Acessibilidade / Reportar erro

Além da Divisão entre Economistas Ortodoxos e Heterodoxos no Brasil: Comentário Crítico ao Artigo "As Disputas entre Ortodoxos e Heterodoxos: O que é (e o que não é) Economia"* * O autor agradece o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (processo 313496/2023-4) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) (processo 2015/11822-7).

Beyond the Division Between Orthodox and Heterodox Economists in Brazil: Critical Commentary on the Article "The Disputes between Orthodox and Heterodox: What is (and what is not) Economics"

Au-delà de la Division entre les Économistes Orthodoxes et Hétérodoxes au Brésil: Commentaire Critique de l’Article "Les Différends entre Orthodoxes et Hétérodoxes: Qu’est-e que (et qu’est-ce que n’est pas) l’Économie"

Más allá de la División entre Economistas Ortodoxos y Heterodoxos en Brasil: Comentario Crítico al Artículo “Las Disputas entre Ortodoxos y Heterodoxos: lo que es (y lo que no es) Economía"

Resumo

Este comentário critica a reprodução da crença equivocada de que a economia mainstream é igual à economia neoclássica e de que esta, por sua vez, é igual à economia (neo)liberal. A rejeição dessas igualdades complica as relações entre economia mainstream, ortodoxa e heterodoxa. O comentário argumenta também que o caso do Brasil é diferente do americano, pois várias ideias econômicas que são marginalizadas nos Estados Unidos têm prestígio e influência na academia brasileira, o que torna o próprio conceito de economia mainstream mais ambíguo. Tudo isso implica várias divergências em relação ao artigo recente de Francisco Marques (2024). Outras diferenças são apontadas no que se refere ao uso de matemática, estatística e econometria e à interdisciplinaridade. O resultado é uma visão mais complexa da academia de economia nos Estados Unidos e sobretudo no Brasil. O comentário também identifica e corrige as principais distorções na tradução que Marques faz de um trecho relativamente longo de Dequech (2018).

economia mainstream; economia ortodoxa; economia heterodoxa; Brasil

Abstract

This comment criticizes the reproduction of the mistaken belief that mainstream economics is equal to neoclassical economics and that the latter, in turn, is equal to (neo)liberal economics. The rejection of those equalities turns the relations among mainstream, orthodox and heterodox economics more difficult. The comment also claims that the Brazilian case is different from the American one, since several economic ideas marginalized in the United States have both prestige and influence in the Brazilian academy, which makes the concept of mainstream economics itself more ambiguous. All that implies many divergences regarding the recent article by Francisco Marques (2024). Other differences are pointed out regarding the use of math, statistics and econometry, as well as interdisciplinarity. The result is a more complex view of the economics academy in the United States and mainly in Brazil. The comment also identifies and corrects the main distortions in the translation that Marques made of a relatively long excerpt of Dequech (2018).

mainstream economics; orthodox economics; heterodox economics; Brazil

Résumé

Ce commentaire critique la reproduction de la croyance erronée selon laquelle l’économie mainstream est identique à l’économie néoclassique et celle-ci, à son tour, est identique à l’économie (néo)libérale. Le rejet de ces égalités complique les relations entre l’économie mainstream, orthodoxe et hétérodoxe. Le commentaire soutient également que le cas du Brésil diffère de celui des États-Unis, car plusieurs idées économiques marginalisées aux États-Unis jouissent de prestige et d’influence dans le milieu académique brésilien, ce qui rend le concept même d’économie mainstream plus ambigu. Tout cela implique plusieurs divergences par rapport à l’article récent de Francisco Marques (2024). D’autres différences sont soulignées en ce qui concerne l’utilisation des mathématiques, de la statistique et de l’économétrie, ainsi que l’interdisciplinarité. Le résultat est une vision plus complexe de l’académie économique aux États-Unis et surtout au Brésil. Le commentaire identifie également et corrige les principales distorsions dans la traduction que Marques fait d’un passage relativement long de Dequech (2018).

économie mainstream; économie orthodoxe; économie hétérodoxe; Brésil

Resumen

Este comentario critica la reproducción de la creencia errónea de que la economía mainstream es igual a la economía neoclásica y que la economía neoclásica es igual a la economía (neo)liberal. El rechazo de estas igualdades complica las relaciones entre la economía mainstream, ortodoxa y heterodoxa. El comentario también argumenta que el caso de Brasil es diferente al de EE.UU., ya que varias ideas económicas marginadas en EE.UU. tienen prestigio e influencia en el mundo académico brasileño, lo que hace que el propio concepto de economía mainstream sea más ambiguo. Todo ello implica varias divergencias con respecto al reciente artículo de Francisco Marques (2024). Otras diferencias son señaladas acerca del uso de las matemáticas, la estadística y la econometría, así como de la interdisciplinaridad. El resultado es una visión más compleja del mundo académico económico en Estados Unidos y, sobre todo, en Brasil. El comentario también identifica y corrige las principales distorsiones en la traducción de Marques de un extracto relativamente largo de Dequech (2018).

economía mainstream; economía ortodoxa; economía heterodoxa; Brasil

Introdução

Num artigo recente em DADOS, Francisco Marques (2024)Marques, Francisco. (2024), "As disputas entre ortodoxos e heterodoxos: O que é (e o que não é) Economia". DADOS, v. 67, n. 2, pp. 1-51. Disponível em https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2.318
https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2....
discute o que ele caracteriza como “as disputas entre ortodoxos e heterodoxos” no campo da economia no Brasil. Seu artigo é bastante interessante, com novos dados e análises, aplicando, entre outros, o conceito de campo (científico) de Pierre Bourdieu. Ele se refere várias vezes a um artigo meu (Dequech, 2018Dequech, David. (2018), "Applying the concept of mainstream economics outside the United States: General remarks and the case of Brazil as an example of the institutionalization of pluralism". Journal of Economic Issues, v. 52, n. 4, pp. 904-924. Disponível em https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/00213624.2018.1518532
https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1...
) e eu fico satisfeito que Marques tenha achado meu trabalho útil. Por outro lado, Marques não atentou para alguns elementos da abordagem adotada naquele artigo (que, por sua vez, aplica ao estudo do caso brasileiro conceitos e, sobre os Estados Unidos, resultados apresentados num artigo anterior – Dequech, 2007Dequech, David. (2007), "Neoclassical, mainstream, orthodox, and heterodox economics". Journal of Post Keynesian Economics, v. 30, n. 2, pp. 279-302. Disponível em https://doi.org/10.2753/PKE0160-3477300207
https://doi.org/10.2753/PKE0160-34773002...
) ou optou por não incorporar tais elementos em sua análise, talvez por discordância ou para fins de simplificação. Além disso, Marques fez uma tradução problemática de um trecho razoavelmente longo extraído de meu artigo de 2018, distorcendo não apenas alguns comentários a respeito de vários programas de pós-graduação em economia no Brasil, mas também, de modo mais profundo, o próprio significado atribuído por mim à economia mainstream, a sua relação com a ortodoxia e às abordagens alternativas ou dissidentes. Os elementos de meu trabalho distorcidos ou não utilizados por Marques levam a uma visão consideravelmente mais complexa da disciplina da economia internacionalmente e mais ainda no Brasil, em particular. Esta visão transcende algumas dicotomias que Marques (2024) parece aceitar ou estabelecer.

O presente comentário crítico resgata esses elementos e, à luz deles, discute o trabalho de Marques (2024)Marques, Francisco. (2024), "As disputas entre ortodoxos e heterodoxos: O que é (e o que não é) Economia". DADOS, v. 67, n. 2, pp. 1-51. Disponível em https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2.318
https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2....
, com o intuito de contribuir para o debate, defendendo ideias que talvez possam ser aproveitadas por Marques e outros em suas investigações futuras. A primeira seção recupera (a) como meus artigos contrastam a distinção entre economia ortodoxa e heterodoxa com a distinção entre economia mainstream e não mainstream, mostrando que elas não são equivalentes nos Estados Unidos, e (b) como meu artigo de 2018 evidencia que a aplicação ao caso do Brasil de meu conceito de economia mainstream gera um resultado bastante diferente do que se passa nos Estados Unidos. À luz disso e acrescentando outros argumentos, as seções subsequentes apontam diversas divergências em relação a Marques (2024)Marques, Francisco. (2024), "As disputas entre ortodoxos e heterodoxos: O que é (e o que não é) Economia". DADOS, v. 67, n. 2, pp. 1-51. Disponível em https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2.318
https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2....
. A segunda seção contrasta as posições de Marques e as minhas quanto ao que tem prestígio e influência ou dominância na academia de economia nos Estados Unidos e sobretudo no Brasil, assim como quanto às relações entre economia mainstream, ortodoxa e heterodoxa. A terceira seção rejeita a postura político-ideológica como critério de caracterização da economia neoclássica e de demarcação entre ela e as correntes não neoclássicas, assim como entre a economia mainstream e não mainstream. A quarta seção diferencia o uso de matemática, estatística e econometria, de um lado, e a crença de que ele é o critério máximo e indispensável de rigor acadêmico na economia, de outro. A seção argumenta que esse uso não é exclusivo da economia neoclássica (nem da economia mainstream americana), de modo que é equivocado associar o aumento dos artigos brasileiros que usam esses métodos a uma suposta neoclassização. A seção também alerta para o cuidado necessário ao discutir os pesos atribuídos pelos diferentes programas de pós-graduação às provas do Exame Nacional de Economia, da Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação em Economia (Anpec). A quinta seção sustenta que é falsa a associação entre internacionalização e adesão à economia mainstream americana. A seção destaca os resultados dos incentivos fortes e pluralistas que a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) deu por quase 20 anos à internacionalização em economia. A sexta seção afirma que a interdisciplinaridade tem no Brasil um espaço bem maior do que nos Estados Unidos, combinado com o maior prestígio e influência das ideias alternativas à economia mainstream americana. A seção defende a interdisciplinaridade, mas também alerta sobre alguns riscos. A última seção conclui o texto principal. Além disto, o presente comentário inclui um apêndice que aponta diversos problemas na forma como Marques traduziu o trecho extraído de meu artigo (Dequech, 2018Dequech, David. (2018), "Applying the concept of mainstream economics outside the United States: General remarks and the case of Brazil as an example of the institutionalization of pluralism". Journal of Economic Issues, v. 52, n. 4, pp. 904-924. Disponível em https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/00213624.2018.1518532
https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1...
) mencionado acima e corrige as principais distorções.

Economia Mainstream, Não Mainstream, Ortodoxa e Heterodoxa: Conceitos Gerais e Aplicação aos Estados Unidos e ao Brasil

Conceitos gerais

Meu conceito de economia mainstream define-a em termos de ideias que têm prestígio e influência na academia. De modo mais específico e operacional:

(...) a economia mainstream é aquilo que é ensinado nas universidades e faculdades mais prestigiosas, publicado nas revistas mais prestigiosas, recebe financiamento das fundações de pesquisa mais importantes e ganha os prêmios mais prestigiosos (Dequech, 2007Dequech, David. (2007), "Neoclassical, mainstream, orthodox, and heterodox economics". Journal of Post Keynesian Economics, v. 30, n. 2, pp. 279-302. Disponível em https://doi.org/10.2753/PKE0160-3477300207
https://doi.org/10.2753/PKE0160-34773002...
:281, tradução do autor).

Quanto à ortodoxia, tomo emprestado o conceito adotado por Colander, Holt, Rosser Jr., (2004)Colander, David; Holt, Richard; Rosser Jr., J. Barkley. (2004), "The changing face of mainstream economics". Review of Political Economy, v. 16, n. 4, pp. 485-499. Disponível em https://doi.org/10.1080/0953825042000256702
https://doi.org/10.1080/0953825042000256...
, para quem a ortodoxia é a escola de pensamento mais recentemente dominante. Naquele artigo de 2007, noto que, de um lado, a referência à dominação mais recente implica um aspecto sociológico, e que, de outro, uma escola de pensamento é definida por um conjunto de ideias.

Convém então explicar melhor as semelhanças e diferenças entre ortodoxia e mainstream. Assim como a economia ortodoxa, a economia mainstream também é composta por ideias. Além disso, como será discutido mais adiante, prestígio e influência têm a ver com dominação. Isto significa que a escola de pensamento mais recentemente dominante faz ou pelo menos fez, em algum momento, parte da economia mainstream. As diferenças centrais entre os conceitos de economia mainstream e economia ortodoxa são as seguintes.

Em primeiro lugar (não necessariamente em ordem de importância), a ortodoxia, como uma escola de pensamento, precisa ter uma certa coesão intelectual, enquanto a economia mainstream não precisa corresponder a uma escola de pensamento. Escolas, abordagens ou ideias diferentes ou até conflitantes entre si podem pertencer à economia mainstream de um determinado período, desde que tenham em comum as características de prestígio e influência na academia.

Em segundo lugar, as ideias definidoras de uma escola de pensamento precisam continuar as mesmas (caso contrário, a escola tal como definida por aquelas ideias desaparece), ainda que mudem (a) os detalhes ou a forma dessas ideias e (b) as ideias que não definem a escola e sim uma determinada versão particular dela. Em contraste, o mesmo não precisa acontecer com a economia mainstream. Seu conteúdo intelectual não precisa formar um conjunto coeso e pode mudar totalmente num determinado período em comparação com outro suficientemente distante no tempo. A propósito, é por isso que a ortodoxia pode deixar de pertencer à economia mainstream. Mais ainda, o fato de a ortodoxia ser, num determinado instante, a última escola de pensamento dominante não implica necessariamente que ela ainda seja dominante.

Se economia mainstream e economia ortodoxa sempre coincidissem entre si, o mesmo aconteceria com a economia não mainstream e a economia heterodoxa. No entanto, isto não acontece sempre. A possibilidade de que economia mainstream e ortodoxia não coincidam obscurece o significado do termo “heterodoxo”. Etimologicamente, ele denota ideias diferentes da ortodoxia. Contudo, ele é muitas vezes usado no sentido de não mainstream. Quando mainstream e ortodoxo não são a mesma coisa, heterodoxo pode significar não ortodoxo ou não mainstream, que também não são a mesma coisa.

Economia Mainstream Contemporânea: O Caso dos Estados Unidos

O conceito de economia mainstream pode ser aplicado a qualquer período e país. Consideremos então o caso americano nas últimas décadas, a partir de cerca de 1990. Comecemos com a ortodoxia econômica, sobre a qual suponho, para simplificar, que seja incontroversa a proposição de que a ortodoxia econômica corresponde há muitas décadas à economia neoclássica. Por sua vez, a economia neoclássica é entendida como uma escola de pensamento econômica centrada em duas ideias: 1) racionalidade dos agentes, no sentido de maximização de utilidade; 2) equilíbrio, como o estado em que está ou para o qual, sob determinadas condições, tende a ir ou pode ir o sistema (micro ou macroeconômico) estudado (Dequech 2007Dequech, David. (2007), "Neoclassical, mainstream, orthodox, and heterodox economics". Journal of Post Keynesian Economics, v. 30, n. 2, pp. 279-302. Disponível em https://doi.org/10.2753/PKE0160-3477300207
https://doi.org/10.2753/PKE0160-34773002...
, 2018Dequech, David. (2018), "Applying the concept of mainstream economics outside the United States: General remarks and the case of Brazil as an example of the institutionalization of pluralism". Journal of Economic Issues, v. 52, n. 4, pp. 904-924. Disponível em https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/00213624.2018.1518532
https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1...
). Esta definição é muito difundida entre os economistas, embora não seja unânime.

A economia neoclássica continua tendo prestígio e influência e, portanto, fazendo parte da economia mainstream, a julgar pelos quatro critérios mencionados acima (ensino, publicação em revistas, financiamento de fundações de pesquisa/agências de fomento e prêmios). No entanto, ela não está sozinha, de modo que, nos Estados Unidos, economia mainstream contemporânea e economia neoclássica não são equivalentes.

Por causa da existência de subconjuntos não neoclássicos da economia mainstream americana, o termo “heterodoxo” fica com um significado ambíguo, pois ele é às vezes usado no sentido de não ortodoxo e, portanto, não neoclássico, e outras vezes no sentido de não mainstream.

Economia Mainstream Contemporânea: O Caso do Brasil

Geralmente, quando alguém se refere à economia mainstream sem especificar um período de tempo e sem localizá-la geograficamente, as referências temporal e geográfica estão implícitas: trata-se da economia mainstream contemporânea dos Estados Unidos ou internacional (fortemente marcada pelo caso americano). Entretanto, é possível aplicar o conceito de economia mainstream a outros países que não os Estados Unidos. Muitas vezes, o resultado em termos de conteúdo intelectual da economia mainstream provavelmente não será muito diferente do caso americano. Não é o que acontece no Brasil, como mostro no artigo citado (Dequech, 2018Dequech, David. (2018), "Applying the concept of mainstream economics outside the United States: General remarks and the case of Brazil as an example of the institutionalization of pluralism". Journal of Economic Issues, v. 52, n. 4, pp. 904-924. Disponível em https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/00213624.2018.1518532
https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1...
), usando cada um daqueles quatro critérios de mainstreamness.

Sem dúvida, as ideias que fazem parte da economia mainstream americana também têm prestígio e influência no meio acadêmico de economia no Brasil. Ao mesmo tempo, algumas escolas de pensamento ou abordagens que, nos Estados Unidos, são marginalizadas e pouco conhecidas também satisfazem, no Brasil, aqueles quatro critérios. Entre elas destacam-se, por exemplo, as economias pós-keynesiana, neoschumpeteriana, marxista, institucional (em diferentes vertentes) e combinações dessas correntes.

Assim, se a economia mainstream for definida em termos de prestígio e influência nacionais, a economia mainstream no Brasil é mais ampla do que nos Estados Unidos, incluindo aqui ideias que lá são excluídas. Por isso, a própria expressão “economia mainstream” adquire no Brasil um significado ambíguo, mesmo se entendida sempre em termos de prestígio e influência na academia. Várias ideias que fazem parte da economia mainstream definida nacionalmente, ou seja, em termos de prestígio e influência no Brasil, são excluídas da economia mainstream definida nacionalmente nos Estados Unidos (ou internacionalmente, refletindo o domínio americano). Uma solução potencial, nem sempre cabível ou elegante, seria acrescentar à expressão “economia mainstream” algo que explicite a referência geográfica que está sendo usada.

Nas próximas seções, diversas proposições defendidas nesta seção são usadas, ao lado de outras, para comentar o artigo de Marques (2024)Marques, Francisco. (2024), "As disputas entre ortodoxos e heterodoxos: O que é (e o que não é) Economia". DADOS, v. 67, n. 2, pp. 1-51. Disponível em https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2.318
https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2....
e defender uma visão mais complexa do caso brasileiro.

Prestígio, Influência e Dominação no Caso Brasileiro

Na teoria de campos de Bourdieu, a ideia de dominação tem um papel central. Assim, não é de surpreender que Marques (2024)Marques, Francisco. (2024), "As disputas entre ortodoxos e heterodoxos: O que é (e o que não é) Economia". DADOS, v. 67, n. 2, pp. 1-51. Disponível em https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2.318
https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2....
se refira várias vezes a agentes dominantes. De sua parte, meu conceito de economia mainstream é formulado em termos de ideias de prestígio e influência na academia. Isto é relacionado com dominação. De fato, Marques (2024)Marques, Francisco. (2024), "As disputas entre ortodoxos e heterodoxos: O que é (e o que não é) Economia". DADOS, v. 67, n. 2, pp. 1-51. Disponível em https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2.318
https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2....
também usa várias vezes as palavras prestígio e influência.

Por outro lado, prestígio e influência (não só de ideias, como também de pessoas) na academia não correspondem necessariamente a prestígio e influência fora dela. Por exemplo, no que se refere a pessoas, não se deve confundir economistas que alcançaram uma distinção acadêmica com aqueles, que, sem terem escrito regularmente textos que passam por testes acadêmicos rigorosos, como o processo de seleção de artigos nas melhores revistas nacionais e internacionais de economia, adquiriram alguma fama através de sua presença na mídia, em governos ou partidos políticos. Esta confusão é razoavelmente comum no Brasil, entre jornalistas e o público leigo1 1 . Esta confusão transforma-se num erro significante, dentro da academia, quando a participação na mídia, no governo ou em partidos políticos é tomada como sinal de excelência acadêmica. Estudar este erro e a frequência com que ele ocorre (como no caso de alguns grupos de economistas brasileiros dissidentes da economia mainstream americana) pode ser interessante, mas não é o mesmo que cometer o erro. . Da mesma maneira, é relevante a distinção entre o debate econômico fora da academia, que se dá especialmente sobre política econômica, e dentro dela.

No terreno acadêmico, Marques (2024)Marques, Francisco. (2024), "As disputas entre ortodoxos e heterodoxos: O que é (e o que não é) Economia". DADOS, v. 67, n. 2, pp. 1-51. Disponível em https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2.318
https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2....
caracteriza a ortodoxia como neoclássica – assim como fazem diversos autores, além de mim. Por outro lado, várias passagens em Marques (2024)Marques, Francisco. (2024), "As disputas entre ortodoxos e heterodoxos: O que é (e o que não é) Economia". DADOS, v. 67, n. 2, pp. 1-51. Disponível em https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2.318
https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2....
indicam que ele usa os termos “mainstream” e “ortodoxo” como sinônimos ou equivalentes. Como argumentado na primeira seção, isto não é verdade nos Estados Unidos, onde a economia mainstream contemporânea não se restringe à economia neoclássica. Também não é verdade no Brasil (Dequech, 2018Dequech, David. (2018), "Applying the concept of mainstream economics outside the United States: General remarks and the case of Brazil as an example of the institutionalization of pluralism". Journal of Economic Issues, v. 52, n. 4, pp. 904-924. Disponível em https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/00213624.2018.1518532
https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1...
), em dois sentidos. Primeiro, subconjuntos não neoclássicos da economia mainstream americana também têm defensores no Brasil. Se seu peso no Brasil, dentro das ideias alinhadas ao mainstream americano, é diferente do observado nos Estados Unidos seria uma questão a avaliar empiricamente. Segundo, se a economia mainstream for definida em termos de prestígio e influência nacionais, a diferença entre economia mainstream e economia neoclássica é ainda maior no Brasil do que nos Estados Unidos. O próprio significado do termo “mainstream” fica ambíguo, se não for explicitada a referência geográfica.

Além disso, Marques parece acreditar que, na academia brasileira, assim como acontece na academia americana, as ideias não alinhadas com a economia mainstream americana são dominadas. Entretanto, à medida que dominação se aproxima de prestígio e influência na academia e, portanto, do caráter mainstream das ideias, há, nos quatro quesitos mencionados acima, várias informações importantes em contrário (Dequech, 2018Dequech, David. (2018), "Applying the concept of mainstream economics outside the United States: General remarks and the case of Brazil as an example of the institutionalization of pluralism". Journal of Economic Issues, v. 52, n. 4, pp. 904-924. Disponível em https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/00213624.2018.1518532
https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1...
). Como explicado na primeira seção, um desses quesitos é o que é ensinado nas universidades e faculdades de maior prestígio. O próprio Marques (2024)Marques, Francisco. (2024), "As disputas entre ortodoxos e heterodoxos: O que é (e o que não é) Economia". DADOS, v. 67, n. 2, pp. 1-51. Disponível em https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2.318
https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2....
também destaca o grande prestígio nacional da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como universidades, e reconhece seus institutos de economia como organizações em que são valorizadas ideias alternativas à economia mainstream americana. Ideias assim são ensinadas em várias outras universidades de grande prestígio nacional. Quanto aos outros três quesitos, ideias alternativas são recorrentemente publicadas em quase todas as revistas nacionais de economia mais renomadas, financiadas pelas principais agências de fomento e agraciadas com prêmios prestigiosos.

Mais ainda, o pluralismo está em boa medida institucionalizado no Brasil. Tanto é assim que adeptos não pluralistas da economia mainstream americana ficam frequentemente indignados com a atuação pluralista das agências de fomento brasileiras.

Postura Político-Ideológica

Marques está interessado no campo de economia no Brasil, dentro e fora da academia. Assim, é compreensível que ele se refira ao debate sobre política econômica fora da academia, com disputas entre “liberais” e “intervencionistas” (ou “desenvolvimentistas”) e às ligações entre participantes neste debate e a academia. Algumas correntes de pensamento econômico na academia também se diferenciam, entre outros fatores, em termos de suas posições político-ideológicas, incluindo o papel do estado na economia. No entanto, é preciso notar duas coisas a esse respeito.

Primeiro, aquela distinção político-ideológica não corresponde à distinção entre ortodoxia e heterodoxia. Nem todos os economistas neoclássicos são liberais ou neoliberais – ao contrário do que parecem acreditar Marques e alguns economistas alternativos. Por exemplo, há vários keynesianos neoclássicos, com diversos graus de “intervencionismo”. O conceito de economia neoclássica baseado em racionalidade maximizadora de utilidade e equilíbrio (e adotado por vários economistas) não menciona qualquer critério político-ideológico. E nem todos os economistas liberais ou neoliberais são neoclássicos. Há, por exemplo, os economistas da escola austríaca, seguidores de (neo)liberais como Mises e Hayek. Num outro exemplo, os neoschumpeterianos podem ser liberais ou não.

Segundo, aquela distinção político-ideológica também não corresponde à distinção entre economia mainstream e não mainstream, por várias razões: a) como já notado, a economia mainstream inclui a economia neoclássica, que não é unificada politicamente; b) a economia comportamental e outros subconjuntos não neoclássicos da economia mainstream também não são necessariamente (neo)liberais ou mesmo associados a uma postura político-ideológica específica; c) no caso dos Estados Unidos, a escola austríaca é barrada do clube mainstream; d) no caso do Brasil, a economia mainstream definida nacionalmente inclui várias abordagens não liberais críticas à economia mainstream americana.

Uso de Matemática, Estatística e Econometria

Não é fácil identificar ideias ou regras de pensamento que sejam comuns a todo o conjunto da economia mainstream americana nas últimas décadas, mas, se há algo que unifica essa economia, é a regra metodológica segundo a qual o rigor acadêmico ou científico requer o uso de matemática (Dequech, 2007Dequech, David. (2007), "Neoclassical, mainstream, orthodox, and heterodox economics". Journal of Post Keynesian Economics, v. 30, n. 2, pp. 279-302. Disponível em https://doi.org/10.2753/PKE0160-3477300207
https://doi.org/10.2753/PKE0160-34773002...
). Isso vale para a economia neoclássica e para os subconjuntos não neoclássicos da economia mainstream americana.

Vários críticos acreditam que essa regra é problemática, às vezes implicando distorcer ou negligenciar certos objetos de estudo relevantes em favor do método. Para esses críticos, há outras formas de rigor e é possível e necessário avançar no estudo de objetos difíceis de matematizar.

No entanto, o uso de matemática não é monopólio da economia mainstream americana. Várias abordagens críticas também desenvolvem modelos matemáticos, sejam eles empíricos (podendo ser combinados com estatística e econometria) ou teóricos. É preciso diferenciar o uso de matemática, de um lado, e a crença de que só este uso é capaz de dar rigor à economia, de outro.

Por essas razões, o aumento da proporção de artigos que utilizam matemática, estatística ou econometria nas revistas brasileiras de economia não implica em si mesmo uma maior adesão ao neoclassicismo, ao contrário do que sugere Marques (2024Marques, Francisco. (2024), "As disputas entre ortodoxos e heterodoxos: O que é (e o que não é) Economia". DADOS, v. 67, n. 2, pp. 1-51. Disponível em https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2.318
https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2....
:5), e nem mesmo à economia mainstream – exceto talvez, em alguns casos, a adesão àquela mesma regra metodológica de rigor. É bem plausível a hipótese de que também tenha aumentado o uso de matemática e de métodos quantitativos entre os críticos da economia mainstream americana. Observações casuais captam indicações de que isso aconteceu, no Brasil, embora seja algo a aferir empiricamente.

Tudo isso implica que é preciso tomar cuidado ao discutir os pesos atribuídos pelos diferentes programas de pós-graduação no Brasil às várias provas do Exame Nacional de Economia, da Anpec. É verdade que os programas de mestrado em economia da UFRJ e – mais ainda – da Unicamp (chamado de Ciência Econômica junto à Capes), os dois mais claramente alternativos à economia mainstream americana, atribuem um peso mais baixo às provas de Matemática e Estatística, em favor das duas provas de Economia Brasileira (uma de múltipla escolha e outra aberta)2 2 . A Tabela 1 de Marques (2024) mostra apenas a soma do peso das duas provas, sem notar que se trata de duas provas separadas de Economia Brasileira e que, como explicarei mais adiante, elas são corrigidas de forma diferente. . No entanto, isto reflete uma especificidade dos grupos dominantes da política interna desses institutos e não da economia alternativa como um todo, seja no Brasil ou em outros países. Um programa de pós-graduação dominado por críticos da economia mainstream americana poderia perfeitamente usar a classificação geral da Anpec, que dá pesos iguais (20%) às cinco provas de múltipla do exame – ou mesmo dar peso zero às duas provas de Economia Brasileira, se considerar que esta não é uma matéria de conteúdo indispensável na pós-graduação, com a possível e discutível exceção de quem for fazer dissertação de mestrado ou tese de doutorado sobre temas brasileiros3 3 . De modo semelhante, enquanto o mestrado em economia da Unicamp tem uma disciplina obrigatória de Economia Brasileira, nenhum programa de pós-graduação nos Estados Unidos e Europa que seja dominado por economistas alternativos tem, que eu saiba, uma disciplina obrigatória ou mesmo eletiva de Economia Americana, Francesa, Inglesa, etc. As questões empíricas relativas a um ou mais países são discutidas em várias outras disciplinas, obrigatórias ou eletivas. .

A este respeito, como em vários outros pontos relevantes para entender o que se passa nos departamentos ou institutos de economia, é útil diferenciar maneiras de pensar sobre a realidade econômica e maneiras de pensar sobre a academia (Dequech, 2018Dequech, David. (2018), "Applying the concept of mainstream economics outside the United States: General remarks and the case of Brazil as an example of the institutionalization of pluralism". Journal of Economic Issues, v. 52, n. 4, pp. 904-924. Disponível em https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/00213624.2018.1518532
https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1...
:916). Elas podem ser chamadas também de visões de economia e visões de academia, respectivamente. Visões de economia diferenciam entre si as escolas de pensamento econômico ou abordagens específicas. Visões de academia referem-se a como deveria funcionar uma unidade acadêmica – um instituto, um departamento (não só de economia), etc. Mais especificamente, elas dizem respeito aos critérios associados às regras formais e informais para contratar e promover professores (inclusive os que irão corrigir provas usadas em exames de seleção), alocar professores na graduação e na pós-graduação e selecionar alunos de graduação e de pós-graduação.

É perfeitamente cabível que um professor acredite que, em geral, bons alunos geralmente vão bem em muitas disciplinas. Isto estará em geral refletido em seus históricos escolares, especialmente se cada histórico fornecer informações sobre o desempenho relativo do estudante, em comparação com seus colegas (como faz uma versão do histórico escolar das universidades estaduais paulistas). Assim, no caso da economia, considerando que matemática e estatística, tal como macroeconomia e microeconomia, são matérias obrigatórias em cursos de graduação, é também perfeitamente cabível que um professor de economia – mesmo se for crítico da economia mainstream americana – acredite que um programa de pós-graduação deva dar peso igual às várias provas de múltipla escolha do exame da Anpec na seleção de alunos de pós-graduação.

A diferença entre visões de economia e visões de academia também pode ser importante no que diz respeito a uma diferença entre a prova de Economia Brasileira de múltipla escolha e sua correspondente aberta, no exame anual da Anpec. O fato de que a prova aberta tem correção local, em cada programa que a usa, dá ao programa um grau de liberdade inexistente no caso das provas de múltipla escolha (Macroeconomia, Microeconomia, Matemática, Estatística e Economia Brasileira), cuja correção é nacional e, portanto, a mesma para todos os programas. Quanto maior o peso da prova aberta de Economia Brasileira, maior esse grau de liberdade, que pode ser usado para fazer valer não apenas visões de economia, mas também, possivelmente de forma decisiva, visões de academia.

Internacionalização

A história importa. No caso das organizações, incluindo as organizações escolares, existe dependência em relação à trajetória (path dependence). Isto pode ser para o bem ou para o mal – como no ditado “pau que nasce torto cresce torto”. Assim, várias características atuais de programas de pós-graduação em economia no Brasil remontam às suas origens. A meu ver, Marques (2024Marques, Francisco. (2024), "As disputas entre ortodoxos e heterodoxos: O que é (e o que não é) Economia". DADOS, v. 67, n. 2, pp. 1-51. Disponível em https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2.318
https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2....
:19) está certo ao afirmar isso. No entanto, na mesma passagem, ele parece reproduzir, equivocadamente, uma associação entre internacionalização e integração à economia mainstream (internacional). Essas duas coisas não são iguais por definição, mesmo se tiver existido uma grande associação entre elas no Brasil até o final da década de 1990. De qualquer modo, a situação mudou muito, sobretudo a partir de meados da década seguinte.

O grau de internacionalização da área acadêmica de economia ainda é baixo no Brasil, especialmente no que concerne à produção de artigos e de citações na Web of Science, mas cresceu fortemente na última década e meia, pelo menos até 2022. Esse processo recente de internacionalização abarcou vários subconjuntos dos economistas brasileiros alternativos à economia mainstream americana, possivelmente com mais intensidade, até porque eles partiam de um patamar ainda mais baixo.

Seja para visões alinhadas ao mainstream americano ou para visões alternativas, o grande ponto de inflexão foi uma mudança institucional promovida pela Capes na área de economia – mas não em outras ciências sociais, nas humanidades e nas áreas interdisciplinares próximas. Em meados da década de 2000, a Capes restringiu as duas faixas superiores do Qualis de Economia a revistas internacionais. As duas faixas superiores (A1 e A2) eram, na ocasião, as faixas nas quais a publicação de artigos era indispensável para que programas de pós-graduação conseguissem uma nota 6 ou 7, as duas mais altas da escala Capes. Em outras palavras, sem artigos internacionais em revistas selecionadas (que não podiam ser todos ou quase todos escritos pelo mesmo professor), um programa na área de economia não obteria a nota 6. Isto foi feito de maneira pluralista, colocando no Qualis de Economia várias das principais revistas internacionais de economia abertas a ideias dissidentes da economia mainstream americana – o que gerou, em vão, protestos antipluralistas.

A publicação de artigos internacionais deu um salto proporcional muito grande, já no triênio seguinte e nos posteriores. Mais do que uma resposta instrumental aos incentivos dados pela norma de internacionalização de artigos, houve também uma mudança mais profunda, com a internalização dessa norma por vários pesquisadores, ou seja, a valorização da internacionalização de artigos como algo positivo em si mesmo, inclusive em alguns círculos alternativos.

Seja pelas ligações entre Capes e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), seja pela internalização da norma por acadêmicos, seja por ambos os fatores, a internacionalização de artigos teve reflexos importantes no perfil dos bolsistas de produtividade em economia. Na prática, crescentemente a publicação de artigos internacionais passou a ser requisito para a obtenção dessas bolsas de produtividade em economia – ainda mais nos níveis mais altos e pelo menos até 2023, quando a Capes criou o Qualis de Referência, unificado de um modo que reverte os incentivos à internacionalização na área de economia, com impacto no CNPq.

A propósito, a experiência da área de economia depois dos incentivos da Capes à internacionalização (até 2022) mostra que o processo de internacionalização da publicação de artigos de economia tem incluído inúmeros artigos sobre temas brasileiros, inclusive regionais e urbanos. Isto reforça o argumento de que artigos sobre o Brasil, suas regiões ou cidades necessariamente têm (mesmo que implicitamente) elementos conceituais, teóricos e metodológicos que não são exclusivos de um único país. Assim, tais artigos podem ser avaliados até por quem não é especialista no Brasil4 4 . Sendo DADOS uma revista de ciências sociais, é interessante notar que o argumento não se restringe a artigos sobre economia. .

Interdisciplinaridade

Nas últimas décadas, a interdisciplinaridade aumentou em diversos aspectos das universidades de países avançados e talvez também no Brasil. No caso específico da economia, as barreiras que a separam de outras disciplinas das ciências sociais e das humanidades estão hoje mais baixas do que eram em, digamos, meados da década de 1970. Não obstante, a economia como disciplina continua sendo mais insular que as outras ciências sociais e as humanidades.

Como o caso da economia no Brasil é diferente do americano e de vários outros, não é surpreendente que as diferenças também ocorram quanto à interdisciplinaridade. Quase todas as principais revistas nacionais de economia são abertas a abordagens não apenas críticas da economia mainstream americana, mas também interdisciplinares. Elas publicam com bastante frequência artigos alternativos que dialogam com outras disciplinas sociais e humanas. A mesma abertura é encontrada nas principais agências de fomento do Brasil em relação a propostas de pesquisa e candidaturas a bolsas de produtividade em economia.

Há muito a ganhar com a interdisciplinaridade. Nenhuma corrente de pensamento econômico sozinha e nenhuma disciplina sozinha fornece um entendimento adequado de todas as principais questões econômicas. Isto é verdade em geral e mais ainda quando se trata das instituições, tema amplo sobre o qual a interdisciplinaridade envolvendo a economia cresceu muito nas últimas décadas.

Alguém que acredita fortemente no que está escrito no parágrafo anterior pode ficar muito à vontade para afirmar que, por outro lado, a interdisciplinaridade não apenas envolve desafios, como também traz perigos consideráveis. Entre eles estão aqueles relacionados com a avaliação de programas de pós-graduação, propostas de pesquisa e pesquisadores individuais. Não é fácil estabelecer critérios de avaliação interdisciplinar rigorosos. Com isso, existe o risco de que a interdisciplinaridade se transforme num refúgio para aqueles que, por razões diferentes da intolerância à interdisciplinaridade e da falta de pluralismo em suas disciplinas originais, não conseguem aprovação em critérios de seleção próprios de suas disciplinas.

Conclusão

É preciso tomar cuidado para não reproduzir a crença equivocada, compartilhada por alguns economistas alternativos no Brasil, de que a economia mainstream é igual à economia neoclássica e de que esta, por sua vez, é igual à economia (neo)liberal. O presente comentário rejeita essas igualdades. Além disso, ele argumenta que o caso do Brasil é diferente do americano. No Brasil, têm prestígio e influência na academia econômica ideias que são marginalizadas nos Estados Unidos, o que torna o próprio conceito de economia mainstream mais complicado. Tudo isso implica várias divergências em relação ao artigo recente de Francisco Marques (2024)Marques, Francisco. (2024), "As disputas entre ortodoxos e heterodoxos: O que é (e o que não é) Economia". DADOS, v. 67, n. 2, pp. 1-51. Disponível em https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2.318
https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2....
. Outras diferenças são apontadas no que se refere ao uso de matemática, estatística e econometria e à interdisciplinaridade. O resultado é uma visão mais complexa da academia de economia nos Estados Unidos e sobretudo no Brasil. Por sua vez, quanto ao debate sobre política econômica, dentro e fora da academia, isto implica recusar uma associação pura e simples entre ortodoxos e (neo)liberais, de um lado, e heterodoxos e “intervencionistas” (ou “desenvolvimentistas”), de outro – mesmo se deixarmos de lado o fato de que a própria distinção entre (neo)liberais e “intervencionistas” não capta várias gradações e combinações relevantes. O comentário também identifica e corrige as principais distorções na tradução que Marques faz de um trecho relativamente longo de meu artigo (Dequech, 2018Dequech, David. (2018), "Applying the concept of mainstream economics outside the United States: General remarks and the case of Brazil as an example of the institutionalization of pluralism". Journal of Economic Issues, v. 52, n. 4, pp. 904-924. Disponível em https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/00213624.2018.1518532
https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1...
).

Referências

  • Colander, David; Holt, Richard; Rosser Jr., J. Barkley. (2004), "The changing face of mainstream economics". Review of Political Economy, v. 16, n. 4, pp. 485-499. Disponível em https://doi.org/10.1080/0953825042000256702
    » https://doi.org/10.1080/0953825042000256702
  • Dequech, David. (2007), "Neoclassical, mainstream, orthodox, and heterodox economics". Journal of Post Keynesian Economics, v. 30, n. 2, pp. 279-302. Disponível em https://doi.org/10.2753/PKE0160-3477300207
    » https://doi.org/10.2753/PKE0160-3477300207
  • Dequech, David. (2018), "Applying the concept of mainstream economics outside the United States: General remarks and the case of Brazil as an example of the institutionalization of pluralism". Journal of Economic Issues, v. 52, n. 4, pp. 904-924. Disponível em https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/00213624.2018.1518532
    » https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/00213624.2018.1518532
  • Marques, Francisco. (2024), "As disputas entre ortodoxos e heterodoxos: O que é (e o que não é) Economia". DADOS, v. 67, n. 2, pp. 1-51. Disponível em https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2.318
    » https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2.318

Notas

  • 1
    . Esta confusão transforma-se num erro significante, dentro da academia, quando a participação na mídia, no governo ou em partidos políticos é tomada como sinal de excelência acadêmica. Estudar este erro e a frequência com que ele ocorre (como no caso de alguns grupos de economistas brasileiros dissidentes da economia mainstream americana) pode ser interessante, mas não é o mesmo que cometer o erro.
  • 2
    . A Tabela 1 de Marques (2024)Marques, Francisco. (2024), "As disputas entre ortodoxos e heterodoxos: O que é (e o que não é) Economia". DADOS, v. 67, n. 2, pp. 1-51. Disponível em https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2.318
    https://doi.org/10.1590/dados.2024.67.2....
    mostra apenas a soma do peso das duas provas, sem notar que se trata de duas provas separadas de Economia Brasileira e que, como explicarei mais adiante, elas são corrigidas de forma diferente.
  • 3
    . De modo semelhante, enquanto o mestrado em economia da Unicamp tem uma disciplina obrigatória de Economia Brasileira, nenhum programa de pós-graduação nos Estados Unidos e Europa que seja dominado por economistas alternativos tem, que eu saiba, uma disciplina obrigatória ou mesmo eletiva de Economia Americana, Francesa, Inglesa, etc. As questões empíricas relativas a um ou mais países são discutidas em várias outras disciplinas, obrigatórias ou eletivas.
  • 4
    . Sendo DADOS uma revista de ciências sociais, é interessante notar que o argumento não se restringe a artigos sobre economia.
  • 5
    . Para evitar passar a impressão de que o trecho original sugere que estes cursos eletivos sejam os únicos com conteúdo mainstream americano na UFRJ, convém notar que ele contém a seguinte passagem referente ao programa de pós-graduação em economia daquela universidade: “O conteúdo dos cursos obrigatórios (um cada) em macro e microeconomia é semelhante ao mainstream americano, mas os estudantes de pós-graduação devem escolher entre blocos eletivos cujos cursos têm um conteúdo predominantemente alternativo” (Dequech, 2018Dequech, David. (2018), "Applying the concept of mainstream economics outside the United States: General remarks and the case of Brazil as an example of the institutionalization of pluralism". Journal of Economic Issues, v. 52, n. 4, pp. 904-924. Disponível em https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/00213624.2018.1518532
    https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1...
    :909, tradução do autor).
  • *
    O autor agradece o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (processo 313496/2023-4) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) (processo 2015/11822-7).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2024
  • Aceito
    1 Mar 2024
Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) R. da Matriz, 82, Botafogo, 22260-100 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel. (55 21) 2266-8300, Fax: (55 21) 2266-8345 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: dados@iesp.uerj.br