De tempos em tempos, em meio a montanhas de trabalhos de alunos, entre reuniões que pululam não se sabe de onde, sob cascatas de e-mails carregados de demandas urgentes, entre uma orientação de estudante, o preenchimento de um formulário de avaliação e uma aula, dentro de uma situação de trabalho cada vez mais precarizada que é a dos professores universitários, algum herói da resistência consegue emergir em meio à torrente e organizar uma obra necessária, como é A Literatura Comparada no Brasil hoje, que Edgar Cézar Nolasco nos oferece.
Seu título anuncia o objetivo da obra, isto é, apresentar-se como um compêndio dos estudos comparatistas brasileiros na atualidade, uma espécie de estado da arte da Literatura Comparada praticada no Brasil neste início de século XXI. Aí reside a importância deste livro: por um lado, ele apresenta um retrato de momento em que podemos identificar as principais linhas de força do comparatismo brasileiro do presente; por outro, ele também se constitui como obra de referência e consulta, mapa perene em que ficará gravada a topografia das reflexões comparatistas deste momento.
Os olhares desse livro, portanto, são como os de Jano, deus romano representado por dois rostos, um voltado para o passado e o outro para o futuro, e detêm-se em cinco partes que congregam os textos segundo temas comuns. A primeira parte versa sobre Literatura Comparada e Críticas Contemporâneas e reúne reflexões sobre temas amplos e questões teóricas da disciplina, tendo por palavras-chave o descentramento e o deslocamento. Lemos, nos ensaios, tanto o emprego da literatura comparada como fundamentação para releituras de obras canônicas da literatura brasileira, como para redescoberta de textos latino-americanos. Principalmente vemos a Literatura Comparada como disciplina formativa, como aponta Reinaldo Martiniano Marques: “Conhecer o momento de emergência dessa disciplina e seu percurso histórico, bem como seu deslocamento por outros espaços, agregando-lhe novos objetos de investigação à luz de outros conceitos, constitui pois exigência fundamental para uma boa formação crítica e profissional” (MARQUES apud NOLASCO, 2022, p. 86).
O caráter formativo da Literatura Comparada decorre de sua permeabilidade a teorias e até mesmo a outras áreas do conhecimento, o que acaba por fornecer ao pesquisador uma vasta gama de possibilidades de discussão de seu objeto. Para Rita Terezinha Schmidt,
A literatura comparada, com foco na comparação e suas operações por via de analogias e diferenças, sempre colocou em relevo o seu impulso primeiro e a sua razão de ser, ou seja, seu comprometimento ético em direção ao outro - o outro texto, a outra literatura, a outra história, a outra cultura, a outra linguagem, o outro imaginário. (SCHMIDT apud NOLASCO, 2022, p. 125).
Impossível não observar que a citação acima lembra a relação dialética entre o “próprio” e o “alheio”, para empregarmos os termos de Tania Franco Carvalhal (2003), matriarca da Literatura Comparada brasileira. Por sua natureza, portanto, a Literatura Comparada é uma disciplina que “age indisciplinadamente vida afora” ( NOLASCO, 2022, p. 14), nos dizeres do organizador do livro, no texto de Apresentação. Em outras palavras, devido a sua essência eminentemente relacional, a Literatura Comparada é uma disciplina “indisciplinada”, isto é, ela não respeita fronteiras tradicionalmente estabelecidas que determinam objetos e métodos, por exemplo, o que se traduz por sua transversalidade, enfatizada por Eduardo F. Coutinho em outra obra, Literatura Comparada - Reflexões (2013). Seu campo de atuação está em constante expansão, como os ensaios evidenciam nas outras quatro partes do livro: Literatura Comparada e Crítica Biográfica, Literatura Comparada, Intermidialidade e Outras Artes, Literatura Comparada e Teorias Contemporâneas e Literatura Comparada e os Estudos Descoloniais.
Muito longe da compreensão binária e hierarquizante do comparatismo em suas origens francesas, a Literatura Comparada que se faz no Brasil atual rediscute, por exemplo, a distinção entre arte e vida, as fronteiras entre a literatura e outras artes e mídias, as relações entre literatura e questões sociopolíticas e, incontornavelmente, as faces que o pós-colonialismo adquiriu e adquire na literatura, implicando em relações identitárias desafiadoras. Esses temas são tratados à luz da disciplina pelos ensaios coligidos no volume e oferecem ao leitor amplo leque de referências. Pela pluralidade representada no livro, encontramos a ilustração da definição da Literatura Comparada hoje, uma disciplina particular porque sua identidade é móvel. Generosa, acolhedora, a Literatura Comparada abraça a muitos - objetos, corpus, temas, métodos, espaços, artes, tempos, saberes, linguagens, contextos. Sua força reside, pois, em sua identidade indefinida dentro de padrões essencialistas e, consequentemente, aberta ao Outro.
Têm voz também, nesse livro, o que é raro e se configura como mais um elemento que o faz necessário, três espaços que têm alimentado as reflexões comparatistas em nosso país, nas últimas décadas, desempenhando o papel de verdadeiros celeiros formadores de pesquisadores e incentivadores de pesquisas na área: a Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), o Núcleo de Estudos Culturais Comparados (NECC), situado na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, e o Grupo de Trabalho de Literatura Comparada da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL).
A ABRALIC, idealizada em 1985 e fundada no ano seguinte, está representada por texto assinado pelos componentes da gestão 2020-2021, presidida por Gerson Roberto Neumann. Trata-se de importante histórico das atividades desde a sua criação, passando por todos os já consagrados e esperados congressos, com registro das composições das diretorias e diretrizes que elas propuseram aos debates. A leitura nos fornece, gestão após gestão, um rico panorama das inquietações que perpassaram a história da Literatura Comparada no Brasil do final dos anos 1980 até o presente, evidenciando, ao mesmo tempo, como questões presentes em contextos outros chegaram ao Brasil e foram aclimatadas, e como preocupações locais, em alguns momentos, tomaram a frente e foram encaradas à luz de uma visão comparatista. Em suma, a importância da ABRALIC para os estudos comparados brasileiros pode ser resumida da seguinte forma:
Em um momento como o atual, de grandes desafios e de constantes ataques ao conhecimento, a existência de uma associação tão plural e resiliente quanto a ABRALIC nos parece um motivo de esperança para a área dos estudos literários como um todo. A ABRALIC funciona como um fórum de ideias, um elo de continuidade com o conhecimento construído, e uma plataforma para novos experimentos e problematizações. (GESTÃO DA ABRALIC 2020-2021 apud NOLASCO, 2022, p. 388-389).
Mais do que qualquer outra associação de pesquisadores, dentro dos estudos literários em geral a ABRALIC se constitui como um fórum, uma praça pública, para remetermos à etimologia da palavra, local de encontros e de discussões e, como toda praça pública, local em que se iniciam as caminhadas coletivas.
O mesmo vale para o Núcleo de Estudos Culturais Comparados, criado em 2009 pelo professor Edgar Cézar Nolasco, o grupo tem se caracterizado como espaço de fomento de reflexão crítica sobre teorias descoloniais, tendo a Literatura Comparada como eixo norteador. Além de contribuir para a formação de jovens pesquisadores, o NECC também edita um importante periódico, os Cadernos de Estudos Culturais, oferecendo aos interessados pela área mais um espaço de experimentação e disseminação de ideias. As atividades do Núcleo fazem dele “o lugar a partir de onde se erige uma teorização cuja prática de des-comparar descolonialmente parte do biolócus em que todos nos encontramos situados na fronteira-sul” ( NOLASCO, 2022, p. 589), nos dizeres de Nolasco. Vários ensaios que integram a parte destinada à Literatura Comparada e os Estudos Descoloniais foram elaborados à luz das ações do Núcleo, o que atesta o quão fecundas têm sido suas atividades.
Embora não seja representado por um capítulo, o Grupo de Trabalho de Literatura Comparada da ANPOLL também integra o volume, estando presente por meio de numerosas contribuições de seus membros, referenciados tanto na quarta capa, quanto na Apresentação do livro. Criado praticamente junto da ABRALIC, em 1986, e apenas dois anos depois de fundada a ANPOLL, o GT congrega pesquisadores filiados a programas de pós-graduação e pesquisadores convidados de todo o país e do exterior, interessados em refletir sobre temas comparatistas escolhidos coletivamente e debatidos em encontros anuais. Mais um lugar de encontros, de trocas, que permite a livre circulação do pensamento comparatista brasileiro, favorecendo o compartilhamento de teorias e percepções e que, como a ABRALIC e o NECC, é fundamental enquanto fórum, mais uma praça pública onde nos reunimos para discutir a Literatura Comparada.
Perpassa todo o volume por meio de epígrafes a cada seção, extraídas de Narrativas Impuras ( 2021), bem como com marcada atuação na ABRALIC e no GT de Literatura Comparada, e presente sob a forma de leituras de base no NECC, Eneida Maria de Souza, intelectual ímpar, plural, cujas obras compõem os fundamentos dos estudos literários brasileiros da atualidade e que muitos dos autores do livro tiveram a honra de ter como colega, mestra e amiga. Eneida partiu cedo demais e não por acaso a ela é dedicada esta Literatura Comparada no Brasil hoje, à “‘nossa’ Eneida”, a quem a Literatura Comparada muito deve, pelos pesquisadores por ela formados, pela divulgação de teorias e obras estrangeiras, pela reflexão crítica que adaptava ao contexto sociocultural brasileiro - quando era interessante - e questionava - quando não era interessante - essas mesmas teorias e obras estrangeiras. A Literatura Comparada corria nas veias de Eneida, irrigando seu pensamento vivo sobre a literatura e a crítica brasileiras. Sua presença na ABRALIC, no NECC e no GT de Literatura Comparada não poderia deixar de se refletir neste volume, pois não se pode pensar em estudos literários sem que se renda homenagem a Eneida Maria de Souza.
Uma obra necessária que reconhece a importância de uma intelectual mais do que necessária, indispensável, cuja história é indissociável da Literatura Comparada no Brasil hoje.
Referências
- CARVALHAL, Tania Franco. O próprio e o alheio Ensaios de Literatura Comparada. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003.
- COUTINHO, Eduardo F. Literatura Comparada Reflexões. São Paulo: Annablume, 2013.
- NOLASCO, Edgar Cézar (org.). A Literatura Comparada no Brasil hoje Campinas: Pontes, 2022.
- SOUZA, Eneida Maria de. Narrativas impuras Recife: CEPE, 2021.
Editado por
-
editor-chefe: Rachel Esteves Lima
-
editor executivo: Cássia Lopes Jorge Hernán Yerro
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Maio 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2023
Histórico
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Recebido
11 Nov 2022 -
Aceito
13 Jan 2023