Resumo
Desde a declaração do estado pandêmico global em decorrência do novo coronavírus (Sars-CoV-2) pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 11 de março de 2020, diversas têm sido as medidas tomadas por governos ao redor do mundo em relação ao distanciamento social. No caso brasileiro, os governos estaduais anteciparam-se com a decretação de medidas de fechamento de escolas, suspensão de eventos públicos e restrição do comércio. O objetivo deste paper é analisar as diferenças entre os governos estaduais do Brasil relativamente à implementação de intervenções não farmacêuticas (NPIs) para o enfrentamento ao coronavírus, com base no cálculo de um índice de ação governamental. Tendo em vista a consecução deste objetivo geral, foram analisados 367 decretos de 25 executivos estaduais brasileiros nos dois primeiros meses da pandemia no país (final de fevereiro e final de abril). Os resultados preliminares desta análise sugerem diferentes níveis de rigor das medidas para o enfrentamento à COVID-19 por parte dos governos estaduais brasileiros, destacando-se a adoção proativa de políticas mais rigorosas de distanciamento social por alguns estados, antes mesmo da confirmação do primeiro caso da doença em seus domínios.
Palavras-chave:
COVID-19; coronavírus; Brasil; federalismo; distanciamento social
Resumen
Desde la declaración del estado pandémico mundial por el nuevo coronavirus (Sars-CoV-2) por parte de la Organización Mundial de la Salud (OMS), el 11 de marzo de 2020, los gobiernos de todo el mundo han tomado diversas medidas con respecto al distanciamiento social. En el caso brasileño, los gobiernos estatales tomaron la iniciativa de decretar el cierre de escuelas, la suspención de eventos públicos y la restricción del comercio. El propósito de este artículo es analizar las diferencias entre los gobiernos estatales brasileños en lo que respecta a la implementación de intervenciones no farmacéuticas (NPI) para combatir el coronavirus, en base al cálculo de un índice de acción gubernamental. Se analizaron 367 decretos de 25 ejecutivos estatales en los primeros dos meses de pandemia en el país. Los resultados preliminares de este análisis sugieren diferentes niveles de rigor en las medidas para enfrentar la COVID-19 por parte de los gobiernos estatales brasileños. Hay estados que se destacaron por su adopción proactiva de políticas de distanciamiento social más estrictas, incluso antes de la confirmación del primer caso de la enfermedad.
Palabras clave:
COVID-19; coronavirus; Brasil; federalismo; distanciamiento social
Abstract
Since the declaration of the global pandemic due to the new coronavirus (Sars-CoV-2) by the World Health Organization (WHO), on March 11, 2020, several measures have been taken by governments around the world regarding social distancing. In Brazil, state governments took the lead in decreeing measures to close schools, suspend public events, and restrict businesses. This article aims to analyze the differences between the Brazilian state governments regarding implementing non-pharmaceutical interventions (NPIs) to combat the coronavirus, based on the calculation of a government action index. Analysis of 367 decrees of 25 state executives was conducted in the first two months of the pandemic in the country. The preliminary results of this analysis suggest different levels of rigor in measures to confront COVID-19 by Brazilian governments. Some states stood out for their proactive adoption of stricter social distancing policies, even before confirming the first case of the disease.
Keywords:
COVID-19; coronavirus; federalism; social distancing
1. INTRODUÇÃO
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou o novo coronavírus (Sars-CoV-2) como uma pandemia global. O vírus, que teve seu epicentro inicial a província de Hubei, na China, em dezembro de 2019. Até o momento, 24 de junho de 2020, o mundo contabiliza mais de 9 milhões de pessoas infectadas e cerca de 500 mil óbitos (Recuperado de https://covid19.who.int). No Brasil, ao final de junho, houve mais de um milhão de casos confirmados e quase 60 mil óbitos, ocupando o segundo lugar no ranking global, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, que, em um estágio mais adiantado da pandemia, ultrapassou a marca de 2,3 milhões de infectados e mais de 120 mil óbitos.
A não existência, até o momento, de uma vacina contra a COVID-19 incentivou a adoção de intervenções não farmacêuticas (non-pharmaceutical interventions, NPIs) - que podem ser entendidas como estratégias para controle de doenças, lesões e exposição -, tais como: isolamento social, fechamento de serviços não essenciais, quarentena e lockdown (Jernigan, 2020Jernigan, D. B. (2020, 24 de fevereiro). Update: public health response to the coronavirus disease 2019 outbreak - United States. MMWR. Morbidity and mortality weekly report, 69, 216-219. Recuperado de http://dx.doi.org/10.15585/mmwr.mm6908e1
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; Qualls, Levitt, & Kanade, 2017Qualls, N., Levitt, A., Kanade, N., Wright-Jegede, N., Dopson, S., Biggerstaff, M., … Uzicanin, A. (2017, abril). Community Mitigation Guidelines to Prevent Pandemic Influenza - United States, 2017. MMWR Recommendations and Reports, 66(RR-1), 1-34.). Conforme demonstrado em diversos trabalhos (Ferguson et al., 2005Ferguson, N. M., Cummings, D., Cauchemez, S., Fraser, C., Riley, S., Meeyai, A., ... Burke, D. (2005). Strategies for containing an emerging influenza pandemic in Southeast Asia. Nature, 437(7056), 209-214.; Ishola & Phin, 2011Ishola, D. A., & Phin, N. (2011). Could influenza transmission be reduced by restricting mass gatherings? Towards an evidence-based policy framework. Journal of epidemiology and global health, 1(1), 33-60.; Markel, Lipman, & Navarro, 2007Markel, H., Lipman, H., & Navarro, A. (2007). Nonpharmaceutical interventions implemented by US cities during the 1918-1919 influenza pandemic. Jama, 298(6), 644-654.), NPIs são medidas eficazes tanto para a redução do número de contágio, preservação dos sistemas nacionais de saúde, diminuição na taxa de vidas perdidas, quanto para a recuperação econômica posterior ao controle da doença (Barro, Ursúa, & Weng, 2020Barro, R. J., Ursúa, J. F., & Weng, J. (2020). The coronavirus and the great influenza pandemic: lessons from the “spanish flu” for the coronavirus’s potential effects on mortality and economic activity (NBER Working Paper, n. 26866). Massachusetts, MA: National Bureau of Economic Research. Recuperado dehttps://www.nber.org/papers/w26866.pdf
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; Correia, Luck, & Verner, 2020Correia, S., Luck, S., & Verner, E. (2020, 30 de março). Pandemics depress the economy, public health interventions do not: evidence from the 1918 Flu. Recuperado de http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3561560
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).
A finalidade principal de medidas de contenção comumente reconhecidas como “à moda antiga”, por prescindirem de recursos tecnológicos de última geração, é impedir a propagação de doenças de pessoa para pessoa, separando indivíduos para interromper a transmissão (Wilder-Smith & Freedman, 2020Wilder-Smith A., & Freedman, D.O. (2020, março). Isolation, quarantine, social distancing and community containment: pivotal role for old-style public health measures in the novel coronavirus (2019-nCoV) outbreak. Journal of Travel Medicine, 27(2), 1-4.). Entretanto, colocar em prática esse receituário mais tradicional não é algo fácil e suscita algumas questões: quais critérios devem ser utilizados para considerar um determinado serviço como essencial? Em geral, a resposta comum é que precisamos de trabalhadores da área da saúde, segurança, bem como de serviços públicos essenciais. No entanto, precisamos de determinados serviços para manter essas pessoas em exercício1
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Gary Mortimer (2020) utiliza a expressão militar tooth-to-tail ratio (T3R) - quantidade de militares necessários para suprir e apoiar cada soldado de combate - para exemplificar o dilema sobre os serviços essenciais.
(Mortimer, 2020Mortimer, G. (2020, 30 de março). What actually are ‘essential services’ and who decides? The Conversation. Recuperado de https://theconversation.com/what-actually-are-essential-services-and-who-decides-135029
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). Assim, a definição de serviços essenciais é relativa e depende de critérios mais ou menos objetivos, derivados desta resposta comum ou “consenso”, e também de critérios subjetivos, que podem ser influenciados, por exemplo, por perspectivas políticas, ideológicas e culturais.
A resposta política à pandemia variou segundo o desenho institucional, a autonomia dos atores políticos envolvidos, e mesmo conforme a crença efetiva no poder de letalidade do vírus. Nos últimos meses, de acordo com a literatura dedicada à análise dos efeitos da COVID-19, afirma-se, por exemplo, que o federalismo americano permitiu repostas mais fragmentadas quando comparado aos sistemas centralizados de governo (Weible et al., 2020Weible, C. M., Nohrstedt, D., Cairney, P., Carter, D., Crow, D., Durnová, A. … Stone, D. (2020, junho). COVID-19 and the policy sciences: initial reactions and perspectives. Policy Sciences, 53, 225-241. Recuperado dehttps://doi.org/10.1007/s11077-020-09381-4
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). Até o início de março, o governo central dos Estados Unidos não havia declarado o estado de emergência nacional, e após a declaração, em 13 de março, o governo Trump concentrou-se em medidas econômicas para tentar aliviar os efeitos da pandemia e em diretrizes para manter escolas e comunidades seguras. Governadores e prefeitos, por sua vez, agiram de forma mais incisiva na elaboração de políticas baseadas em NPIs (Cockerham & Crew, 2020Cockerham, A. G., & Crew, R. E., Jr. (2020, 03 de abril). The Covid-19 pandemic shows the power and limits of American federalism. USAPP Blog. LSE’s United States Centre. Recuperado dehttps://blogs.lse.ac.uk/usappblog/2020/04/03/the-covid-19-pandemic-shows-the-power-and-limits-of-american-federalism/
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).
No Brasil, foram os governadores estaduais, e também os prefeitos, que se anteciparam na edição de decretos e proposições de leis instaurando NPIs2 2 A Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), publicou, em 8 de junho, uma seção especial em seu sítio denominada “Os governos estaduais e as ações de enfrentamento à pandemia no Brasil”, com análise das ações organizadas pelas regiões do país (Recuperado de https://cienciapolitica.org.br/noticias/2020/06/especial-abcp-governos-estaduais-e-acoes-enfrentamento). . Este fato pode ser explicado por, ao menos, dois fatores: de um lado, a reação do presidente da República minimizando ou até negando a gravidade da pandemia (Recuperado de https://www.dw.com/pt-br/em-pronunciamento-bolsonaro-minimiza-novo-coronav%C3%ADrus/a-52906298), e, de outro, o forte federalismo do país que possibilita que chefes do executivo no nível estadual controlem sobremaneira a agenda política (Abrucio, 1998Abrucio, F. (1998). Os barões da Federação: os governadores e a redemocratização brasileira. São Paulo, SP: Hucitec/USP.; Abrucio & Samuels, 2000Abrucio, F., & Samuels, D. (2000). Federalism and democratic transitions: the new politics of the governors of Brazil. The Journal of Federalism, 30(2), 43-61.; Santos, 2001Santos, F. (Org.). (2001). O Poder Legislativo nos estados: diversidade e convergência. Rio de Janeiro, RJ: FGV.; Souza, 1999Souza, C. (1999). Federalism and regional interest intermediation in Brazilian public policies. Public Administration and Development: The International Journal of Management Research and Practice, 19(3), 263-279.). Entretanto, em virtude de significativas discrepâncias econômicas, a capacidade de proposição e execução de políticas públicas robustas encontram-se vinculadas a uma ação efetiva do executivo federal.
O objetivo geral deste trabalho é analisar as diferenças entre os estados brasileiros em relação à implementação de NPIs para o enfrentamento ao coronavírus, com base no cálculo de um índice de ação governamental. Foram consideradas rigorosas as medidas que levam ao fechamento completo de estabelecimentos e à paralisação radical de atividades. Sob esse raciocínio, as medidas menos rigorosas são aquelas menos extremadas em relação ao fechamento de estabelecimentos, permitindo, por exemplo, o seu funcionamento com horários reduzidos.
Tendo em vista a consecução do objetivo geral deste trabalho, primeiramente, elaborou-se um índice das ações relativas à adoção de NPIs (Barberia et al., 2020Barberia, L., Cantarelli, L., Claro, M., Pereira, F., Rosa, I., & Zamudio, M. (2020, 12 de abril). Confrontando a pandemia do COVID-19: respostas dos governos brasileiros aos níveis federal e estadual. Relatório técnico sobre a Rigidez do Distanciamento Social (RDS) 1.0. São Paulo, SP: Universidade de São Paulo.; Hale et al., 2020Hale, T., Angrist, N., Kira, B., Petherick, A., Phillips, T., & Webster, S. (2020). Variation in government responses to COVID-19 (Working Paper, v. 32, version 7.0). Oxford, UK: Blavatnik School of Government.; Markel et al., 2007Markel, H., Lipman, H., & Navarro, A. (2007). Nonpharmaceutical interventions implemented by US cities during the 1918-1919 influenza pandemic. Jama, 298(6), 644-654.) pelos governos estaduais, o que permitiu a formulação de dois objetos específicos: 1) identificar os perfis dos estados no que diz respeito à velocidade e ao rigor das NPIs, e 2) averiguar se estados mais dependentes economicamente do executivo federal, com menos leitos de UTI no Sistema Único de Saúde (SUS), e menores níveis de PIB per capita adotaram medidas restritivas mais rapidamente e com mais rigor. Analisaram-se os decretos de 25 executivos estaduais relativos às medidas de enfrentamento à pandemia, publicados em diário oficial entre 26 de fevereiro e 26 de abril de 2020, perfazendo um universo empírico composto por 367 decretos que tratam das NPIs.
O trabalho está organizado em quatro partes, além desta introdução. Em primeiro lugar, apresenta-se, de forma breve, a literatura sobre federalismo no Brasil e sua relação com o caso da COVID-19. Em seguida, expõe-se o desenho da pesquisa. Na sequência, apresentam-se os resultados iniciais e as considerações finais. Esta pesquisa encontra-se em andamento, de forma que alguns achados serão explorados posteriormente.
2. Federalismo BRASILEIRO E AS RESPOSTAS À COVID-19
O processo de democratização e descentralização do poder político no Brasil, iniciado na década de 1980, tendo adquirido contornos mais precisos com a promulgação da Constituição Federal de 1988Constituição da República Federativa do Brasil Constituição da República Federativa do Brasil. (1988). Brasília, DF: Senado Federal, Centro Gráfico., aumentou a importância dos governos subnacionais. Os poderes locais passaram a ser a principal referência estatal dos cidadãos, uma vez que grande parte das políticas sociais e funções elementares do Estado, tais como educação e saúde, ficou a cargo dos estados ou municípios. Dentre os vários desafios evidenciados no processo de modernização da administração pública brasileira, um em particular tem sido recorrente, a articulação entre os entes federativos: nas ações entre os governos estaduais, o que contribuiria para o aprendizado e o auxílio mútuo; e do governo federal com as unidades subnacionais, o que auxiliaria na coordenação das ações reformadoras, obviamente respeitando a autonomia federativa adquirida com a Constituição (Abrucio, 2005Abrucio, F. (2005, março-abril). Reforma do Estado no federalismo brasileiro: a situação das administrações públicas estaduais. Revista de Administração Pública, 39(2), 401-20.; Conti, 2004Conti, J. M. (Org.). (2004). Federalismo fiscal. Barueri, SP: Manole.).
As desigualdades socioeconômicas entre regiões e estados no Brasil resultam em capacidades administrativas diferenciadas. Na maioria das federações, estados menos desenvolvidos estão mais propensos a receber ajuda do governo federal e, ao mesmo tempo, a estabelecer acordos com outros estados, temendo maior centralização federal frente à autonomia dos governos subnacionais (Zimmerman, 1992Zimmerman, J. F. (1992). Contemporary American federalism. London, UK: Praeger.).
A transferência de recursos constitucionais e voluntários do governo federal às unidades subnacionais é de fundamental importância para que elas implementem seus projetos e políticas. A escassez de instrumentos nacionais de políticas de desenvolvimento regional contribuiu para que as transferências da União aos estados e municípios exercessem importante papel na dinâmica econômica em determinadas regiões do Brasil, constituindo, em vários casos, a principal fonte de recursos da unidade subnacional (Lima & Ramos, 2010Lima, A. C. C., & Ramos, F. S. (2010, abril-junho). Há desigualdade de poder entre os estados e regiões do Brasil? Uma abordagem utilizando o índice de poder de Banzhaf e a Penrose Square Root Law. Economia Aplicada, 14(2), 225-249. Recuperado de https://dx.doi.org/10.1590/S1413-80502010000200007
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). No âmbito estadual, o Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE) constitui-se em dispositivo constitucional de transferências fundamental da União, pois visa amenizar as desigualdades regionais e promover o equilíbrio socioeconômico entre os estados. Em 20193
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De acordo com dados disponíveis no sítio do Tesouro Nacional, o total de recursos do FPE em 2019 foi de 77,9 bilhões (Recuperado de http://tesouro.gov.br/).
, 52,13% do total dos recursos foram destinados à região Nordeste, 25,65% ao Norte, 8,75% ao Sudeste, 7,16% ao Centro-Oeste, e 6,32% ao Sul.
De acordo com os ditames constitucionais, o cuidado com a saúde é competência comum da União, estados, Distrito Federal e municípios. O que significa dizer que tais entes federativos podem e devem agir sobre a matéria (artigo 23, inciso II, da Constituição Federal4 4 Do texto constitucional: “Art.23 É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”. ), por exemplo, por meio da publicação de decretos que estabeleçam medidas de proteção à saúde. Lembrando que os decretos estaduais e municipais não são exatamente leis, visto que não são elaborados e/ou votados pelos respectivos poderes legislativos (Câmara Municipal e Assembleia Legislativa), mas constituem atos normativos, isto é, “leis” no sentido mais amplo, pois inovam no ordenamento jurídico municipal ou estadual. Os decretos, portanto, são um exercício atípico do Poder Executivo.
No entanto, a proteção e a defesa da saúde também são competências concorrentes da União, estados e Distrito Federal (neste quesito, os municípios ficam de fora), o que significa dizer que tais entes da federação podem legislar sobre a proteção e a defesa da saúde, desde que respeitadas as hierarquias entre os entes, isto é, medidas legislativas estaduais - quer sejam na forma de decretos ou de leis propriamente ditas - devem estar em harmonia com as federais (artigo 24, inciso XII, Constituição Federal5 5 “Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: [...] XII - previdência social, proteção e defesa da saúde”. ). Caso contrário, a fim de seguir os parâmetros da carta política, é preciso a adequação dos estados às medidas da União. Quanto às ações de enfrentamento à COVID-19, na prática, diante da inação da União, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os estados definissem os serviços essenciais, a propósito da aplicação das NPIs, o que será explicitado posteriormente.
Ainda quanto às competências da União e dos estados, diz o texto constitucional que à União cabe “[...] planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas”6 6 Artigo 21, inciso XVIII da Constituição: “Compete à União: (...) XVIII - planejar e promover a defesa contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações”. , como é o caso da pandemia do novo coronavírus. Aos estados, por sua vez, “[...] são reservadas [...] as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição”7 7 Artigo 25, caput, e parágrafo primeiro da Constituição: “Os Estados organizam-se e regem-se pelas constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta constituição. § 1º São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição”. , tendo tais entes, portanto, grande margem de independência e de ação, característica chave de modelos federativos de organização do Estado. Essa relação complexa entre os estados e a União tem sido tensionada no contexto de enfrentamento à COVID-19. A edição da Medida Provisória (MP) nº 926, de 20 de março de 2020Medida Medida provisória nº 926, de 20 de março de 2020. (2020). Altera a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para dispor sobre procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Poder Executivo. Seção 1 - Extra, p.1., que “[...] dispõe sobre as medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional em decorrência do coronavírus” determina, dentre outros aspectos, que cabe à União a definição de serviços e atividades essenciais. Esta MP foi questionada por ferir o princípio da autonomia dos entes federados. Provocado por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), apresentada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), o STF decidiu por unanimidade que estados teriam competência para agir sobre a definição de protocolos para o combate à pandemia, desde que guiados por critérios técnicos e científicos. O resultado deste embate é a variação de respostas e protocolos de ação apresentados pelos estados.
3. Desenho da Pesquisa
O governo federal brasileiro decretou estado de emergência, dada a gravidade do novo coronavírus, em 04 de fevereiro de 2020 (Lei nº 13.979Lei Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. (2020). Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Brasília, DF. Recuperado dehttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm
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). O primeiro caso de infecção pelo vírus registrado oficialmente foi confirmado em 25 de fevereiro. Desde então, a doença vem evoluindo rapidamente em todo o país, ameaçando colapsar os sistemas públicos de saúde em estados como Amazonas, Pará, Rio de Janeiro e São Paulo. Conforme exposto no Gráfico 1, até o dia 24 de junho de 2020, o Brasil registrava mais de 1 milhão e 300 mil casos confirmados de COVID-19 e quase 60 mil mortes. No entanto, cabe ponderar que existem razões para suspeitar que a taxa real de casos confirmados e de óbitos possa ser maior do que as disponibilizadas pelas entidades governamentais, especialmente em virtude do número limitado de testes disponíveis em cada estado (Li et al., 2020Li, R., Pei, S., Chen, B., Song, Y., Zhang, T., Yang, W., … Shaman, J. (2020). Substantial undocumented infection facilitates the rapid dissemination of novel coronavirus (SARS-CoV2). Science, 368(6490), 489-493.).
Os governos estaduais brasileiros têm atuado de distintas formas para conter o vírus e a doença por ele causada (COVID-19). Este trabalho centra-se na análise dos decretos do Poder Executivo de 25 estados e não dos 27 existentes, uma vez que na Bahia e em Minas Gerais as medidas não foram tomadas via decreto, como se explica posteriormente. A adoção deste instrumento jurídico-administrativo por parte dos governos justifica-se pelo fato de os decretos não passarem, necessariamente, pelo Poder Legislativo - no caso dos governos estaduais, pelas Assembleias Legislativas -, o que agiliza sua deliberação e aplicação, condição necessária em um momento de pandemia.
Como o objetivo deste trabalho é analisar as respostas iniciais dos governadores no que se refere à implementação de NPIs para o enfrentamento ao coronavírus, o recorte temporal limitou-se ao período de dois meses compreendido entre 26 de fevereiro e 26 de abril. Neste período, 367 decretos tratando das NPIs foram editados pelos 25 governadores estaduais. Contudo os estados da Bahia e de Minas Gerais adotaram procedimentos diferentes: no primeiro estado, o governo estadual possibilitou que os municípios tomassem medidas como fechamento do comércio; e, no segundo, foi criado, em 15 de março, o Comitê Gestor do Plano de Prevenção e Contingenciamento em Saúde da COVID-19, que ficou responsável pela definição das medidas de prevenção e de combate à propagação da doença. Tal Comitê emite atos administrativos normativos/decisórios formulados por decisões colegiadas, mas estes instrumentos não são, propriamente, decretos do executivo estadual, e, por possuírem natureza jurídica e formulação diferentes, foram, por ora, excluídos da pesquisa. Os dados foram coletados dos diários oficiais e sítios eletrônicos oficiais dos governos estaduais.
Tomando-se por base os trabalhos de Markel et al. (2007Markel, H., Lipman, H., & Navarro, A. (2007). Nonpharmaceutical interventions implemented by US cities during the 1918-1919 influenza pandemic. Jama, 298(6), 644-654.) e Hale et al. (2020Hale, T., Angrist, N., Kira, B., Petherick, A., Phillips, T., & Webster, S. (2020). Variation in government responses to COVID-19 (Working Paper, v. 32, version 7.0). Oxford, UK: Blavatnik School of Government.), elaborou-se um índice das ações dos governos estaduais concernentes às NPIs, semelhante ao exposto por Barberia et al. (2020Barberia, L., Cantarelli, L., Claro, M., Pereira, F., Rosa, I., & Zamudio, M. (2020, 12 de abril). Confrontando a pandemia do COVID-19: respostas dos governos brasileiros aos níveis federal e estadual. Relatório técnico sobre a Rigidez do Distanciamento Social (RDS) 1.0. São Paulo, SP: Universidade de São Paulo.). Markel et al. (2007) analisam medidas de isolamento social em 43 cidades dos Estados Unidos durante o período da gripe espanhola (1918-1919). Os autores consideram o fechamento de escolas, a adoção de quarentena obrigatória e a proibição de eventos públicos medidas de isolamento social que tiveram impacto sobre a redução do número de mortes pelo vírus influenza. Essas três medidas são analisadas de acordo com o tempo em que estiveram em vigor e a velocidade com a qual foram realizadas, de modo a considerar seus possíveis efeitos.
Hale et al. (2020Hale, T., Angrist, N., Kira, B., Petherick, A., Phillips, T., & Webster, S. (2020). Variation in government responses to COVID-19 (Working Paper, v. 32, version 7.0). Oxford, UK: Blavatnik School of Government.), em análise sobre as medidas de governos nacionais em relação ao Sars-CoV-2, constroem um índice relacionado ao rigor das ações governamentais com nove variáveis. Entram no cálculo: (1) fechamento de escolas; (2) fechamento do comércio não essencial; (3) cancelamento de eventos públicos; (4) proibição de aglomerações; (5) fechamento do transporte público; (6) restrição a saída de casa; (7) restrições a viagens dentro do país; (8) fechamento de fronteiras para cidadãos de outros países; e (9) provisão de campanhas públicas de conscientização de população. Cada uma das medidas é analisada em duas escalas: (a) entre nenhuma ação é realizada > o governo recomenda as ações aos cidadãos e > o governo demanda as ações; (b) as ações possuem focos específicos ou > são generalizadas. O índice de rigor é calculado por meio da soma e divisão dos valores de cada medida tomada e seu escopo ao longo do tempo.
Conforme o objetivo central deste paper - analisar as respostas dos governos estaduais, editadas em decretos, ao longo do estágio inicial da pandemia no Brasil - consideram-se três dimensões de análise: velocidade, tipo e escopo das ações. Velocidade refere-se ao espaço de tempo entre a data do primeiro caso confirmado do novo coronavírus e a data do primeiro decreto estadual tratando de NPIs. O tipo de ação refere-se ao conjunto de medidas composto por: (1) fechamento de escolas estaduais; (2) fechamento do comércio não essencial; (3) restrição e/ou proibição de eventos públicos; (4) suspensão temporária do pagamento de contas de luz e água; (5) provisão de merenda escolar para os alunos da rede pública estadual de ensino; e (6) permissão para o atraso de impostos estaduais. As primeiras três variáveis operacionalizam diretamente a contenção de circulação de pessoas e o isolamento social; as três últimas constituem medidas econômicas de reforço do isolamento, dado que elas minoram as despesas de pessoas físicas e jurídicas. Por fim, o escopo da ação refere-se ao direcionamento da medida: se restrito ou generalizado. Na Tabela 1, observa-se detalhadamente a operacionalização das variáveis.
No cálculo do índice são considerados os valores dos tipos e escopos das medidas, variando entre 0 e 100, como no exemplo da Tabela 2 (Hale et al., 2020Hale, T., Angrist, N., Kira, B., Petherick, A., Phillips, T., & Webster, S. (2020). Variation in government responses to COVID-19 (Working Paper, v. 32, version 7.0). Oxford, UK: Blavatnik School of Government.). Neste caso hipotético, a média do índice de medidas de fechamento é 75,00 e de medidas econômicas é 22,23, o que possibilita inferir uma média geral de 48,6. Realizou-se este cálculo para todos os decretos analisados, considerando-se que os valores das medidas de relaxamento ou de intensificação alteram ao longo do tempo. Seguiu-se o modelo de Barberia et al. (2020Barberia, L., Cantarelli, L., Claro, M., Pereira, F., Rosa, I., & Zamudio, M. (2020, 12 de abril). Confrontando a pandemia do COVID-19: respostas dos governos brasileiros aos níveis federal e estadual. Relatório técnico sobre a Rigidez do Distanciamento Social (RDS) 1.0. São Paulo, SP: Universidade de São Paulo.), considerando-se os dias como instâncias do banco de dados. Dessa forma, é possível observar a variação das medidas ao longo do tempo partindo de um ponto comum.
Segue-se à apresentação do desenho da pesquisa a análise dos resultados.
4. Resultados Preliminares
Dada a análise geral dos índices de ação dos governos estaduais, o Gráfico 2 apresenta a variação das medidas ao longo do tempo. No dia 22 de março, quando o Brasil registrava 1584 casos de coronavírus confirmados e 63 mortes acumuladas desde o início da pandemia, a média do índice de ação governamental no que concerne à restrição da circulação de pessoas, editada no mesmo dia ou mantida nos dias anteriores, foi de 100 pontos. Desde este dia, os valores do índice se mantiveram acima dos 90 pontos, o que demonstra o comportamento homogêneo dos estados analisados. Em relação às medidas econômicas, a variação do índice foi maior ao longo do período analisado, atingindo um “pico” no final de abril.
Os processos de decisão dos governadores via decretos, no entanto, variaram em extensão e velocidade. No Gráfico 3, é possível observar que em dez estados (todos localizados nas regiões Norte e Nordeste), o chefe do executivo exigiu o fechamento das escolas antes da confirmação do primeiro caso da doença em seu estado, ou concomitantemente. Já os estados de São Paulo e Espírito Santo demoraram mais de dez dias para a implementação desta medida. É importante explicar os casos do Acre, Ceará e Rondônia no Gráfico 3: os três estados decidiram pelo fechamento das escolas no mesmo dia da confirmação do primeiro caso da COVID-19, e esta é a razão pela qual a variação é igual a zero8 8 A mesma lógica interpretativa aplica-se aos estados do Piauí e de Rondônia no Gráfico 4, e Acre, Ceará e Rondônia no Gráfico 5. .
No que se refere ao fechamento do comércio não essencial (Gráfico 4), praticamente os mesmos estados das regiões Norte e Nordeste tomaram, também, as primeiras iniciativas para o fechamento deste ramo de atividade (todos com um período inferior a dez dias em relação ao primeiro caso). Porém cabe destacar que, ao contrário do fechamento de escolas estaduais, a restrição da abertura do comércio levou mais tempo para ser implementada em todos os estados, tendo sido a medida criticada pelo presidente da República diversas vezes.
No Gráfico 5, é possível observar o número de dias entre o primeiro caso confirmado da doença e a suspensão de eventos públicos. Nota-se, novamente, que os dez estados das regiões Norte e Nordeste que primeiro decidiram pelo fechamento das escolas (Gráfico 3) também se anteciparam em relação à suspensão desses eventos (estes governadores tomaram a decisão antes da confirmação do primeiro caso da doença ou de forma concomitante ao diagnóstico).
Observando-se o crescimento do número de mortes e a intensidade das medidas de NPIs (F1, F2 e F3) no Gráfico 6, nota-se que, ao nível agregado, a partir de meados de março em diante, os estados brasileiros mantiveram valores de quase 100% do índice de isolamento. O rigor das medidas, a partir deste período, foi a regra praticamente em todos os estados, como destacado por Barberia et al. (2020Barberia, L., Cantarelli, L., Claro, M., Pereira, F., Rosa, I., & Zamudio, M. (2020, 12 de abril). Confrontando a pandemia do COVID-19: respostas dos governos brasileiros aos níveis federal e estadual. Relatório técnico sobre a Rigidez do Distanciamento Social (RDS) 1.0. São Paulo, SP: Universidade de São Paulo.). A correlação entre o número de mortes confirmadas e a média do índice de ação governamental foi de r² = 0,836, significante ao nível de 5%. Nos meses seguintes, com a elevação da curva de contaminação e de mortes pela COVID-19, cabe equacionar o índice das medidas pelos estados com as diversas pressões sofridas, sobretudo a pressão pela reabertura do comércio
Os índices levantados indicam diferenças nas ações governamentais segundo suas condições políticas e estruturais. Neste sentido, o rigor e a velocidade das ações variam conforme: (1) o apoio político ao presidente Jair Bolsonaro pelo estado; (2) a proporção de leitos de UTI no SUS; (3) o PIB per capita (IBGE, 2020Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2020). Produto Interno Bruto - PIB. O que é o PIB. Rio de Janeiro, RJ: Autor. Recuperado dehttps://www.ibge.gov.br/explica/pib.php
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) ; e (4) os repasses recebidos pelos estados via FPE. A primeira variável leva à indicação da possível influência política do governo federal no estado em questão, em virtude da votação no então candidato pelo PSL no segundo turno da eleição presidencial de 2018 (TSE, s.d.Tribunal Superior Eleitoral. (s.d.). Repositório de dados eleitorais. Brasília, DF. Recuperado de http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/repositorio-de-dados-eleitorais-1/repositorio-de-dados-eleitorais
http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisti...
). Conforme apontado por Ajzenman, Cavalcanti, e Mata (2020Ajzenman, N., Cavalcanti, T., & Mata, D. (2020). More than words: leaders’ speech and risky behaviour during a pandemic. Vox CEPR Polixy Portal. Recuperado de https://voxeu.org/article/leaders-speech-and-risky-behaviour-during-pandemic
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), medidas de isolamento social tendem a ser menos adotadas em cidades em que Bolsonaro teve mais votos em 2018, o que é demonstrado pelo baixo índice de adoção de NPIs pelos governantes estaduais que apoiaram a candidatura do atual presidente da República.
As segunda, terceira e quarta variáveis consideradas referem-se às condições estruturais do estado: em primeiro lugar, o seu número de leitos de UTI no SUS (Associação de Medicina Intensiva Brasileira [AMIB], 2017Associação de Medicina Intensiva Brasileira. (2017). Censo Coordenadores. Censo Plantonistas. São Paulo, SP: Autor. Recuperado de https://www.amib.org.br/censo-amib/censo-amib-2017/
https://www.amib.org.br/censo-amib/censo...
). Pressupõe-se que os governadores de estados com menos leitos disponíveis tenham agido mais rápido e com mais rigor no que concerne às NPIs. Em segundo lugar, o PIB per capita, como medida da riqueza produzida no estado, pode ser um indicador do tipo de ação dos governos estaduais; assim, presume-se que se altere no mesmo sentido da variável anterior. Por fim, o valor do FPE é também uma proxy da condição econômica do estado, pois, trata-se de transferência de dinheiro da União para os estados, cujo objetivo é equalizar a capacidade financeira daqueles que têm menor capacidade de arrecadar impostos com aqueles que têm atividade econômica mais intensa e, portanto, maior possibilidade de obter receitas. Logo, este fundo é distribuído desigualmente entre os estados, de forma que os estados menos desenvolvidos recebem os maiores montantes. De acordo com o exposto, cabe destacar que o FPE representa, para a grande parte desses estados, a principal fonte de recursos. Presume-se, desse modo, que estes estados tenham agido de forma mais rápida e com mais rigor no que se refere às NPIs, e os estados mais desenvolvidos tenham agido de maneira oposta, visto que o fundo tem pouca influência em suas contas.
Na Tabela 3, estão expostos os dados da correlação de Pearson entre as variáveis selecionadas. Os valores referem-se aos 25 estados analisados, considerando a média do índice de rigor governamental e a velocidade com a qual as medidas foram tomadas durante os dois meses em que as informações foram coletadas. O teste não visa inferir causalidade, mas observar a relação entre as variáveis. Nesse caso, é possível depreender que a média do índice de ação governamental está, de maneira estatisticamente significante, associada a: (a) menor proporção de leitos do SUS, o que indica que os governadores dos estados cujas redes públicas de saúde são mais precárias tomaram medidas mais rígidas de NPIs no momento inicial da pandemia; (b) menor PIB per capita; e (c) maiores repasses do FPE. Logo, o rigor e a velocidade na tomada de medidas parecem estar associados às condições estruturais dos estados: os governadores de estados com menor PIB per capita e maior acesso aos recursos do FPE tomaram medidas antecipadamente.
Dois aspectos evidenciados mereceriam por si mesmos estudos específicos. Contudo, dado o escopo da presente pesquisa, limita-se a observar que, preliminarmente, por um lado, os dados mostram que governadores de estados mais pobres e dependentes do governo federal agiram de maneira mais rápida e mais rígida quando se observam os decretos executivos. Por outro lado, nota-se que o apoio a Bolsonaro, expresso pelo voto ao então candidato no segundo turno, não é estatisticamente significativo na relação entre velocidade ou rigidez na adoção de NPIs. Tendo em vista um possível desdobramento da atual pesquisa, considera-se hipoteticamente que estes dois aspectos denotam um “descompasso” entre o comportamento observável de apoiadores do presidente - como os índices de isolamento social tratados por Ajzenman, Cavalcanti, & Mata (2020Ajzenman, N., Cavalcanti, T., & Mata, D. (2020). More than words: leaders’ speech and risky behaviour during a pandemic. Vox CEPR Polixy Portal. Recuperado de https://voxeu.org/article/leaders-speech-and-risky-behaviour-during-pandemic
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) - e as elites políticas que o apoiaram no pleito de 2018.
Os dados preliminares da atual pesquisa indicam dois grupos de estados no que concerne à velocidade e ao rigor das medidas de NPIs: (1) aqueles com medidas mais rápidas e rigorosas e (2) aqueles com medidas menos rápidas e menos rigorosas. Esses grupos foram formados com base na análise de clusters (Figura 1), dispositivo eficaz para a criação de grupos com o máximo de semelhança interna e o máximo de diferenciação externa (Figueiredo et al., 2014Figueiredo, D. B., Rocha Filho, E., Silva, J. A. Jr., Paranhos, R., Silva, M., Duarte, B. (2014). Cluster analysis for political scientists. Applied Mathematics, 5(15), 2408-2415. Recuperado de http://dx.doi.org/10.4236/am.2014.515232
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).
Considerando-se os dados analisados nos dois primeiros meses da pandemia no Brasil, o primeiro grupo apresenta 16 estados: Pará, Acre, Amapá, Piauí, Rondônia, Maranhão, Roraima, Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Goiás, Sergipe, Paraná, Mato Grosso, Amazonas, Santa Catarina; e o segundo grupo, nove estados: Tocantins, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Rio Grande do Sul, Alagoas, São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal e Espírito Santo. Nota-se que a maioria dos estados do primeiro grupo, com medidas mais rápidas e restritivas, pertence às regiões Norte e Nordeste, estados com estruturas de saúde pública mais precárias, menor PIB per capita e maiores repasses do FPE.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo deste trabalho foi analisar as diferenças entre os estados brasileiros em relação à implementação de intervenções não farmacêuticas (NPIs) para o enfrentamento ao coronavírus, baseado no cálculo de um índice de ação governamental. Trata-se de um esforço inicial de fornecer uma medida comparável das políticas de distanciamento social adotadas pelos governos estaduais brasileiros e de contribuir para a compreensão das suas atuações na tentativa de redução das taxas de transmissão do coronavírus e de óbitos da pandemia, no contexto do federalismo.
Foram analisados 367 decretos de 25 executivos estaduais nos dois primeiros meses da pandemia no país. Constatou-se que a maioria dos governadores dos estados pertencentes às regiões Norte e Nordeste decidiu de forma mais rápida pelo fechamento das escolas, por restrições do comércio e pela suspensão dos eventos públicos. Tais normativas, por vezes, ocorreram antes mesmo da confirmação do primeiro caso da doença no estado. No entanto, o rigor das medidas, ainda em meados de março, foi a regra em praticamente todos os estados (a correlação entre o número de mortes confirmadas e a média do índice de ação governamental foi de r² = 0,836). Ao agregar variáveis socioeconômicas e da estrutura de saúde pública, observou-se que os estados com menor PIB per capita, menor número de leitos de UTI no SUS, e mais dependentes de recursos da União (mensurado através do FPE) foram mais rápidos e rigorosos na adoção de medidas de NPIs.
Nas próximas etapas, pretende-se atualizar os dados desta pesquisa, de caráter preliminar, bem como reavaliar o posicionamento dos estados frente à ascensão da curva de contaminação e de mortes pela COVID-19, e às pressões de grupos de interesse. Nesse sentido, o indicador construído poderá sofrer alterações, a depender da dinâmica de resposta à pandemia, com a incorporação de outras variáveis às dimensões socioeconômica, política e institucional.
A utilização de decretos como objeto de análise consiste, por um lado, em um importante suporte para mapear o posicionamento de atores políticos em momentos críticos sem precedentes, como o atual. Por outro lado, a fragilidade de tal documento incide principalmente em dois aspectos: primeiro, porque os decretos não representam uma expressão fidedigna da prática política, ou seja, podem consistir apenas em uma carta de intenções sem desdobramentos práticos; segundo, porque os decretos são instrumentos quase sempre ambíguos para serem analisados quantitativamente, já que pressupõem a construção de categorias analíticas e a interpretação dos seus conteúdos. No entanto, foi o universo disponível para a análise do tema: ações governamentais em contexto de pandemia global em curso.
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1
Gary Mortimer (2020) utiliza a expressão militar tooth-to-tail ratio (T3R) - quantidade de militares necessários para suprir e apoiar cada soldado de combate - para exemplificar o dilema sobre os serviços essenciais.
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2
A Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), publicou, em 8 de junho, uma seção especial em seu sítio denominada “Os governos estaduais e as ações de enfrentamento à pandemia no Brasil”, com análise das ações organizadas pelas regiões do país (Recuperado de https://cienciapolitica.org.br/noticias/2020/06/especial-abcp-governos-estaduais-e-acoes-enfrentamento).
-
3
De acordo com dados disponíveis no sítio do Tesouro Nacional, o total de recursos do FPE em 2019 foi de 77,9 bilhões (Recuperado de http://tesouro.gov.br/).
-
4
Do texto constitucional: “Art.23 É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”.
-
5
“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: [...] XII - previdência social, proteção e defesa da saúde”.
-
6
Artigo 21, inciso XVIII da Constituição: “Compete à União: (...) XVIII - planejar e promover a defesa contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações”.
-
7
Artigo 25, caput, e parágrafo primeiro da Constituição: “Os Estados organizam-se e regem-se pelas constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta constituição. § 1º São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição”.
-
8
A mesma lógica interpretativa aplica-se aos estados do Piauí e de Rondônia no Gráfico 4, e Acre, Ceará e Rondônia no Gráfico 5.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Nov 2020 -
Data do Fascículo
Sep-Oct 2020
Histórico
-
Recebido
01 Jun 2020 -
Aceito
27 Jul 2020