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Uma Reinterpretação das Liberdades Negativa, Positiva e de Escolha

A REINTERPRETATION OF ISAIAH BERLIN´S CONCEPTS OF NEGATIVE AND POSITIVE LIBERTY AS WELL AS THE FREEDOM OF CHOICE

UNE NOUVELLE INTERPRÉTATION DES LIBERTÉS NÉGATIVES, POSITIVES ET DE CHOIX

UNA REINTERPRETACIÓN DE LAS LIBERTADES NEGATIVA, POSITIVA Y DE ELECCIÓN

RESUMO

Este artigo apresenta uma reinterpretação dos conceitos de liberdade negativa, positiva e de escolha presentes na obra de Isaiah Berlin. Para efetuar tal operação apresentam-se duas hipóteses. A primeira sustenta que os conceitos devem ser compreendidos e analisados a partir da ideia de pluralidade presente na sua obra, qual seja, de que na experiência ordinária dos sujeitos existem diversos fins razoáveis e distintos, os quais, em certas circunstâncias, são conflitivos. Tal perspectiva confere centralidade ao conceito de liberdade de escolha. É esta ideia que empresta inteligibilidade teórica aos conceitos, ou seja, eles são pensados e julgados em razão da liberdade de escolha. A segunda hipótese considera que os conceitos de liberdade negativa e liberdade positiva não são necessariamente antagônicos. Tal fato decorre da maneira pela qual a ideia de diversidade é recepcionada em ambos. A liberdade de escolha requer muros que protejam o sujeito de obstáculos arbitrários e lhe forneça suporte, também requer que o sujeito chame para si o ato de escolher entre os diversos fins, de maneira que ele se entenda como seu próprio mestre. Tal relação mantém a diferença entre os conceitos, mas os pensa de maneira não antagônica.

liberdade de escolha; liberdade negativa; liberdade positiva; pluralismo de valores

ABSTRACT

This article presents a reinterpretation of three concepts addressed in Isaiah Berlin´s body of work: Negative and Positive Liberty and Freedom of Choice. In order to do so, we present two hypotheses. The first maintains that these concepts must be understood and analyzed having in mind the idea of plurality present in his work, that is, the notion that in an individual´s ordinary experiences there are several reasonable and distinct ends, which, in certain circumstances, are conflicting. This perspective establishes the centrality of the concept of Freedom of Choice. It is this idea that lends theoretical intelligibility to concepts, in the sense that they are thought and judged on the basis of Freedom of Choice. The second hypothesis considers that the concepts of Negative and Positive Freedom are not necessarily antagonistic. This fact comes from the way in which the idea of diversity is received in both cases. Freedom of Choice requires walls that protect the individual from arbitrary obstacles as well as provide him support. In addition, this freedom also requires the individual to assume the act of choosing between the various ends, that is, that he comes to understand himself as his own master. This perspective maintains the difference between the concepts, but thinks them in a non-antagonistic way.

freedom of choice; negative freedom; positive freedom; pluralism of values

RÉSUMÉ

Cet article présente une nouvelle interprétation des concepts de liberté négative, positive et de choix présents dans l’œuvre d’Isaiah Berlin. Pour effectuer cette opération, deux hypothèses sont présentées. La premier soutient que les concepts doivent être compris et analysés à partir de l’idée de pluralité présente dans son travail, c’est-à-dire que dans l’expérience ordinaire des sujets, il y a plusieurs fins raisonnables et distinctes, qui, dans certaines circonstances, sont contradictoires. Cette perspective donne une place centrale au concept de liberté de choix. C’est cette idée qui confère une intelligibilité théorique aux concepts, c’est-à-dire qu’ils sont pensés et jugés en raison de la liberté de choix. La deuxième hypothèse considère que les concepts de liberté négative et de liberté positive ne sont pas nécessairement antagonistes. Ce fait découle de la façon dont l’idée de diversité est reçue dans les deux. La liberté de choix requiert des murs qui protègent le sujet contre les obstacles arbitraires et lui apportent un soutien, elle exige également que le sujet appelle lui-même l’acte de choisir entre les différentes fins, afin qu’il se comprenne comme son propre maître. Une telle relation maintient la différence entre les concepts, mais les pense de manière non antagoniste.

liberté de choix; liberté négative; liberté positive; pluralisme de valeurs

RESUMEN

Este artículo presenta una reinterpretación de los conceptos de libertad negativa, positiva y de elección presentes en la obra de Isaiah Berlin. Para tal efecto se presentan dos hipótesis. La primera sustenta que los conceptos deben ser comprendidos y analizados a partir de la idea de pluralidad presente en su obra, según la cual en la experiencia ordinaria de los sujetos existen diversos fines que son razonables y distintos y que, en ciertas circunstancias, son conflictivos. Tal perspectiva concede centralidad al concepto de libertad de elección. Es esta idea la que brinda una inteligibilidad teórica a los conceptos, lo cual quiere decir que estos son pensados y juzgados en razón de la libertad de elección. La segunda hipótesis considera que los conceptos de libertad negativa y libertad positiva no son necesariamente antagónicos. Tal hecho se da a partir de la idea de que la diversidad es recibida en ambos. La libertad de elección requiere muros que protejan al sujeto de obstáculos arbitrarios y le ofrezca soporte y también requiere que el sujeto asuma el acto de elegir entre los diversos fines, de manera que se entienda como su proprio maestro. Dicha relación mantiene la diferencia entre los conceptos, pero los piensa de manera no antagónica.

libertad de elección; libertad negativa; libertad positiva; pluralismo de valores

INTRODUÇÃO

Uma análise sobre o pensamento de Isaiah Berlin deve reconhecer um traço fundamental da sua obra: ele não foi um pensador sistemático que buscava estabelecer princípios axiomáticos fortemente ancorados, na experiência ou na consciência, a partir dos quais pudessem ser estabelecidos juízos morais (Lukes, 2018LUKES, Steven. (2018), “El liberalismo distintivo de Isaiah Berlin”. In: I. Berlin; S. Lukes (eds.), Lo singular y lo plural: conversaciones con Steve Lukes. Barcelona: Página Indómita.:20). Ele tampouco ofereceu uma teoria sistemática da liberdade e da igualdade, tema que tratou em seu mais famoso ensaio, “Dois conceitos de liberdade” (DCL). Berlin tratou de vários assuntos de maneira não sistemática, porém tal procedimento não é gratuito. Ao contrário, orienta-se por uma ideia bastante precisa: estabelecer princípios objetivos para analisar e classificar as ações humanas, para a partir deles prescrever leis da mesma maneira que nas Ciências Naturais, seria uma tarefa destinada ao fracasso (Berlin, 2002a, 2009c).

A hipótese deste artigo consiste no seguinte: a ideia original presente em DCL consiste no aspecto de que esses conceitos – liberdade positiva e liberdade negativa – são pensados a partir da ideia de liberdade de escolha: a escolha entre fins diversos, conflitivos e, em certas circunstâncias, incompatíveis. Essa qualidade confere à liberdade de escolha uma centralidade e um caráter trágico, pois se trata de uma escolha entre fins igualmente valiosos para o florescimento humano (Gray, 2000GRAY, John. (2000), Two faces of liberalism. London: Polity.; Crowder, 2004CROWDER, George. (2004), Isaiah Berlin: liberty and pluralism. Cambridge, UK: Polity., 2013CROWDER, George. (2013), “In defence of Berlin: a reply to James Tully”. In: B. Baum; R. Nichols (eds.), In Isaiah Berlin and the Politics of Freedom. New York: Routledge., 2018CROWDER, George. (2018), “Pluralism, relativism and liberalism”. In: J. Chermiss; S. B. Smith (eds.), The Cambridge Companion to Isaiah Berlin. Cambridge: Cambridge University Press.; Galston, 2018GALSTON, William. (2018), “Liberalism, nationalism, pluralism: the political thought”. In: J. Cherniss; S. B. Smith (eds.), The Cambridge Companion to Isaiah Berlin. Cambridge: Cambridge University Press.). As definições de liberdade negativa e de liberdade positiva já se encontravam formuladas nos ensaios anteriores a DCL, principalmente em “A ideia de liberdade” (IDL) e “Dois conceitos de liberdade: o romântico e o liberal” (DCLRL). O desdobramento dessa hipótese consiste na perspectiva de que é essa ideia – a liberdade de escolha – que se tornará o elemento central do conceito de liberdade, que é ela que empresta valor aos dois conceitos (liberdade positiva e liberdade negativa), de maneira que as qualidades destes são avaliadas a partir da sua relação com a liberdade de escolha. Na medida em que os dois conceitos, liberdade positiva (LP) e liberdade negativa (LN), são passíveis de receberem a ideia de liberdade de escolha como um aspecto da condição humana, eles não são pensados como necessariamente antagônicos. Para tanto, o artigo aponta que há uma articulação não conflituosa, e eventualmente complementar, entre as liberdades positiva e negativa e assinala a distorção que pode afetar ambos os conceitos.

A LIBERDADE NEGATIVA

O conceito de liberdade negativa começa a ser construído nos textos “A ideia de liberdade” (IDL) (Berlin, 2009b), “Dois conceitos de liberdade: o romântico e o liberal” (DCLRL) (Berlin, 2009a) e “Rousseau e cinco inimigos da liberdade” (RCIL) (Berlin, 2002f) e será desenvolvido principalmente em “Dois conceitos de liberdade” (DCL) (Berlin, 2002b), com um acréscimo substantivo na “Introdução” ao DCL (Berlin, 1984a), escrita onze anos após sua primeira publicação e retomada em seus últimos textos.

Durante largo período, os textos que antecederam DCL e os posteriores foram ignorados como uma fonte para entender as ideias de Berlin. Recentemente, no entanto, foram analisados com maior atenção, o que resultou em uma integração maior com o corpus teórico berliniano, ao mesmo tempo que forneceu uma compreensão mais profunda das ideias presentes em DCL1 1 . Parte desse silêncio deve-se ao fato de seus textos só terem sido reunidos nas décadas de 1980 e 1990. Durante a maior parte da sua trajetória acadêmica, Berlin foi visto como um autor que publicava pouco. A partir dos anos 1980, Henry Hardy dedicou-se a organizar e a publicar seus trabalhos dispersos em revistas ou inéditos. Foi a partir de então que se percebeu que Berlin havia na verdade publicado muito, mas de maneira fragmentada.

Em IDL, Berlin apresenta os elementos que comporão mais tarde os conceitos de liberdades negativa e positiva reunidos em uma única ideia: a liberdade consistiria na ausência de obstáculos para a realização de fins almejados pelo sujeito ou pelo grupo (Berlin, 2009:149).

Nessa ideia estariam presentes dois sentidos, um primário e outro secundário. O primário diz respeito à ausência de obstáculos que interceptem as ações do sujeito (Berlin, 2009a:150-151, 168). Essa obstrução pode ser o resultado de uma ação intencional ou não, mas sua ação tem o efeito de obstar a liberdade pessoal, a qual o sujeito considera que, com justiça, lhe pertence (Berlin, 2009a:151). Esse seria o sentido mais básico do conceito, entretanto ele não oferece todos os elementos relevantes. O sentido secundário remete à presença de um fim e da vontade de realizá-lo no mundo. Com a presença desses elementos o conceito fica completo. Dessa forma, Berlin reúne dois atributos no mesmo conceito de liberdade: a ausência de obstáculos e a presença de uma vontade de realizar um determinado fim. Porém ocorre que nesse conceito desenrola-se um movimento teórico e histórico que estabelecerá uma cisão (o conteúdo de tal cisão será retomado e aprofundado em textos posteriores).

A perspectiva que orienta essa cisão apresenta a seguinte ideia. O fim ao qual se dirige a ação do sujeito deve estar ancorado não no seu desejo, mas em algo externo a ele, a Razão, a Religião, a Ciência, a História. Caso o movimento inicial do sujeito não seja em direção a esse fim, isso se deve à sua ignorância das leis. Segue-se, logicamente, que impor esse fim não se constitui em uma violação da liberdade, mas uma ativação da razão latente no sujeito. Nesse movimento de imposição pouco importa o que os sujeitos digam querer, eles não sabem o que devem desejar. Dessa maneira, formas autoritárias de imposição são legitimadas e a subjetividade se divide entre um eu real, que é capaz de identificar o que de fato é um fim bom, e o eu empírico, que deseja fins tolos, irracionais etc. (Berlin, 2009a:184-185, 203).

Berlin assinala que a cisão teórica ocorre no sentido secundário da ideia de liberdade – a existência de um fim para a ação. Entretanto, essa divisão não era inevitável: é possível identificar no sentido secundário uma articulação interna que não produz esse conflito. Quando o desejo é impulsionado em direção a um fim por emoções agradáveis ao ser humano, tal fato confere a esse fim a qualidade de um bem. Dessa maneira não se estabelece uma separação entre o fim desejado e a ideia de bem. Como exemplo deste movimento, Berlin menciona o empirismo inglês de Hume e Bentham (Berlin, 2009a:181). Esse aspecto é extremamente importante, porque revela um enfoque que Berlin manterá ao longo de sua trajetória: a preservação dos desejos imediatos do sujeito, traço que o liga ao empirismo inglês, permitindo refletir sobre uma articulação que não corresponda a um embate mortal entre os dois conceitos de liberdade (positiva e negativa). Quando a LP reconhece que o sujeito pode desejar fins sem que estes sejam rechaçados em nome de entidades externas à sua vontade, pode-se refletir sobre um contato entre os dois conceitos.

A separação é representada no texto seguinte, que é o DCLRL. Nesse artigo, Berlin separa o conceito de liberdade em duas vertentes, a liberal, que reteria a ideia de ausência de obstáculos, e a romântica, que envolveria as ideias de criação e de realização de um fim (Berlin, 2009b:218). Nessa definição, o conceito liberal representa a presença da ideia de uma área protegida da invasão de outros, na qual o sujeito pode agir sem que outros sujeitos concordem com os fins almejados.

A liberdade (freedom), que é para Mill, como para todos os liberais do século XIX, o ideal político central [...], é ainda assim puramente negativa, quase mais uma condição necessária da boa vida que um seu ingrediente, no sentido de que apenas quando assegurada é aquelas atividades que fazem a vida valer a pena se desenvolvem, florescem e produzem seu mais belo fruto. A liberdade (freedom), a liberdade cujo preço é a “eterna vigilância”consiste em uma operação de defesa perpétua realizada a partir de baluartes (ramparts) que não seriam necessários se ela não estivesse em constante perigo. (Berlin, 2009b:222, tradução modificada)2 2 . “Freedom, which is for Mill, as for all liberals in the nineteenth century, the central political ideal – so sacred that death is certainly preferable to its total extinction or grave diminutions – is nevertheless purely negative, almost more of a necessary condition of the good life than an ingredient in the sense that only when it is made secure can those activities which alone make a life worth living develop and flourish and yield their finest fruit. The freedom the price which is ‘eternal vigilance’ is a perpetual defensive operation from ramparts which would not be needed if it were not in constant danger” (Berlin, 2006:202-203).

A LN funciona como uma muralha protetora que cerca o sujeito, protegendo-o de ações arbitrárias. É uma barreira cuja finalidade única, mas essencial, é a defesa do sujeito, a qual deve envolvê-lo como um muro em torno de uma cidade. Ainda que essa cidade deva se relacionar com seu exterior, ela necessita de uma barreira protetora que lhe forneça segurança para que atividades relevantes sejam preparadas dentro das suas muralhas. Não existe uma medida universal dessa área. Qual será a sua extensão depende de cada sociedade e das suas circunstâncias sociais, mas é imprescindível que essa cerca que rodeia o sujeito exista. O que fica em aberto é o seu alcance (Berlin, 2009b:267-268). A sua imperiosa necessidade decorre do fato de que sem essa área não somos humanos, pois o que define a nossa condição de humanos é a capacidade de escolher e para que ela exista é necessário, em primeiro lugar, uma área desobstruída (Berlin, 2009b:268).

A cisão mencionada anteriormente agora se torna uma separação de fato. A liberdade, longe de ser uma vontade que, livrando-se de obstruções externas, busca criar, passa a ser entendida como uma adequação a uma estrutura que se encontra fora do sujeito.

Se, em um primeiro momento Berlin separou os dois conceitos, em um segundo ele estabeleceu uma articulação positiva entre os dois. O sinal desse vínculo manifesta-se quando ele estabelece que o conceito de liberdade liberal requer para a sua efetividade plena a presença de fins, os quais são produzidos a partir do desejo do sujeito em ser seu senhor. Berlin designa a liberdade liberal como uma defesa, que não se constitui em um fim em si mesma. As liberdades civis existem para proteger o sujeito na sua busca de um fim, mas elas não são o próprio fim. A liberdade liberal entendida como uma área protegida é um meio, uma via indispensável, de maneira que ocorra a busca de fins relevantes para o sujeito. Quando Berlin discute a liberdade negativa dos liberais do século XIX, ele a chama de baluartes (ramparts) e afirma que essa operação defensiva não é um fim em si mesmo, mas visa proteger fins valiosos para o sujeito.

Os baluartes (ramparts), porém, não são um fim em si mesmos; a operação defensiva pressupõe que há algo a defender e esse algo não é a própria operação, mas as atividades e as experiências intrinsecamente valiosas da humanidade – amor e amizade, relações pessoais, justiça e variedade na vida pública, artes e ciências –, todas as quais são elementos que compõem uma vida que parece um fim em si mesma para aqueles que vivem, assim como a própria canção é o objetivo do cantor, diferentemente de elementos que são um meio para alguma outra coisa, mas como uma meta final, como a satisfação de impulsos e desejos básicos, como um elemento do ideal de felicidade ainda empírico, mas já não tão simples [...] em que J. S. Mill transformou o conceito bem claro, mas um tanto imaturo, de seu pai, Jeremy Bentham (Berlin, 2009b:222)3 3 . “But the ramparts are not an end in themselves; the defensive operation presupposes that there is something to defend, and that something is not the operation itself but the intrinsically valuable activities and experiences of mankind – love, life, the arts and sciences – all the elements which compose a life which appears as an end itself to those who live it, as the song itself is the purpose of the singer, not as a means to something further but as a final final goal, as the satisfaction of basic impulses and desires, as an element in that still empirical but no longer simple – (...) – ideal of happiness into which J.S. Mill developed the all too clear but somewhat jejune concept of his father Jeremy Bentham” (Berlin, 2006:202-203). .

Se esta área protegida não for fortemente construída os fins talvez não sejam alcançados. Tal ideia parece indicar que Berlin supunha uma relação de complementariedade, em que pese que surgissem tensões nesse processo.

Pode-se discutir o tamanho desta área, e a questão de saber se há algumas ocasiões, e em caso positivo quais, em que essa área pode ser invadida. O que continua constante é a noção de que, se parte dessa área não for delimitada na prática (e também na teoria) não podem ser alcançados aqueles fins que, como uma questão de observação comum, são de fato, têm sido e muito provavelmente serão sempre perseguidos pelos homens (Berlin, 2009b:267-268).

Dessa forma, Berlin mantém uma articulação positiva entre os dois conceitos, que são distintos, mas não necessariamente antagônicos, e que, eventualmente, podem ser complementares. A área protegida tem como um dos seus objetivos fornecer ao sujeito bases para que ele formule e busque alcançar os fins desejados.

Quando Berlin redige DCL, as ideias que configurarão o conceito de LN já haviam sido formuladas anteriormente: uma área desobstruída; a sua extensão é variável de acordo com a sociedade, mas não pode deixar de existir; os fins almejados podem ser irracionais, tolos etc., mas são escolhas que devem ser protegidas; e, por último, a obstrução pode ser intencional ou não, mas se ela afeta uma busca de fins legítimos ela constitui-se em uma violação (Berlin, 2002b:229).

Entretanto, nesse ensaio Berlin compreende a LN a partir de uma nova ideia. Anteriormente, ele havia assinalado a centralidade da liberdade de escolha como um atributo que nos definia como humanos e a LN como uma área desobstruída na qual os sujeitos sentem-se seguros para postular fins. Agora, a LN é pensada sob o prisma da liberdade de escolha entre fins diversos, incomensuráveis e em certos contextos incompatíveis (Berlin, 2002b:272; 2002c:50-51). Vou me deter na construção desse conceito na seção sobre a liberdade de escolha; antes disso, ele será comparado à ideia de liberdade individual em Stuart Mill.

Várias análises quando cotejaram o conceito de liberdade liberal formulado por Berlin com a ideia de liberdade de Stuart Mill não encontraram uma originalidade significativa no primeiro (cf. Merquior, 1991MERQUIOR, José G. (1991), “O liberalismo antigo e moderno”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.:25; Ostrensky, 2013OSTRENSKY, Eunice. (2013), “O liberalismo clássico”. In: L. Avritzer (org.), Dimensões políticas da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.:49). Berlin poderia ser considerado, no máximo, como um continuador da tradição liberal do século XIX, que teria atualizado o vocabulário e as ideias do liberalismo de Stuart Mill e Benjamin Constant para o contexto da Guerra Fria (Tully, 2014TULLY, James. (2014), “Two concepts of liberty in context”. In: B. Baum; R. Nichols (eds.), In Isaiah Berlin and the Politics of Freedom. New York: Routledge.:25). O argumento berliniano teria contribuído para a teoria liberal do século XX a partir da distinção entre LN e LP e da precedência valorativa da primeira. Tal entendimento se deve à separação realizada na LN em relação à ideia de liberdade de escolha entre fins diversos, incomensuráveis e conflitantes.

Stuart Mill, em Sobre a liberdade (SL) (2017), define a liberdade da seguinte forma: o sujeito deve possuir uma área na qual ele possa desenvolver um modo de vida sem sofrer uma interferência pública, exceto em casos nos quais ele produza danos a outros. A interferência pública não possui legitimidade para compelir os sujeitos a fazerem ou deixarem de fazer algo por motivos estranhos à vontade dos sujeitos, a despeito de esses motivos serem nobres, racionais etc. Essa área é intocável, de tal maneira que, na parte que se refere ao próprio sujeito, corpo e espírito, sua proteção deve ser absoluta (Mill, 2017MILL, John Stuart. (2017), Sobre a liberdade. São Paulo: Penguin.:83-85). Essa área pode entrar em contato com outros sujeitos sem que não haja nenhuma forma de interferência pública. Isso ocorre quando os demais sujeitos consentem voluntariamente em receber uma influência, sobre a qual não cabe nenhuma regulação coletiva, pois tal influência foi aceita de maneira consentida (Mill, 2017MILL, John Stuart. (2017), Sobre a liberdade. São Paulo: Penguin.:85).

A diferença entre Mill e Berlin apresenta-se quando analisamos mais detidamente qual é a justificativa ética para uma área desobstruída de Mill e a comparamos com a de Berlin.

Segundo Mill, o debate organizado a partir da vocalização de diversas opiniões tem como finalidade propiciar aos sujeitos avaliar, conhecer e escolher um modo de vida desejado. Na medida em que, na sociedade, os sujeitos dispõem de uma área desobstruída e nela se desenvolvem modos de vida sem freios (exceto aqueles que incitam atos nocivos), florescem diversos modos de vida, fato que oferece aos sujeitos um cardápio de escolhas mais amplo e mais complexo do que em uma sociedade em que tal área é inexistente (Mill, 2017:140-141). O livre desenvolvimento da individualidade a partir de uma área protegida inevitavelmente afasta a uniformidade presente em todas as sociedades humanas, fornecendo à vida social uma diversidade maior de valores elevados (Mill, 1991MILL, John Stuart. (1991), Considerações sobre o governo representativo. Brasília: UnB.:104). Em todas as sociedades, há sujeitos que buscam a verdade para além das verdades aceitas pela maioria.

Entretanto, esse grupo, em qualquer sociedade, é sempre diminuto. A existência de uma área desobstruída para a expressão da individualidade lhes permite segurança na sua busca. Por sua vez, a originalidade gerada por esses sujeitos não ordinários, nessa área desobstruída, traz benefícios para toda a sociedade, pois as verdades descobertas servem como exemplo aos sujeitos mais afeitos às verdades estabelecidas. Tal ideia, assinala Mill, revela, para aqueles que normalmente não aspiram ao caminho da originalidade, a utilidade dessa área (Mill, 2017: 151-153). A presença desses sujeitos amplia o cardápio de modos de vida existentes em uma sociedade e força os indivíduos a justificarem suas escolhas em bases diferentes das habituais. Ocorre uma elevação do debate existente em uma sociedade, manifestando de novo uma utilidade para a sociedade como um todo.

A presença da diversidade de opiniões políticas, em um parlamento, e de modos de vida, em uma sociedade, oferece uma variedade que, caso a maioria prevalecesse sem restrições, não estaria presente. Em todas as sociedades são as minorias que buscam originalidade e verdades novas, e a sua presença é útil às sociedades e ao parlamento, porque eleva o nível do debate político e dispõe uma complexidade mais rica de modos de vida. Na medida em que a natureza humana é complexa e diversa não existe um único modo de vida, ou uma ideologia política, que abarque essa diversidade. Dessa maneira, é preciso oferecer espaço desobstruído para o florescimento humano, o qual é complexo e mutável (Gray, 1998GRAY, John. (1998), “Introduction”. In: J. S. Mill (ed.), On liberty and other essays. Oxford: Oxford University Press.:XIV). Essa proteção à liberdade individual produz um ambiente favorável à originalidade, à busca de verdades e a práticas novas que contribuem para o progresso social, processo que combate a uniformidade e as verdades estabelecidas.

Quando Berlin se debruça sobre a obra de Mill, ele enxerga nesta um elemento importante: a ideia de bem é por demais complexa e diversa para ser encapsulada por uma única forma de vida. A liberdade individual representaria o espaço que essa diversidade de concepções de bem possuiria para se manifestar (Berlin, 1984b:180-181). Porém, sob a ótica berliniana, os fundamentos e as consequências da liberdade negativa são distintos. Em primeiro lugar, o próprio fundamento ético dessa área é um fim entre outros fins igualmente razoáveis para o florescimento humano. Segundo, os valores que fundamentam essa área entram em conflito com outros fins igualmente razoáveis para o florescimento humano. Em DCL, Berlin assinala claramente que a liberdade individual não é a única finalidade razoável para a vida humana e aqueles que a tomam como um fim “sagrado” perdem de vista a complexidade de fins aceitáveis (Berlin, 2002b:232). Em “A busca do ideal” (Berlin, 2002c:55), Berlin reafirma essa ideia e acrescenta que, quando esses fins colidem, a liberdade individual não deve funcionar como uma única resposta aceitável, sendo necessário que se realizem trocas compensatórias. Quando Mill e outros liberais estabelecem a utilidade e a liberdade individual como a medida da liberdade, eles terminam negando a relevância de outros fins, qualidade que para os pluralistas é fundamental. Nesse sentido, existem correntes liberais que não são pluralistas – figurando a de Mill entre elas (Berlin e Williams, 1994Berlin, Isaiah; WILLIAMS, Bernard. (1994), “Pluralism and liberalism: a reply”. Political Studies, v. XLI, n. 2, pp. 306-9.:308). A formulação dessas trocas advém do entendimento de que não há uma única solução frente aos dilemas morais, mas que existem várias aceitáveis4 4 . “A liberdade (negativa) deve ser contida em função de exigências – a necessidade elementar – de segurança, felicidade, justiça, ordem, solidariedade, paz. Certas formas de liberdade devem ser contidas para permitir que as outras finalidades essenciais da vida tomem seu lugar” (Berlin e Jahanbegloo, 1996:187). . Quando os sujeitos compreendem que a desigualdade social afeta os padrões de coesão social e de fraternidade entre os demais sujeitos, é razoável que a justiça social limite a liberdade individual.

A justificativa da defesa da LN residia na sua capacidade de “reconhecer que as metas humanas são muitas e em perpétua rivalidade” (Berlin, 2002b:p. 272). O valor que Berlin anseia por resguardar consiste na liberdade de escolha entre fins diversos e conflituosos. É devido ao fato de que os sujeitos se encontram em um mundo de “escolhas entre fins igualmente supremos” que “os homens atribuem valor tão imenso à liberdade de escolha” (Berlin, 2002b:269). Portanto, a originalidade e o sentido que orientam a sua interpretação da liberdade negativa provêm de outra ideia: a pluralidade de fins e os conflitos dela decorrentes (Gray, 2000GRAY, John. (2000), Two faces of liberalism. London: Polity.; Crowder, 2010CROWDER, George. (2010), “Isaiah Berlin, pluralismo y liberalismo”. In: J. G. Ramírez (org.), Isaiah Berlin: utopia y pluralismo. Medellín: Letra x Letra.; 2018). Em uma situação de conflito entre fins diversos, a LN deve ser preservada em razão da sua maior adequação aos valores associados à ideia de pluralidade de fins, aspecto que a distorção da liberdade positiva negou. Dessa maneira, para que a liberdade de escolha possa ocorrer é importante a existência de uma esfera desobstruída, mas não apenas isso.

Portanto, pode-se afirmar que Berlin não compartilha do otimismo de Mill e de Constant a respeito da fundamentação de uma área desobstruída. As concepções de bem são não apenas diversas, como acertadamente Mill sustentou, mas elas são igualmente incomensuráveis (ou seja, são fins em si mesmos) e conflitivas. Isso implica que em certas circunstâncias seja impossível estabelecer um acordo entre elas, pois ainda que a existência de uma área desobstruída seja fundamental para o exercício da liberdade humana e que dessa esfera emerjam valores e fins conflitantes, não se depreende disso, porém, um acordo regulado pela ideia de utilidade. Na verdade, é porque vivemos em um mundo em que os fins se chocam que precisamos de uma área livre de interferências arbitrárias, mas não porque dessa área emerja uma utilidade. Também não se justifica esta área em razão de que possam emergir a diversidade e a originalidade, da maneira como pretendeu Mill. Ao contrário, Berlin menciona frequentemente que na LN o sujeito possui o direito de praticar atos tolos, irracionais, que somente possuem sentido para ele, sem nenhuma relevância para o aperfeiçoamento do gênero humano. A LN é fundamental porque permite, em certas circunstâncias, o exercício da liberdade de escolha entre fins conflitantes, entretanto, ela não constitui um fundamento a partir do qual se pode estabelecer uma média entre os fins, como é o critério da utilidade em Mill.

O argumento berliniano sugere que a LN não seria um espaço no qual o sujeito entende a liberdade como uma área censurada por noções como Razão ou Bem-estar coletivo, mas um espaço no qual os sujeitos dão vazão à liberdade de escolha sem atentar para outros fins que não sejam aqueles que lhes dizem respeito (Dimova-Cookson, 2013Dimova-Cookson, Maria. (2013), “Defending Isaiah Berlin’s distinctions between positive and negative freedoms”. In: B. Baum; R. Nichols (eds.), Isaiah Berlin and the politics of freedom: Berlin’s “Two Concepts of Liberty” 50 years later. New York: Routledge.:77, 83). Essa característica entrará em choque com outro aspecto advogado por Berlin para o exercício da liberdade de escolha: a necessidade de que as escolhas sejam passíveis de justificação em termos razoáveis e da possibilidade de uma hierarquia com base no contexto, aspecto que será discutido abaixo e no item sobre a liberdade de escolha.

Caso fosse seguida de maneira ortodoxa a ideia acima, a injustiça social seria plenamente justificada a partir da LN: os sujeitos agem em defesa dos seus interesses próprios sem atentar para o fato de que outros sujeitos se encontram em situações sociais extremamente desfavoráveis. Tal escolha corresponderia ao seu exercício da liberdade de escolha sem que este tenha que ser justificado em favor de um bem superior (Berlin, 1984a:29; 2002b:232). Nesse sentido, como existem fins diversos e antagônicos, não é possível estabelecer um padrão fixo. Porém, o tema relativo à desigualdade social será repensado na “Introdução” (Berlin, 1984a), em uma abordagem que refaz de maneira significativa alguns elementos presentes no DCL.

A definição de LN recebe um novo enfoque quando Berlin enfrenta o problema das críticas que recebeu. Uma parte dessas críticas indicava que a maneira pela qual era apresentado o conflito entre a liberdade individual e a justiça social terminava compondo um quadro no qual essas duas estavam em permanente conflito. Como resultado, a escolha pela LN como a única esfera na qual a liberdade estivesse protegida produzia um resultado social catastrófico em termos de justiça social. Aqueles que estivessem em uma posição social desfavorecida somente poderiam contar com a caridade alheia ou com alguma tirania disposta a impor medidas destinadas a corrigir as desigualdades às custas da liberdade negativa5 5 . Essa é uma crítica recorrente e com enfoques distintos (cf. Macpherson, 1973; Dworkin, 2001; e Miguel, 2015). . Em 1969, para responder a essas críticas, Berlin retoma os conceitos e apresenta novas dimensões teóricas.

Em primeiro lugar, Berlin abordava uma questão que não havia sido discutida nos seus trabalhos anteriores: o liberalismo laissez-faire. Segundo Berlin, há uma modalidade de liberalismo que compreende que a liberdade requer como princípio sagrado a não intervenção pública na esfera desobstruída que pertence ao sujeito (“a liberdade como não interferência”) (Berlin, 1984a:25). Isso implica estabelecer que a liberdade para prosperar na sociedade requer a ausência de qualquer forma de direitos sociais, de tal maneira que a “economia de mercado” deveria ser deixada livre para funcionar. O resultado desse “darwinismo social” foi a erosão de ambas as manifestações, isto é, da liberdade positiva e da negativa. Os muros que as liberdades civis deveriam fornecer aos sujeitos foram derrubados por aqueles que possuíam mais recursos materiais, resultando em opressão para os grupos “materialmente desfavorecidos”. As dimensões ligadas à liberdade positiva, como a “livre expressão” e o “direito de associação”, também foram duramente afetados por esse modelo (Berlin, 1984a:25). A consequência desse modelo de sociedade foi gerar “muralhas sociais” em torno de grupos que se encontram impedidos de alcançar certos bens que são importantes para o seu desenvolvimento. A natureza de tais bloqueios é idêntica a daqueles erguidos por estados (Berlin, 1984a:27).

É significativo esse momento da “Introdução”, porque ele revela a articulação entre os dois conceitos, o que retoma a minha ideia de que existe um vínculo funcional entre eles. A proteção que a LN oferece aos sujeitos por meio dos direitos civis permite que façam uso de direitos pertencentes à esfera da liberdade positiva, como os direitos à associação e à participação política. Retoma-se a relação instrumental entre os dois conceitos presente em IDL: a existência de uma área desobstruída para o sujeito não produz os fins que orientam a sua ação, ela não é um fim em si mesma. Ela é fundamental para a proteção do sujeito; dispondo dessa área o sujeito pode estabelecer quais fins guiarão a sua ação. Exprimir livremente uma opinião, encontrar outros sujeitos que compartilhem dela e a partir disso se organizar são dimensões relevantes do exercício da liberdade que se encontram articuladas com os muros que protegem uma área desobstruída.

Em segundo lugar, Berlin desenvolve o que havia apresentado sobretudo no texto “O um e o múltiplo”: a liberdade de escolha entre fins diversos e conflitantes. Em DCL, Berlin sustentou que o que define a condição humana é encontrarmo-nos perante fins diversos, em certas circunstâncias incompatíveis entre si; dessa maneira, a concretização de alguns fins implica fatalmente a exclusão de outros (Berlin, 2002b:269). Na medida em que diversos fins são razoáveis e conflitantes e cada um é um fim em si mesmo, não é possível estabelecer uma única medida que os unifique, suprima as diferenças e harmonize-as. Supor que seja possível harmonizar os fins representaria uma falsificação do conhecimento que possuímos sobre a experiência humana e suprimiria o papel da liberdade de escolha como escolha trágica (Berlin, 1969Berlin, Isaiah. (1969), “Political ideas in the XX century”. In: Four Essays on Liberty. London: Oxford University.:28; 2002b:272). O que definiria o monismo seria exatamente a pretensão de encontrar um fim que sintetize e compatibilize as diferenças suprimindo os conflitos entre esses fins e tornando a liberdade de escolha um ato desnecessário (Berlin, 2002a, p. 268).

Compreender essa ideia é fundamental para entender sua análise do liberalismo que nega o valor da intervenção pública. Segundo Berlin, os defensores de uma economia de mercado sem restrições entendem que os valores presentes em tal esfera devem ser os únicos a reger as esferas sociais, encapsulando a diversidade de fins existentes em uma sociedade em uma única medida.

Quando Berlin explicita a concepção do darwinismo social de mercado, ele estabelece uma ideia que não lhe havia ocorrido, qual seja, que cada conceito – LN ou LP – pode gerar uma distorção. O mecanismo que engendra tal torção consiste no monismo, ou seja, na pretensão de estabelecer uma medida que harmonize o conflito entre os fins6 6 . No texto “Ideias políticas no século XX”, Berlin já estabelecera que certas correntes do liberalismo compartilhavam da perspectiva de que seria possível encontrar em uma única ideia a solução para os dilemas políticos. Essa abordagem rendeu-lhes várias críticas de autores liberais. Mais adiante esse texto será analisado. . Conforme conclui Berlin: “Cada conceito aparentemente está sujeito a transformar-se no próprio vício contra o qual cada um deles foi criado para resistir” (Berlin, 1969:26). Isso significa dizer que o liberalismo também pode, a partir de uma dada compreensão da noção de liberdade individual, distorcer a liberdade, destruindo-a. Isso também significa que existem fins relevantes que não são proporcionados pelos valores presentes na LN, tais como ordem e justiça social, dentre outros. Tal perspectiva somente pode ser compreendida quando pensamos o tema da diversidade de fins.

Tomando tal perspectiva como base, Berlin pode se deter no tema da intervenção pública, criticar aqueles que defendem a liberdade como “não interferência” e distinguir entre a liberdade e as condições para o seu exercício (Berlin, 1984a:25). Na discussão aqui proposta, Berlin assinala que a LN requer para o seu exercício pleno não apenas a “não intervenção”, mas uma intervenção moralmente aceitável. Veja-se o trecho no qual ele aponta a complementariedade entre uma intervenção desejável e a LN:

Os apelos em favor do planejamento, do Estado de Bem-Estar social e do socialismo podem ser construídos, com a mesma validade, a partir da consideração pelas demandas em favor da liberdade negativa, como o são da sua irmã, a liberdade positiva (Berlin, 1984a:26).

De acordo com Berlin, a intervenção pública na forma de legislação social é plenamente compatível com a liberdade negativa. A proteção de uma área desobstruída requer condições que permitam ao sujeito usufruí-la; sem essas condições, tal área é precária ou sem valor (Berlin, 1984a:23). Sendo assim, estabelecer que a defesa da LN pressupõe uma equação na qual quanto mais intervenção menos liberdade não é inteiramente correta. O que o conceito de LN rechaça é a obstrução arbitrária, aquela que sem fundamentos morais legítimos fere a esfera individual7 7 . Berlin não foi um autor marcado pela precisão terminológica. No seu argumento há uma distinção teórica entre obstáculo e intervenção. Nos ensaios “A ideia de liberdade” (1955) e “Dois conceitos de liberdade: o romântico e o liberal”, Berlin apresenta a ideia de liberdade como uma ação que se desenrola sem a presença de um obstáculo (rampart) (Berlin, 2009a:149; 2009b:218). Caso este seja interposto, a concepção liberal pressupõe que a lei seja um instrumento para impedir o abuso (Berlin, 2009b:217). Dessa maneira, nem toda intervenção é uma obstrução; a lei intervém para coibir ou punir uma obstrução ilegal. Logo, há uma distinção entre uma obstrução frente a um fim moralmente aceitável e uma intervenção legalmente prevista de maneira a impedir que essa obstrução se manifeste ou a puni-la caso ocorra. Quando ele aborda o tema da legislação social, é retomada a ideia de que é possível que ocorra uma intervenção que não afete a LN. No caso, há uma nova dimensão, a intervenção não apenas protege o sujeito, mas também dispõe certos bens, no caso bens sociais, como educação e seguridade social. A legislação social oferece bases que protegem o sujeito. Na “Introdução”, ele apontou que a ausência de condições sociais mínimas impede qualquer grau de LN (Berlin, 1984:25). Sobre esse aspecto veja-se Coser (2019:190-196). . Porém, a LN requer uma intervenção que assegure seu usufruto, sob a forma de proteção via direitos civis ou por meio de direitos sociais8 8 . A teoria neorrepublicana trouxe uma abordagem e temas relevantes para o debate contemporâneo. Entretanto, a sua crítica ao argumento pluralista não se sustenta; classificar sua teoria da liberdade como não interferência representa um desconhecimento da sua ideia central da liberdade negativa e dos seus desdobramentos. Uma parte da justificativa do seu empreendimento teórico esteve na sua crítica à liberdade como não interferência – Pettit e Skinner estabeleceram Berlin como seu porta-voz. A partir de então todo texto neorrepublicano reproduz suas críticas sem se dar ao trabalho de uma pesquisa mais consistente sobre o pluralismo. Considerar Berlin como um defensor da liberdade como não interferência ignora a crítica que este fez ao liberalismo laissez-faire e silencia sobre a ideia-chave da sua teoria. Uma confrontação entre o pensamento neorrepublicano e Berlin pode ser encontrado em Coser (2014; 2019); já a crítica neorrepublicana pode ser lida em Pettit (2010, cap. 1) e em Silva (2015). .

Aprofundando essa discussão, Berlin mostra que a LN, entendida como uma área desobstruída, não desempenha o papel de uma medida absoluta que devesse reger toda a sociedade sem considerar o contexto no qual está inserida. Para tanto, Berlin toma como exemplo a educação. A educação constitui um poderoso mecanismo de igualdade social. Uma educação que reflita as desigualdades sociais, permitindo dessa forma que aqueles que possuem mais recursos materiais tenham uma educação melhor, propicia a criação de uma classe de privilegiados. Tal fato afeta negativamente a solidariedade social, permitindo que a posição social não seja preenchida pela capacidade de cada um, mas pela posse prévia de recursos. Juntamente com esses efeitos perversos, Berlin menciona que tal desigualdade impede que seja oferecida ao maior número de crianças as oportunidades de livre escolha (Berlin, 1984a:30). Se o objetivo da educação é propiciar ao maior número de crianças a livre escolha, deve-se adotar “um sistema uniforme de ensino geral primário e secundário”, cujo objetivo seja, além de estimular as capacidades de cada um igualmente, permitir que as posições sociais sejam preenchidas pela capacidade de cada um, impedindo a formação de uma oligarquia e, principalmente, propiciando liberdade de escolha.

Esse sistema de ensino uniforme implicaria uma redução da área da liberdade negativa dos pais. Esse fato provocaria uma colisão entre valores razoáveis, a proteção a uma área individual e a promoção de maior igualdade social. Berlin não nega esse choque e oferece um valor que permite ao legislador fundamentar moralmente uma decisão: propiciar a liberdade de escolha (Berlin, 1984a:31). Berlin recusa tomar a liberdade individual como uma medida absoluta que deveria conduzir a leis e submete-a às circunstâncias e, principalmente, a este ponto central: como assegurar que seja exercida a liberdade de escolha entre fins diversos e conflitantes, como propiciar tal ação, e como garantir que ela não seja apenas um direito formal, mas real.

Esse tema permite a análise de toda a posição de Berlin acerca dos direitos sociais e do tema da intervenção. Na “Introdução”, Berlin assinala que sem direitos sociais e sem direitos civis a liberdade de escolha é um dado formal, mas não concreto (Berlin, 1984a:31). Entretanto, as condições que asseguram a liberdade de escolha não se confundem com esta. Os direitos sociais e os direitos civis são meios, vias por meio das quais os sujeitos caminham em direção a algum fim, mas não se constituem no próprio fim, nem tampouco o substituem. Na “Introdução”, o valor que desempenha um papel central no seu argumento continua sendo a liberdade de escolha entre fins diversos e conflitantes. Nessa situação, as escolhas ocorrem entre fins razoáveis, aspecto que lhe empresta um caráter trágico.

O PL reflete acerca da LN a partir da ideia de liberdade de escolha entre fins diversos e em luta. Os valores associados a essa liberdade – indivíduo, esfera desobstruída – são passíveis de serem pensados em um mundo politeísta, em que outros valores e fins, como justiça social, participação pública etc., são entendidos como razoáveis. Na sua derradeira formulação, Berlin retoma a ideia mencionada em DCL de que deve ocorrer um “compromisso prático” entre liberdade individual e justiça social (Berlin, 2002b:232; Coser, 2019COSER, Ivo. (2019), “Lei, liberdade e diversidade de fins no pluralismo de valores”. Lua Nova, n. 107, pp. 169-202.). Os embates entre os fins não são negados, mas ponderados a partir de uma razão prática mediada pelas circunstâncias, sem que nessa razão esteja inscrito um valor absoluto ou uma medida consensual que os harmonize. A partir do contexto e dos fins envolvidos a razão prática estabelece uma hierarquia transitória, um “equilíbrio inquieto” (Berlin e Williams, 1994Berlin, Isaiah; WILLIAMS, Bernard. (1994), “Pluralism and liberalism: a reply”. Political Studies, v. XLI, n. 2, pp. 306-9.: 307-308; Berlin, 2002c:57). Em um mundo politeísta, Berlin convoca a LN a ser pensada a partir de trocas compensatórias, ao invés de ser um valor absoluto. Nem a utilidade (Mill) nem o mercado (libertarismo) são capazes de equalizar os diversos fins.

A LIBERDADE POSITIVA

Em grande parte da obra de Berlin o conceito de LP foi abordado a partir dos efeitos da sua distorção. Isso gerou a falsa impressão de que seu conteúdo seria por princípio negativo. Tal ideia obrigou Berlin a enfatizar que os valores presentes na definição formal de LP são tão valiosos como aqueles presentes na LN e que formalmente não há conflito entre as duas (Berlin, 1984a:26; 2002b:237). Ao final de sua vida, ele reconheceu que deveria ter deixado mais claro o papel que a LP deveria desempenhar (Berlin e Lukes, 2018Berlin, Isaiah; Lukes, Steve. (2018), Lo singular y lo plural: conversaciones con Steve Lukes. Barcelona: Página Indómita.:135).

Apesar dessa lacuna, é possível compor a partir de uma interpretação da obra de Berlin o conceito de liberdade positiva tanto na sua formulação não distorcida como quando ele é traído. Para tanto deve-se resgatar ideias presentes em vários ensaios, mas principalmente aqueles dedicados ao pensamento romântico.

Berlin considera que o movimento romântico carrega dentro de si dois postulados em embate. O ato de criação deve ser entendido como um ato que, para ser plenamente livre, deve ser livre de amarras, sejam elas as tradições, sejam elas as noções éticas. Na medida em que o sujeito põe em movimento sua vontade, ele põe-no porque essa é a sua vontade (Berlin, 2009b:234-235). O segundo postulado pretende que liberdade deve ser entendida como a adesão do sujeito a uma estrutura externa, a qual estabelece a cada membro uma tarefa, com um conteúdo que passa a ser entendido como a imposição de uma vontade que transcende os sujeitos e que, ao se impor, torna-os livres (Berlin, 2009b:252-254, 263). Nesse momento, a liberdade, longe de ser um ato que busca realizar seus fins sem sofrer obstruções, passa a ser um movimento que busca coagir os sujeitos a serem livres de acordo com uma ordem externa às suas vontades.

Nas primeiras formulações de Berlin acerca da LP já se faz presente a ideia, que permanecerá como central, de que o sujeito chama para si a atribuição de estabelecer seus fins. Nessa ideia manifestam-se duas perspectivas: na primeira, o sujeito escolhe dentre os fins existentes em uma sociedade, enquanto, na segunda, desenrola-se uma ação criadora (Berlin, 2009a). Esse é o conceito de liberdade positiva que corresponde ao seu sentido normativo – e, quando o designo como normativo, desejo apontar um conteúdo que orienta o julgamento a partir do qual se avalia a sua distorção.

Conjuntamente a esses dois sentidos, Berlin apresenta uma dimensão filosófica do conceito de liberdade. Essa dimensão é construída a partir da interpretação de Rousseau e Kant. Berlin enxerga em Rousseau um atributo fundamental da liberdade positiva. Somos livres quando escolhemos – é esse ato que representa o reconhecimento de que sou meu senhor, de que sou capaz de julgar o que desejo e buscar esse fim. Na medida em que o sujeito empresta valor aos fins, isso aponta que ele foi capaz de hierarquizar os diversos fins e estabelecer o que mais deseja.

Uma ação que possui essas características nos define em primeiro lugar como seres humanos, pois, quando escolhemos, evidenciamos que não somos objetos inanimados. Em segundo lugar, a partir da liberdade de escolha somos seres éticos com direitos e deveres (Berlin, 2002a:170-171, 175). As noções de justo, injusto, verdade, mentira, bom e mau somente existem na medida em que o ser humano é visto como sendo capaz de escolher entre as alternativas. Em Rousseau, Berlin recorta uma ideia que será chave em toda a sua trajetória: é a noção de responsabilidade moral que define o ser humano (Berlin, 2002d:54; 2009a:171).

O segundo atributo da liberdade positiva provém de Kant. O mundo exterior ao sujeito, a história, a sociedade ou a natureza não determinam o que o sujeito deve escolher; sem dúvida que o condicionam, mas não devem determinar suas escolhas. O valor que o sujeito empresta aos fins escolhidos não provém de forças exteriores a ele, mas do próprio sujeito, que é uma entidade autônoma que escolhe livremente obedecer ou desobedecer à voz da sua razão (Berlin, 2009a:207). A ética e a política, para Kant, não ensinam ao homem o que fazer para ser feliz, mas o que é preciso fazer para ser digno da felicidade; elas dizem ao homem o que fazer em qualquer situação que implique escolha. O homem revela a sua boa vontade em seguir o caminho do bem quando confrontado com a escolha entre o vício, a mentira e a verdade. Sem a escolha, acreditava Kant, poderíamos fazer o bem como desejava Lutero obedecendo cegamente à fé. Mas o ato que nos torna dignos da liberdade ocorre quando dispomos da escolha (Berlin, 2009a:213).

O terceiro atributo da liberdade positiva advém da interpretação que Berlin realiza dos românticos. Por um lado, os românticos recebem a ideia kantiana de que o sujeito é seu senhor quando escolhe livremente entre os fins existentes. Entretanto, eles ampliam-na consideravelmente. A partir desse ponto, os românticos concebem que ser livre é fazer leis para si próprio; não existe uma autoridade externa ao sujeito que possua legitimidade para se apresentar como a fonte dessas leis, não importando se essa autoridade é a história, a sociedade, a religião ou qualquer outra: a validade de um princípio reside no fato de que ele seja ordenado pelo sujeito (Berlin, 1999:249). Como desdobramento dessa ideia, os românticos sustentam que a verdade não é uma estrutura objetiva, que existe independentemente daqueles que a procuram, um “tesouro escondido à espera de ser descoberto”, mas é ela própria criada pelo sujeito que a procura (Berlin, 2005c:281). Nessa ideia de criação está presente a perspectiva de que o sujeito reafirma a sua capacidade em ser o seu próprio mestre.

Em DCL, Berlin define a liberdade positiva como “a liberdade em ser o seu próprio senhor”; nesse ato o sujeito busca ser responsável pelos seus atos e ser capaz de justificá-los a partir de seus valores (Berlin, 2002b:237). É uma dimensão essencial do exercício da liberdade a busca em ser seu mestre, em escolher entre fins, em chamar para si a responsabilidade pela escolha e em justificá-la racionalmente. O sujeito, no entendimento que Berlin retirou dos românticos, possui o desejo de ser consciente das suas escolhas, sem transferir tal responsabilidade para a nação, a história, a razão ou a religião, e ser capaz de justificá-las a partir dos fins escolhidos (Berlin, 2002b:237). Nesse entendimento, apresenta-se uma diferença significativa entre o PV9 9 . Por PV deve-se entender “Pluralismo de Valores” corrente teórica que reúne vários autores que partem da obra de Berlin apresentando interpretações distintas, tais como: John Gray, George Crowder, Nancy Hirschmann e Willian Glaston. e uma tradição do pensamento liberal.

Quando tal ideia é compreendida é possível perceber a distância entre a ideia de LP e a ideia de liberdade dos antigos (LA) discutida por Benjamin Constant (Constant, 1985). Para o autor francês, a LA é um atributo coletivo (se o coletivo é livre eu sou livre) e com tal movimento se manifesta a indistinção entre sujeito e coletividade. O sujeito, enquanto portador de direitos e da prerrogativa de escolher, desaparece em favor da coletividade. Para compreender a diferença significativa entre os dois conceitos coloco em destaque que a LP é no seu ponto de partida um atributo do sujeito tomado individualmente (eu desejo ser meu mestre). A LP não corresponde à ideia de que o sujeito e a coletividade se tornam indistintos, de tal maneira que o sujeito individualmente perca todos os direitos, aspecto-chave da LA em Constant. Tal indistinção corresponde a um movimento de distorção da LP, mas, ainda assim, o que caracteriza a LP não é tal fusão, mas o desejo de o sujeito chamar para si as escolhas entre fins. No conceito de liberdade de escolha de Berlin, a vontade de chamar para si as escolhas entre fins conflitantes e de assumir a responsabilidade moral da escolha, enfim de ser o seu mestre, não pertence à Antiguidade, devendo desaparecer com a emergência da Modernidade, mas é antes uma característica fundamental do exercício da liberdade. Berlin compartilha com Constant a preocupação com a existência de uma esfera desobstruída para o sujeito, entretanto assinala como traço do exercício da liberdade o desejo do sujeito de chamar para si a tarefa de escolher entre fins distintos e conflitivos10 10 . Merquior (1991:186), um leitor atento e favorável ao liberalismo, compreendeu a LP apenas sob a chave da busca de fins racionais. Esse aspecto é enfatizado por Berlin, mas não define unicamente a LP. Sem a ideia de o sujeito ser o seu próprio mestre, a LP perde sua característica essencial. . Porém a LP não pode ser confundida com sua distorção.

Nos ensaios anteriores a DCL já se apresentava o movimento de distorção da LP e de conflito desta para com a ideia de liberdade de escolha. O problema com a ideia de liberdade em Rousseau começa a brotar quando este entende que os dilemas éticos comportam somente uma única solução verdadeira e que a diversidade de respostas encontradas na sociedade é um sinal do erro, que deve ser forçosamente corrigido (Berlin, 2005c:51). Nesse trabalho, já se apresentava o que mais tarde Berlin chamaria de abordagem “monista” dos problemas éticos, mas ainda não se formulara a ideia de pluralismo (Berlin, 2002b:268). A formulação da abordagem monista passa a ganhar corpo no mesmo ano, nas palestras de Mary Flexner11 11 . As conferências foram proferidas em 1952, na BBC, sendo transcritas e reunidas por Henry Hardy, em 2002. , quando Berlin se detém na distorção da liberdade positiva operada por Rousseau e, principalmente, pelos românticos12 12 . O movimento romântico apresenta um legado dúbio com relação ao tema da liberdade (Gustavsson, 2018). Por um lado, define a liberdade como escolha não determinada e criação do novo, mas, por outro lado, efetua duas distorções. A primeira distorção estabelece padrões externos ao sujeito: a razão e a nação. A segunda, pelos seus efeitos posteriores. O romantismo, acredita Berlin, seria uma das fontes do fascismo na medida em que enaltece o ato de criar levado a cabo por líderes carismáticos. Tais homens excepcionais teriam o direito de oprimir e de moldar os seres humanos (Berlin, 1991, p. 180). Berlin estabelece tal associação sem apontar claramente como ela se deu. O estudo do romantismo revela também o porquê desse estudo: Berlin considerava o existencialismo como um fruto do romantismo (Berlin, 1999:266). .

Se ser livre é realizar fins, torna-se imperioso conhecer o mundo no qual as ações serão realizadas. E se esse mundo possui um padrão, ignorá-lo torna-se um convite à frustração. A partir desse ponto, inicia-se a distorção da liberdade positiva. O papel da razão passa a ser o de adequação a um mundo que deve ser harmonioso; nessa orquestra cada entidade está ligada de tal maneira que seu lugar não pode ser ocupado senão da maneira que o padrão estabelece. A partir dessa lógica, o papel da razão e da compreensão de modo geral é aceitar o padrão e eliminar alternativas que não estão adequadas a ele. A liberdade deixa de ser o novo ou a escolha entre fins e passa a ser adequação a um plano traçado fora do sujeito (Berlin, 2002b:245; 2009a:152; 2009b:242-243; cf. também Berlin, 2002c:143-144).

Devido a esse movimento, no sujeito que deseja ser seu senhor estabelece-se uma cisão entre um “eu empírico” e um “eu superior”. Quando o sujeito assume a busca de fins que não estão em acordo com o padrão, este passa a ser classificado como um eu empírico, o qual deve ser suplantado pelo eu superior, que encarna a verdade única enquanto a primeira manifestação é o resultado da ignorância, da ideologia, do pecado, da má-fé etc. (Berlin, 2002f:71; 2009a:197; 2002b:239).

A colisão entre fins passa a ser o sinal de um equívoco que pode ser sanado por meio do conhecimento ou, se o sujeito não reconhece a verdade, por meio de uma coerção. A coerção é justificável porque corresponde àquilo que ele faria caso conhecesse a verdade (Berlin, 2002f:68, 72; 2009a:197). Nesse caso, apresenta-se o paradoxo presente em todo argumento autoritário: é justo forçar um sujeito a ser livre. Quando tal discussão é retomada em DCL, Berlin apresenta a ideia que sintetiza tal movimento: o “paternalismo despótico”. Tal ideia se justifica a partir da premissa de um eu superior que sabe melhor que os eus ordinários o que é ser livre e, portanto, possui legitimidade moral para coagi-los a fazer algo que de outra maneira não fariam. A distorção da liberdade positiva necessita criar uma cisão no sujeito, uma divisão entre um eu inferior, ou empírico, que anseia por fins que se apresentam de imediato ao sujeito, sem que este efetue uma depuração deles, e um eu superior, que, a partir de uma razão superior, conheceria os fins adequados, dirigindo-se assim para fins racionais, justos, “mais profundos” etc. (Berlin, 2009a:179, 182; Berlin, 2009b:239).

A LP não pode ser confundida com a sua distorção. Prioritariamente, porque ela está inserida no coração da ideia de liberdade de escolha: o sujeito escolhe porque ele se entende como seu senhor, ele delibera sobre os fins. Não é possível construir a liberdade de escolha sem a presença do sujeito como seu mestre. Tal ideia carrega consigo a capacidade de o sujeito ordenar os diversos fins em choque; ou, simplesmente, recusar um fim com base na sua inadequação a seus desejos: a recusa é também uma manifestação da vontade em ser seu mestre (Berlin, 1969Berlin, Isaiah. (1969), “Political ideas in the XX century”. In: Four Essays on Liberty. London: Oxford University.:xliii, nota 1). Cabe ao sujeito justificar tal ato em termos razoáveis, não apenas em relação à sua vontade, mas também em relação ao contexto no qual vive (Berlin, 2002a:105).

Dessa maneira, é possível delinear um conteúdo da LP não distorcido que serve como padrão da análise. A LP requer a existência de fins, os quais devem ser adotados de maneira “não forçada” (Berlin, 2002d:151). A dignidade do homem coloca-o acima de qualquer coisa natural em razão de sua capacidade de elaborar e escolher os fins e os valores da sua ação. Esses fins podem ser criados ou retirados dentre as alternativas socialmente existentes: não importa, sem essa autonomia o sujeito perde aquilo que o distingue de outros seres, ele deixa de ser humano.

A LIBERDADE DE ESCOLHA

Se tomarmos as palavras de Berlin como um ponto de partida, ele assinala que a ideia de pluralismo de valores foi a sua ideia mais importante, e, que emergiu a partir de fontes distintas (Berlin, 2002c: 45, 47). A primeira proveio de Tolstoi e dos autores russos, a segunda foi sua interpretação de Maquiavel e a terceira foram Vico e Herder (Berlin, 2002b). Os ensaios sobre os autores russos e Maquiavel foram apresentados antes de DCL13 13 . Esses trabalhos, bem como seus vários estudos de História das Ideias, revelam um aspecto central da sua abordagem em História das Ideias: o que lhe interessava não era a reconstrução do contexto histórico, mas recortar e analisar um conjunto de ideias que fossem entendidos no presente como relevantes. A identificação delas era explicitamente proveniente do presente e das suas preocupações. O contexto histórico era o fundo comum às várias correntes intelectuais, mas o que importava analisar eram as ideias que tocavam ao contemporâneo. Nesse sentido, Berlin construiu seus predecessores a partir de suas preocupações. Sendo assim, neste artigo tomo seus estudos em História das Ideias como um espelho do que o preocupava e não para compará-los com as ideias de Maquiavel, de Tolstoi ou dos românticos. Sobre o tema, veja-se Hanley (2018). .

Em seus ensaios sobre os pensadores russos, Berlin esboça a ideia de pluralismo de valores (Parthé, 2018PARTHÉ, Kathleen. (2018), “Privileged Access: Isaiah Berlin and Russian Thought”. In: J. L. Cherniss; S. B. Smith (eds.), The Cambridge Companion to Isaiah Berlin. Cambridge: Cambridge University Press.). Retoma o conteúdo do monismo e sugere a existência de uma visão oposta. Em uma formulação já clássica, Berlin sugere, a partir de um verso do poeta grego Arquíloco, que existiriam pensadores que relacionam todos os fenômenos a um sistema coerente que os organiza e os hierarquiza a partir de um princípio universal; esses pensadores corresponderiam ao ouriço. Outros enxergam na realidade diversos fins, que não necessariamente possuem uma relação e que muitas vezes são opostos: sua identidade remeteria à raposa (Berlin, 1988a:43). A partir dessa ideia Berlin analisa mais detidamente a possibilidade da elaboração de um conhecimento científico sobre a realidade histórica e social e conclui pela sua impossibilidade. O ensaio sobre Tolstoi versa sobre o conhecimento que podemos obter e, apenas tangencialmente, toca na possibilidade de existirem diversos fins humanamente aceitáveis na realidade. Esse tema emerge com mais clareza em um ensaio menos conhecido, “Aleksander Herzen”. Nesse texto Berlin aponta que o liberal russo teria compreendido que os fins perseguidos pelos sujeitos são complexos demais para serem submetidos a um esquema racional que os unifique em um único fim e que seria depois sacramentado pelo porvir histórico (Berlin, 1988b:199). Nesse ensaio, já emergem duas ideias que serão retomadas posteriormente. A primeira consiste no seguinte: as finalidades da vida são por demais diversas para serem acomodadas em torno do princípio da utilidade. A segunda consiste em que a finalidade da liberdade individual é a própria liberdade, visto que os sujeitos não necessitam possuir um fim racional, histórico, religioso ou econômico para justificar sua liberdade individual. A liberdade de escolha é um bem em si mesmo, estando nesse conceito a sua justificativa (Berlin, 1988b:202).

Em Maquiavel, Berlin identifica uma abordagem verdadeiramente pluralista: o florentino teria percebido que existem no campo de experiências humanas concepções de boa vida que, levando em consideração os seres humanos, apontam para direções não apenas diversas, mas opostas. Em razão dos fins, dos valores distintos e das circunstâncias torna-se inescapável realizar uma escolha, que se revela trágica porque não se trata de condenar uma dessas concepções de boa vida como um erro, mas reconhecendo sua validade, é preciso escolher. Maquiavel, segundo Berlin, não teria sido um pluralista pleno, mas um dualista, pois ele reconheceu apenas duas éticas razoáveis, a cristã e a pagã, e a necessidade de uma escolha trágica (Berlin, 2002d:319, 323, 333, 339).

Essas ideias ganham uma forma política quando são aplicadas ao confronto político que marcou o século XX14 14 . A bibliografia sobre Berlin não menciona este artigo como um texto relevante que anteceda DCL. Entretanto, em razão do ano (1949), da presença da ideia de monismo e da maneira pela qual ele a aplica ao socialismo e ao liberalismo, considero relevante esse texto. . Em um ensaio publicado em 1949, portanto em plena Guerra Fria, Berlin conseguiu desagradar liberais e socialistas15 15 . Deve-se atentar para esse aspecto. Nos anos 1950, alguns autores criticaram Berlin por defender uma abordagem politicamente fraca frente ao embate entre liberalismo e comunismo. A crítica centrava-se em dois aspectos. O primeiro consistia na sua ideia de que o liberalismo também era passível de ser afetado pelo monismo e pela busca de soluções técnicas. O segundo consistia no seu pluralismo cultural: o liberalismo e seus valores seriam uma forma cultural entre outras igualmente válidas. Sobre essas críticas e o contexto da Guerra Fria, veja-se Shapiro e Steimmetz (2018). . Segundo ele, ambas as correntes políticas compartilham da ideia de os dilemas éticos possuírem uma única solução (Berlin, 1969Berlin, Isaiah. (1969), “Political ideas in the XX century”. In: Four Essays on Liberty. London: Oxford University.:13). As questões de valor deveriam ser substituídas pela resposta proporcionada pelos critérios técnicos (Berlin, 1969Berlin, Isaiah. (1969), “Political ideas in the XX century”. In: Four Essays on Liberty. London: Oxford University.:23, 25, 27), os quais tornariam os conflitos em torno de valores manifestações irracionais e, dessa maneira, seria expulsa a dimensão trágica da liberdade de escolha. Os sujeitos teriam que escolher o que a ciência estabelece (Berlin, 1969Berlin, Isaiah. (1969), “Political ideas in the XX century”. In: Four Essays on Liberty. London: Oxford University.:5, 15, 23). Ao final, Berlin sugeria que as ideologias do século XX, na medida em que não existe uma única solução, deveriam abrir espaço para a dúvida (Berlin, 1969:40). Essa ideia revela a distância de Berlin, e do pluralismo, de concepções liberais como aquelas presentes em Daniel Bell e Friedrich Hayek16 16 . “Minha dificuldade principal é simplesmente que eu concordo com você mais do que (você pensa que) você concorda comigo: não somente contra o óbvio inimigo comum (os supressores das diferenças em favor de uma solução final), mas contra os individualistas fanáticos – antiplanejadores, defensores do laissez-faire, hayekianos e mesmo proudhonianos (que odeiam o Estado e acreditam na sacralidade da pequena propriedade como uma garantia da moralidade) e assim por diante; e isso não apenas porque tais pessoas elevam a não interferência a um objetivo supremo, e desconsideram as demandas por segurança, justiça, equidade e simples humanidade, como os reais bichos-papões do liberalismo do século XIX [...] que viam monstros totalitários nas mais suaves, mais desesperadamente necessárias reformas sociais, fossem as do New Deal, fossem as socialistas; mas também porque tais pessoas não percebem que algumas liberdades ameaçam outras liberdades; que, como você diz, algumas liberdades perecem sem planejamento social; que as leis – mesmo que Bentham esteja certo e as leis de fato sempre reduzam as liberdades – são indispensáveis se os homens desejam desfrutar mesmo de um mínimo de tais liberdades (ou liberdade) como todos os não monistas demandam. [...] Eu, também, votei em socialistas com a consciência leve: e fá-lo-ia de novo agora” (Berlin, 2013:273). . Como Berlin enfatizará mais tarde, existem teorias liberais que não são pluralistas, o que implica estabelecer que liberalismo e pluralismo não são sinônimos.

Em DCL, Berlin retoma a cisão conforme ela aparece nos seus trabalhos anteriores, entretanto, ele introduz a ideia delineada nos seus ensaios mencionados. O movimento desencadeado pela distorção da LP solapa a seguinte ideia: na experiência ordinária dos sujeitos ou na vida política os fins humanos razoáveis são diversos, conflituosos, e, em certos momentos, não são compatíveis, aspecto que força os sujeitos a realizarem escolhas trágicas (Berlin, 2002b:269-270). Nesse aspecto é que reside o problema com a distorção da liberdade positiva e não o atributo de que o sujeito deseje ser o seu próprio mestre. O enfoque da ideia de diversidade mencionada acima não esteve presente em seus trabalhos posteriores e é essa ideia que confere o sentido negativo à distorção da LP ou da LN. Anteriormente ele havia enfatizado que esse movimento de solapar o eu empírico cancelava o atributo que nos torna humanos, mas em DCL ele amplia e aprofunda tal ideia com a introdução do seu enfoque sobre a diversidade de valores.

Em DCL, Berlin apresenta a ideia de pluralismo de valores na sua totalidade e na sua radicalidade. Anteriormente, ele apresentou a perspectiva monista, mas não a contrapôs a outra perspectiva. Desenvolveu, a partir da sua interpretação de Rousseau e de Kant, a liberdade de escolha como elemento central da condição humana. Ocorre que em DCL ele acrescenta uma ideia nova, que não está presente em nenhum desses autores. Na experiência comum dos sujeitos ordinários há um mundo no qual convivem fins diversos, que são absolutos, ou seja, são fins em si mesmos, e a realização de um desses fins implica o sacrifício de outros. Esses fins correspondem a dimensões razoáveis da existência humana e não existe modelo que os unifique. Em razão desse fato, a liberdade de escolha ganha sua centralidade (Berlin, 2002b:269).

Nesse momento, Berlin e todo o PV apresentam uma ideia que não está presente nem em Rousseau e nem em Kant. Em Rousseau, a liberdade define a condição humana, mas possui uma moldura: somos livres enquanto seguimos a Vontade Geral. Esta elimina os conflitos entre os fins estabelecendo o que os sujeitos devem almejar. Em Kant, a liberdade de escolha é exercida a partir do imperativo categórico, o qual determina que uma ação é objetivamente necessária por si, sem referência a uma finalidade externa. Em Berlin nenhuma dessas categorias regula a liberdade de escolha e nem determina o fim que será escolhido. A liberdade de escolha se desenrola em um mundo politeísta, no qual existem diversos fins humanamente aceitáveis, que correspondem a dimensões razoáveis, mas que em certos contextos são conflituosos e, ocasionalmente, excludentes. Esses fins carregam consigo valores e meios distintos, que não possuem um padrão capaz de agregá-los, cabendo aos sujeitos escolherem.

Mas tal escolha não implica um combate mortal entre os valores presentes em cada conceito. Já em DCL Berlin apontava que a compreensão de que não existem respostas únicas para as questões políticas deveria orientar a flexibilização dos fins últimos, que estes não deveriam ser entendidos como sagrados. Tendo em vista tal ideia seria possível estabelecer um “compromisso prático” entre os fins (Berlin, 2002b:232). Tal perspectiva indicava claramente a possibilidade de que, como ele escreveu na “Introdução”, as duas liberdades “podem ou não colidir” (Berlin, 1984a:33). Sendo assim, pode-se afirmar que não está inscrito nas respectivas definições que um conflito de morte necessariamente emergirá. O papel de uma razão prática torna-se fundamental na mediação entre os fins. Na sua derradeira formulação, Berlin retoma a ideia de uma razão prática para mediar essa deliberação, mas não lhe retira um conteúdo trágico (Berlin e Williams, 1994Berlin, Isaiah; WILLIAMS, Bernard. (1994), “Pluralism and liberalism: a reply”. Political Studies, v. XLI, n. 2, pp. 306-9.:307-308; 2002c:55-56).

Nesse último momento da sua reflexão, Berlin retoma a ideia de uma articulação possível entre LP, LN e liberdade de escolha (Berlin, 2005a:35), enfatizando que a definição de LN não consiste apenas em muros que protejam o sujeito, mas que são fundamentais a presença de outros atributos. Em primeiro lugar, a presença de fins gerados pelo desejo de ser seu próprio senhor (LP). A proteção fornecida pela LN não gera os fins, pois se o sujeito dispõe dos muros mas elimina seus desejos, ele deixa de exercer sua liberdade. No exercício da liberdade de escolha, o papel da LP é fundamental e, nesse sentido, Berlin é radical. A eliminação do desejo de ser seu próprio mestre significa a morte do homem enquanto ser livre. Dispor de proteção sem o anseio de ser seu mestre representa a negação da condição humana. Dessa maneira, assume-se novamente a ideia de uma conexão entre os dois conceitos. A perversão é o resultado da compreensão de que os dilemas morais podem encontrar uma única resposta. Tal distorção pode afetar teorias liberais, socialistas ou conservadoras. É o resultado de uma negação de uma experiência fundamental da condição humana: a existência de diversos fins humanamente aceitáveis.

Os dois conceitos possuem uma raiz comum: a liberdade de escolha entre fins distintos e conflitivos. A partir das definições de LP e LN são geradas respostas distintas, mas não impreterivelmente antagônicas (Berlin, 2005a:37):

Esses são dos dois sentidos centrais de liberdade que decidi investigar. Compreendi que diferiam, que eram respostas a duas perguntas diferentes; mas embora cognatos, eles não colidiam na minha visão – a resposta para uma pergunta não determinava necessariamente a resposta para a outra. As duas liberdades eram fins humanos supremos, as duas eram necessariamente limitadas, e os dois conceitos poderiam ser pervertidos ao longo da história.

A reflexão sobre as duas liberdades possui dois aspectos como elementos centrais da sua inteligibilidade teórica. O primeiro, o que lhes confere valor, está relacionado à recepção da ideia de liberdade de escolha entre fins diversos e conflitivos. Em segundo lugar, o contexto político no qual Berlin escreve, e ele o destaca várias vezes, é marcado pela distorção da liberdade positiva. Em razão desse fato, a LN recepcionou melhor a ideia de liberdade de escolha (Berlin, 2002a:272). O que tornou a LP positiva uma inimiga da liberdade não foi seu aspecto formal nem os valores que ela possui, mas quando teóricos aportaram nela a ideia de que as soluções para os dilemas morais possuiriam uma única solução. Ou seja, o monismo.

Mas não são a liberdade individual nem os muros a ela associados por si sós que fundamentam o valor da LN; existem correntes liberais que postulam esses valores, mas que são monistas e, portanto, não são pluralistas (Berlin e Williams, 1994Berlin, Isaiah; WILLIAMS, Bernard. (1994), “Pluralism and liberalism: a reply”. Political Studies, v. XLI, n. 2, pp. 306-9.; Berlin e Jahanbegloo, 1996Berlin, Isaiah; JAHANBEGLOO, Ramin. (1996), Isaiah Berlin. São Paulo: Perspectiva.: 72-73). Algumas correntes liberais pretendem estabelecer, por exemplo, o mercado como a esfera por excelência que deve medir os sujeitos, suprimindo a diversidade de fins e valores que deve existir em uma sociedade em favor dos fins e dos valores presentes nessa única esfera (Crowder, 2002CROWDER, George. (2002), Liberalism and value pluralism. New York: Continuum.:226-236). Nessa mesma lógica inclui-se a discussão já empreendida anteriormente sobre o liberalismo laissez-faire. Portanto, o elemento central para se pensar tanto a LN quanto a LP, ou mesmo outros conceitos de liberdade, e para refletir sobre os arranjos políticos sociais reside na ideia de liberdade de escolha entre fins diversos, incomensuráveis e em disputa (Crowder, 2018CROWDER, George. (2018), “Pluralism, relativism and liberalism”. In: J. Chermiss; S. B. Smith (eds.), The Cambridge Companion to Isaiah Berlin. Cambridge: Cambridge University Press.; Galston, 2018GALSTON, William. (2018), “Liberalism, nationalism, pluralism: the political thought”. In: J. Cherniss; S. B. Smith (eds.), The Cambridge Companion to Isaiah Berlin. Cambridge: Cambridge University Press.).

CONCLUSÃO

É teoricamente coerente apontar a formulação, já mencionada, de que a liberdade negativa fornece os muros que envolvem e protegem o sujeito, mas a construção dos fins ocorre na liberdade positiva, juntando-se dessa maneira ambos os conceitos de maneira não antagônica. Nesse ponto pode-se perceber que não se apresenta um choque mortal entre as duas liberdades e é possível entender plenamente a afirmação de Berlin feita em vários ensaios: a liberdade negativa e a liberdade positiva são formas negativa e positiva de dizer mais ou menos a mesma coisa (Berlin, 2002b:237). São perguntas e respostas diferentes, mas não necessariamente adversárias. O choque emerge em parte quando a abordagem monista pretende estabelecer que cada um dos valores e dos fins, que podem estar presentes em cada conceito, seja a única resposta verdadeira às perguntas relativas às questões éticas.

Os conceitos de liberdade negativa e positiva devem ser pensados a partir da ideia de liberdade de escolha entre fins diversos e conflitivos. É essa ideia que organiza normativamente seus conteúdos de valor. A liberdade de escolha requer barreiras contra obstruções arbitrárias para com o sujeito. Nesse espaço o indivíduo possui o direito de postular fins que eventualmente sejam vistos por outros como irracionais. Nessa ideia está presente a perspectiva de que o sujeito requer baluartes que protejam os fins por ele escolhidos. A liberdade de escolher fins demanda para sua execução a compreensão de que o sujeito é o senhor das suas escolhas, ou seja, que ele chama para si a deliberação entre fins diversos. Não é possível pensar a liberdade de escolha sem a presença da LP, da mesma maneira que esta não pode ser exercida sem os muros da LN.

Ninguém é livre se os fins almejados são bloqueados pelas desigualdades sociais e opressão cultural de tal maneira que a liberdade de escolha é suprimida antes mesmo das alternativas serem formuladas. A mera existência de caminhos desimpedidos, mas que não podem ser percebidos pelo sujeito em razão dessas desigualdades e da opressão não caracteriza uma situação de liberdade (Berlin, 1984a:21, 23, 2005a:35-36).

Os conceitos de LN e LP receberam ao longo das lutas políticas interpretações distintas. Ambos foram, em algum momento, distorcidos. As distorções operaram em direções distintas, mas todas tiveram um aspecto comum: imaginaram que existiria uma resposta unívoca para os dilemas gerados pela liberdade de escolha. Essa conclusão permite uma reavaliação da teoria pluralista e dos conceitos de LP, LN e liberdade de escolha. Essa retomada não significa que eles estejam isentos de críticas, mas requer um novo enfoque.

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NOTAS

  • 1
    . Parte desse silêncio deve-se ao fato de seus textos só terem sido reunidos nas décadas de 1980 e 1990. Durante a maior parte da sua trajetória acadêmica, Berlin foi visto como um autor que publicava pouco. A partir dos anos 1980, Henry Hardy dedicou-se a organizar e a publicar seus trabalhos dispersos em revistas ou inéditos. Foi a partir de então que se percebeu que Berlin havia na verdade publicado muito, mas de maneira fragmentada.
  • 2
    . “Freedom, which is for Mill, as for all liberals in the nineteenth century, the central political ideal – so sacred that death is certainly preferable to its total extinction or grave diminutions – is nevertheless purely negative, almost more of a necessary condition of the good life than an ingredient in the sense that only when it is made secure can those activities which alone make a life worth living develop and flourish and yield their finest fruit. The freedom the price which is ‘eternal vigilance’ is a perpetual defensive operation from ramparts which would not be needed if it were not in constant danger” (Berlin, 2006Berlin, Isaiah. (2006), “Two concepts of freedom: romantic and liberal”. In: Political ideas in the romantic age. Princeton: Princeton University Press.:202-203).
  • 3
    . “But the ramparts are not an end in themselves; the defensive operation presupposes that there is something to defend, and that something is not the operation itself but the intrinsically valuable activities and experiences of mankind – love, life, the arts and sciences – all the elements which compose a life which appears as an end itself to those who live it, as the song itself is the purpose of the singer, not as a means to something further but as a final final goal, as the satisfaction of basic impulses and desires, as an element in that still empirical but no longer simple – (...) – ideal of happiness into which J.S. Mill developed the all too clear but somewhat jejune concept of his father Jeremy Bentham” (Berlin, 2006Berlin, Isaiah. (2006), “Two concepts of freedom: romantic and liberal”. In: Political ideas in the romantic age. Princeton: Princeton University Press.:202-203).
  • 4
    . “A liberdade (negativa) deve ser contida em função de exigências – a necessidade elementar – de segurança, felicidade, justiça, ordem, solidariedade, paz. Certas formas de liberdade devem ser contidas para permitir que as outras finalidades essenciais da vida tomem seu lugar” (Berlin e Jahanbegloo, 1996Berlin, Isaiah; JAHANBEGLOO, Ramin. (1996), Isaiah Berlin. São Paulo: Perspectiva.:187).
  • 5
    . Essa é uma crítica recorrente e com enfoques distintos (cf. Macpherson, 1973MACPHERSON, Crawford B. (1973), “Berlin’s Division of Liberty”. In: Democratic theory: essays in retrieval. Oxford: Clarendon.; Dworkin, 2001DWORKIN, Ronald. (2001), “Do liberal values conflict?”. In: M. Lilla; R. Dworkin; R. Silvers (eds.), The Legacy of Isaiah Berlin. New York: New York Book Review of Books.; e Miguel, 2015MIGUEL, Luís F. (2015), “O liberalismo e o desafio das desigualdades”. In: Desigualdades e democracia. São Paulo: Unesp.).
  • 6
    . No texto “Ideias políticas no século XX”, Berlin já estabelecera que certas correntes do liberalismo compartilhavam da perspectiva de que seria possível encontrar em uma única ideia a solução para os dilemas políticos. Essa abordagem rendeu-lhes várias críticas de autores liberais. Mais adiante esse texto será analisado.
  • 7
    . Berlin não foi um autor marcado pela precisão terminológica. No seu argumento há uma distinção teórica entre obstáculo e intervenção. Nos ensaios “A ideia de liberdade” (1955) e “Dois conceitos de liberdade: o romântico e o liberal”, Berlin apresenta a ideia de liberdade como uma ação que se desenrola sem a presença de um obstáculo (rampart) (Berlin, 2009a:149; 2009b:218). Caso este seja interposto, a concepção liberal pressupõe que a lei seja um instrumento para impedir o abuso (Berlin, 2009b:217). Dessa maneira, nem toda intervenção é uma obstrução; a lei intervém para coibir ou punir uma obstrução ilegal. Logo, há uma distinção entre uma obstrução frente a um fim moralmente aceitável e uma intervenção legalmente prevista de maneira a impedir que essa obstrução se manifeste ou a puni-la caso ocorra. Quando ele aborda o tema da legislação social, é retomada a ideia de que é possível que ocorra uma intervenção que não afete a LN. No caso, há uma nova dimensão, a intervenção não apenas protege o sujeito, mas também dispõe certos bens, no caso bens sociais, como educação e seguridade social. A legislação social oferece bases que protegem o sujeito. Na “Introdução”, ele apontou que a ausência de condições sociais mínimas impede qualquer grau de LN (Berlin, 1984:25). Sobre esse aspecto veja-se Coser (2019COSER, Ivo. (2019), “Lei, liberdade e diversidade de fins no pluralismo de valores”. Lua Nova, n. 107, pp. 169-202.:190-196).
  • 8
    . A teoria neorrepublicana trouxe uma abordagem e temas relevantes para o debate contemporâneo. Entretanto, a sua crítica ao argumento pluralista não se sustenta; classificar sua teoria da liberdade como não interferência representa um desconhecimento da sua ideia central da liberdade negativa e dos seus desdobramentos. Uma parte da justificativa do seu empreendimento teórico esteve na sua crítica à liberdade como não interferência – Pettit e Skinner estabeleceram Berlin como seu porta-voz. A partir de então todo texto neorrepublicano reproduz suas críticas sem se dar ao trabalho de uma pesquisa mais consistente sobre o pluralismo. Considerar Berlin como um defensor da liberdade como não interferência ignora a crítica que este fez ao liberalismo laissez-faire e silencia sobre a ideia-chave da sua teoria. Uma confrontação entre o pensamento neorrepublicano e Berlin pode ser encontrado em Coser (2014COSER, Ivo. (2014), “The concept of liberty: the polemic between the neo-republicans and Isaiah Berlin”. In: Brazilian Political Science Review, v. 8, pp. 39-65.; 2019); já a crítica neorrepublicana pode ser lida em Pettit (2010PETTIT, Phillip. (2010), “Before negative and positive liberty”. In: Republicanism: A Theory of Freedom and Government. Oxford: Oxford University Press., cap. 1) e em Silva (2015)SILVA, Ricardo V. (2015), “Visões da liberdade: republicanismo e liberalismo no debate teórico contemporâneo”. Lua Nova, n. 94, pp. 181-185..
  • 9
    . Por PV deve-se entender “Pluralismo de Valores” corrente teórica que reúne vários autores que partem da obra de Berlin apresentando interpretações distintas, tais como: John Gray, George Crowder, Nancy Hirschmann e Willian Glaston.
  • 10
    . Merquior (1991MERQUIOR, José G. (1991), “O liberalismo antigo e moderno”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.:186), um leitor atento e favorável ao liberalismo, compreendeu a LP apenas sob a chave da busca de fins racionais. Esse aspecto é enfatizado por Berlin, mas não define unicamente a LP. Sem a ideia de o sujeito ser o seu próprio mestre, a LP perde sua característica essencial.
  • 11
    . As conferências foram proferidas em 1952, na BBC, sendo transcritas e reunidas por Henry Hardy, em 2002.
  • 12
    . O movimento romântico apresenta um legado dúbio com relação ao tema da liberdade (Gustavsson, 2018GUSTAVSSON, Gina. (2018), “Berlin’s romantics and their ambiguous legacy”. In: J. L. Cherniss; S. B. Smith (eds.), The Cambridge Companion to Isaiah Berlin. Cambridge: Cambridge University Press.). Por um lado, define a liberdade como escolha não determinada e criação do novo, mas, por outro lado, efetua duas distorções. A primeira distorção estabelece padrões externos ao sujeito: a razão e a nação. A segunda, pelos seus efeitos posteriores. O romantismo, acredita Berlin, seria uma das fontes do fascismo na medida em que enaltece o ato de criar levado a cabo por líderes carismáticos. Tais homens excepcionais teriam o direito de oprimir e de moldar os seres humanos (Berlin, 1991, p. 180). Berlin estabelece tal associação sem apontar claramente como ela se deu. O estudo do romantismo revela também o porquê desse estudo: Berlin considerava o existencialismo como um fruto do romantismo (Berlin, 1999:266).
  • 13
    . Esses trabalhos, bem como seus vários estudos de História das Ideias, revelam um aspecto central da sua abordagem em História das Ideias: o que lhe interessava não era a reconstrução do contexto histórico, mas recortar e analisar um conjunto de ideias que fossem entendidos no presente como relevantes. A identificação delas era explicitamente proveniente do presente e das suas preocupações. O contexto histórico era o fundo comum às várias correntes intelectuais, mas o que importava analisar eram as ideias que tocavam ao contemporâneo. Nesse sentido, Berlin construiu seus predecessores a partir de suas preocupações. Sendo assim, neste artigo tomo seus estudos em História das Ideias como um espelho do que o preocupava e não para compará-los com as ideias de Maquiavel, de Tolstoi ou dos românticos. Sobre o tema, veja-se Hanley (2018)HANLEY, Ryan Patrick. (2018), “Berlin on the Nature and Purpose of the History of Ideas”. In: J. L. Cherniss; S. B. Smith (eds.), The Cambridge Companion to Isaiah Berlin. Cambridge: Cambridge University Press..
  • 14
    . A bibliografia sobre Berlin não menciona este artigo como um texto relevante que anteceda DCL. Entretanto, em razão do ano (1949), da presença da ideia de monismo e da maneira pela qual ele a aplica ao socialismo e ao liberalismo, considero relevante esse texto.
  • 15
    . Deve-se atentar para esse aspecto. Nos anos 1950, alguns autores criticaram Berlin por defender uma abordagem politicamente fraca frente ao embate entre liberalismo e comunismo. A crítica centrava-se em dois aspectos. O primeiro consistia na sua ideia de que o liberalismo também era passível de ser afetado pelo monismo e pela busca de soluções técnicas. O segundo consistia no seu pluralismo cultural: o liberalismo e seus valores seriam uma forma cultural entre outras igualmente válidas. Sobre essas críticas e o contexto da Guerra Fria, veja-se Shapiro e Steimmetz (2018).
  • 16
    . “Minha dificuldade principal é simplesmente que eu concordo com você mais do que (você pensa que) você concorda comigo: não somente contra o óbvio inimigo comum (os supressores das diferenças em favor de uma solução final), mas contra os individualistas fanáticos – antiplanejadores, defensores do laissez-faire, hayekianos e mesmo proudhonianos (que odeiam o Estado e acreditam na sacralidade da pequena propriedade como uma garantia da moralidade) e assim por diante; e isso não apenas porque tais pessoas elevam a não interferência a um objetivo supremo, e desconsideram as demandas por segurança, justiça, equidade e simples humanidade, como os reais bichos-papões do liberalismo do século XIX [...] que viam monstros totalitários nas mais suaves, mais desesperadamente necessárias reformas sociais, fossem as do New Deal, fossem as socialistas; mas também porque tais pessoas não percebem que algumas liberdades ameaçam outras liberdades; que, como você diz, algumas liberdades perecem sem planejamento social; que as leis – mesmo que Bentham esteja certo e as leis de fato sempre reduzam as liberdades – são indispensáveis se os homens desejam desfrutar mesmo de um mínimo de tais liberdades (ou liberdade) como todos os não monistas demandam. [...] Eu, também, votei em socialistas com a consciência leve: e fá-lo-ia de novo agora” (Berlin, 2013Berlin, Isaiah. (2013), “Letter to Bernard Crick”. In: H. Hardy; M. Pottle (eds), Building: Letters 1960-1975. London: Chatto & Windus.:273).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    2 Mar 2019
  • Revisado
    7 Ago 2019
  • Aceito
    5 Nov 2019
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