resumo
Este artigo se propõe a apresentar um panorama da situação da segurança alimentar no Brasil, com foco especial na região Norte. Em seguida, discutimos os dois principais programas governamentais que implementaram o fornecimento de alimentação escolar (Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE e Programa de Aquisição de Alimentos – PAA) e, por fim, abordamos uma das mais exitosas experiências de fornecimento de produtos para a alimentação escolar produzidos pela Associação de Mulheres Indígenas Ticuna Mapana. Tudo indica que a experiência da Mapana contribui significativamente para a criação de uma soberania alimentar ticuna, a “ticunização” da alimentação escolar e a produção de alimentos saudáveis, com baixo impacto ambiental e gerando renda para as famílias produtoras.
palavras-chave
Ticuna (Magüta); soberania alimentar; alimentação escolar; associativismo comunitário
abstract
This article proposes to present an overview of the food security situation in Brazil, with a special focus on the North region. Then, we discuss the two main government programs that implemented the provision of school meals (National School Feeding Program – PNAE and Food Acquisition Program – PAA) and, finally, we address one of the most successful experiences of supplying products to the school meals produced by the Ticuna Mapana Indigenous Women’s Association. Everything indicates that Mapana’s experience contributes significantly to the creation of Ticuna food sovereignty, the “ticunization” of school meals and the production of healthy foods, with low environmental impact and generating income for producing families.
keywords
Ticuna (Magüta); food sovereignty; school meals; community associations
Introdução
Em dezembro de 2015 o jornal Estadão ganhou o Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo pela reportagem publicada em caderno especial “Favela Amazônia, um novo retrato da floresta”, em julho do mesmo ano. A segunda parte dessa reportagem é intitulada “Abandono e degradação”, em seguida, com maior destaque, “Ticunas vivem num lixão da tríplice fronteira”, e o subtítulo “Sem opções de renda, índios catam latinhas e comem restos de alimentos da cidade de Tabatinga” 2 2 O segundo capítulo da reportagem está disponível neste link: https://infograficos.estadao.com.br/especiais/favela-amazonia/capitulo-2.php , acessado em 25 de dezembro de 2022. .
No vídeo de 2 minutos e 21 segundos que acompanha a reportagem na internet, a primeira imagem que vemos é a de Helena Januário Caetano, descrita como “índia ticuna”. Atrás de Helena há uma montanha de lixo e um bando de urubus saltando e voando. Ela não diz uma palavra, apenas mantém os olhos baixos, enquanto Dira da Silva Silfuentes (“produtora rural”) descreve a situação de Helena: “Ela saiu da comunidade dela, Umariaçu, para sobreviver disso aqui, do lixo, muitas vezes ela almoça o lixo podre que tem aqui”. A reportagem traz ainda outros exemplos de crianças e homens ticuna que passam o dia no lixão no bairro Santa Rosa para conseguir latinhas para vender ou mesmo algo para comer. Antônio Ticuna, com quarenta anos e pai de cinco filhos, por exemplo, não vê outra solução para sua condição a não ser buscar recursos no lixão: “De onde eu vou tirar dinheiro para comer?”.
Em se tratando de denúncias desse tipo, devemos ter em mente duas atitudes extremas que são bastante recorrentes. Por um lado, próximos a esta da reportagem, são relatos acompanhados de fotografias degradantes mostrando indígenas famintos, magérrimos, deitados em suas redes 3 3 Por exemplo, a reportagem de Beatriz Jucá, “8 anos e 12 quilos, a criança com malária e desnutrição que simboliza o descaso com os Yanomami no Brasil”, El País, São Paulo, 17 may 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-17/8-anose-12-quilos-a-crianca-commalaria-e-desnutricao-quesimboliza-o-descaso-comos-yanomami-no-brasil ., acessado em 15 de março de 2024. . Por outro lado, o silêncio ou tabu de se falar sobre o assunto fome, como se ela não existisse ou fosse algo natural e inevitável. Esta última atitude foi a grande motivadora para os trabalhos pioneiros de Josué de Castro sobre a fome e desnutrição no Brasil (1980) e no mundo (1951). Temos que falar sobre fome, desnutrição e insegurança alimentar também entre os povos originários (Verdum, 2003VERDUM, Ricardo. 2003. “Mapa da fome entre os povos indígenas: uma contribuição à formulação de políticas de segurança alimentar no Brasil”. Sociedade em Debate, 9(1): 129-162. ; Monteiro de Souza, 2019MONTEIRO DE SOUZA, Alda Lúcia. 2019. A pobreza indígena como um processo de longa duração: uma análise etnográfica na região da tríplice fronteira (Brasil-Colômbia-Peru). Brasília, Tese de doutorado, PPGECsA, Instituto de Ciências Sociais – ICS, Universidade de Brasília – UnB. ).
Qualquer leitor desavisado da reportagem acima, que não conhece o tamanho e a diversidade interna Ticuna, maior grupo indígena do Brasil (IBGE, 2010), pode ser levado a pensar que os quase 70 mil indivíduos que compõem a etnia nos três países da tríplice fronteira (Brasil, Peru e Colômbia) estão em uma situação de miséria extrema. A situação, no entanto, é mais complexa e exige um olhar atento para estratégias elaboradas pelos próprios Ticuna para garantirem sua soberania alimentar.
Este artigo se propõe a apresentar um panorama da situação da segurança alimentar no Brasil, com foco especial na região Norte. Em seguida, discutimos dois dos principais programas governamentais que implementaram o fornecimento de alimentação escolar (PNAE e PAA) e, por fim, abordamos uma das mais exitosas experiências de fornecimento de produtos para a alimentação escolar produzidos por uma associação de mulheres indígenas ticuna, a associação Mapana.
Vemos que, para o público consumidor dos alimentos, o resultado foi mais qualidade da alimentação a ser servida, manutenção e apropriação de hábitos alimentares saudáveis, o que chamamos de “ticunização” da alimentação escolar. Pensar na produção e no consumo dos alimentos tradicionais dentro de suas próprias comunidades indígenas promove e fortalece o que entendemos hoje como o conceito de soberania alimentar. Cumpre salientar que o conceito proposto aqui possui suas diferenças com relação à simples segurança alimentar 4 4 Uma definição sucinta de segurança alimentar seria quando “[a] família/ domicílio tem acesso regular ou permanente a alimentos de qualidade, com quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais” (Brasil, 2010). . Para além dos parâmetros de qualidade, quantidade e acesso aos alimentos, a proposta de soberania alimentar incorpora outros pontos importantes. Proposta inicialmente pela Via Campesina (1996), a soberania alimentar é o direito de uma população definir sua própria política agrária e alimentar. Para ser bem realizado esse direito, deve incluir também: a priorização da produção alimentar local; alimentos saudáveis, nutritivos, climáticos e culturalmente apropriados; produção agroecológica; reforma agrária; combate aos OGM (Organismos Geneticamente Modificados); proteção contra importações agrícolas e alimentares excessivamente baratas; comércio justo e circuitos curtos de produção (Desmarais, 2013DESMARAIS, Annette Aurelie. 2013. A Via Campesina: A globalização e poder do campesinato. São Paulo: Cultura Acadêmica; Expressão Popular. ). Em linhas gerais, estamos tratando aqui de uma proposta que envolve mudanças estruturais mais profundas, e a experiência da Mapana, como veremos, contempla muitos, se não todos, dos pontos elencados acima.
Com relação à metodologia desta pesquisa, o primeiro autor deste artigo, Edson Matarezio, realiza trabalho de campo anualmente entre os Ticuna desde 2012 (com exceção do primeiro ano de pandemia, 2020). Uma primeira entrevista foi feita com Adelina Fidelis, presidenta da Associação Mapana, em 2017, para a produção de um filme documentário (Matarezio Filho, 2019c MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019c. Mapana, filme documentário, NTSC, cor, 15 min. Lisa-USP. Documentário disponível em: https://vimeo.com/345066943 .
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); em seguida foram realizados trabalhos de campo em 2019 e 2021 na comunidade ticuna de Belém do Solimões, para acompanhar e etnografar a Associação. A segunda autora, Hermísia Pedrosa, é servidora da Funai, na época lotada na Coordenação Regional Alto Solimões, em Tabatinga (AM), e trabalhou diretamente com os Ticuna desde 2010. Em 2013, com outros servidores da Funai, inicia um projeto mais focado na Associação Mapana, realizando oficina de capacitação das famílias produtoras, mutirões de emissão de DAPs, entre outras atividades, que foram acompanhadas de perto e aparecerão nas descrições e análises deste artigo.
Segurança alimentar no Brasil e região Norte
O ano de 2014 é um divisor de águas na história da segurança alimentar no Brasil. Pela primeira vez o país saiu do mapa da fome da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura). Ao mesmo tempo, é a partir de 2013-2014 que o índice de segurança alimentar nacional, após atingir seu ponto máximo (77,1%), começa a cair (PNAD 5
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Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
– 2013-2014). Em paralelo, há um aumento correspondente da insegurança alimentar, mesmo antes da pandemia de Covid-19. Após o início da pandemia, ocorre um agravamento da situação. O inquérito realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan, 2021 REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR (REDE PENSSAN). 2021. Vigisan: Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro, Rede Penssan. Disponível em: http://olheparaafome.com.br/ .
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) em dezembro de 2020 revelou que apenas 44,8% dos brasileiros estavam em uma situação de segurança alimentar. Mais da metade da população (55,2%) enfrentava algum nível de insegurança alimentar (leve, moderada ou grave) 6
6
Outra pesquisa realizada no mesmo período, utilizando outra metodologia, indica uma discrepância ainda maior entre pessoas em situação de segurança alimentar, 40,6%, e de insegurança alimentar, 59,4% (Galindo et al., 2021 ).
.
Historicamente, duas regiões do Brasil se destacam pelo elevado índice de insegurança alimentar: Nordeste e Norte. Para a primeira região, em 2020, apenas 28,1% se encontravam em situação de segurança alimentar, enquanto na região Norte do país esse percentual chegava a 36,9%. Em contrapartida, o percentual de pessoas em insegurança alimentar grave 7 7 Ver Brasil, 2010, para uma caracterização segundo o IBGE para os níveis leve, moderado e grave de insegurança alimentar. Em uma situação de insegurança alimentar grave, há a “falta de alimentos entre todos os moradores, incluindo as crianças. Nessa situação, a fome passa a ser uma experiência vivida no domicílio” (Brasil, 2010 ). na região Norte já era o mais alto do Brasil, 18,1%, cerca do dobro da média nacional, 9%. Somados os percentuais de insegurança alimentar leve, moderada e grave, a região Norte apresentava 63,2% dos domicílios nesta condição.
A reedição desse inquérito, publicada em 2022, mostra um crescimento ainda maior da fome, uma queda de 41,3% da população em segurança alimentar e um aumento de 58,7% da insegurança alimentar (Rede Penssan, 2022 REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR (REDE PENSSAN). 2022. II VIGISAN: relatório final/Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar – PENSSAN. São Paulo, SP, Fundação Friedrich Ebert, Rede PENSSAN. Disponível em: http://olheparaafome.com.br/ .
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: 36); ou seja, “são 125,2 milhões de pessoas em IA [insegurança alimentar] e mais de 33 milhões em situação de fome, expressa pela IA grave” ( idem: 37). Especificamente na região Norte, o percentual de lares com restrição muito grave de alimentos (IA grave) chegou a 26%, sendo que esse índice salta para 40% em domicílios de agricultores familiares/produtores rurais ( idem: 42). O somatório de todos os níveis de insegurança alimentar para essa região atinge atualmente 71,6% da população.
Refletir sobre a atual crise de insegurança alimentar (fome) é uma questão que voltou à pauta das pesquisas acadêmicas e políticas públicas. Pesquisadores afirmam que estamos vivendo uma sindemia 8 8 Sindemia ou sinergia de epidemias, porque coexistem no tempo e lugar. Uma sindemia é a “presença de dois ou mais estados de doença que interagem de forma adversa entre si, afetando negativamente o curso mútuo de cada trajetória da doença, aumentando a vulnerabilidade e tornando se mais deletérios por iniquidades experimentadas” (Swinburn, 2019: 5). global de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas (Swinburn, 2019). A desnutrição, maior causa de prejuízo à saúde no mundo, será agravada pelas mudanças climáticas. Estas afetam os sistemas alimentares e a produção dos pequenos agricultores. Uma das consequências é o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados e bebidas açucaradas, o que contribui para a coexistência de desnutrição e obesidade ( idem: 33).
Dados da POF/IBGE 9
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Pesquisa de Orçamentos Familiares realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
realizada entre os anos de 2002 e 2019 indicam um aumento do excesso de peso e obesidade na população brasileira. E nestes anos há um salto de 43,3% da população com excesso de peso e 12,2 % obesas para 61,7% com excesso de peso e 26,8% obesas, em 2019. No Brasil, a prevalência de excesso de peso (sobrepeso ou obesidade) supera 27% em crianças e adolescentes (SILVA et al ., 2018 SILVA, D. A. S. et al. 2018a. Boletim Brasil 2018: está na hora de cuidar das crianças e dos adolescentes!. Ottawa, Active Healthy Kids Global Alliance. [28] p. Relatório sobre atividade física em crianças e adolescentes brasileiros. Disponível em: https://www.activehealthykids.org/wp-content/uploads/2018/11/brazil-report-card-long-form-pt.pdf .
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). A pesquisa Vigitel 10
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Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), realizada pelo Ministério da Saúde.
de 2019 aponta a cidade de Manaus (AM) com o maior percentual de adultos (≥ 18 anos) com excesso de peso 11
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Excesso de peso corresponde a um IMC (Índice de Massa Corpórea) ≥ 25 kg/m2.
do país, 60,9% ( 2019VIGITEL BRASIL. 2019. “Vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2019” [recurso eletrônico]. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças não Transmissíveis. Brasília, Ministério da Saúde, 2020. 137: il.: 36-37). Nessa mesma faixa etária, a cidade também é campeã em obesidade 12
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Obesidade corresponde a um IMC (Índice de Massa Corpórea) ≥ 30 kg/m2.
, que atinge 23,4% ( idem: 39-40). Isso nos dá alguns indícios sobre a situação geral de sobrepeso dos habitantes do Estado do Amazonas.
Levando em conta que há uma sindemia global em curso que envolve mudanças climáticas, desnutrição e obesidade (Swinburn et al ., 2019 SWINBURN, B. A.; KRAAK, V. I.; ALLENDER, S. et al. 2019. “A sindemia global da obesidade, da desnutrição e das mudanças climáticas: o relatório da Comissão The Lancet”. Lancet 2019; publicado on-line em 27 de janeiro de 2019. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(18)32822-8 .
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), devemos olhar para a produção familiar de alimentos saudáveis para as escolas públicas como uma estratégia que possui um grande potencial para combater as causas dessa sindemia. Antes de tudo, quando analisamos o impacto da alimentação escolar na nutrição dos estudantes, devemos fazer uma distinção entre a oferta de alimentos pelas escolas e o consumo dos estudantes. Em 2019, a oferta de merenda escolar é relatada por 75,3% dos escolares de treze a dezessete anos (PeNSE, 2019PeNSE – Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar. 2019. IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Rio de Janeiro, IBGE, 2021. 162 p.: il.: 53). Esse número aumenta quando levamos em conta a informação proveniente das escolas. Essas relatam que 89,2% dos alunos nessa faixa etária recebem refeições ( ibidem ). Para a região Norte, esse percentual é de 94,3%, acima da média nacional geral de 89,2% 13
13
Tabela 15.2.1 – Percentual de escolares de 13 a 17 anos em escolas que informaram oferecer refeição para os alunos, por dependência administrativa da escola, com indicação do intervalo de confiança de 95%, segundo os grupos de idade e as Grandes Regiões – 2019. Disponível em: https://ftp.ibge.gov.br/pense/2019/xls/Tema_15_Alimentacao_na_Escola.xls . Acessado em 14 de outubro de 2021.
. A porcentagem nacional aumenta (99,4%) quando a referência é a “oferta de merenda para alguma série/turma” em escolas públicas, recorte mais amplo que a faixa etária mencionada acima ( ibidem ). Neste recorte, a média para a região Norte também é um pouco maior (99,7%).
Ao mesmo tempo que a oferta de alimentação escolar é bastante expressiva, o consumo pelos estudantes não alcança índices tão altos. Quase metade dos alunos (48,4%) de treze a dezessete anos das escolas públicas relataram que nunca ou raramente consumiram a refeição oferecida pela escola. O maior percentual de alunos nessa situação está na região Norte: 55,1% dos estudantes com esse perfil declararam que nunca ou raramente consumiram a refeição oferecida pela escola. A região Norte apresenta os maiores índices do país, de escolares de treze a dezessete anos que têm hábito de tomar café da manhã e almoçar ou jantar com os pais, 73,4%, sendo a média brasileira 68,8% (PeNSE, 2019PeNSE – Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar. 2019. IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Rio de Janeiro, IBGE, 2021. 162 p.: il.: 52).
Alimentação Escolar no Brasil – PNAE e PAA
O PNAE, Programa Nacional de Alimentação Escolar, é um programa criado em 1954 para garantir a alimentação dos estudantes nas escolas. Trata-se do programa de suplementação e segurança alimentar de maior longevidade, abrangência e alcance no Brasil (Belik & Chaim, 2009BELIK, Walter & CHAIM, Nuria Abrahão. 2009. “O programa nacional de alimentação escolar e a gestão municipal: eficiência administrativa, controle social e desenvolvimento local”. Rev. Nutr., Campinas, 22(5): 595-607, Oct.: 596; Peixinho, 2013PEIXINHO, A. M. L. 2013. “A trajetória do Programa Nacional de Alimentação Escolar no período 2003-2010: relato do gestor nacional”. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 18(4): 909-916.: 910) 14 14 Apesar da importância do PNAE e de todos os benefícios sociais dele decorrentes, as publicações científicas sobre o Programa ainda são escassas (Peixinho, 2013: 910). . Para se ter uma ideia da importância e abrangência do Programa, dados de 2005 mostram que cerca de 70% da população nacional na faixa etária entre zero e catorze anos eram atendidos pelo PNAE (Belik & Chaim, 2009BELIK, Walter & CHAIM, Nuria Abrahão. 2009. “O programa nacional de alimentação escolar e a gestão municipal: eficiência administrativa, controle social e desenvolvimento local”. Rev. Nutr., Campinas, 22(5): 595-607, Oct.: 598). A importância de um programa como esse se apresenta no impacto que a alimentação escolar tem na aprendizagem dos alunos, na garantia de alimentação das populações mais carentes e no “bem viver” comunitário.
Em seu princípio, o programa chamava-se Programa Nacional de Merenda Escolar . Entre os anos de 1955 e 1970 há um predomínio de organismos internacionais fornecendo a quase totalidade da alimentação dos escolares no Brasil (Coimbra & Starling, 1982COIMBRA M, Meira JFP, STARLING MBL. 1982. Comer e aprender: uma história da alimentação escolar no Brasil. Belo Horizonte, MEC, Inae. ), não existia qualquer preocupação com a adequação cultural dessa alimentação aos contextos regionais. Na década de 1970, os produtos passam a ser comprados nacionalmente e há uma intensificação da compra de alimentos formulados produzidos pelas indústrias alimentícias ( idem ). Em 1979 o Programa passa a ser denominado Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Com a Constituição de 1988, a alimentação escolar passa a ser um direito assegurado pelo inciso VII do artigo 208 (Brasil, 1988BRASIL. 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado Federal, Centro Gráfico. ). Em 1994 ocorre uma importante descentralização do PNAE (Lei n. 8913, Brasil, 1994BRASIL. Poder Legislativo. 13 jul. 1994. Lei n. 8913, de 12 julho de 1994. Dispõe sobre a descentralização da merenda escolar. Diário Oficial da União, 132 (1):30. ), um convênio entre o governo federal ( Fundação de Assistência ao Estudante (FAE)/ Ministério da Educação e Cultura ), estados e municípios, permitindo o repasse de recursos para a alimentação escolar. No ano de 1997, a gestão dos recursos do PNAE é incorporada pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que irá atuar nesse campo até os dias de hoje. A partir de 2000, o repasse do Governo Federal fica condicionado à criação dos Conselhos de Alimentação Escolar (CAE) nos estados e municípios (Brasil, 2000BRASIL. 3 jun. 2000. Medida Provisória n. 1.979 – 19 de 2 de junho de 2000. Dispõe sobre o repasse de recursos financeiros do Programa Nacional de Alimentação Escolar, institui o Programa Dinheiro Direto na Escola, e dá outras providências. Diário Oficial da União. ). A composição dos Conselhos passa a favorecer um envolvimento direto dos membros da comunidade escolar na gestão e fiscalização do PNAE 15 15 A Medida Provisória nº 1979-19, de 2 de junho de 2000, estabeleceu que os CAE deveriam ser compostos por “sete membros: um representante do Poder Executivo, um do Legislativo, dois representantes dos professores, dois de pais de alunos e um representante de outro segmento da sociedade” (PIPITONE et al., 2003: 145). .
Entre as mudanças ocorridas com a descentralização, nos interessam aqui, principalmente, a autonomia dos estados e municípios na elaboração dos cardápios. Essa autonomia viabiliza duas possibilidades relevantes: 1) “o oferecimento de uma alimentação escolar condizente com os hábitos da população nas diferentes localidades do País” (Belik & Chaim, 2009BELIK, Walter & CHAIM, Nuria Abrahão. 2009. “O programa nacional de alimentação escolar e a gestão municipal: eficiência administrativa, controle social e desenvolvimento local”. Rev. Nutr., Campinas, 22(5): 595-607, Oct.: 597; Peixinho, 2013PEIXINHO, A. M. L. 2013. “A trajetória do Programa Nacional de Alimentação Escolar no período 2003-2010: relato do gestor nacional”. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 18(4): 909-916.: 911); 2) a “inserção da pequena empresa, do comércio local, do pequeno produtor agrícola e da pecuária local nesse mercado institucional” ( ibidem ). Ou seja, começa a se desenhar algo que ganhará força em 2009: o respeito aos diferentes hábitos alimentares do Brasil e um princípio de inserção do “pequeno produtor” nesse mercado da alimentação escolar pública.
Somente em 2009 é sancionada a Lei 11.947/09 (Brasil, 2009), reconhecida como um grande impulso para o avanço da atuação do PNAE (Peixinho, 2013PEIXINHO, A. M. L. 2013. “A trajetória do Programa Nacional de Alimentação Escolar no período 2003-2010: relato do gestor nacional”. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 18(4): 909-916. ). Essa lei exige, em seu Artigo 14, a contratação mínima de 30% de produtos da alimentação escolar provenientes da “agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas”. Outra mudança importante que ocorre em 2009 é a obrigatoriedade do PNAE de atender aos estudantes do ensino médio e a extensão do Programa a toda a rede pública de educação básica e de jovens e adultos (Peixinho, 2013PEIXINHO, A. M. L. 2013. “A trajetória do Programa Nacional de Alimentação Escolar no período 2003-2010: relato do gestor nacional”. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 18(4): 909-916.: 910). Há ainda a priorização de alimentos orgânicos e/ou agroecológicos e a contratação via dispensa de licitação, utilizando-se a modalidade Chamada Pública, exclusiva para a participação e contratação de agricultores familiares e/ou suas organizações. Já no primeiro ano de vigência da Lei 11.947/09, em 2010, de um universo de 93,35% dos estados e municípios brasileiros, cerca de 54% deles realizaram a compra dos produtos da agricultura familiar ( ibidem ).
Como bem destacam Belik & Chaim ( 2009BELIK, Walter & CHAIM, Nuria Abrahão. 2009. “O programa nacional de alimentação escolar e a gestão municipal: eficiência administrativa, controle social e desenvolvimento local”. Rev. Nutr., Campinas, 22(5): 595-607, Oct. ), que analisaram a atuação das 670 prefeituras inscritas no Prêmio Gestor Eficiente da Merenda Escolar entre os anos de 2004 e 2005, o PNAE não é apenas um programa de fornecimento de alimentação ao escolar. Atuando na ponta como uma forma de fornecer alimentos para os estudantes, o Programa conecta “desenvolvimento local, educação alimentar, cidadania e mesmo de resgate e revalorização cultural” ( idem: 604). Nesse sentido, as prefeituras que melhor geriram os recursos financeiros do PNAE foram as que articularam uma “rede de apoio local” ( ibidem ). Essa rede é formada por “diferentes setores da sociedade, de forma a gerar um efeito multiplicador do esforço do município na gestão do Programa” ( idem: 605). Veremos adiante o quanto a estratégia de formação de uma rede de parceiros foi fundamental para o sucesso da Associação de Mulheres Ticuna Mapana.
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em 2003, é outra maneira de a agricultura familiar escoar sua produção e fornecer alimentos de qualidade não só para as escolas públicas, mas a outras entidades públicas, como: creches, abrigos, hospitais, asilos etc. (Brasil, 2014BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. 2014. PAA: 10 anos de aquisição de alimentos. Brasília, DF, MDS; Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação. ). Suas funções principais são o desenvolvimento local, o fortalecimento da agricultura familiar, garantir a segurança alimentar para populações mais vulneráveis e a formação de estoques estratégicos por meio da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). “A maior parte dos recursos do PAA é executada por meio de compras diretamente de organizações da agricultura familiar, como associações e cooperativas” (Brasil, 2014BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. 2014. PAA: 10 anos de aquisição de alimentos. Brasília, DF, MDS; Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação.: 19), dispensando licitações e operando por meio de “chamadas públicas”.
O PAA faz parte de um leque de políticas públicas que surgiram em decorrência da criação do programa Fome Zero, com o objetivo de combater a fome e a insegurança alimentar. Esse Programa apresentou como inovação o foco no fortalecimento da agricultura familiar, por meio da aquisição de alimentos regionais, orgânicos e produzidos localmente, com priorização para os agricultores familiares indígenas, quilombolas e assentados da reforma agrária. De modo a promover a geração de renda nas áreas rurais e aumentar a produção e o consumo regular de alimentos típicos, respeitando e valorizando as práticas tradicionais e culturais locais. O Programa fecha um ciclo virtuoso, privilegiando a compra direta de um “maior universo possível de produtores de menor renda” (Brasil, 2014BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. 2014. PAA: 10 anos de aquisição de alimentos. Brasília, DF, MDS; Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação.: 33), valorizando produtos agroecológicos, provenientes da agricultura familiar e oferecendo alimentos saudáveis onde atua 16 16 “Comprar da agricultura familiar é uma estratégia ganha-ganha. Ganha o governo, ganha a agricultura familiar, ganha o gestor e ganha o público atendido” (Brasil, 2014: 25). .
A alimentação nas escolas públicas do Amazonas e a alimentação tradicional dos Ticuna
Entre julho e agosto de 2013 passei uma temporada de cerca de vinte dias na comunidade Ticuna de Vendaval, município de São Paulo de Olivença (AM). Uma comunidade bastante grande, com cerca de 1500 pessoas, na época. Nesse período de trabalho de campo, fiquei alojado em um quarto ao lado da Escola Estadual Indígena Pogüta. Todos os dias, depois da minha jornada peregrinando entre as casas e conversando com os Ticuna de Vendaval, já anoitecendo, eu retornava para a Escola. A gestora e mais alguns funcionários sempre me convidavam para jantar com eles, era a mesma comida que os alunos almoçavam. Invariavelmente era comida industrializada, arroz, macarrão, salsicha, carne enlatada, farinha, mais raramente algum peixe. Em diversos outros momentos de meu trabalho de campo, entre 2012 e 2015, para a realização do meu doutorado, pude observar ou mesmo participar da refeição nas escolas das comunidades. A maior parte da alimentação era composta de industrializados, sem qualquer relação com os hábitos alimentares locais 17 17 Relato de campo de Edson Matarezio. .
Hermísia Pedrosa, servidora da Funai que acompanhou o início da Associação Mapana, descreve um pouco da alimentação escolar em 2014:
Nós não encontramos nas escolas do município à época, em 2014, nenhum tipo de alimentação natural e que estivesse em consonância com a cultura ticuna. O que a gente tinha era uma farinha branca que vinha de Manaus. Aqui, localmente, existe a farinha amarela que é produzida por eles e que é diferente. Eles nem consumiam esta farinha, estragava, por exemplo. Vinham polpas de fruta de Manaus, mas era tudo congelado, não tinha nada produzido localmente; sem contar que ainda assim a merenda não era regular, tinha merenda suficiente para quinze dias no ano letivo e nos outros dias não tinha merenda […]. Foi a partir daí que nós procuramos a prefeitura, o Ministério Público, a Secretaria [de Estado] da Produção Rural [Sepror], o Conselho de Alimentação Escolar [CAE] para conversarmos sobre este cenário e para que a gente tentasse pôr em prática o cumprimento da Lei 11.947/2009.
A mesma constatação teve o procurador do Estado do Amazonas, Fernando Merloto Soave, ao chegar a comunidades Yanomami do município de São Gabriel da Cachoeira (Mendes, 2019MENDES, Nikolas R. G. A. 2019. Análise do processo de reformulação do Programa Nacional de Alimentação Escolar nas escolas indígenas no Amazonas. Brasília, Dissertação de Mestrado, Programa de Mestrado Profissional em Governança e Desenvolvimento, Escola Nacional de Administração Pública, Universidade de Brasília.: 92). Tal evento teve como resultado a criação de um Grupo de Trabalho (GT) organizado e conduzido pela Procuradoria da República no Amazonas (Pram), que seria o embrião da Catrapoa. Criada em 2016, a Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos do Amazonas (Catrapoa) obteve resultados importantes nos últimos anos, resultando em sua premiação na 17ª edição do Prêmio Innovare (2020), promovido por um conjunto de instituições jurídicas brasileiras. Coordenada pelo Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas, em 2021 a comissão altera seu nome para Mesa Permanente de Diálogo Catrapovos , ou somente Catrapovos, instituída pela Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF (6CCR), um fórum permanente que envolve órgãos públicos das três esferas de governo e representantes de entidades não governamentais (Brasil, 2020; Mendes, 2019MENDES, Nikolas R. G. A. 2019. Análise do processo de reformulação do Programa Nacional de Alimentação Escolar nas escolas indígenas no Amazonas. Brasília, Dissertação de Mestrado, Programa de Mestrado Profissional em Governança e Desenvolvimento, Escola Nacional de Administração Pública, Universidade de Brasília. ). A experiência pioneira e os resultados da Mapana foram fundamentais para o desenvolvimento da Catrapovos, que, atualmente, apoia dezenas de associações indígenas, quilombolas e populações tradicionais do Amazonas 18 18 O site do Ministério Público Federal nos apresenta um breve histórico, instituições parceiras, notas técnicas, recomendações e guias da Catrapovos, https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/catrapovosbrasil , consultado em 15 de setembro de 2023. .
As verificações observadas em campo, acima mencionadas, são corroboradas com as informações de aquisição de alimentos da agricultura familiar, destinados à alimentação escolar no estado do Amazonas. Segundo dados disponibilizados na plataforma de consultas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE ( https://www.gov.br/fnde/pt-br ), somente em 2016 o percentual de compra foi igual ou superior a 30% do valor total disponibilizado ( Figura 1 ), conforme dita o Artigo 14, da Lei 11.947/2009.
. Comparativo entre o valor total (em reais) repassado pelo FNDE ao estado do Amazonas para aquisição de alimentação escolar e o valor adquirido diretamente da agricultura familiar, entre os anos de 2012 e 2017. Fonte: https://www.gov.br/fnde/pt-br
No município de Tabatinga/AM, mais especificamente, a primeira aquisição de alimentos da agricultura familiar ocorreu apenas em 2017 ( Figura 2 ).
. Comparativo entre o valor total (em reais) repassado ao município de Tabatinga/AM para a aquisição de alimentação escolar, o valor repassado exclusivamente para as escolas indígenas de Tabatinga/AM e o valor adquirido da agricultura familiar (AF) indígena do município de Tabatinga/AM. Fonte: https://www.gov.br/fnde/pt-br
Após esta breve exposição sobre a alimentação nas escolas públicas do Amazonas e a situação específica de Tabatinga, examinaremos mais de perto as cozinhas, os pratos e a alimentação tradicional dos Ticuna.
A organização e a posição das cozinhas nas casas dos Ticuna têm bastante influência na dinâmica da vida doméstica e na maneira como são produzidas e consumidas as refeições. De modo geral, as casas possuem poucas divisões, podem ter de um a quatro cômodos e a cozinha ao fundo. O que é muito recorrente para a grande maioria das casas ticuna que conheci é que a cozinha é feita de uma casa mais antiga da família, que já estava bem desgastada. Quando constroem uma casa nova, anexa à antiga, a casa antiga se transforma em uma cozinha. Em geral, há uma passagem, uma porta ou pequena ponte entre as duas dependências. Na casa antiga, transformada em cozinha, existe a preferência por uma cobertura de folhas de caraná ( Lepydocaryum tenue ) e as laterais são mais abertas. Desse modo, há mais ventilação para a fumaça e o ambiente fica mais fresco.
Quando a casa é mais espaçosa e seus moradores têm mais recursos financeiros, há mais de uma cozinha. Uma cozinha como essa descrita, nos fundos, com uma fogueira, e uma cozinha como um cômodo a mais dentro da casa, com fogão a gás, geladeira etc. Os casos de cozinhas exclusivamente com fogão a gás existem, mas são raros; em geral, há sempre um espaço onde os alimentos podem ser preparados à lenha.
As cozinhas, além de local de preparo dos alimentos e de outras atividades, também são lugares de intensa convivência da parentela que mora na casa, visitantes e crianças que chegam para comer. Na rotina da casa em que permaneci por mais tempo na comunidade de Nossa Senhora de Nazaré, um ou dois homens saem para pescar pouco antes ou logo que os primeiros raios de sol começam a despontar. Enquanto isso o fogo vai sendo preparado. A primeira refeição do dia é bem reforçada, peixe com farinha, banana assada no fogo ou frita, tacati de banana. Todos sentados no chão, com o peixe e a farinha no centro, vão apanhando os bocados com as mãos, temperando com sal, limão, pimenta, misturando com farinha. As pessoas comem bastante pela manhã e, em geral, vão em seguida cuidar de suas roças, enquanto o sol ainda não está tão quente. O caminho para a roça e o próprio local também envolvem compartilhar comida, especialmente frutas que são apanhadas no caminho ou na roça. A próxima refeição com todos sentados no chão juntos acontecerá no começo da noite, com muita frequência o prato principal é o peixe com farinha. Pode haver carne de caça também, macaco guariba, cotia, veado, anta, queixada e paca. Tudo depende de os caçadores da comunidade estarem com suas armas funcionando bem, se têm munição para caçar e a sorte na caça.
Ao longo das “Oficina de Políticas Públicas para a Agricultura Familiar” 19 19 Realizadas pela Funai, em 2013 e 2014, com apoio da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e dos missionários Capuchinhos de Belém do Solimões. , visando a capacitar algumas famílias de Belém do Solimões para o fornecimento de merenda escolar, os pratos e bebidas típicos ticuna foram listados pelos participantes ( Figura 3 ), como uma das tarefas principais para a elaboração de um cardápio adequado aos hábitos alimentares tradicionais. Na imagem ( Figura 3 ), vemos dezessete variedades de pratos e bebidas, como: 1) mujica, uma mistura de peixe defumado, seco e desfiado com mingau de banana e temperos variados, especialmente chicória, fervidos por um bom tempo em um caldeirão; 2) pupeca, um modo de preparar peixes pequenos ou pedaços de carne pequenos enrolados na folha de bananeira; 3) peixe assado e moqueado; 4) caldo de peixe; 5) vinho ou suco de açaí, buriti e peixe; 6) suco de abacaxi, cupuaçu, maracujá e outras frutas; 7) mingau de banana, milho; 8) suco de banana prata; 9) caiçuma doce (de baixa fermentação) de macaxeira ou milho; 10) banana assada ou cozida; 11) tacate, banana amassada com farinha; 12) macaxeira cozida e amassada; 13) beiju de tapioca; 14) pé de moleque de banana madura e goma; 15) caldo de cana; 16) pajauaru doce (de baixa fermentação); e 17) suco de jenipapo.
Podemos notar, na lista acima, que a principal proteína da dieta tradicional dos Ticuna é o peixe, de vários tipos, e preparado de diversas maneiras: cozido num caldo, assado diretamente no fogo, sobre vigas ou grelha de metal, junto com bananas com casca. A mujica, prato muito apreciado, é feita com peixe ou outra carne moqueada, sendo um prato preparado, muitas vezes, depois de uma Festa de Moça Nova (Matarezio Filho, 2017 MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2017. “O amadurecimento dos corpos e do cosmos – mito, ritual e pessoa ticuna”. Revista de Antropologia, 60(1): 193-215. https://doi.org/10.11606/2179-0892. ra.2017.132073 .
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, 2019aMATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019a. A Festa da Moça Nova – Ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. São Paulo, Humanitas/Fapesp. 462 p. , 2019d MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019d. “Do resgate de almas à execução do feiticeiro: notas sobre o xamanismo Ticuna”. Sociedade e Cultura, 22(1): 218-239. https://doi.org/10.5216/sec.v22i1.49691 .
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, 2020 MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2020. “Do ponto de vista das moças: a circulação de afetos na Festa da Moça Nova dos Ticuna”. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Ciências Humanas, 15(1), e20190065: 1-21. https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2019-0065 .
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, 2021a MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2021a. “Perspectiva acústica Ticuna (Magüta) e os perigos de se ‘ficar no silêncio’”. Revista de Antropologia da UFSCar, 13(1), 60–74. https://doi.org/10.52426/rau.v13i1.365 .
https://doi.org/10.52426/rau.v13i1.365...
, 2021bMATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2021b. “Perigosos festeiros – as máscaras Ticuna 60 anos após Harald Schultz”. In: VIEIRA, Ana Carolina Delgado & CURY, Marília Xavier (orgs.). Culturas indígenas no Brasil e a coleção Harald Schultz. São Paulo, Edições Sesc, vol. 1, pp. 151-172. ), quando convidados e anfitriões trocam adornos por carne moqueada e bebida fermentada (caldo de pajauaru) (Matarezio Filho, 2019b MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019b. “Uma passagem entre as duas Américas: mito e ritual ticuna”. Etnográfica [Online], 23(3), DOI: https://doi.org/10.4000/etnografica.7214 .
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). Publicamente é raro ver as pessoas comendo nas casas de Festa durante o ritual da moça nova. Em geral, permanecem na casa de Festa se divertindo, conversando, cantando, dançando e bebendo grandes quantidades de pajauaru 20
20
Para uma descrição mais detalhada da bebida fermentada (Matarezio Filho, 2019a: 344 e ss) e das trocas rituais de bebidas e carne moqueada por adornos, ver Matarezio Filho, 2019b . Sobre momentos de restrição alimentar e dietas especiais, como o resguardo das moças neófitas, das mulheres no puerpério e dos homens na couvade, ver Matarezio Filho, 2019a: 287 e ss, 344 e ss.
.
Pelo exposto até aqui, e ainda veremos abaixo a variedade dos cultivos das roças e quintais, nota-se que a variada e rica cultura alimentar e o potencial de produção de alimentos dos Ticuna se apresentam em nítido contraste com a situação de descaso com o fornecimento de alimentação pública para a merenda escolar. Esse quadro de pobreza do perfil alimentar da merenda servida nas escolas começa a mudar substancialmente em muitas escolas da região com a iniciativa de um grupo de mulheres ticuna articuladas com uma rede de parceiros. É a história da associação Mapana, que abordaremos em seguida.
História da Associação de Mulheres Ticuna Mapana – parcerias e articulações
De acordo com Adelina Fidelis, presidenta da associação Mapana, os Freis capuchinhos missionários de Belém do Solimões a procuraram para que ela “ficasse perto deles, acompanhasse eles”. Isso rendeu a ela “muita experiência”, me disse. Essa proximidade com os Freis se desdobrou na organização de uma primeira reunião formativa realizada com dez mulheres em Tabatinga. Esse é o primeiro passo relatado por Adelina para o início da Associação Mapana (Matarezio Filho, 2019c MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019c. Mapana, filme documentário, NTSC, cor, 15 min. Lisa-USP. Documentário disponível em: https://vimeo.com/345066943 .
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). O curso intensivo teve como foco uma formação sobre “direito das mulheres” e sobre associações e organizações comunitárias. Dessa formação, Adelinda destaca que aprendeu que “as mulheres têm direito de tudo, igual os homens, os homens tem direito de tudo, então as mulheres também têm”.
O nome da associação foi escolhido para fazer referência à heroína mítica Mapana. A história de Mapana é uma história de vingança para um caso de abuso cometido pelo companheiro da heroína (Matarezio Filho, 2019aMATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019a. A Festa da Moça Nova – Ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. São Paulo, Humanitas/Fapesp. 462 p.: 93). O que talvez seja o primeiro evento mítico dos Ticuna é uma saída para caçada, em que Ngutapa leva sua mulher, Mapana, para a floresta. Pelo fato de sua mulher não lhe dar filhos, Ngutapa a castiga. Mapana é amarrada de braços e pernas abertas na floresta e deixada para ser picada por cabas (vespas) e formigas. Percebendo o sofrimento de Mapana, que grita de dor, um gavião cão-cão ( cõw – gralhão – Ibycter americanus ) a desamarra e lhe dá vespas. Como vingança, ela espera escondida Ngutapa passar pelo caminho e atira uma casa de cabas (vespas) nos joelhos dele. Ele começa a gritar de dor também. Seus joelhos logo começam a inchar muito e “ele sentiu que tinha gente lá dentro”. O ataque de cabas a Ngutapa fez o herói engravidar nos joelhos, gestando os quatro irmãos, duas mulheres e dois homens, que continuarão a saga de origem dos Ticuna [Magüta].
Ouvi inúmeras vezes essa história e ela está fartamente documentada na literatura sobre os Ticuna (Nimuendaju, 1952NIMUENDAJU, Curt. 1952. The Tukuna: American archeology. Berkeley e Los Angeles, University of California Press. ; Goulard, 2009GOULARD, Jean-Pierre. 2009. Entre mortales e inmortales: El ser según los Ticuna de la Amazonía. Lima, CAAAP, CNRS-MAEE-IFEA. ; Matarezio Filho, 2019aMATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019a. A Festa da Moça Nova – Ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. São Paulo, Humanitas/Fapesp. 462 p. ). A novidade da versão que me foi contada por Adelina está no paralelo traçado por ela entre a vingança de Mapana contra Ngutapa e o sucesso da associação contra as críticas e suspeitas das quais elas foram alvo. Neste trecho de sua fala, por exemplo:
Desde a criação [do mundo] que tem uma mulher que é lutadora também. E ela é muito criticada pelo marido dela. A Mapana, como ela sabe cuidar dessa produção, ela plantava muito os produtos e ela leva para frente. Ela sabe cuidar do marido dela e ao mesmo tempo ela sabe fazer artesanato. Nós, como ela na criação do mundo, que tem essa mulher que tem experiência, nós experimentamos esse nome para nós colocarmos na nossa associação. É igualzinho mesmo ela, as mulheres trabalham na roça, plantam tudo, fazem artesanato, também estão fazendo curso de corte e costura, para levar para frente, curso de culinária também dá certo, tudinho para nós. Mesmo como aconteceu com ela, de o marido dela criticar muito ela, queria matar ela, até para bagunçar com ela, a mesma coisa, como eu sou a presidente da associação, acontece a mesma coisa comigo. Muitas vezes eu sou muito criticada. Porque, “ah, Adelina está se aproveitando das mulheres, Adelina tá levando não sei o quê, Adelina tá roubando. Eu vejo isso, para mim é muito importante, mas muitas vezes fica mais forte ainda a associação. Eu nunca desisti, porque isso é bom para mim também. Eu lutei mesmo sendo criticada, pelos homens, até por autoridades da nossa comunidade eu fui criticada. Mesmo eu sendo criticada, eu levo para frente até agora. Essa mulher [Mapana] também é muito importante para mim. Agradeço muito a Deus, que tem dado certo até agora.
O ano era 2009, as mulheres que participaram da formação organizada pela igreja ficaram bastante entusiasmadas para terem a experiência com uma associação. Muitas já tinham a experiência de produzir artesanato para vender na cidade de Letícia (Colômbia) e Tabatinga (AM). Marcaram uma “assembleia com todas as mulheres”, para compartilhar o que aprenderam na capacitação feita com os Freis, já contando com o apoio desses também. A assembleia reuniu mulheres das comunidades de Belém do Solimões ( Figura 4 ), Bananal, Vendaval, Santa Rosa e Água Limpa, as mesmas comunidades de onde provinham as mulheres que participaram da formação em Tabatinga. Nessa assembleia a Associação Mapana foi fundada com Adelina como presidenta.
. Mapa da comunidade Belém do Solimões, TI Eware, Tabatinga (AM ). Fonte: Frades Menores dos Capuchinhos do Amazonas e Roraima (2019)
O apoio dos padres foi fundamental para que as mulheres conseguissem vencer a burocracia para formalizar a associação. “Tirar um CNPJ, registrar em cartório o estatuto e ata da associação, tudo é pago”, me contou Adelina. De posse do CNPJ e com as formalidades burocráticas adiantadas, ainda havia o desafio de conseguir um apoio para começarem a plantar as roças e fazer os artesanatos. Inicialmente Adelina bateu na porta da prefeitura de Tabatinga, pedindo uma ajuda para o início da associação, mas foi em vão, só receberam promessas.
Em seguida, buscando ajuda na Funai, Adelina diz ter sido “enrolada” por quatro anos. Diziam que estavam preparando um projeto para a associação, mas que não foi implementado. Com as mudanças de coordenação da Coordenação Regional (CR) Alto Solimões, a nova coordenação se mostra mais sensível em apoiar as mulheres indígenas. Elaborando um projeto em parceria com a Funai, as mulheres conseguiram um “material para trabalhar na roça”, terçado, enxada etc., além de algum material para fazer artesanato, máquina de costura. Ao Cetam (Centro de Educação Tecnológica do Amazonas) foi solicitada a capacitação das mulheres para se aprimorarem no artesanato e no corte e costura.
Hermísia acompanhou de perto o início do desenvolvimento da Associação Mapana. “Isto em 2012, a gente queria trabalhar mais próxima das associações, dos grupos organizados, para facilitar a nossa atuação. Pensando que a Funai tem poucos servidores e a gente não tem condições de atuar no nível de 75 mil indígenas”, relatou em entrevista em 2017. “Em uma conversa com os presidentes de associações do Alto Solimões, conhecemos a Adelina, presidente da Associação Mapana, e observamos que, entre todos aqueles grupos, a associação da Adelina era a que estava mais organizada”. Esta primeira reunião identificou o potencial da Associação para a elaboração de um projeto de geração de renda. Até então, conta Hermísia, “a gente recebia muita demanda de projetos indígenas para geração de renda, projetos de família para doação de ferramentas, construção de casas de farinha; a gente percebeu que eram projetos que não levariam a nenhuma autonomia, que eles estavam sempre demandando a Funai para repor esses materiais”. Até então, em sua maioria, os projetos desenvolvidos pela Funai na região envolviam a doação de materiais e equipamentos, sem nenhum acompanhamento, ou aplicação de práticas totalmente alheias às realizadas localmente, como criação de frangos com ração, construção de tanques escavados para piscicultura, plantio de espécies vegetais exógenas com uso de agroquímicos.
Em um contato mais próximo com as mulheres ticuna, os servidores da Funai perceberam que uma das principais demandas era encontrar soluções para o escoamento da produção agrícola. “Eles vinham reclamar tipo: ‘A gente produz e estraga’. Estraga muito abacaxi, muita macaxeira, muita banana, a gente não tem para quem vender”, me contou Hermísia. Levar a produção para Tabatinga envolvia um alto custo de transporte, não havia um local adequado para a venda e os preços eram muito baixos. Houve um entendimento de que os programas governamentais de aquisição de produtos da agricultura familiar poderiam ser viáveis na região, tendo como ação estratégica a concretização de um projeto-piloto que reunisse em sua execução a instrumentalização das instituições e associações indígenas nas seguintes questões: alimentação tradicional; merenda escolar; associativismo; comércio local; saberes e práticas agroecológicas.
Pesquisando as alternativas, a equipe da Funai encontrou dois programas de compras de alimentos da agricultura familiar, que seriam os mais acessados pela Mapana, o PAA e o PNAE. No ano de 2013 realizaram o Seminário de Políticas Públicas da Agricultura Familiar, em nível local, para que servidores públicos e indígenas pudessem aprender como funcionavam esses programas. Participaram desse Seminário representantes do Ministério do Movimento Agrário, da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), responsável pelo PNAE. Além de um melhor entendimento sobre o funcionamento dos programas PAA e PNAE, foi decidido em plenária no Seminário que iriam fazer um projeto-piloto de venda da produção agrícola com a associação que estivesse mais bem organizada. Esse era o momento de a Associação Mapana mostrar seu potencial.
As primeiras ações empreendidas foram a identificação do que era produzido pelas famílias, a quantidade que poderia ser produzida em excedente para a venda e a elaboração de um calendário agrícola discriminando a produção de acordo com o período do ano. No quadro abaixo ( Figura 5 ) vemos uma lista extensa e variada de produtos: mandioca, abacaxi, banana, milho, feijão, melancia, cupuaçu, açaí, buriti, manga, mapati, ingá, abiu, umari e tucumã. Para o primeiro projeto-piloto foram selecionadas dez famílias das cerca de 150 associadas na época. Esses dez selecionados deveriam ter CPF, RG, conta bancária, e as chamadas DAPs, Declaração de Aptidão ao Pronaf (Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar), emitidas no Amazonas pelo Idam (Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas). “Nós fizemos um mutirão junto com o Idam, então fomos com os técnicos do Idam e da Funai até a comunidade Belém de Solimões e visitamos as roças dessas pessoas. Porque é isso que a regra diz, a legislação fala que você tem que conhecer a unidade produtiva do agricultor para emitir a declaração”, me contou Hermísia.
. 2013/2014 – Mapeamento dos alimentos segundo o calendário agrícola realizado pela servidora da Funai, Hermísia Pedrosa, juntos aos Ticuna.
Até então a prefeitura de Tabatinga nunca havia concretizado uma compra através de “chamada pública” para aquisição de produtos provenientes da agricultura familiar, como especificado na Lei 11.947/2009, para o fornecimento de merenda escolar via PNAE. Essa “chamada pública” libera os pequenos produtores familiares de uma série de documentos que seriam necessários para uma licitação, entre empresas fornecedoras. A prefeitura alegou que chegou a fazer “chamadas”, no entanto, nenhum agricultor familiar apareceu. Segundo me relatou Hermísia, afirmaram que
seria muito difícil porque as pessoas não tinham conhecimento da burocracia, de emissão de nota fiscal, que não tinham conta, até chegaram a falar que Tabatinga não tinha produção suficiente, que os indígenas não produziam, não plantavam mais […] eles não seriam capazes de suprir a demanda das escolas, por isso eles usavam essas justificativas para comprar 100% da alimentação diretamente do “empresário”, como dizem, uma alimentação 100% industrializada.
Em face da ausência de abertura de “chamada pública” para o PNAE naquele momento, optaram por elaborar um projeto para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), que recebia propostas em fluxo contínuo. Uma modalidade específica de fornecimento de alimentos também foi escolhida, a aquisição de alimentos com doação simultânea; ou seja, a associação de agricultores familiares vende para a Conab, e esta última doa para outra instituição, que pode ser uma escola, uma rede assistencial, um asilo, um hospital, uma entidade filantrópica, uma igreja, uma creche, a criação de estoques públicos para situações de emergência, por exemplo.
Em 2014, a Associação Mapana, em um projeto-piloto com dez famílias, teve primeiro projeto de fornecimento de seus produtos agrícolas aprovado pela Conab, na modalidade de Compra com Doação Simultânea. O valor do projeto foi de 65 mil reais, fornecendo 63 toneladas de alimentos ( Figura 6 ), e atendeu uma única escola indígena, a Escola Municipal Eware Mowatcha, com aproximadamente oitocentos alunos matriculados, do município de Tabatinga, comunidade de Belém de Solimões. Cabe ressaltar que não temos conhecimento de nenhum outro projeto envolvendo uma associação composta exclusivamente por indígenas até esse ano, no estado do Amazonas.
. Evolução das quantidades (em toneladas) e valores (em reais) comercializados pelos agricultores indígenas do município de Tabatinga/AM, para os programas PAA e PNAE com destinação à alimentação escolar
Essa primeira aprovação foi fundamental para demonstrar para as instituições públicas que a Associação de Mulheres Indígenas tinha totais condições de assumir a responsabilidade do fornecimento de alimentação escolar. O projeto para a primeira “chamada pública” da prefeitura, para o PNAE, viria somente em 2017. Este projeto envolvia dez famílias, para o fornecimento de seis alimentos e um montante de 35.000,00 reais, correspondendo a 27 toneladas de alimentos ( Figura 6 ). Em 2017, a Associação também formalizou um contrato no valor de 256 mil reais junto à Conab/AM, para fornecer 176 toneladas de alimentos para a Escola Municipal Eware Mowatcha por meio do PAA, na modalidade de Compra com Doação Simultânea, cujas entregas foram realizadas entre os anos de 2017 e 2019 ( Figura 6 ). Partindo dessa experiência, no ano seguinte o avanço foi bem significativo.
Hermísia explica a conjunção de fatores:
em 2018 foi uma chamada pública muito mais completa e a gente conseguiu ver também o salto de entendimento da prefeitura, da equipe de licitação da prefeitura, da própria nutricionista que inseriu dentro do cardápio da prefeitura vários alimentos que realmente eram consumidos pelos indígenas daqui do município de Tabatinga. Foi uma chamada pública que tinha aproximadamente quarenta tipos diferentes de alimentos.
A Associação, representada por 41 famílias, ofereceu uma diversidade de 15 alimentos, no valor de quase 600 mil reais, correspondendo a cerca de 140 toneladas de alimentos, destinados a todas as 39 escolas indígenas de Tabatinga ( Figura 6 ). Foram quase 60 toneladas de banana, 21 toneladas de farinha e 14 toneladas de melancia, que são os alimentos mais produzidos.
Outra mudança significativa, em 2017 a Mapana fornecia alimentação somente para escolas indígenas. Em 2020, comercializou um total de 655 mil reais, para 46 escolas municipais, sendo destas 39 escolas indígenas e 7 escolas não indígenas da zona rural ( Figura 6 ); foram disponibilizados 26 tipos de produtos, dentre eles várias frutas amazônicas, como abiu, araçá, mapati, pupunha e tucumã. Ou seja, o sucesso em fornecer merenda escolar promovido pela Mapana estava “ticunizando” a alimentação escolar como um todo nas escolas públicas de Tabatinga (Borges, 2018 BORGES, Rodrigo. 2018. “Indígenas vão fornecer 309 toneladas de alimentos para escolas”. Disponível em: https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2018/indigenas-vao-fornecer-309-toneladas-de-alimentos-para-escolas , consultado em 15 de março de 2024.
https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/...
; Matarezio Filho, 2019c MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019c. Mapana, filme documentário, NTSC, cor, 15 min. Lisa-USP. Documentário disponível em: https://vimeo.com/345066943 .
https://vimeo.com/345066943...
). Há um ganho muito grande também em tornar a Associação mais autônoma. Foram alguns anos até os associados se familiarizarem com a burocracia e as rotinas administrativas de gestão da associação, organização de relatórios, emissão de notas fiscais, declarações etc. 21
21
PNAE, PAA/PAB, DAP, FNDE, Preme, Funai, Pronaf, Consea, Conab, CAE, Idam, estas são algumas siglas com as quais os indígenas têm que lidar para vender seus produtos para a merenda escolar. Isso burocratiza e dificulta o acesso desses povos aos programas e leis dos quais eles podem ser beneficiados.
Houve um aumento expressivo na renda das famílias associadas e um impacto positivo na qualidade da alimentação dos estudantes de toda a rede pública de ensino.
Com a expedição da nota técnica n. 01/2017/ADAF/SFA-AM/MPF-AM 22 22 Disponível em https://www.mpf.mp.br/am/alimentacao-tradicional_OFF/a-catrapoa/documentos/notatecnica-no-1-2017 , acessado em 25 de dezembro de 2022. O principal avanço desta nota técnica é a adequação dos “entraves burocráticos desconectados das tradições alimentares quanto aos padrões de vigilância sanitária, considerando a existência de mecanismos tradicionais de controle alimentar dentro da cultura destes povos”. , que possibilita a aquisição de produtos de origem animal, vegetal e bebidas, sob o prisma da legislação do autoconsumo/consumo familiar, também foi possível incluir os alimentos processados como a farinha amarela regional, farinha de tapioca e a goma, bem como peixes e galinha caipira. Também em 2020 foi executado o primeiro contrato do PNAE junto à Secretaria de Estado de Educação e Desporto do Amazonas – Seduc/AM, no valor de R$ 170.040,36, por meio do qual foram entregues 29 toneladas, de 16 diferentes produtos, para 2 escolas estaduais indígenas de Tabatinga. O sucesso da iniciativa está registrado na Figura 7 .
. Notícia de 2018 no site da Funai sobre as 309 toneladas de alimentos entregues pela Mapana. Fonte: https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2018/indigenas-vaofornecer-309-toneladas-de-alimentospara-escolas , site consultado pela última vez em 23 de setembro de 2023
Em 2020, a Associação Mapana comercializou dez produtos, no valor de R$ 49.989,00, que totalizaram 9,7 toneladas de alimentos, para a Funai – Coordenação Regional do Alto Solimões, destinadas às famílias em insegurança alimentar, durante a pandemia de Covid-19, adquiridas via Dispensa de Licitação, usando-se da Lei 13.979/2020, que tornou dispensável a licitação para aquisição ou contratação de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. Foram contempladas 22 aldeias e famílias indígenas em contexto urbano dos municípios de Tabatinga/AM, Benjamin Constant/AM e São Paulo de Olivença/AM.
Após alguns anos dessa experiência exitosa da Associação Mapana e com a realização de uma oficina de intercâmbio com outros agricultores de Tabatinga e Benjamin Constant, a busca por acesso aos programas aumentou. Em 2020, 37 agricultores indígenas de Tabatinga participaram do PAA da Sepro (Secretaria de Estado da Produção Rural – AM), do PNAE da Seduc/AM e do PNAE municipal, fornecendo alimentos para três escolas indígenas da Terra Indígena Umariaçu. Em Benjamin Constant dez agricultores participaram do PAA/Sepror em 2020 e em Tonantins nove agricultores participaram do PNAE municipal em 2019.
Em trabalho de campo realizado em novembro de 2021 na comunidade Belém do Solimões, Adelina informou a Edson Matarezio que a Associação Mapana contava com 47 associados com DAP, mas sem este documento o número sobe para 315. Muitas famílias usam uma única DAP para conseguirem escoar sua produção. Em média, cada família possui quatro roças mais próximas e algumas capoeiras mais distantes, podendo chegar a seis ou sete espaços para o cultivo, em alguns momentos com um uso mais intenso, em outros momentos em descanso do solo. O forno de torrar farinha pode ser compartilhado e usado por quatro ou cinco famílias. Houve tentativas de cultivo de roças coletivas da comunidade, mas não deram certo, pois o modo tradicional dos Ticuna cultivar são as roças familiares. As famílias se reúnem para trabalhar juntas no chamado ajuri , o trabalho coletivo para, por exemplo, a derrubada e a queima (coivara) para abrir uma nova capoeira, um trabalho bastante pesado. Em um ajuri chegam a se reunir vinte, trinta famílias em Belém do Solimões.
Considerações finais
Um ponto importante, que apenas o trabalho de campo e as entrevistas conseguem tornar mais evidente, é o fato de que há um bom intervalo de tempo entre a promulgação da Lei 11.947/2009 e um efetivo entendimento e apropriação desse dispositivo jurídico da parte dos beneficiários dessa lei. Esse intervalo é ainda maior em locais mais remotos e com pouco acesso à comunicação com o exterior, como é o caso da região do Alto Rio Solimões (AM). Foi necessária, portanto, uma grande mobilização de diversos setores para que se fizesse cumprir o que obriga a Lei 11.947/2009, ainda que com cinco anos de atraso. Consideramos relevante destacar toda a dificuldade logística da região amazônica. O acesso à internet e a telefone é extremamente difícil, além dos altos custos com deslocamento. Portanto, a demanda de inúmeros documentos mensalmente, ou a necessidade de documentos de diversas instituições para ingresso nos programas, com exigência de serem digitalizados, dificulta a participação dos indígenas. Sendo muitas vezes impossível, sem o acompanhamento próximo e contínuo de um agente externo.
Vimos ao longo do artigo que, além da elaboração de um currículo e de materiais didáticos indígenas, principalmente pela Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngues (OGPTB) 23 23 Refiro-me aqui principalmente aos três volumes em língua ticuna organizados por Firmino & Gruber ( 2010 ) – alguns trechos desse material foram traduzidos por mim em minha tese de doutorado e livro (Matarezio Filho, 2019a ) –, mas também o livro pioneiro organizado por Oliveira Filho ( 1985 ), Gruber ( 1998 ) e pela OGPTB ( 2002a , 2002b ). , temos a influência das mulheres ticuna no cardápio das escolas da região ou a “ticunização” da alimentação escolar. Baseados nas estratégias, redes de parcerias e apoios agenciados principalmente pelas mulheres da associação, podemos propor um contraponto à chamada “caboclização” dos Ticuna e pensar que o que se passa é provavelmente uma relação de contramestiçagem (Goldman, 2015GOLDMAN, M. 2015. “‘Quinhentos anos de contato’: por uma teoria etnográfica da (contra)mestiçagem”. Mana [online], 21(3): 641-659. ) ou antimestiçagem (Kelly, 2016KELLY, J. A. 2016. Sobre a antimestiçagem. Curitiba, PR, Specie; Florianópolis, Cultura e Barbárie. ). Não precisamos pensar a relação entre os dois mundos como de sobreposição ou síntese, como supõe a “lógica da assimilação, da fusão e da mestiçagem e/ou sincretismo” (Goldman, 2015GOLDMAN, M. 2015. “‘Quinhentos anos de contato’: por uma teoria etnográfica da (contra)mestiçagem”. Mana [online], 21(3): 641-659. ).
Atualmente a vida escolar permeia o cotidiano das crianças Ticuna, a alfabetização e os conteúdos escolares são desejados pelos indígenas. Entre os Ticuna o estudo traz prestígio e a possibilidade de se conseguir um trabalho mais bem remunerado. Devemos levar em conta também os ticuna presentes nas Universidades, em cursos de graduação e pós-graduação. Nesse sentido, podemos nos perguntar, na chave da antimestiçagem, se é possível pensar estes pontos de contato com os “brancos” como uma “mistura não fusional” (Kelly, 2016KELLY, J. A. 2016. Sobre a antimestiçagem. Curitiba, PR, Specie; Florianópolis, Cultura e Barbárie.: 45-59) articulando a hibridação ticuna? 24 24 Segundo Kelly, a antimestiçagem “não envolve uma fusão consumptiva da diferença”, como as teses de “caboclização”, “mas a adição de uma socialidade diferente” ( 2016: 52).
A prosperidade da associação Mapana, longe de ser um exemplo da “falência da práxis tribal, imposta pela conjunção interétnica” (Cardoso de Oliveira, [1964] 1981CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. [1964] 1981. O índio no mundo dos brancos: a situação dos Tukúna do Alto Solimões. São Paulo, Difusão Europeia do Livro, Coleção Corpo e Alma do Brasil.: 65), mostra uma espécie de “ticunização” da merenda escolar da região. Isso na medida em que os indígenas têm condições de o fazer (“ticunizar” o “branco”). Não estou descartando a truculência do contato e suas consequências. Para Cardoso de Oliveira, a “sociedade nacional” e a “sociedade tribal” dos Ticuna atuariam em “campos semânticos” tão distintos que a comunicação entre elas estaria inviabilizada (Cardoso de Oliveira, [1964] 1981CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. [1964] 1981. O índio no mundo dos brancos: a situação dos Tukúna do Alto Solimões. São Paulo, Difusão Europeia do Livro, Coleção Corpo e Alma do Brasil. ) 25
25
Cf. Gow ( 1991 ) para uma crítica, baseada em seu campo entre os Piro do Baixo Urubamba (Peru), à proposta de Cardoso de Oliveira ( 1981 [1964]) de incomunicabilidade entre “brancos” e “índios” no caso Ticuna.
. Ao invés de pensarmos uma inviabilização de comunicação entre os “brancos” e os Ticuna, seria mais produtivo pensarmos essa comunicação na chave do “equivoco” (Viveiros de Castro, 2018VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2018. “A antropologia perspectivista e o método de equivocação controlada”. Revista Aceno, 5(10). ) ou, em outras palavras, como uma “concordância pragmática […] em um ambiente de ontologias múltiplas e contraditórias entre si” (Almeida, 2013 ALMEIDA, M. W. B. de. 2013. “Caipora e outros conflitos ontológicos”. Revista de Antropologia da UFSCar, 5(1), 7-28. https://doi.org/10.52426/rau.v5i1.85 .
https://doi.org/10.52426/rau.v5i1.85...
: 12).
O acesso aos programas da agricultura familiar trouxe uma série de benefícios às comunidades indígenas do Alto Solimões. Os alimentos produzidos numa determinada comunidade e doados para serem consumidos pelas escolas, creches, associações, entre outras entidades, desta mesma comunidade ou de comunidades vizinhas, fizeram com que a alimentação regional e o dinheiro obtido através da venda aos programas circulassem dentro das áreas indígenas envolvidas. A comercialização para os programas também diminuiu a dependência da figura do atravessador e promoveu a valorização dos preços de venda. A renda gerada possibilitou a aquisição de bens como: motores, móveis, alimentação, combustível etc. Para além dos retornos financeiros, também foi notável, no âmbito da Associação Mapana, a construção de uma maior autonomia, com a apropriação de conhecimentos relacionados à administração, gestão financeira, organização comunitária, relação junto às instituições públicas.
Ao que tudo indica, pelo que vimos ao longo do artigo, o baixo consumo de alimentos nas escolas, aliado a uma expressiva taxa de insegurança alimentar no Amazonas, corresponde a uma inadequação da alimentação que é oferecida na maior parte das escolas do Estado e aos hábitos alimentares regionais. Observamos em campo que, ao verem seus alimentos tradicionais sendo valorizados comercialmente e inseridos nestes programas governamentais, os produtores indígenas incrementaram o cultivo e o extrativismo de espécies alimentícias. Damos aqui atenção especial àquelas espécies endêmicas da Amazônia, que são pouco conhecidas pela sociedade do entorno das aldeias e não costumam ser comercializadas. Isso promoveu uma valorização local da agrobiodiversidade, onde se viu um aumento na variedade de plantas nos sistemas agroflorestais, estimulando a manutenção de variedades e sementes tradicionais. Cabe ressaltar que o conjunto dessas plantas alimentícias carrega um conhecimento histórico de práticas de manejo, seleção e cultivo, que resultou no enorme patrimônio genético de populações de plantas encontradas atualmente na Amazônia 26 26 Ver a dissertação de Pedrosa ( 2017 ) para um estudo da domesticação do mapati (Pourouma cecropiifolia) no Alto Rio Solimões. . Isso significa que a valorização e a promoção de tais práticas permitem a conservação através do uso dessa diversidade biológica, bem como a salvaguarda dos conhecimentos tradicionais associados (Emperaire et al ., 2012; Emperaire, 2005EMPERAIRE, Laure. 2005. “A biodiversidade agrícola na Amazônia brasileira: recurso e patrimônio”. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 32: 23-35. ).
Alguns ajustes e estratégias mais específicas para o público indígena da região amazônica precisam ser construídos. No entanto, ainda assim o acesso aos programas de aquisição de produtos da agricultura familiar indígena tem trazido diversos benefícios às comunidades e organizações indígenas. Estimula a organização comunitária, gera renda, garante a soberania alimentar, fortalece as práticas de manejos tradicionais e valoriza os alimentos e cultivos locais. Políticas públicas como o PAA e PNAE tanto geram melhorias nos âmbitos econômico e social, quanto fortalecem a relação dos agricultores indígenas com seu território e com sua cultura.
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1
Este artigo é o resultado de uma pesquisa de pós-doutorado financiada inicialmente pela Fapesp (proc. 15/11526-9, 16/15401-9, 18/13214 2) e, em seguida, financiada pelo projeto “Consórcio Humanitas UEA para pesquisa aplicada com povos e comunidades tradicionais do Amazonas” (2021-2023/ CAPES). O resultado final é produto de reflexões realizadas no Mandacaru Laboratório de Antropologia da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), no âmbito do projeto de pesquisa “Rituais musicais, afetos, cosmopolítica e soberania alimentar entre grupos indígenas e comunidades afro-brasileiras” (FINAPESQ/UEFS, 001/2023).
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2
O segundo capítulo da reportagem está disponível neste link: https://infograficos.estadao.com.br/especiais/favela-amazonia/capitulo-2.php , acessado em 25 de dezembro de 2022.
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3
Por exemplo, a reportagem de Beatriz Jucá, “8 anos e 12 quilos, a criança com malária e desnutrição que simboliza o descaso com os Yanomami no Brasil”, El País, São Paulo, 17 may 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-17/8-anose-12-quilos-a-crianca-commalaria-e-desnutricao-quesimboliza-o-descaso-comos-yanomami-no-brasil ., acessado em 15 de março de 2024.
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4
Uma definição sucinta de segurança alimentar seria quando “[a] família/ domicílio tem acesso regular ou permanente a alimentos de qualidade, com quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais” (Brasil, 2010).
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5
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
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6
Outra pesquisa realizada no mesmo período, utilizando outra metodologia, indica uma discrepância ainda maior entre pessoas em situação de segurança alimentar, 40,6%, e de insegurança alimentar, 59,4% (Galindo et al., 2021GALINDO, Eryka; TEIXEIRA, Marco Antonio; ARAÚJO, Melissa de; MOTTA, Renata; PESSOA, Milene; MENDES, Larissa & Lúcio RENNÓ. 2021. “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”. Food for Justice Working Paper Series, 4. Berlin, Food for Justice: Power, Politics, and Food Inequalities in a Bioeconomy. DOI 10.17169/ refubium-29554.
https://doi.org/10.17169/ refubium-29554... ). -
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Ver Brasil, 2010, para uma caracterização segundo o IBGE para os níveis leve, moderado e grave de insegurança alimentar. Em uma situação de insegurança alimentar grave, há a “falta de alimentos entre todos os moradores, incluindo as crianças. Nessa situação, a fome passa a ser uma experiência vivida no domicílio” (Brasil, 2010BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. 30 ago. 2010. Nota técnica DA/Sagi/MDS n. 128/2010: Relatório da Oficina Técnica para análise da Escala Brasileira de Medida Domiciliar de Insegurança Alimentar. Brasília, Sagi/DA. ).
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Sindemia ou sinergia de epidemias, porque coexistem no tempo e lugar. Uma sindemia é a “presença de dois ou mais estados de doença que interagem de forma adversa entre si, afetando negativamente o curso mútuo de cada trajetória da doença, aumentando a vulnerabilidade e tornando se mais deletérios por iniquidades experimentadas” (Swinburn, 2019 SWINBURN, B. A.; KRAAK, V. I.; ALLENDER, S. et al. 2019. “A sindemia global da obesidade, da desnutrição e das mudanças climáticas: o relatório da Comissão The Lancet”. Lancet 2019; publicado on-line em 27 de janeiro de 2019. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(18)32822-8 .
http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(18)... : 5). -
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Pesquisa de Orçamentos Familiares realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
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Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), realizada pelo Ministério da Saúde.
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Excesso de peso corresponde a um IMC (Índice de Massa Corpórea) ≥ 25 kg/m2.
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Obesidade corresponde a um IMC (Índice de Massa Corpórea) ≥ 30 kg/m2.
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Tabela 15.2.1 – Percentual de escolares de 13 a 17 anos em escolas que informaram oferecer refeição para os alunos, por dependência administrativa da escola, com indicação do intervalo de confiança de 95%, segundo os grupos de idade e as Grandes Regiões – 2019. Disponível em: https://ftp.ibge.gov.br/pense/2019/xls/Tema_15_Alimentacao_na_Escola.xls . Acessado em 14 de outubro de 2021.
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Apesar da importância do PNAE e de todos os benefícios sociais dele decorrentes, as publicações científicas sobre o Programa ainda são escassas (Peixinho, 2013PEIXINHO, A. M. L. 2013. “A trajetória do Programa Nacional de Alimentação Escolar no período 2003-2010: relato do gestor nacional”. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 18(4): 909-916.: 910).
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A Medida Provisória nº 1979-19, de 2 de junho de 2000, estabeleceu que os CAE deveriam ser compostos por “sete membros: um representante do Poder Executivo, um do Legislativo, dois representantes dos professores, dois de pais de alunos e um representante de outro segmento da sociedade” (PIPITONE et al., 2003PIPITONE, M. A.; OMETTO, A. M. H.; SILVA, M. V.; STURION, G. L.; FURTUOSO, M. C. O. & OETTERER, M. 2003. “Atuação dos conselhos municipais de alimentação escolar na gestão do programa nacional de alimentação escolar”. Rev Nutr., 16(2):143-54. DOI 10.1590/S1415-52732003000200001.
https://doi.org/10.1590/S1415-... : 145). -
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“Comprar da agricultura familiar é uma estratégia ganha-ganha. Ganha o governo, ganha a agricultura familiar, ganha o gestor e ganha o público atendido” (Brasil, 2014BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. 2014. PAA: 10 anos de aquisição de alimentos. Brasília, DF, MDS; Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação.: 25).
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Relato de campo de Edson Matarezio.
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O site do Ministério Público Federal nos apresenta um breve histórico, instituições parceiras, notas técnicas, recomendações e guias da Catrapovos, https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/catrapovosbrasil , consultado em 15 de setembro de 2023.
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Realizadas pela Funai, em 2013 e 2014, com apoio da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e dos missionários Capuchinhos de Belém do Solimões.
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Para uma descrição mais detalhada da bebida fermentada (Matarezio Filho, 2019aMATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019a. A Festa da Moça Nova – Ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. São Paulo, Humanitas/Fapesp. 462 p.: 344 e ss) e das trocas rituais de bebidas e carne moqueada por adornos, ver Matarezio Filho, 2019b MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019b. “Uma passagem entre as duas Américas: mito e ritual ticuna”. Etnográfica [Online], 23(3), DOI: https://doi.org/10.4000/etnografica.7214 .
https://doi.org/10.4000/etnografica.7214... . Sobre momentos de restrição alimentar e dietas especiais, como o resguardo das moças neófitas, das mulheres no puerpério e dos homens na couvade, ver Matarezio Filho, 2019aMATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019a. A Festa da Moça Nova – Ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. São Paulo, Humanitas/Fapesp. 462 p.: 287 e ss, 344 e ss. -
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PNAE, PAA/PAB, DAP, FNDE, Preme, Funai, Pronaf, Consea, Conab, CAE, Idam, estas são algumas siglas com as quais os indígenas têm que lidar para vender seus produtos para a merenda escolar. Isso burocratiza e dificulta o acesso desses povos aos programas e leis dos quais eles podem ser beneficiados.
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Disponível em https://www.mpf.mp.br/am/alimentacao-tradicional_OFF/a-catrapoa/documentos/notatecnica-no-1-2017 , acessado em 25 de dezembro de 2022. O principal avanço desta nota técnica é a adequação dos “entraves burocráticos desconectados das tradições alimentares quanto aos padrões de vigilância sanitária, considerando a existência de mecanismos tradicionais de controle alimentar dentro da cultura destes povos”.
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Refiro-me aqui principalmente aos três volumes em língua ticuna organizados por Firmino & Gruber ( 2010FIRMINO, Lucinda S. & GRUBER, Jussara G. 2010. Ore i nucümaügüü: Histórias Antigas, volumes 1, 2 e 3, Benjamin Constant, Amazonas: Organização geral dos professores Ticunas Bilíngues. OGPTB, Coleção Eware. ) – alguns trechos desse material foram traduzidos por mim em minha tese de doutorado e livro (Matarezio Filho, 2019aMATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019a. A Festa da Moça Nova – Ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. São Paulo, Humanitas/Fapesp. 462 p. ) –, mas também o livro pioneiro organizado por Oliveira Filho ( 1985OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de (org.). 1985. Toru Duǖ’ǖgü – Nosso povo. Rio de Janeiro, Museu Nacional/UFRJ/SEC/MEC/SEPS/FNDE, Memórias Futuras Edições. ), Gruber ( 1998GRUBER, Jussara Gomes (org.). 1998. O livro das árvores. Organização Geral dos professores Ticuna Bilíngues. Benjamin Constant, Amazonas Brasil. ) e pela OGPTB ( 2002aOGPTB. 2002a. Cururugü tchiga [Livro dos sapos]. Organização geral dos professores Ticuna bilíngues. Brasília, Ministério da Educação. 61p.: il. , 2002bOGPTB. 2002b. Werigü arü ae [Livro dos pássaros]. Organização geral dos professores Ticuna bilíngues. Brasília, Ministério da Educação. 48: il. ).
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Segundo Kelly, a antimestiçagem “não envolve uma fusão consumptiva da diferença”, como as teses de “caboclização”, “mas a adição de uma socialidade diferente” ( 2016KELLY, J. A. 2016. Sobre a antimestiçagem. Curitiba, PR, Specie; Florianópolis, Cultura e Barbárie.: 52).
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Cf. Gow ( 1991GOW, Peter. 1991. Of mixed blood: Kinship and history in Peruvian Amazonia. Oxford, Clarendon Press. ) para uma crítica, baseada em seu campo entre os Piro do Baixo Urubamba (Peru), à proposta de Cardoso de Oliveira ( 1981CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. [1964] 1981. O índio no mundo dos brancos: a situação dos Tukúna do Alto Solimões. São Paulo, Difusão Europeia do Livro, Coleção Corpo e Alma do Brasil. [1964]) de incomunicabilidade entre “brancos” e “índios” no caso Ticuna.
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Ver a dissertação de Pedrosa ( 2017PEDROSA, Hermísia Coêlho. 2017. Aspectos ecológicos e genéticos da domesticação de populações de Pourouma cecropiifolia Mart. da Amazônia Ocidental. Manaus, Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA, 83 f.: il. ) para um estudo da domesticação do mapati (Pourouma cecropiifolia) no Alto Rio Solimões.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
15 Mar 2023 -
Aceito
01 Mar 2024