanto, a desproporção de vítimas e de sofrimento se repete no Brasil da COVID-19, pois, enquanto nas classes economicamente mais pobres não há proteção social e, consequentemente, não é possível o isolamento como medida sanitária, nas classes abastadas a ‘festa’ segue por mais tempo e o resguardo é mais garantido. Nesse sentido, o texto de João do Rio é ilustrativo: “Mas creatura, não tenhas medo. Andamos todo o dia pelas ruas, vamos aos theatros [ sic]. Qual varíola! Vê como toda gente ri e goza. Deixa de preocupações.” ( RIO, 1910, p. 196). Se a vacina é o mais democrático dos remédios, as políticas de saúde são desiguais e mais morosas para os que estão na base da pirâmide social.
Com o estudo em questão, verificamos o quanto a literatura de João do Rio, no ano do centenário de sua morte, permite ver o passado para refletir sobre o nosso tempo e sobre nossas relações em sociedade, na medida em que desnuda um país que cresce movido pela força e sacrifício de milhares de escravos e que perpetua essa perversidade segregando cidadãos e alijando seus direitos. É entre as tensões e contradições desse país, tão singulares da modernidade, que se faz viva a obra de João do Rio, uma escrita que, de forma admirável, associa ficção e realidade, permitindo olhar o Brasil à contrapelo das narrativas homogeneizadoras ou festivas das diferenças.
REFERÊNCIAS
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- BRIZOLA, Jaqueline Hasan. A Terrível Moléstia. Vacina, epidemia, instituições e sujeitos: a história da varíola em Porto Alegre no século XIX (1846-1874). 2014. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.
- CANDIDO, Antonio. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992.
- CANDIDO, Antonio. Atualidade de um romance inatual. In: RIO, João do. A correspondência de uma estação de cura 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Scipione/Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.
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- EDMUNDO, Luís. O Rio de Janeiro do Meu Tempo Rio de Janeiro: Editora Xenon, 1987. v. 1.
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» https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=4 - FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda, 1989.
- MAGALHÃES., Raimundo JR. A vida vertiginosa de João do Rio São Paulo: Civilização Brasileira, 1978.
- RESENDE, Beatriz. Lima Barreto e o Rio de Janeiro em Fragmentos Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Editora UNICAMP, 1993.
- RIO, João do. A alma encantadora das ruas São Paulo: Cia. das Letras, 1997.
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- RODRIGUES, João Carlos. A Flor e o Espinho. In: RIO, João do. Histórias da gente alegre: contos, crônicas e reportagens da belle-époque carioca. Seleção, introdução e notas de João Carlos Rodrigues. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1981. p. viii-xviii.
- RODRIGUES, João Carlos. João do Rio: uma biografia. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. 293p.
- SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro São Paulo: Cia das Letras, 2019.
- SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira. João do Rio: repórter da pobreza na cidade. Em Questão, v. 10. n. 1, p. 81-93, 2004.
- SÜSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
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Reflexões apresentadas por uma das autoras no mestrado em Literatura Brasileira, defendido na UFSC em 1998 e que resultou na dissertação intitulada João do Rio: a femme fatale dos palcos da Belle Époque.
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Beatriz Resende comenta que “para ‘ser alguém’ nesta república das letras era preciso mover-se (...) pelo teatro da cidade”, pois era desse ambiente que saía a matéria prima de sua produção ( RESENDE, 1993, p. l20).
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O filho da mulata Florência Cristóvão dos Santos Barreto, pelo visto, não se reconhecia como negro. Sendo filho de pai branco, é possível que o cronista se reconhecesse como um homem de “aparência branca” ( RODRIGUES, 1996, p. 144), definição dada pelo biógrafo João Carlos Rodrigues ao fazer referência a uma foto de João do Rio ainda criança.
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Referindo-se ao romance Flora Süssekind, em Tal Brasil, qual romance?, diz reconhecer dois tipos de naturalismo na literatura brasileira, desde o início do século XX: “Tanto há naturalismos capazes de romper com modelos estéticos e séries históricas, como outros de cunho conservador que ajudam a preservar uma ideologia estética onde se mesclam as ideias de identidade, univocidade e nacionalidade. Será possível pensar, portanto, em duas espécies de repetições naturalistas. As que operariam transformações cujo projeto básico estaria na restauração, na preservação. E outras, diferenciais, assimétricas, labirínticas, que, dialeticamente, ameaçariam a própria ideologia estética naturalista que lhes serve de base” ( SÜSSEKIND, 1984, p. 92-93). Estaria, então, João do Rio na ala naturalista “diferencial”, alinhando-se aos críticos da identidade sem fraturas e do nacionalismo simétrico. O Brasil do cronista é “crivado de raças, culturas e dominações”, fazendo de sua literatura “roupa arlequinal do brasileiro” ( SÜSSEKIND, 1984, p. 95).
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No Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), órgão do governo federal, consta um último relatório completo do perfil de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, datado de 2016, onde constam os seguintes dados: 26.450 crianças e adolescentes cumprem medidas socioeducativas, destas 18.996 são pretos ou pardos e 82,2 % do total com renda per capta familiar de até meio salário-mínimo. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/crianca-e-adolescente/dados-e-indicadores/sinase. Acessado em: 28/05/2022
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Neste sentido, é emblemático o quadro de Modesto Broccos intitulado a Redenção de Cam (Museu de Belas Artes, Rio de Janeiro, 1895), em que a tese do branqueamento é o mote da pintura. O quadro foi apresentado no I Congresso Internacional de Raças, em 1911, em Londres, pelo, então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, João Batista Lacerda, com a seguinte legenda: “O negro passando para branco, na terceira geração, pelo efeito do cruzamento de raças” - trata-se da chamada eugenia positiva. In: Schwarcz, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. 8 reim. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
Editado por
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editor-chefe: Rachel Esteves Lima
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editor executivo: Cássia Lopes Jorge Hernán Yerro
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Maio 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2023
Histórico
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Recebido
05 Ago 2022 -
Aceito
22 Nov 2022