Acessibilidade / Reportar erro

Patrimônio cultural: um convite à reflexão coletiva para ações colaborativas

Cultural heritage: an invitation to collective reflection for collaborative actions

RESUMO

Uma carta presente no Fundo Waldisa Russio, sob a guarda do Arquivo IEB/USP, vem nos lembrar sobre a importância do trabalho de preservação junto ao patrimônio cultural. O texto, escrito por profissionais italianos, é dirigido a jovens e nos convida a refletir sobre a importância do envolvimento coletivo quando o assunto é a conservação do patrimônio de uma nação. Apresentando propostas de boas práticas de ações colaborativas, o documento salienta os inúmeros valores presentes em obras de arte, em objetos de ofícios, em edificações e, sobretudo, salienta o necessário envolvimento do maior número de pessoas.

PALAVRAS-CHAVE
Patrimônio cultural; ações coletivas e colaborativas de preservação; educação patrimonial

ABSTRACT

A letter in the Waldisa Russio Fund, kept by the IEB/USP Archive, reminds us of the importance of preservation work in cultural heritage. The text, written by Italian professionals, is addressed to young people and invites us to reflect on the importance of collective involvement when it comes to the conservation of a nation’s heritage. Proposing good practices for collaborative action, the document highlights the many values present in works of art, objects of crafts, buildings and, above all, emphasizes the need to involve as many people as possible.

KEYWORDS
Cultural heritage; collective and collaborative conservation actions; heritage education.

Nunca é demais refletirmos sobre a importância do patrimônio cultural, especialmente quando envolve ações coletivas e colaborativas. No caso do patrimônio documental sob a guarda do Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP), sempre surpreende a pluralidade de informações que encontramos em nosso acervo. Junto aos arquivos pessoais, é fato que o conteúdo ali presente, entre cartas, diários e tantas outras tipologias, vai muito além da produção intelectual e dos registros que remetem à jornada biográfica de seu titular. Sabe-se que, muitas vezes, é por meio de uma voz que um intenso coro ecoa entre as caixas de guarda dos documentos. Mas, quando nos deparamos com algo que nos surpreende, vale a pena compartilhar tal achado com o máximo de pessoas possíveis.

Hoje gostaríamos de apresentar uma carta, presente no Fundo Waldisa Russio Camargo Guarnieri. É um registro que evidencia a vasta rede de referências e relações internacionais que Waldisa estabeleceu no campo da museologia. A carta nos lembra sobre a necessária discussão acerca do patrimônio cultural de um país. Apesar de ser um documento escrito por italianos e partir da experiência da Itália, a carta nos chama a atenção pela pertinência e atualidade de seu conteúdo. Curiosamente ela não é destinada diretamente à titular do Fundo, mas dirigida a um “grupo de jovens”, que hipoteticamente acreditamos fazer referência a possíveis alunos da grande mestre que foi Waldisa. O documento é assinado por Antonio Paolucci e Maria Fossi Todorow. Ele, dentre os vários cargos públicos que ocupou durante sua vida, destaca-se na função de diretor dos Vatican Museums, assumida em 2007. A carta de dupla autoria, salvaguardada no arquivo de Waldisa Russio não apresenta data, mas pode ser atribuída às décadas de 1970 a 1980, quando sabemos que Paolucci atuou em cargos públicos ligados à Galleria degli Uffizi. Compondo a equipe da galeria, é dela que os autores apontam para o patrimônio artístico reconhecido em obras de arte, edificações e objetos de ofício. Mas alertam, sobretudo, para a importância do envolvimento das pessoas e como todos são convidados a ações de preservação desse patrimônio.

Publicada aqui em tradução livre, o exercício propõe-se a aproximar o leitor brasileiro de seu conteúdo. Apesar de ser um registro que parte das experiências italianas, a proposta dialoga com o Brasil.

Vamos à carta.

Figura 1
Arquivo IEBIEB - Instituto de Estudos Brasileiros. Catálogo Eletrônico. Arquivo. Fundo Waldisa Russio Camargo Guarnieri. Correspondência assinada por Antônio Paolucci e Maria Fossi Todorow, da Galleria degli Uffizi, sobre a política de conservação do Patrimônio Artístico da instituições italiana. Firenze, s. d. Código de referência WR-RS-APO-001. Disponível em: http://200.144.255.59/catalogo_eletronico/consultaDocumentos.asp. Acesso em: ago. 2023.
http://200.144.255.59/catalogo_eletronic...
/USP, Fundo Waldisa Russio Camargo Guarnieri, código de referência WR-RS-APO-001

Superintendência da Galeria de Firenze Rua Della Ninna, 5 Tel. 218341

Estimados jovens,

na visita que vocês fizeram na Galeria Uffizi, vocês estiveram em contato direto com as mais famosas obras de arte que são de valor inestimável, que são publicadas em livros e que todo o mundo conhece. Na história, porém, não estão somente as obras-primas. Na época em que Giotto e Simone Martini pintaram suas maravilhosas obras, havia muitos outros pintores e escultores que pintaram e esculpiram obras menos conhecidas e menos notadas, menos importantes; havia então muitos artesãos que produziam uma enorme quantidade de coisas (tecidos, móveis, armas, utensílios domésticos, adornos para igrejas etc.). Já que nesses tempos não existia a indústria e o artista e o artesão eram chamados com o mesmo nome e eram a mesma coisa, eis que aqueles objetos tornaram-se para nós testemunhos de arte, que nos ajudam a entender a história e a vida daquela época e devem portanto ser cuidadosamente preservados.

Naturalmente, das obras “de arte menores” (chamam-se assim aquelas obras de arte que não são pinturas, esculturas, e monumentos arquitetônicos) do tempo de Giotto, restaram poucas; porém, sobreviveram, por sorte, em grande quantidade “obras de arte menores” de épocas mais próximas de nós.

Todas obras de arte de importância maior ou menor são tuteladas e salvaguardadas pela superintendência, que tem a responsabilidade de conservar, valorizar, divulgar todo o infinito testemunho da nossa história e da nossa arte. Sobretudo, conservar aquele conjunto de obras de arte grandes e pequenas se chama “Patrimônio artístico”.

Façamos um exemplo. Vocês estiveram, repito, aqui em Uffizi. Tiveram a oportunidade de ver as obras-primas de várias épocas; bem, se você entrar em alguma igreja antiga no seu país, é certeza que você encontre alguns quadros ou alguns afrescos, uma pia batismal ou um púlpito, um altar de uma época mais ou menos antiga, mas todavia obras sempre interessantes porque são válidas e insubstituíveis testemunhas do passado. Se vocês pedirem ao pároco que lhes mostre a sacristia ou as salas da casa paroquial, ficarão surpresos ao descobrirem outros objetos antigos, mais ou menos importantes.

Alguns terão quatro séculos de vida, outros dois, outros terão sido feitos no tempo dos seus avós. São objetos de igreja, naturalmente, cálices para a missa, estola e paramentos para as funções, cruzes, turíbulos para o incenso, relicários etc.

Visto que na Itália existem milhares e milhares de pequenas cidades e de localidades (cada uma com suas igrejas e suas obras de arte) vocês podem ter uma ideia de quão imenso é o patrimônio artístico de nosso país, sem contar naturalmente os museus famosos como o de Uffizi, as grandes cidades cheias de igrejas célebres.

Todo esse discurso é para dar a entender que as obras de arte não existem somente em grandes museus de cidade, mas existem dispersas em todo o território italiano: na verdade, a beleza e o fascínio, particularmente da nossa região, consistem propriamente no fato que todos os cantos do campo, todas as porções mínimas do território têm testemunhos da história e da arte antigos, raros e preciosos.

Todas essas obras devem ser conhecidas, devem ser conservadas e restauradas quando necessário, caso contrário, se ninguém se importa, se ninguém as conhece e não compreende a importância, elas acabam por ruírem. As pragas comem a madeira, o tecido apodrece e se parte, as pinturas se esfarelam e caem em pedaços, mesmo o mármore e a pedra, que podem parecer eternos, acabam por se consumir e morrer.

Muitos de vocês poderão ter observado, em algumas localidades do campo, casas e igrejas abandonadas; uma vez, ao redor daquelas igrejas, havia um vilarejo pleno de vida. Depois, as pessoas se foram e o vilarejo morreu.

Que fim levaram as obras de arte que estavam naquelas igrejas? Se ninguém as tivesse conhecido, se ninguém se preocupasse com elas, elas teriam acabado nas mãos de ladrões ou teriam sido destruídas pelo tempo e pelo abandono. Em alguns casos, o pároco ou outras pessoas que tivessem cuidado com essas recordações trabalhariam para transferi-las para outros locais; salvando assim esse patrimônio artístico de uma segura ruína. Quem sabe quantos objetos interessantes do ponto de vista da história da arte estão em vários locais em risco de se perderem porque ninguém mais se dedica à sua conservação, determinando assim as condições pelo seu definitivo desaparecimento.

Para evitar isso é necessário o empenho de todos, inclusive o de vocês. Por exemplo, vocês poderiam fazer levantamentos e descrições de coisas que vocês reconhecem como antigas e importantes ou também simplesmente interessantes e curiosas. Talvez vocês possam ajudar, vocês podem fazer isso com suas máquinas fotográficas. Todos os objetos antigos e velhos que estão naquelas igrejas (na sua cidadezinha ou em locais vizinhos), os tabernáculos construídos nas casas ou esparsos em ruazinhas secundárias, alguns velhos instrumentos agrícolas que agora não são mais usados, as construções coloniais que parecem para vocês mais antigas e mais interessantes.

Os resultados de suas pesquisas e de suas fotografias, sempre naturalmente sob a orientação dos seus professores, poderão tornar-se o tema de uma exposição fotográfica feita na sua própria escola, podendo assim contribuir a fazer conhecer, a valorizar e, portanto, salvar o patrimônio histórico-artístico do seu território.

A carta apresentada nesta edição não deve ser tratada com o fetiche com o qual muitos documentos são tratados. Como todo documento, certamente ela não traz uma verdade absoluta, nem é blindada a críticas. Nesse aspecto, por exemplo, é importante pontuar a problemática presente no texto, que aproxima o valor patrimonial ao poderio da igreja católica na Itália. Também é importante ressaltar sobre a valoração do patrimônio, que é desenvolvida e contextualizada no decorrer da carta, mas que vale nossa atenção. Nesse sentido, Ulpiano Bezerra de Meneses, vem nos lembrar que

[...] falar e cuidar de bens culturais não é falar de coisas ou práticas em que tenhamos identificado significados intrínsecos, próprios das coisas em si, obedientemente embutidos nelas, mas é falar de coisas (ou práticas) cujas propriedades, derivadas de sua natureza material, são seletivamente mobilizados pelas sociedades, grupos sociais, comunidades, para socializar, operar e fazer agir suas ideias, crenças, afetos, seus significados, expectativas, juízos, critérios, normas, etc., etc. - e em suma, seus valores. Só o fetiche (feitiço) tem em si, por sua autonomia, sua significação. Fora dele, a matriz desses sentidos, significações e valores não está nas coisas em si, mas nas práticas sociais. Por isso, atuar no campo do patrimônio cultural é se defrontar, antes de mais nada, com a problemática do valor, que ecoa em qualquer esfera do campo. (MENESES, 2009MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra. O campo do patrimônio cultural: uma revisão de premissas. Conferência Magna. In: FÓRUM NACIONAL DO PATRIMÔNIO CULTURAL, 1. Anais.... V. 1. Ouro Preto: IPHAN, 2009, p. 25-39. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/4%20-%20MENESES.pdf. Acesso em: ago. 2023
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfin...
, p. 32).

Mas, apesar dos pontos críticos, ressalta-se a propositiva valorização da educação patrimonial e o convite a ações coletivas - verbalizadas e estendidas aos jovens destinatários do documento -, voltadas a realizações e pesquisas junto ao patrimônio local. Em outras palavras, a carta é propositiva e convida à prática efetiva de atividades no Brasil e em tantos lugares do mundo.

Essa práxis é fundamental junto a protocolos de preservação patrimonial e, quando dirigida aos jovens, torna a mensagem do documento ainda mais potente. No Brasil, nosso patrimônio é amplo e valioso. Do material com suas edificações e materialidades, ao imaterial com nossos saberes e fazeres ímpares. Seu valor só se amplia quando é conhecido e, sobretudo, quando nos reconhecemos nele. Fica aqui o convite para que os leitores também se reconheçam como agentes da preservação do patrimônio junto aos territórios em que habitam.

Agradecemos a Paula Talib Assad, pesquisadora que nos apresentou o documento durante seu estágio junto ao acervo de Waldisa Rússio. Também agradecemos ao professor Alexandre Antoniazzi pelo apoio fundamental na tradução da carta para o português.

Referências

  • IEB - Instituto de Estudos Brasileiros. Catálogo Eletrônico. Arquivo. Fundo Waldisa Russio Camargo Guarnieri. Correspondência assinada por Antônio Paolucci e Maria Fossi Todorow, da Galleria degli Uffizi, sobre a política de conservação do Patrimônio Artístico da instituições italiana. Firenze, s. d. Código de referência WR-RS-APO-001. Disponível em: http://200.144.255.59/catalogo_eletronico/consultaDocumentos.asp Acesso em: ago. 2023.
    » http://200.144.255.59/catalogo_eletronico/consultaDocumentos.asp
  • MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra. O campo do patrimônio cultural: uma revisão de premissas. Conferência Magna. In: FÓRUM NACIONAL DO PATRIMÔNIO CULTURAL, 1. Anais... V. 1. Ouro Preto: IPHAN, 2009, p. 25-39. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/4%20-%20MENESES.pdf Acesso em: ago. 2023
    » http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/4%20-%20MENESES.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Ago 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Ago 2023
  • Aceito
    16 Ago 2023
Instituto de Estudos Brasileiros Espaço Brasiliana, Av. Prof. Luciano Gualberto, 78 - Cidade Universitária, 05508-010 São Paulo/SP Brasil, Tel. (55 11) 3091-1149 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaieb@usp.br