RESUMO
Objetivo: Identificar o perfil dos doadores de tecidos oculares humanos na área de atuação do Banco de Olhos da Paraíba, destacando o impacto da sorologia positiva para hepatite B no descarte dos tecidos para transplante.
Métodos: O estudo é transversal e utilizou dados do Banco de Olhos da Paraíba entre janeiro de 2013 e dezembro de 2022. Dados sobre procedência, idade, sexo, causa do óbito, tempo entre óbito e enucleação, resultados sorológicos e motivo de descarte das córneas dos doadores foram coletados.
Resultados: O maior motivo de descarte foi por sorologia positiva (56,5%), sendo positivadas as sorologias positivas para hepatite B e HBsAg em 11,1% e 4,75% dos pacientes, respectivamente.
Conclusão: A sorologia positiva para hepatite B como um critério de descarte absoluto é responsável por grande parcela de descartes, apesar da pouca informação sobre suas repercussões e representação de infectividade nos receptores do transplante.
Descritores: Bancos de olhos; Doadores de tecidos; Hepatite B; Sorologia
ABSTRACT
Objective: To identify the profile of human ocular tissue donors in the area covered by the Eye Bank of Paraíba (PB), highlighting the impact of positive serology for hepatitis B (anti-HBc) in the disposal of tissues for transplantation.
Methods: This is a cross-sectional that uses data from the Eye Bank of Paraíba (PB) between January 2013 and December 2022. Data on origin, age, sex, cause of death, time between death and enucleation, serological results, and reason for discarded donor corneas were collected.
Results: The main reason for discarding was due to positive serology (56.5%), with positive anti-HBc and HBsAg serology in 11.1% and 4.75% of patients, respectively.
Conclusion: Anti-HBc positive serology as an absolute disposal criterion is responsible for great part of disposals, despite little information about its repercussions and representation of infectivity in transplant recipients.
Keywords: Eye banks; Tissue donors; Hepatitis B; Serology
INTRODUÇÃO
O transplante de córnea, ou a ceratoplastia, é o transplante alogênico de maior sucesso em todo o mundo, visto que a córnea é desprovida de vasculatura, o que diminui o risco de rejeição do enxerto.(1) Além disso, a ceratoplastia é uma cirurgia de extrema importância, pois possibilita que pacientes com distúrbios da transparência e/ou da regularidade óptica melhorem consideravelmente, reintegrando o indivíduo à sociedade, uma vez que a visão é um sentido essencial para a execução de atividades básicas diárias.(2)
As patologias da córnea são responsáveis por uma das principais causas de cegueira reversível no mundo, existindo diversas indicações para a realização do transplante de córnea, que incluem etiologias degenerativas, infecciosas, inflamatórias, traumáticas e patologias crônicas.(3)
Apesar da importância, eficácia e diversas indicações trazidas pelo transplante de córnea, um enxerto mal sucedido pode levar à cegueira e a sequelas permanentes. Por esse motivo, existem diversos critérios para classificar a córnea como apta ao transplante e, consequentemente, dita de boa qualidade. Esses critérios se baseiam principalmente na inocuidade, na transparência e na vitalidade.(2)
Assim, diversas medidas são tomadas, a fim de evitar essa contaminação, dentre elas: a análise do prontuário do doador, a realização de testes sorológicos e a imersão do tecido doado em soluções antibióticas após a enucleação.(2)
A atual análise da córnea e dos demais órgãos para transplante é bastante criteriosa, regida por leis, decretos, diretrizes e regulamentos que devem ser cumpridos de forma rígida, com execução e documentação corretas para minimizar o risco de erros, e isso ocorre na ideia de oferecer o melhor e mais seguro transplante possível.(4)
Criada em 1999, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é um órgão regulador vinculado ao Ministério da Saúde que realiza a fiscalização de todos os produtos e serviços, entre eles, os serviços de saúde e Bancos de Tecidos Oculares (BTO). As boas práticas em tecidos, incluindo os requisitos técnico-sanitários mínimos para o funcionamento dos Bancos de Tecidos, são indicados pela Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 55, de 11 de dezembro de 2015.(5) Essas boas práticas visam à segurança e à qualidade dos tecidos fornecidos para uso terapêutico.
O Banco de Olhos ou Banco de Tecidos Oculares (BTOC), segundo a RDC 67 de 2008, é um serviço que tem como atribuições a realização de busca de doadores, retirada, identificação, transporte para o BTOC, avaliação, preservação, armazenamento e disponibilização de tecidos oculares de procedência humana para fins terapêuticos, de pesquisa, ensino ou treinamento.(6)
Nem todas as córneas se tornam aptas à doação após a avaliação de qualidade realizada pelo Banco de Olhos. Diversas situações podem indicar exclusão da doação e, entre os fatores que devem ser analisados, está a história social e clínica do doador. Os critérios de seleção e de descarte são determinados pela RDC 67 de 2008. Não podem ser doados os tecidos oculares de doadores cuja causa mortis tenha sido de causa desconhecida, por hepatite viral aguda, por sepse, por raiva ou por Aids, por exemplo.(6)
Para avaliar o potencial de transmissão de doença do doador ao receptor da córnea, devem ser realizados testes laboratoriais de alta sensibilidade e especificidade. Os exames laboratoriais obrigatórios são antígeno de superfície do vírus da hepatite B (HBsAg), sorologia positiva para hepatite B (anti-HBc), anti-HCV, anti-HIV-1 e anti-HIV-2. A positividade para um deles é considerada uma contraindicação absoluta pela Anvisa.(6)
Entre as sorologias realizadas e que possuem contraindicação absoluta na sua positividade, é importante ressaltar o grande impacto que as sorologias para hepatite B exercem sobre o descarte de córneas.(7) É notável que o anti-HBc tem grande parcela de influência nesse descarte diante de outras sorologias para hepatite B. O Eye Bank Association of America, por exemplo, preconiza a avaliação do HBsAg como método de escolha para triagem da hepatite B, e o anti-HBc, muitas vezes, não é realizado, pois possui alta sensibilidade, porém baixa especificidade.(8)
Comumente, realiza-se a sorologia para o anti-HBc, porém, não existem casos reportados suficientes para afirmar com certeza que os doadores anti-HBc positivos transmitem o vírus da hepatite B (HBV), e existem estudos com evidências que sugerem que o transplante de órgãos sólidos anti-HBc positivo com profilaxia adequada é uma prática segura.(9) Importante destacar que não há relatos sobre a transmissão de hepatite B por transplantes de córneas com o anti-HBc positivo isolado.
A fila de espera para o transplante de córnea conta com muitos pacientes, que perdem a oportunidade, muitas vezes, devido à grande parcela de descarte.(10) O presente estudo questiona se isso seria evitável, caso a positividade para o core do HBV não fosse considerada como critério de descarte, assim como é feito nos Estados Unidos.
Para compreender a associação e o questionamento do descarte de córneas relacionadas ao anti-HBc positivo é preciso entender primeiramente os diferentes testes sorológicos realizados para identificar a infecção pela hepatite B. O anti-HBc se refere aos anticorpos totais contra o núcleo do HBV. Ele se eleva com o início dos sintomas e persiste por toda vida, indicando uma infecção atual ou prévia. Por sua vez, o anti-HBs avalia o anticorpo contra o antígeno de superfície da hepatite B, indicando recuperação e imunidade ao vírus, estando elevado inclusive em indivíduos vacinados. Por fim, o HBsAg é o antígeno de superfície da hepatite B e pode ser encontrado sericamente em infecções agudas e crônicas, portanto, indicando infecção.(11)
Assim, este estudo transversal traz como hipótese que grande parcela de descartes de tecido de córnea para transplante é devido à positividade isolada para o core do HBV.
O objetivo deste trabalho é rastrear o perfil dos doadores de tecidos oculares humanos nas regiões de atuação do Banco de Olhos da Paraíba.
MÉTODOS
Este estudo é do tipo retrospectivo, transversal, não intervencionista, descritivo. Ademais, a abordagem do trabalho é quantitativa. Ele foi realizado no Banco de Olhos da Paraíba, localizado na cidade de João Pessoa (PB). Os dados foram coletados dos relatórios de doação de córneas do período de janeiro de 2013 a dezembro de 2022. A população inicial do estudo englobou 1.821 prontuários, sendo selecionados aqueles de indivíduos de ambos os sexos que foram encaminhados ao Banco de Olhos da Paraíba após o óbito (Figura 1). Após a identificação e a seleção da população, foram aplicados os critérios de inclusão e os de exclusão.
Fluxograma de seleção amostral, de acordo com a diretriz Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE).
Os critérios de inclusão foram pacientes referidos ao Banco de Olhos da Paraíba como possíveis doadores de córneas entre o período de janeiro de 2013 a dezembro de 2022. Por sua vez, os critérios de exclusão foram: doações exclusivas de esclera, doadores cujas famílias desistiram de dar seguimento à doação e prontuários cujas informações possuíam alguma incongruência ou incompletude de forma a afetar a análise epidemiológica.
Dados sobre idade, sexo, procedência (serviço de saúde), causa e ano do óbito, tempo entre óbito e enucleação, resultados sorológicos e motivo de descarte das córneas dos doadores foram coletados, agrupados para caracterizar a população e descritos como médias ± desvio-padrão ou proporções. Ademais, foi analisado o perfil dos doadores que tiveram sorologia positiva para hepatite B (anti-HBc), com relação aos mesmos dados descritos. Por fim, foram comparados os grupos que positivaram a essa sorologia com aqueles que negativaram para ela. Para a comparação de variáveis categóricas, foi utilizado o teste do qui-quadrado de Pearson, e, para as variáveis contínuas, foi usado o teste U de Mann-Whitney. Valores de p ≤ 0,05 foram considerados estatisticamente significativos.
A coleta de dados foi realizada por meio da leitura e do estudo dos prontuários dos doadores de tecidos oculares cadastrados no Banco de Olhos da Paraíba. A análise estatística foi feita por meio do Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) da IBM) e do Stata 13.0. As variáveis contínuas foram representadas por meio de médias, desvios-padrão e proporções. O programa Stata 13.0 foi utilizado para calcular o qui-quadrado de Pearson e o teste U de Mann-Whitney. A procedência foi definida como serviço de saúde de onde o doador chegou ao Banco de Olhos. As causas de óbito foram definidas de acordo com os capítulos do Código Internacional de Doenças (CID-10), totalizando 13 grupos. O tempo entre óbito e enucleação foi calculado em horas.
No momento da captação, foi realizada a coleta de amostra de sangue para a realização de exames sorológicos obrigatórios. As amostras de sangue do doador foram obtidas da punção jugular, subclávia, femoral ou intracardíaca. Os testes foram realizados em dois laboratórios: no Hemocentro do Estado da Paraíba e no Laboratório Central do Município (Lacem) de João Pessoa. Os resultados de ambos os laboratórios são enviados por via eletrônica. No Banco de Olhos da Paraíba são realizados rotineiramente os testes sorológicos: HBsAg, anti-HBc, anti-HCV, anti-HIV-1 e anti-HIV-2, sífilis, chagas e HTLV.
O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Centro Universitário de João Pessoa (Unipê), com CAAE 68745123.0.0000.5176, considerando a resolução 466 do Conselho Nacional de Saúde 12 de dezembro de 2012, que aprova as diretrizes e as normas regulamentares dos estudos que envolvem seres humanos. Ademais, foi considerada a Norma Operacional 001 do Conselho Nacional de Saúde de 2013, que relata o funcionamento e a organização do Comitê de Ética em Pesquisa e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) sobre a submissão e o seu acompanhamento.
RESULTADOS
No período de 2013 a 2022, foram contabilizados 1.810 doadores de córnea, dos quais 55,5% foram considerados adequados à doação para transplante de córnea e 44,5% foram considerados inadequados. A idade média dos doadores foi de 44,5 ± 16,9 (de 3 a 91 anos). A maioria foi do sexo masculino (71,6%). O tempo médio entre o óbito e a enucleação foi de 4,6 ± 14,4 horas. As principais causas de morte foram causas externas de mortalidade e morbidade (47,3%), seguida pelas doenças do aparelho circulatório (22,6%), doenças do tecido nervoso (9,4%) e outras causas (20,7%) (Figura 2).
Causa mortis dos doadores de córnea do Banco de Olhos da Paraíba do período de 2013 a 2022.
O maior motivo de descarte foi por sorologia positiva (56,5%), seguido de descarte pelas condições do tecido (15,6%), pelo prazo de validade ultrapassado (6,0%) e outros (21,9%) (Tabela 1). Os anos com maior disponibilização de córneas para transplante foram 2021, representando 13,8% das doações neste período de 10 anos, seguido de 2013 (13,4%) e de 2022 (12%). Ademais, o ano com menor número de córneas disponíveis para transplante foi 2020, representando 1,9% das doações desse período, o que pode ser relacionado a pandemia da doença pelo coronavírus 2019 (Covid-19) (Figura 3).
Os principais serviços de saúde de onde os tecidos oculares procederam foram o Hospital de Emergência e Trauma Senador Humberto Lucena (HEETSLH), com 40,8%, o Hospital de Trauma de Campina Grande, com 33,2%, o Hospital Edson Ramalho, com 3,3%, e outros (22,7%).
Com relação às sorologias, individualmente, 11,1% dos doadores testados positivaram para anti-HBc, 9,0% para sífilis, 4,75% para HBsAg, 3,4% para HIV, 2,3% para hepatite C, 0,8% para doença de Chagas, 0,7% para HTLV, 0,38% para Covid-19 e 0,3% para anti-HBS. Quando avaliada a presença da positividade para ambas as sorologias, anti-HBc e HBsAg, essa proporção foi de 1,2% dos pacientes.
Ademais, quando especificadas as sorologias, foi visto que o anti-HBc isolado representou 66,2% dos testes para hepatite B que tiveram resultado positivo; o HBsAg isolado, 23,4%; o anti-HBS, 1,5%; o anti-HBc + HBsAg, 8,5%; e o anti-HBc + anti-HBS, 0,3% (Tabela 2).
Sorologias de hepatite B que foram positivas nos doadores de córneas no Banco de Olhos da Paraíba, no período de 2013 a 2022
Ao comparar os grupos de doadores que tiveram sorologia positiva para o marcador anti-HBc da hepatite B com os que negativaram para ele, observamos uma maior média de idade entre aqueles com anti-HBc positivo. Foram encontradas diferenças significativas para as variáveis idade (p < 0,001) e para o motivo do descarte (p < 0,001). Por fim, não houve diferença estatisticamente relevante entre os demais fatores (sexo e causa de óbito) (Tabela 3).
Características dos doadores conforme sorologia para hepatite B (anti-HBc) no Banco de Olhos da Paraíba no período de 2013 a 2022.
DISCUSSÃO
É questionado se a realização de outros testes associados ao anti-HBc não traria resultados mais fidedignos com relação à identificação de uma real infecção ativa, ao invés de considerar o anti-HBc positivo isolado. A associação do anti-HBc com o anti-HBs, por exemplo,(12) pode ser utilizada para tal identificação. Quando ambos são positivos, demonstra que o indivíduo se tornou imune por infecção natural. Na maioria das vezes em que o anti-HBc é positivo de forma isolada, é por infecção resolvida com anti-HBs não detectado. Tal situação pode ocorrer também por resultados falso-positivos.(11) Mais estudos precisam ser realizados para que haja uma melhor análise dos dados tidos como inconclusivos, evitando o descarte de córneas que poderiam ser aproveitadas.(13)
Apesar de raros os casos, o doador anti-HBc positivo pode gerar uma infecção por HBV oculta. O risco da infecção pode ser reduzido com títulos adequados de anti-HBs ou medidas farmacológicas adequadas quando transplantados órgãos sólidos.(12) Apesar do baixo risco, o monitoramento para o HBV pós-transplante deve ser conduzido em todos os casos em risco de reativação.(14) Foi concluído que a combinação dos títulos anti-HBc e anti-HBs podem ser preditores confiáveis e úteis do risco de reativação do HBV.(15)
Um estudo realizado na Coreia sobre a prevalência do anti-HBc isolado e a detecção do HBV DNA relatou que o primeiro é frequentemente encontrado nos laboratórios clínicos, o que dificulta a ratificação da resolução das infecções pelo HBV. Foram estudados 17.677 soros do Centro de Promoção de Saúde dos departamentos clínicos do hospital, os quais foram avaliados para HBsAg, anti-HBC e anti-HBs; destes, o teste de DNA do HBV utilizando o PCR foi realizado em 230 amostras de anti-HBc, o que mostrou prevalência da positividade nos homens em relação às mulheres, principalmente ao relacionar com o aumento da idade.(16) Neste trabalho, foi possível identificar esse mesmo padrão.
Ademais, níveis muito baixos do HBV DNA foram vistos em apenas 4 (1,7%) dos 230 indivíduos, identificando que, apesar da alta prevalência do anti-HBc isolado positivo, a frequência de infecção oculta pelo HBV foi inesperadamente baixa. Além disso, foi visto que os níveis de carga viral também foram muito baixos, tanto que não foi detectável pelo método de PCR comum.(16)
A aplicação dos critérios de seleção das córneas pelo Banco de Olhos é complexa, principalmente por conta do descarte de córneas resultantes deles. De um lado, se os critérios forem muito rigorosos, o descarte tende a ser exagerado, gerando aumento dos custos de produção e diminuição da disponibilidade dos tecidos; do outro, se os critérios de seleção forem pouco rigorosos, o descarte será menor, o custo de produção também, e haverá um aumento na disponibilidade dos tecidos. Ambas as situações são inadequadas. Nem um Banco de Olhos ineficiente, mas seguro; nem um banco eficiente e com menor segurança.(2) Muito se quer saber sobre a taxa de aproveitamento ideal para que um banco seja simultaneamente seguro e eficiente, porém, ainda não existe uma resposta para isso.
Um estudo transversal realizado entre os anos 2014 e 2015 no Distrito Federal trouxe a hepatite B como uma das principais causas de descarte entre aquelas descartadas por sorologia positiva representando 12 córneas (1,07%) das 155 descartadas, em primeiro lugar para motivo de descarte classificaram-se as causas mortis impeditivas. A realidade atual da sorologia positiva para a hepatite B chama a atenção por ser um motivo de descarte evitável, alertando sobre a melhoria dos testes sorológicos e sobre garantir o não desperdício de córneas para doação.(17)
Até o presente momento não existem critérios cientificamente comprovados que se adéquem a todos com relação às sorologias incluídas na seleção de córneas para transplante, variando, muitas vezes, de país para país. Entretanto, tais critérios são importantes, pois constituem um conjunto estruturado de conceitos que se aperfeiçoam ao longo dos anos de estudos. A diretriz brasileira segue um modelo parecido com a europeia 2006/17/EC, na qual se recomenda a triagem obrigatória do anti-HBc, enquanto os Estados Unidos não consideram este um critério de exclusão de córneas para doação, por exemplo.(18) Quando comparamos a taxa de aproveitamento de tecidos de córneas ao redor do mundo, temos que, no Banco de Olhos americanos, há 50% de aproveitamento e, nos brasileiros, esse dado cai para 40%.(2)
No Brasil, o número de córneas transplantadas aumentou 2,4 vezes nos últimos anos, reduzindo a fila de espera em 16 anos, apesar do pequeno número de doações e da grande taxa de descartes. Essas taxas englobam, respectivamente, as contraindicações médicas (42,5%) e a recusa familiar (36,6%); a sorologia positiva para a hepatite B (33%); a validade tecidual (30,9%) e a qualidade imprópria do tecido (16,8%). Os melhores índices foram observados nas Regiões Sul, Centro-Oeste e Sudeste, enquanto os piores foram identificados nas Regiões Norte e no Nordeste.(10)
Neste estudo, foram aproveitadas 55,5% das córneas, resultado similar a de pesquisa realizada no Paraná, onde 54,4% das córneas foram transplantadas. A maior causa de descarte foi por sorologia positiva (49,6%), valor menor que o encontrado por este estudo (56,5%).(19)
Outro estudo similar foi realizado no Banco de Olhos de Cascavel, onde é relatado que a idade média dos doadores variou entre 54,2 ± 20,6 anos, existindo maior proporção de doadores homens (64,7%) em comparação às mulheres, o que vai ao encontro do estudo atual, que encontrou média de idade entre os doadores de 44,5 ± 16,9 (de 3 a 91 anos) e predominância masculina de 71,6%. Ademais, o tempo médio entre o óbito e a enucleação em Cascavel correspondeu a 3,8 ± 2,4 horas, enquanto, no presente estudo, o tempo médio entre óbito e enucleação correspondeu a 4,6 ± 14,4 horas.(8) A hepatite B se mostrou o principal motivo de descarte de córneas para o Banco de Olhos de Cascavel e os doadores com sorologia positiva para anti-HBc englobam maior média de idade em relação aos com sorologia negativa (p < 0,001), assim como o que foi encontrado nesta pesquisa.
O estudo de Cascavel concluiu que mais pesquisas sobre biossegurança devem ser estimuladas para que se investigue o real potencial de transmissão do HBV para doadores com testes positivos para o anti-HBc isoladamente. Assim, a inclusão de doadores corneanos positivos para o anti-HBc isoladamente pode representar aumento significativo de transplantes.(8)
Outro estudo, realizado no Piauí, analisando 811 prontuários de doadores de córneas do Banco de Olhos do Hospital Getúlio Vargas, em Teresina (PI), no período de 2010 a 2016, trouxe as causas externas como a principal causa de óbito, seguida das doenças do aparelho cardiovascular, sendo este o mesmo resultado encontrado pela pesquisa atual.(20)
No mesmo sentido, estudo realizado na Região Sul do Brasil, com 9.290 córneas, mostrou que 4.235 (45,6%) delas foram descartadas e 5,055 (54,4%) transplantadas. A idade média dos doadores correspondeu a 51,13 ± 14,30 anos e a principal causa de descarte foi a sorologia positiva (49,6%), mais prevalente na faixa etária de 50 a 64 anos.(21)
Ao compreender essa realidade em diferentes regiões do Brasil, é essencial citar que, segundo a RDC 55, de 11 de dezembro de 2015, sobre as boas práticas em tecidos humanos para uso terapêutico, é recomendada a pesquisa da infecção pelo HBV em dois testes, sendo eles a detecção do antígeno de superfície (HBsAg) do HBV e a detecção do anticorpo contra o capsídeo (anti-HBc IgG ou IgG + IgM) do HBV.(5)
O erro mais comum na seleção de tecidos é a tentativa de generalizar os problemas que envolvem a realização de diferentes tipos de transplantes. Os transplantes de órgãos sólidos não podem ser equiparados aos transplantes de córnea; a córnea é avascular, e a pessoa que a recebe geralmente não é imunossuprimida, situação que ocorre nos transplantes de órgãos sólidos.(22) Mais estudos devem ser realizados para analisar o risco de transmissão de doenças por meio de transplantes de córnea, assim como quais as medidas ou testes com maior sensibilidade e especificidade estão disponíveis para a triagem de potenciais doadores. Dessa forma, futuramente, será possível identificar, de uma forma mais segura, quais são aqueles tecidos para transplante que indicam real perigo de infecção ao receptor, aproveitando melhor a sua disponibilização e reduzindo, assim, os descartes.
Por fim, é importante ressaltar que não foram encontrados estudos recentes que avaliem a disponibilização de córneas na atualidade, entretanto, no presente estudo, foi identificado que os anos com maior disponibilização de córneas foram 2021, representando 13,8% das doações neste período de 10 anos, seguido de 2013 (13,4%) e de 2022 (12%). Ademais, o ano com menor número de córneas disponíveis para transplante foi 2020, representando 1,9% das doações. É significativo relacionar esses dados ao período de pandemia da Covid-19.
CONCLUSÃO
A pouca informação sobre as repercussões e representação de infectividade nos transplantes de córnea anti-HBc positivos é uma realidade enfrentada atualmente. Há uma grande parcela de descarte de córneas de doadores com essa sorologia positiva, visto que é considerada um critério de descarte absoluto no Brasil. Deste modo, fica clara a necessidade de estudos mais específicos sobre as sorologias da Hepatite B, especialmente o anti-HBc, e sua relação com a inocuidade ou não na realização de transplantes de córnea para aumentar a sua disponibilização para tantos pacientes que destes necessitam.
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Instituição de realização do trabalho:Centro Universitário de João Pessoa, João Pessoa, PB, Brasil.
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Fonte de auxílio à pesquisa:trabalho não financiado.
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Artigo derivado de monografia de conclusão de curso intitulada “Principais motivos de descarte de córneas para transplante na Paraíba: por que o anti-HBc merece atenção?”, apresentada por ‘Esther Rocha de Queiroz Alves’ e ‘Lara Fernandes de Carvalho’ no Curso de Medicina, do Centro Universitário de João Pessoa em 2023.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Jan 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
19 Jun 2023 -
Aceito
25 Out 2023