Resumo
Ao adotar a história global como método, o artigo busca analisar, na construção do pensamento científico ocidental do século XIII, as articulações entre as formas de pensamento e os conhecimentos produzidos em distintas temporalidades e espacialidades históricas. A partir da análise da obra Image du Monde, escrita por Gossouin de Metz, por volta de 1245, pretende-se reconectar o ambiente intelectual francês aos espaços de circulação dos saberes grego antigo e árabe medieval. Nessa reflexão, as profundas mudanças na percepção da natureza do homem medieval e a busca por explicações científicas do mundo e de tudo o que nele existe ocupam um lugar central.
Palavras-chave:
História Global; Idade Média; Natureza; Cosmologia; Enciclopedismo
Abstract
By adopting the Global History as a method, this article analyses, in the construction of the western scientific thought of the 13th century, the articulations between the ways of thinking and the knowledge that was produced in distinct temporalities and historical spatialities. From the analysis of the Image du Mond, a literary work written by Gossouin de Metz, around 1245, we intend to reconnect the french intellectual environment with the circulation of both ancient greek and medieval arabic knowledge. In this reflection, the profound changes on the medieval man’s perception of the nature, and the search for scientific explanations about the Earth and everything that exists in it, occupy a crucial place.
Keywords:
Global History; Midle Age; Nature; Cosmology; Encyclopedism
A imagem do mundo
O ambiente no Reino de França do século XIII é de busca por explicações científicas do mundo e de tudo que nele existe. Intelectuais, teólogos e filósofos almejam compreender e explicar a natureza trazendo à luz uma conjugação do pensamento teológico e do pensamento herdado dos filósofos antigos e das ciências árabes. Profundas mudanças que se iniciaram no século anterior afetam a dinâmica da vida intelectual deste período.
Nesse cenário se situa o objeto de análise deste estudo, partindo de uma perspectiva da história global, cuja definição mais ampla é aquela que sugere, entre outras coisas,
la idea de que se debe hacer una historia que no imagina que las transformaciones vienen generadas sólo de una dinámica interna, sino que todo debe verse como resultado también de complejos entrelazamientos relacionales externos al punto de observación, poniendo en el centro del interés los intercambios, los vínculos, los flujos. (LEVI, 2018LEVI, Giovanni. Microhistoria e Historia Global. Historia Crítica, n.º 69, p. 21-35, 2018. DOI disponível em: <https://doi.org/10.7440/histcrit69.2018.02>.
https://doi.org/10.7440/histcrit69.2018.... , p. 25)
Em sua análise acerca do cenário Ocidental nos séculos XII e XIII, José Francisco Meirinhos concluiu que a lista dos fatores que diferencia este período relativamente aos anteriores e aos posteriores é “necessariamente longa e quase roça o paradoxo, tão contraditórios parecem” (MEIRINHOS, 2000MEIRINHOS, José Francisco. A Filosofia no Século XII - Renascimento e resistências, continuidade e renovação. [S.l.]: Mandruvá, 2000., p. 1-2). Dentre as mudanças que permitem uma noção da complexidade da vida intelectual nos séculos XII-XIII, destaca-se o crescimento demográfico e urbano conjugado com as revoluções na indústria e no comércio. No âmbito dos estudos e do ensino, cumpre importante papel a articulação de fatores como a instituição de escolas e a redefinição do papel do intelectual; as inovações na confecção e na difusão dos livros, que os tornaram mais acessíveis a um público mais diversificado, por exemplo, o crescimento das bibliotecas monacais; a abertura do saber a novos domínios, estimulada pelas discussões que ocorriam no interior da tradição intelectual e religiosa latina, mas, sobretudo, pela influência da ciência árabe e do reaparecimento da ciência grega, que alimentavam as discussões por meio das obras traduzidas do grego e do árabe; e a diversificação das ciências, com a multiplicação dos campos de saber e o surgimento de disciplinas com certa autonomia. A acumulação e conjugação desses fatores, entre outros destacados por Meirinhos, “em cujo devir estão também presentes nítidas tensões e hesitações pessoais e sociais, resultará uma situação nova no que diz respeito à filosofia, onde, de acordo com os modelos da época, devemos incluir a teologia e as ciências” (MEIRINHOS, 2000, p. 3).
Nessa esfera, por volta de 1245, Gossouin de Metz escreveu a Image du Monde, objeto deste estudo. Pouco se sabe a respeito do autor, apenas que foi poeta e clérigo, nascido em Metz ou nas suas cercanias. Sua obra é um poema didático em seis mil e seiscentos versos octossílabos, escrito em francês. Considera-se que, mais do que a primeira enciclopédia vernácula, a obra fundou um gênero, o da poesia vernácula científica (ALPALHÃO, [2010]ALPALHÃO, Margarida. Introdução. In: GOSSOUIN DE METZ. Imagem do mundo. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais/Universidade Nova de Lisboa, [2010]., p. 22-5).
A poesia científica de Gossouin de Metz evidencia o dinamismo da vida intelectual da França no século XIII, revelando o desejo de saber, de compreender a forma, a estrutura e o sentido do universo. Inspirado na Imago mundi de Honorio de Autun, (Honorius Augustodunensis, 1080-1154) Gossouin de Metz utiliza diversas fontes de seus antepassados e de seu próprio tempo. A obra tem o propósito de proporcionar aos homens de sua época a representação ordenada do funcionamento do mundo, uma ampla image du monde.
De acordo com Margarida Alpalhão, tradutora ao português e editora da obra em versão bilingue, há quatro redações da obra. Três versões em verso e uma versão em prosa - esta última trata-se da primeira versão colocada em prosa. A primeira versão da obra foi dedicada a Roberto de Artois, irmão de São Luís. Na primeira versão, a obra se divide em três partes: Deus e o mundo, seguida de uma introdução ao estudo da ciência, em particular as sete artes liberais (Livro I, 21 capítulos); geografia e meteorologia (Livro II, capítulo 19); e astronomia (Livro III, 28 capítulos).
Pouco depois do aparecimento da primeira versão, Gossouin (ou quiçá um autor posterior) apresentou uma segunda versão de seu poema, desta vez dedicado ao bispo Jacques de Metz, irmão do duque Matheus III de Lorena. O texto refundido, conservado em vinte e três manuscritos, é uma reedição aumentada, pois apresenta quase o dobro do tamanho da versão original, dez mil e seiscentos versos octossílabos. O conteúdo científico é basicamente o mesmo, com algumas adições, mas a distribuição é diferente (ALPALHÃO, [2010]ALPALHÃO, Margarida. Introdução. In: GOSSOUIN DE METZ. Imagem do mundo. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais/Universidade Nova de Lisboa, [2010]., p. 26 et seq). Na segunda versão, o poema tem apenas duas partes: introdução com uma história da ciência, a qual contém uma série de vidas exemplares de clérigos e letrados (Livro I, em 6 capítulos 6); e um conjunto enciclopédico dos fenômenos naturais que reproduz o conhecimento acerca do mundo que se pode ler na primeira versão: a geografia, a teoria dos quatro elementos, a cosmologia, etc. (Livro II, em 75 capítulos). Nessa segunda versão, os dados científicos são separados de sua moralização.
Também existe uma terceira versão da obra (conservada em um único manuscrito), que está muito próxima da segunda, caracterizada pela introdução de um prólogo em que se diz que a primeira versão foi dedicada a Roberto de Artois e a segunda a Jacques de Metz (ALPALHÃO, [2010]ALPALHÃO, Margarida. Introdução. In: GOSSOUIN DE METZ. Imagem do mundo. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais/Universidade Nova de Lisboa, [2010]., p. 26 et seq).
O êxito alcançado pela enciclopédia de Gossouin de Metz foi considerável, e isso explica as diferentes redações que se mantiveram até o dia de hoje e o número de manuscritos conhecidos - sessenta e sete. Apresentada em prosa no século XIII e traduzida para vários idiomas (hebreu, judaico-alemão e inglês) , a primeira versão é conhecida aprofundadamente, pois foi dedicada ao irmão do rei. Impressa muitas vezes na versão em prosa, desde finais do século XV, a enciclopédia de Gossouin foi muito difundida até o século XVI. Em seu próprio século, a Image du Monde inspirou Matfre Ermengaud em seu Breviário de amor (finais do século XIII), ampla recompilação teológica em língua occitana que esboça a moral cristã e exalta o amor divino na criação.
A versão estudada nesta pesquisa é uma cópia incompleta da primeira versão da obra. Trata-se do manuscrito seiscentos e dezenove da Biblioteca Pública Municipal de Porto, traduzido do francês ao português por Margarida Alpalhão, e publicado em versão bilíngue (originalmente francês e português) pelo Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de Lisboa. Embora consultara-se outras versões da obra, optou-se por utilizar, neste artigo, a publicação portuguesa por três motivos principais. Primeiro, trata-se da primeira, mais importante e mais conhecida versão da obra. Segundo, apesar de as versões da obra apresentarem algumas supressões ou acréscimos, o conteúdo científico é basicamente o mesmo. Terceiro, a tradução do francês medieval para o português foi realizada em uma rigorosa pesquisa acadêmica, o que permite a oportunidade de citar os versos da obra na língua em que o artigo foi redigido, de forma mais adequada.
A Image du monde é uma obra complexa e completa, cuja estrutura revela a obediência a uma hierarquia do universo. O manuscrito se divide em três partes. A primeira parte trata principalmente da gênese do mundo de um ponto de vista teológico; em seguida discorre acerca das sete artes liberais; apresenta Paris como capital do conhecimento; discute a natureza; e explica as três classes sociais estabelecidas pelos antigos filósofos. A segunda parte retrata o mundo conhecido naquele momento, o que o autor chama de mapemonde, incluindo o paraíso e o inferno, como é habitual nessas descrições geográficas (e que ilustram os mapas em TO). Descreve-se o primeiro elemento, a terra, e passa-se aos três seguintes, na ordem em que se encontram no universo: água, ar e fogo. Quando se trata do ar, o autor se refere essencialmente aos fenômenos meteorológicos. Na terceira parte, encontra-se, principalmente, temas referentes à astronomia (dezesseis, dos vinte e quatro capítulos). Nessa última seção, Gossouin pondera a respeito da filosofia e do grande conhecimento de filósofos antigos como Pitágoras, Platão, Aristóteles, Virgílio, assim como de suas descobertas ou conclusões e maravilhas.
A composição da obra indica que a Image du Monde de Gossouin de Metz objetivava proporcionar a seus contemporâneos uma síntese extensa e profunda do saber, além da representação ordenada do funcionamento do mundo. Foi escrita no século XIII, denominado como “o século de enciclopedismo”, por Jacques Le Goff (1994, p. 23-40), posto que, no período em questão, se assistia a uma grande produção de textos dessa natureza. As composições de caráter enciclopédico eram obras de compilação, por meio das quais os intelectuais buscavam oferecer aos círculos educados todo o conhecimento do mundo, e em particular, o conhecimento científico das coisas da natureza. A referência a autores anteriores, antigos e medievais, reconhecidos como autoridades era uma constante neste gênero de obra. Mas não se deve imaginar que essas obras, por se apoiarem ao passado, seriam simples repetições de conhecimentos acumulados e superpostos.
A tradição enciclopédica do Ocidente latino estava embasada em uma metodologia de ensino e em precedentes bibliográficos gregos e romanos. Deve-se considerar o sentido original do termo enciclopédia como proposta metodológica e não como simples acumulação de conhecimentos (MORIN, 1981MORIN, Edgar. El método. Madrid: Cátedra, 1981., p. 45 et seq). Nesse sentido, de acordo com Noemi Barrera, “Al si del pensament grec, sorgeix un concepte metodològic que fa referència a un procés d’instrucció circular, és a dir, que comprèn i connecta els límits als quals s‘estén el coneixement humà” (BARRERA, 2011BARRERA, Noemi. El fenomen enciclopèdic medieval: una visió comparada del saber. Temps d‘Educació, Universitat de Barcelona, n.º 41, p. 143-164, 2011. , p. 155).
Ao retomar o pensamento de Joaquín Bastús (1862BASTÚS, Vicenç Joaquín. El trivio y el cuadrivio o la nueva enciclopedia. El cómo, cuándo y la razón de las cosas. Barcelona: Imprenta de la Viuda e Hijos de Gaspar, 1862.), Barrera destaca, no conceito metodológico grego, seu caráter de processo de instrução circular, que compreende e conecta os conhecimentos humanos. Os filósofos cristãos, incluindo os “Pais da Igreja”, mantiveram e adaptaram o modelo do enciclopedismo aos seus propósitos. Nesse sequência, Santo Agostinho promoveu a utilização dos compêndios de saber em benefício do conhecimento religioso e buscou demonstrar a utilidade de se aplicar os conhecimentos profanos aos estudos teológicos.
Deve-se ter em conta as particularidades do enciclopedismo do século XIII e pensar na construção do conhecimento e seus objetivos na Idade Média . Benoît Beyer de Ryque, em seu artigo Le mirroir du monde (BEYER DE RYQUE, 2003BEYER DE RYQUE, Benoît Le miroir du monde: un parcours dans l›encyclopédisme medieval Revue belge de philologie et d’histoire, tome 81, fasc. 4, p. 1243-1275, 2003. Disponível em: <https://www.persee.fr/doc/rbph_0035-0818_2003_num_81_4_4781>. DOI disponível em: <https://doi.org/10.3406/rbph.2003.4781>. Acesso em: 21 nov./ 2018.
https://www.persee.fr/doc/rbph_0035-0818...
, p. 1243-75), destaca que se pode distinguir dois grandes períodos na história do enciclopedismo medieval: grosso modo, o primeiro, que se estende do ano 500 até 1100, e o segundo, de 1200 até 1500. Para o autor, o primeiro é marcado pela preocupação em coletar e transmitir o que resta da antiga herança em um momento de “escassez filológica”. O segundo, como o precedente, é caracterizado pela vontade de dar acesso a todo o conhecimento disponível, mas, em uma época de “abundância livresca”. O que diferencia os dois períodos é, portanto, a disponibilidade de fontes e obras: até 1100 há escassez, de 1200 a 1500, abundância.
A consideração do argumento de Benoît Beyer de Ryque, de que o primeiro período se encerra sob o signo da transmissão do que resta da herança greco-romana em um contexto cultural pobre, não serviu para ocultar a grandeza das composições do período. Nos séculos V-VI surgiram importantes obras como o De nuptiis Philologiae et Mercurii, de Marcia Capella, e as Institutiones divinarum et saecularium lectionum, de Cassiodoro. Contudo, foi na primeira metade do século VII que despontou aquela que foi considerada a primeira enciclopédia medieval e que se tornaria referência para as composições posteriores: as Etimologias (Etymologiarum), de Isidoro de Sevilha. Nessa e em outra importante obra, De natura rerum, o bispo de Sevilha buscou alcançar uma visão integral do universo. No século seguinte, Beda embasou sua própria De natura rerum, na obra do Bispo de Sevilha e em Plínio. Não obstante, a imagem que, de acordo com Beyer de Ryque, evoca melhor a primeira fase do enciclopedismo medieval é a Arca de Noé. Para o autor, a enciclopédia de Isidoro de Sevilla, por exemplo, seria uma obra de salvação, uma espécie de arca por meio da qual se conhece uma parte considerável da cultura antiga na Idade Média. Portanto, enquanto os autores do século XIII escreviam suas obras porque havia muitos livros, Isidoro de Sevilla, no século VII, compôs sua enciclopédia porque não havia suficientes livros em seu tempo (BEYER DE RYQUE, 2003BEYER DE RYQUE, Benoît Le miroir du monde: un parcours dans l›encyclopédisme medieval Revue belge de philologie et d’histoire, tome 81, fasc. 4, p. 1243-1275, 2003. Disponível em: <https://www.persee.fr/doc/rbph_0035-0818_2003_num_81_4_4781>. DOI disponível em: <https://doi.org/10.3406/rbph.2003.4781>. Acesso em: 21 nov./ 2018.
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, p. 1245-46).
As mudanças fundamentais ocorreram entre os séculos XII e XIII, no contexto que Charles H. Haskins chamou de “renascimento”. Tais mudanças fariam surgir um novo tipo de enciclopedismo. Em um ambiente de abundância livresca, os intelectuais se encontraram diante da necessidade de escolher e selecionar, na massa de novos conhecimentos, o material para as suas composições. O século XII, por excelência “o século da escolástica medieval”, foi um longo período de extensão e organização do conhecimento. Neste momento, há uma mudança cultural no Ocidente para a qual contribuíram tanto a afluência de fontes gregas e árabes como o trabalho dos compiladores que passaram a integrar, em suas obras, os novos conhecimentos resgatados. Merecem relevância também, por outra parte, o aumento do número de estudantes, a multiplicação das escolas urbanas e a criação das universidades, e, nesses ambientes, a sede de conhecimentos que crescia e atingia círculos mais amplos. Nesse ambiente deu-se início ao segundo grande período do enciclopedismo medieval, sob o signo da abundância intelectual, de acordo com Benoît Beyer de Ryque. A partir desse momento, não se compilava mais para salvar o conhecimento que poderia desaparecer, mas para selecionar, classificar, organizar o corpo considerável de conhecimentos disponíveis para apresentar a síntese (BEYER DE RYQUE, 2003BEYER DE RYQUE, Benoît Le miroir du monde: un parcours dans l›encyclopédisme medieval Revue belge de philologie et d’histoire, tome 81, fasc. 4, p. 1243-1275, 2003. Disponível em: <https://www.persee.fr/doc/rbph_0035-0818_2003_num_81_4_4781>. DOI disponível em: <https://doi.org/10.3406/rbph.2003.4781>. Acesso em: 21 nov./ 2018.
https://www.persee.fr/doc/rbph_0035-0818...
, p. 1245-46).
A esse respeito, Noemi Barrera destacou que, na Alta Idade Média, as explicações físicas expressas em enciclopédias, bestiários e lapidários eram introduzidas como um ponto de partida que imediatamente transformava seu discurso em um ensino edificante através do alegorismo e do simbolismo cósmico (BARRERA, 2011BARRERA, Noemi. El fenomen enciclopèdic medieval: una visió comparada del saber. Temps d‘Educació, Universitat de Barcelona, n.º 41, p. 143-164, 2011. , p. 156). A partir do século XII, contudo, essa concepção mudou, e a tradução imediata em simbolismo cedeu lugar para a busca das causas e da razão dos fenômenos físicos. Se os séculos anteriores contaram apenas com o tratado de Capella referente a quadrivium e os comentários a este trabalho, de outros autores, a partir dos séculos XII e XIII, o Ocidente teria à disposição uma grande quantidade de escritos científicos (BARRERA, 2011, p. 157). O novo enciclopedismo que surgiu no Ocidente é fruto, em grande medida, da circulação de ideias e saberes em um ambiente de contato com as sociedades árabe-muçulmanas.
Da circulação de ideias e saberes
A Image du monde de Gossouin de Metz é fruto de uma incrível circulação de ideias e saberes que se dá em um contexto em que os fenômenos europeus de expansão demográfica, agrícola e comercial e os intercâmbios culturais com o mundo árabe-muçulmano afetaram a percepção de mundo, do homem medieval, e favoreceram a busca por explicações científicas do universo e de tudo o que nele existe. A obra recolhe um legado cultural construído em diferentes espaços e temporalidades que se evidencia ao reconectar o ambiente intelectual francês aos espaços de circulação dos conhecimentos grego antigo e árabe medieval. Trata-se, assim, de perceber a dinâmica que conecta a expansão intelectual europeia a um movimento mais amplo, iniciado no mundo árabe, no século VIII, que, por sua vez, retomava as obras dos filósofos gregos da Antiguidade.
A lo largo de un extenso proceso los árabes habían ido recibiendo los fundamentos de la cultura, la filosofía y la ciencia griega y los supieron incorporar al legado cultural, filosófico y científico que transmitieron a Occidente. A través del helenismo y posteriormente del cristianismo de habla griega de las iglesias orientales, especialmente nestorianos y monofisitas, quienes realizaron las primeras traducciones siríacas de la filosofía griega, los árabes se inician en la filosofía y la ciencia, que desarrollaron en muchos de sus ámbito y llevaron consigo a los países conquistados en su rápida expansión hasta la Península Ibérica. En contacto con ellos los cristianos latinos inician el proceso de redescubrimiento y asimilación de los autores griegos con los comentários de los tratadistas árabes y se ponen las bases de la recuperación cultural y científica del Occidente latino, que llevó hasta el desarrollo científico del Renacimiento y de la Edad Moderna europea. (MARTÍNEZ GÁZQUEZ, 2005MARTÍNEZ GÁZQUEZ, José. Los Árabes y el Paso de la Ciencia Griega al Occidente Medieval, 2005. Disponível em: <https://www.researchgate.net/>. Acesso em jul./ 2019.
https://www.researchgate.net/... , p. 1).
Dois momentos marcaram o processo de recepção do legado grego no mundo árabe: o da tradução de textos gregos em língua siríaca nos ambientes cristãos do Oriente, até os séculos VI-VII, e o período do Califado Abássida, entre os séculos VIII-IX. No primeiro período, além da tradução de textos gregos para a língua siríaca nos ambientes cristãos, para fins de liturgia e estudos, sabe-se que foram traduzidas para o siríaco partes do Organon de Aristóteles junto com a Isagoge de Porfírio, fragmentos dos Meteoros de Teofrasto, a gramática de Dionisio Tracio e o Geoponicá de Casiano Baso - esse último concernente a um tratado de agricultura traduzido do siríaco para o árabe. No segundo momento, nos séculos VIII-IX, a tradução de textos filosóficos e científicos gregos se deu por iniciativa dos califas da dinastia Abássida. Sob o patrocínio desses califas, Bagdá se tornaria um grande centro de estudos, recebendo sábios e artistas que levavam em suas bagagens livros, documentos, saberes, cultura.
As figuras mais importantes desse processo foram o califa al-Mansur (+ 775), o primeiro a preceituar a tradução de obras gregas de astronomia, seguido do califa Harun alRasid (+ 808), que viabilizou a tradução de textos de medicina, e seu sucessor al-Ma’mun (+ 833), responsável pelo período áureo cultural da história do mundo árabe islâmico. Adepto da doutrina mutazilita, Al-Ma’mun, quinto califa da dinastia Abássida, propunha o uso da razão e da lógica na defesa da fé. Em seu califado, Al-Ma’mun fundou, em Bagdá, a Casa da Sabedoria - Bayt al-Hikmah - (LYONS, 2011LYONS, Jonathan. A casa da sabedoria. Como a valorização do conhecimento pelos árabes transformou a civilização ocidental. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.), para a qual recrutou e financiou os trabalhos de sábios de diversas especialidades - astrônomos, matemáticos, literatos, filósofos, médicos, tradutores. Al-Ma’mun também foi o responsável pela construção de uma grande biblioteca, para a qual encomendou manuscritos de várias origens e procedências, realizando a importação de livros do Império Bizantino. No decurso deste período, foram traduzidas diversas obras gregas relativas à filosofia, lógica, medicina, farmacologia, astronomia, matemática, botânica, agricultura e mecânica, de vários autores, como Platão, Aristóteles, Hipócrates, Ptolomeu, Porfírio, Rufo de Éfeso, Paulo de Egina e Galeno. Participaram das traduções, além dos sábios muçulmanos, cristãos e judeus, como os cristãos Teófilo de Edessa, Yahya Ibn Batriq, Matta Ibn Yunus e Yahya Ibn Adi, entre outros. Ao final do século X, obras de medicina, filosofia natural e matemática, traduzidas para o árabe em Bagdá, já estavam disponíveis em bibliotecas de Córdoba, Cairo, Toledo e outros importantes centros do território islâmico. Essa política seria mantida pelos sucessores de al-Mamum e pelos poderosos da corte que manteriam um verdadeiro mecenato (MARTÍNEZ GÁZQUEZ, 2005MARTÍNEZ GÁZQUEZ, José. Los Árabes y el Paso de la Ciencia Griega al Occidente Medieval, 2005. Disponível em: <https://www.researchgate.net/>. Acesso em jul./ 2019.
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, p. 1-10).
A recepção do legado grego no mundo árabe, no entanto, foi repleta de idas e vindas e ocorreu em um processo marcado pelo interesse e pela receptividade, mas também por conflitos e por resistências. As próprias divergências internas em relação às formas de assimilação e interpretação dos cânones religiosos de vida alimentaram as tensões durante o referido processo. Isso explica, por exemplo, que a assimilação do legado helênico - especialmente o platônico e o aristotélico - pelos árabes tenha se dado, segundo Eduardo Bittar, “a partir de sua pertinência com a tradição religiosa muçulmana” (BITTAR, 2009BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O aristotelismo e o pensamento árabe: Averróis e a recepção de Aristóteles no mundo medieval. Revista Portuguesa de História do Livro e da Edição, ano XII, n.º 24, p. 61-103, 2009., p. 68). Por isso, de acordo com Bittar,
a própria filosofia árabe, que, desde seu nascimento, não se desenraiza das tradições e dos modos de vida oriundos das configurações dos povos semitas e seus hábitos, tem sua formação se coagulando com mais intensidade somente a partir dos séculos VII e VIII d.C., e, será marcada por duas linhas, uma neoplatônica e outra neoaristotélica. (BITTAR, 2009BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O aristotelismo e o pensamento árabe: Averróis e a recepção de Aristóteles no mundo medieval. Revista Portuguesa de História do Livro e da Edição, ano XII, n.º 24, p. 61-103, 2009., p. 68)
O desenvolvimento dessas linhas está associado à luta travada entre o analítico e o metafísico na tradição árabe medieval. Essa luta apresentava-se problemática nas sociedades marcadas pela presença da crença na definição de seus traços culturais. No caso da tradição árabe, de acordo com Bittar, ela se fazia presente desde os albores do pensamento, com AlKindi (Bagdá, século IX) e Alfarabi (Bagdá, século X).
O embate não se encerrou, entretanto, com esses precursores e alcançou sua maior expressão na Península Ibérica. No reino de al-Andalus, no espaço ibérico ocupado pelos árabes, sob o governo dos almorávidas, os estudos da filosofia aristotélica receberam grande incentivo. Se, desde o século VIII, Aristóteles teve ampla receptividade e exerceu grande influência na filosofia do mundo árabe, foi nas cidades de Córdoba e de Toledo, na Andaluzia do século XII, que esse processo atingiu o seu auge. Foi em Córdoba que nasceu e viveu Averróis (1126-1198), também conhecido como Ibn Ruchd, “o mais célebre filósofo árabe para o mundo ocidental” (BITTAR, 2009BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O aristotelismo e o pensamento árabe: Averróis e a recepção de Aristóteles no mundo medieval. Revista Portuguesa de História do Livro e da Edição, ano XII, n.º 24, p. 61-103, 2009., p. 74). O aristotelismo e o racionalismo de Averróis o colocava em oposição ao neoplatonismo de Avicena (980-1037), também conhecido como Ibn Sina, “o mais célebre filósofo árabe para o mundo oriental” (BITTAR, 2009, p. 74). Averróis e Avicena representaram para o mundo árabe os dois caminhos de acesso à verdade. Contudo, no pensamento filosófico ocidental, Averróis ocupou lugar central.
A partir dos séculos IX-X, os intelectuais do Ocidente foram atraídos pelos conhecimentos que circulavam nos meios cultos do mundo islâmico. Clarence Glacken explica que o mundo cristão, no século XII, ameaçado em seu interior pela heresia e pelo cisma, tinha que fazer frente, por um lado, a uma civilização muito mais cosmopolita e, por outro, às obras originais e às traduções que estudiosos realizavam no mundo árabe. Eram parte daquele movimento, além das Sumas “contra gentis”, o novo despertar do interesse pela natureza, pelas matemáticas e pelas obras gregas, especialmente as de Aristóteles:
La exposición de ideias aristotélicas (primero, del Aristóteles traducido del árabe, que contenía pensamiento neoplatónico y árabe, luego un Aristóteles más puro, tomado de los originales griegos) ... intensificaron el interés por la perspectiva teleológica de la naturaleza, tan arraigada en la filosofia de Aristóteles. (GLACKEN, 1996GLACKEN, Clarence. Huellas en la playa de Rodas: Naturaleza y cultura en el pensamento occidental desde la Antigüedad hasta finales del siglo XVIII. Barcelona: Ediciones del Serbal, 1996., p. 223).
O contato com a realidade cultural e científica do mundo árabe se deu, sobretudo, a partir de dois espaços de circulação: o sul da Itália e a Península Ibérica, onde ocorreu a busca pela assimilação da ciência árabe e a realização do esforço de sua tradução para o latim (MARTÍNEZ GÁZQUEZ, 2005MARTÍNEZ GÁZQUEZ, José. Los Árabes y el Paso de la Ciencia Griega al Occidente Medieval, 2005. Disponível em: <https://www.researchgate.net/>. Acesso em jul./ 2019.
https://www.researchgate.net/...
, p. 1). Adeline Rucquoi indica a amplitude desse movimento ao afirmar que o desejo de conhecer os mecanismos da natureza levou os pensadores de toda a Península Ibérica, “independentemente de la lengua en la que se expresan, a incluir en sus estudios la astronomia, la zoologia y la botânica” (RUCQUOI, 2007RUCQUOI, Adeline. La percepción de la naturaleza en la Alta Edad Media. In: SABATÉ, Flocél. (ed.) Natura i desenvolupament a l’Edat Mitjana. Lleida: Pagès Editors, 2007, p. 73-98., p. 97).
Em Huellas en la playa de Rodas, Clarence Glacken (1996GLACKEN, Clarence. Huellas en la playa de Rodas: Naturaleza y cultura en el pensamento occidental desde la Antigüedad hasta finales del siglo XVIII. Barcelona: Ediciones del Serbal, 1996., p. 223) trata do tema em um tópico com o sugestivo título fermentación en el Mediterráneo, no qual enfatiza-se o caráter cosmopolita da civilização mediterrânea, ao mesmo tempo cristã e muçulmana. Por um lado, ao tratar da perspectiva cristã, Glacken aponta dois momentos marcantes para o encontro com a cultura muçulmana: a visita de Pedro, o Venerável, à Espanha em 1143 - em decorrência disso, a tradução do Corão para o latim, que iniciaria a formação da Escola de tradutores de Toledo -, e o florescimento de uma cultura cristã-islâmica decorrente da conquista da Sicília pelos normandos (1060-1091). Em contrapartida, o historiador recorda que, além de lei, língua e religião em comum, o mundo muçulmano era em parte fruto de uma arraigada cultura mediterrânea, e seu cosmopolitismo se devia não só ao islã, mas também à erudição judaica e cristã.
Aquellas brisas del sur estimularon el interés por la geografía, las influencias del medio, la naturaleza de la tierra y las propiedades de las cosas. No había ninguna relajación al incorporar la noción de una tierra con designio divino y adaptaciones harmoniosas, pero la teleología vigorizada por las obras de Aristóteles abría ámbitos de interpretación (como por ejemplo, la doctrina de la eternidade del mundo) más alejados de la exégesis bíblica de lo que había sido el caso cuando se dependía de la Bíblia y de la cosmología de Timeo. (...) Aquella unión parcial de la teología cristiana con la aristotélica, de la palabra divina revelada en las Escrituras con la mejor observación del entorno natural, dio nuevas fuerzas a las pruebas cosmológica y fisicoteológica de la existencia de Dios. (GLACKEN, 1996GLACKEN, Clarence. Huellas en la playa de Rodas: Naturaleza y cultura en el pensamento occidental desde la Antigüedad hasta finales del siglo XVIII. Barcelona: Ediciones del Serbal, 1996., p. 223-24).
A consideração do cosmopolitismo do mundo mediterrânico traz à tona a complexidade do processo de recolha do legado grego e árabe pelos intelectuais cristãos. Conforme salienta Meirinhos:
Contrariamente ao que se poderia depreender de algumas apreciações superficiais, não foi a simples tradução de obras que modificou a filosofia. O impacto das traduções é consequência das alterações de interesses e sobretudo de metodologia da discussão de questões essencialmente teológicas, ocorrida desde o século XI, que a abriu a novos métodos e a outras exigências de fundamentação. Basta ver que as traduções não produziram por si sós quaisquer alterações onde quer que fosse, mas adquiriram importância nos locais onde a discussão, a curiosidade científica e o desejo de explicar criaram condições para a sua recepção. (MEIRINHOS, 2000MEIRINHOS, José Francisco. A Filosofia no Século XII - Renascimento e resistências, continuidade e renovação. [S.l.]: Mandruvá, 2000., p. 11-2)
Exemplo disso, ressalta Meirinhos, se encontra em Portugal, onde o contato com a cultura árabe, a circulação de uma massa considerável de textos oriundos dessa cultura e a presença de possíveis tradutores do árabe para o latim não foram suficientes para que a região desempenhasse um protagonismo no processo de mediação cultural ou de criação inovadora. Para que isso ocorresse era necessária, portanto, a existência de “solicitações intelectuais que provocassem um recurso criativo aos textos” (MEIRINHOS, 2000MEIRINHOS, José Francisco. A Filosofia no Século XII - Renascimento e resistências, continuidade e renovação. [S.l.]: Mandruvá, 2000., p. 12). Essa situação ocorreu largamente nos reinos da Andaluzia e, posteriormente, no reino francês.
A respeito do reino de França, Gossouin de Metz trazia notícia. O poeta apresenta, na primeira parte da Image du monde, um capítulo intitulado Das três classes de pessoas que Os filósofos estabeleceram no mundo E como o saber veio para a França. Nesse capítulo, Gossouin revela sua visão daquele ambiente cultural, comparando Paris à Atenas antiga e exaltando a dinâmica intelectual que tomava conta daquela cidade:
O saber reina agora em Paris
Tal como fez em tempos idos
Em Atenas, que fica na Grécia
(...)
Do mesmo modo, posso dizer-vos,
Que, actualmente, Paris é o poço
De onde mais se pode retirar ciência
A qual pode aí ter a sua permanência.
Gossouin de Metz escreve aproximadamente em 1245. No reino de França, no momento em que nascia a própria ideia de universidade, o pensamento aristotélico, pela obra de Averróis, ganhava espaço considerável nas Universidades de Paris e de Toulose. A recepção da obra aristotélica se iniciara antes, com as traduções realizadas desde meados do século XII. Assim, a obra dos filósofos e dos teólogos, segundo Etienne Gilson, foi precedida e condicionada pela dos tradutores. No século XIII, o desenvolvimento filosófico e teológico “seguiu-se à invasão do Ocidente latino pelas filosofias árabes e judaicas e, quase simultaneamente, pelas obras científicas, metafísicas e morais de Aristóteles” (GILSON, 2011GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2011., p. 465).
Por volta de 1255, na recém-criada Universitas magistrorum et scbolarium Parisiis studientium, onde lecionavam Alberto Magno e Roger Bacon, a obra de Aristóteles, por meio de seus tradutores árabes, já constava como matéria obrigatória de estudos (GILSON, 2011GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2011., p. 477; BITTAR, 2009BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O aristotelismo e o pensamento árabe: Averróis e a recepção de Aristóteles no mundo medieval. Revista Portuguesa de História do Livro e da Edição, ano XII, n.º 24, p. 61-103, 2009., p. 91). Gilson salienta que a obra de Averróis começou a ser citada por Roger Bacon e Alberto Magno em torno de 1240-1250. Assim, a obra do filósofo grego chegava às escolas de pensamento da Europa acompanhada de uma possibilidade de conciliação entre a razão e a fé oferecida pelos árabes, especialmente por Averróis.
“Como o do Antigo Testamento, o Deus do Corão é uno, eterno, onipotente e criador de todas as coisas; portanto, os filósofos árabes defrontaram-se, antes dos cristãos, com o problema de conciliar uma concepção grega do ser e do mundo com a noção bíblica de criação” (GILSON, 2011GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2011., p. 427). Averróis dedicou sua extensa obra à compreensão do corpus aristotelicum, e se esforçou amplamente na conciliação entre a fé muçulmana (expressa no Corão) e a ideia de razão grega (expressa no pensamento aristotélico). Assim, contribuiu para “canalizar a transmissão e a assimilação do pensamento antigo ao mundo medieval ocidental” (BITTAR, 2009BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O aristotelismo e o pensamento árabe: Averróis e a recepção de Aristóteles no mundo medieval. Revista Portuguesa de História do Livro e da Edição, ano XII, n.º 24, p. 61-103, 2009., p. 78). Essa busca por conciliação entre fé e razão se revelava na profunda reflexão que Averróis realizou em Discurso Decisivo, um de seus principais textos sobre o assunto.
Que a lei religiosa convide à reflexão racional sobre os seres existentes e requeira de nós conhecimento deles, isto é evidente por diversos versículos do Livro de Deus - bendito e louvado seja -, entre os quais: “Refleti, pois, ó vós que tendes clarividência”. Este versículo mostra a necessidade do uso do silogismo racional, ou do racional e legal ao mesmo tempo. (AVERRÓIS [ca. 1180]/2005, § 3.º, p. 5)
No mesmo sentido, Averróis negava que a razão pudesse afrontar a fé ou reduzir o valor da crença:
E se a Lei divina é a verdade, e se ela convida a praticar o exame racional que leva ao conhecimento da verdade, então, certamente, nós, a comunidade dos muçulmanos, estamos convencidos de que a especulação demonstrativa não pode conduzir a conclusões diferentes daquelas contidas na Lei, já que a verdade não contraria a verdade, mas concorda com ela e dá testemunho em favor dela. (AVERRÓIS, [ca. 1180]/ 2005, § 18, p. 21)
Tratava o filósofo cordobês, como bem observa Bittar, de “salvaguardar o lugar da razão, em parceria com o lugar da fé (BITTAR, 2009BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O aristotelismo e o pensamento árabe: Averróis e a recepção de Aristóteles no mundo medieval. Revista Portuguesa de História do Livro e da Edição, ano XII, n.º 24, p. 61-103, 2009., p. 81).”
Por fim, vale destacar a defesa que Averróis apresentava do estudo do pensamento grego:
Se se coloca a questão desse modo e se tudo aquilo de que se tem necessidade para o estudo dos silogismos racionais foi realizado da melhor maneira pelos Antigos, então, por certo, é preciso que avidamente tomemos em mãos seus livros, a fim de verificar tudo o que disseram a respeito. Se tudo for justo, aceitaremos o que propõe; e se se encontra algo que não seja justo, nós o indicaremos. (AVERRÓIS, [ca. 1180]/2005, § 9.º, p. 11
O legado de Averróis foi recepcionado pelas escolas de pensamento de toda a Europa, como a Universidade espanhola de Salamanca e as Universidades italianas de Pádua e de Bolonha, além da Universidade de Paris, onde, segundo Gossouin de Metz, reinava o saber. Logo, a conciliação da razão grega com a verdade revelada também seria tarefa a ser realizada pelos cristãos. Dessa forma, de acordo com Gilson, “o inevitável conflito entre a filosofia árabe e a teologia cristã se produziria no início do século XIII, na Universidade de Paris, que acabara de se construir então”. “(...) É lá que, desde os primeiros anos de sua atividade, as traduções de Aristóteles e de seus comentadores árabes fazem sua primeira aparição” (GILSON, 2011GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2011., p. 477).
Esse conflito e sua resolução marcaram profundamente o desenvolvimento científico e filosófico medieval. No século XIII, esse exercício foi realizado por contemporâneos de Gossouin de Metz, como Alberto Magno, Roger Bacon, São Boaventura e São Tomás de Aquino, aos quais Gilson se refere como verdadeiros espíritos criadores, cujas obras serão as expressões fieis do saber de sua época (GILSON, 2011GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2011., p. 398-9). A obra de Gossouin de Metz, de acordo com os ensinamentos de Gilson, não teria esse mesmo caráter. Contudo, a enciclopédia de Gossouin, assim como outras similares do seu tempo, “são interessantes na medida em que expressam a imagem do mundo vista por seu autor e pela média dos espíritos cultos do seu tempo”. Essas são obras de vulgarização que, se são utilizáveis, “o são precisamente como ‘espelhos’ dos conhecimentos médios do tempo que os viu nascer” e, desse ponto de vista, “nada seria capaz de substituí-los” (GILSON, 2011, p. 299).
Das Artes e da Natureza
Em um artigo publicado no livro Natura i Desenvolupament: el medi ambient a l’Edat Mitjana (SABATÉ, 2007SABATÉ, Flocél (ed.). Natura i desenvolupament a l’Edat Mitjana. Lleida: Pagès Editors, 2007.), Adeline Rucquoi questionava se o título do livro poderia ter algum sentido para o homem do século V, do VIII ou do XI. “Tenían los hombres de la alta Edad Media una percepción, una imagen de la naturaleza?” “Que era, entonces, la naturaleza?” (RUCQUOI, 2007RUCQUOI, Adeline. La percepción de la naturaleza en la Alta Edad Media. In: SABATÉ, Flocél. (ed.) Natura i desenvolupament a l’Edat Mitjana. Lleida: Pagès Editors, 2007, p. 73-98., p. 73). A historiadora francesa recorreu, então, ao conteúdo das bibliotecas e dos livros para entender as representações da natureza que possuíam os homens desses séculos. Por meio do estudo desses conteúdos, o texto de Rucquoi revelou não só uma percepção da natureza vigente na Alta Idade Média como também as mudanças que ocorreram nessa percepção no período posterior, sobretudo a partir dos séculos XI e XII. No que concerne à Alta Idade Média afirmava Rucquoi:
Los hombres tuvieron indudablemente una percepción de la naturaleza heredada en parte de la Antigüedad y muy impregnada por la religión. La naturaleza se confunde con su Creador, lo que supone ante ella un cierto respeto. Ante el cielo y las manifestaciones celestiales, pero también ante los terremotos o las inundaciones destructoras, y ante los fenómenos naturales extraordinários, el hombre reconoce la actuación divina que advierte, castiga o recompensa. (RUCQUOI, 2007RUCQUOI, Adeline. La percepción de la naturaleza en la Alta Edad Media. In: SABATÉ, Flocél. (ed.) Natura i desenvolupament a l’Edat Mitjana. Lleida: Pagès Editors, 2007, p. 73-98., p. 96)
Em seguida, Rucquoi salientou que a partir dos séculos XI e XII, a percepção da natureza se modifica. A partir desse período, “el conocimiento de la naturaleza mediante el uso de la razón abarca todas las facetas, ya no tanto de la Creación divina como de la physis aristotélica” (RUCQUOI, 2007RUCQUOI, Adeline. La percepción de la naturaleza en la Alta Edad Media. In: SABATÉ, Flocél. (ed.) Natura i desenvolupament a l’Edat Mitjana. Lleida: Pagès Editors, 2007, p. 73-98., p. 97). O interesse pelo conhecimento dessa physis teria, segundo a autora, levado os pensadores ibéricos a incluir em seus estudos a astronomia, a metafísica, a ótica, a medicina, a magia, a astrologia, a álgebra, a zoologia e a botânica. Nessa filosofia natural, que se desenvolveu nos séculos XII e XIII, a natureza começou a adquirir existência própria, submetida a leis cognoscíveis e matematicamente demonstráveis. Conclui Rucquoi: “Al diferenciar así el opus naturae del opus creatoris, se abre la vía al homo artifex, a la intervención humana en la naturaleza” (RUCQUOI, 2007, p. 97).
No contexto de mudanças na percepção da natureza e nas suas formas de representação, Gossouin de Metz escreveu a obra que agora é estudada neste artigo. Na primeira parte de Image du monde, no capítulo cinco, intitulado De como e porque foram descobertas as sete artes e da sua ordem, Gossouin de Metz explica “como, no passado, os sábios quiseram descobrir a maneira como era feito o mundo”:
Então, muitos observaram
O firmamento que se movia
Em redor e maravilhavam-se
Ao ver como era, pelo que fizeram vigílias
Durante muitas noites e dias claros.
Então, ficavam a observar
As estrelas que se elevavam
A Oriente, depois moviam-se
À volta, sobre as suas cabeças
Gossouin discorria acerca de uma busca pela ordem nos fenômenos observados que deu origem à primeira expressão filosófica conhecida: a cosmologia. O poeta dizia que foi a partir do exercício de observação da natureza que surgiu a ciência. A cosmologia antiga se revela: a natureza vista como um processo circular, um processo de surgir/emergir e desvanecer: estrelas aparecem e desaparecem, os seres vivos nascem, crescem, envelhecem e morrem... Embora trate-se de processos temporais, o importante aqui não é a dimensão temporal do surgir e desvanecer, mas sim a repetição de processos sempre semelhantes; processos que se repetem eternamente. Na cosmologia grega não há evolução das espécies, a natureza mesma é eterna, não é criada e não é perecível. Não há um criador da natureza, porque a natureza é o princípio do que surge e desvanece (KESSELRING, 2000KESSELRING, Thomas. O conceito de natureza na história do pensamento ocidental. Episteme, n.º 11, p. 153-172, 2000., p. 155-156). Trata-se da busca pelo conhecimento do cosmos, que aparece na tradição grega em oposição ao kháos (VERNANT, 2000VERNANT, Jean Pierre. O universo, os deuses, os homens. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 18-9).
Mas, a Image du monde é também uma obra de edificação. As ciências são uma forma de conhecer a Deus, e os sábios antigos, de acordo com Gossouin de Metz, “não tinham outro desejo a não ser o de procurar tal ciência pela qual houvessem sabedoria para conhecer o Soberano que tudo havia criado com as Suas mãos.”
E, em seu juízo, pensaram bem,
Como pessoas de nobre reflexão,
Que não teriam conhecimento,
Nem de Deus nem da Sua sabedoria,
Se não buscassem as Suas obras.
Pelo contrário, por mais que pudessem saber,
Não conheceriam bem o mestre
Sem conhecer antes a natureza
Das suas obras, quaisquer que sejam,
Que dele são testemunho.
É que o mestre conhece-se através da obra
E como pode o obreiro ser.
Pela obra se conhece o obreiro,
Por isto, procuraram experimentar,
Em primeiro lugar, as obras de Deus,
Para ter mais facilmente
Conhecimento do Seu poder.
E quanto mais pudessem saber
Das suas obras e do seu sentido,
Tanto mais razão teriam
De amar o criador verdadeiro.
Gossouin de Metz não se distanciou do legado de Averróis. Em seu Discurso decisivo, escrito cerca de meio século antes da obra do monge francês, o filósofo cordobês havia concluído:
Se o ato de filosofar consiste na reflexão sobre os seres existentes e na consideração destes, do ponto de vista de que constituem a prova da existência do Artesão, quer dizer: enquanto são artefatos - pois certamente é na medida em que se conhece sua construção que os seres constituem uma prova da existência do Artesão. (AVERRÓIS, [ca.1180]/2005, § 2.º, p. 3)
Assim como Averróis havia associado a leitura corânica ao desenvolvimento do raciocínio demonstrativo, o poeta de Metz, como seus contemporâneos cristãos, não abandonou as noções e as realidades expressas nos textos sagrados e sua busca foi, também, por oferecer uma chave de leitura e interpretação do mundo de acordo com as Sagradas Escrituras. Desse modo, o próprio conhecimento se apresenta como obra divina ofertada ao homem.
Averróis, ainda em Discurso decisivo, ponderava:
Que a Lei religiosa convide à reflexão racional sobre os seres existentes e requeira de nós conhecimento deles, isto é evidente por diversos versículos do Livro de Deus - bendito e louvado seja - entre os quais: “Refleti, pois, ó vós que tendes clarividência”. Este versículo mostra a necessidade do uso do silogismo racional, ou do racional e legal ao mesmo tempo; ou, por exemplo, o enunciado do Altíssimo: “E não olharam para o reino dos céus e da terra e para todas as coisas que Deus criou?”, versículo que induz claramente ao exame racional de todos os seres existentes. (...) e ainda: “Refletem sobre a criação dos céus e da terra” ou ainda outros inúmeros versículos. (AVERRÓIS, [ca.1180]/2005, §3.º, p. 5
No mesmo sentido, Gossouin de Metz assinalava saberem os filósofos que “Deus lhes havia dado conhecimento para procurarem a razão e a natureza das coisas do céu e da terra”. O poeta cristão prosseguiu e escreveu que, no âmbito do conhecimento, as sete artes liberais foram enviadas por Deus à Terra e os homens as protegeram do dilúvio, inscrevendo os conhecimentos em grandes colunas de pedra e mármore, as quais foram encontradas posteriormente pelos descendentes de Noé. Assim, as artes chegariam aos filósofos (GOSSOUIN DE METZ, 1245/[2010], p. 339).
Como obra edificante, a Image du monde mostra como é e como funciona a natureza, citando os antigos filósofos, mas coloca ênfase na ação de Deus na criação e em seu ordenamento. Mantém-se uma tradição bíblica que aporta novos aspectos na concepção da natureza. Diferentemente da cosmologia antiga, em que não existe nada fora da natureza, na cosmologia cristã a natureza é o âmbito da criação, o mundo não surgiu de maneira espontânea; existe o criador e Ele não é parte da natureza. Deste modo, na primeira parte da obra, Gossouin de Metz trata principalmente do gênesis do mundo desde um ponto de vista teológico, quer dizer, o mundo e tudo o que nele existe é obra divina.
No capítulo intitulado A natureza, como opera e que é (GOSSOUIN DE METZ, 1245/[ 2010], p. 126-7), o poeta explica que Deus criou primeiro a natureza “pela qual todas as coisas ordenadas existem sob o céu”, e mais, expressa que “sem a natureza nada pode nascer”. Em seguida, trata da definição de physis pelos filósofos antigos:
Dela disse primeiramente Platão,
Que teve grande renome:
É o poder em tais coisas
Que faz nascer uma espécie dessa espécie
Segundo o que cada um pode ser.
(...)
E outro tanto disse Aristóteles,
Que foi sábio conhecido:
Princípio que dava força
Às coisas, a que Deus deu poder,
De existirem e de se moverem.
(...)
S’en dit Platons premierement,
Qui fut de plus grant renomeie:
C’est puissance en choses enteies
Que samblant par samblant fait nestre
Lonc se que chascune puet estre.
(...)
E ouis en redist Aristotes
Qui fut ces clers que su estoit:
Prinsipes que vertu donoit
As choses d’esteir et movoir
A cui Dex dona teil pooir.
(...)
(GOSSOUIN DE METZ, 1245/[2010], p.134-35)
Portanto, a obra de Gossouin de Metz revela a relação que se estabelecia, desde o século XII, entre a sabedoria grega e a verdade cristã, sob a influência da filosofia árabe. Trata-se aqui da característica mais específica da physis grega: a ideia da natureza, essência ou princípio de cada ser singular. Physis que os filósofos jônicos buscaram, inicialmente, em algo material - Thales, na água; Anaximenes, no vapor. Mais tarde, por volta do século V a.C., Pitágoras explicaria que a physis de todos os seres era a estrutura geométrica ou o número. Platão orientou sua filosofia na matemática e foi o responsável por levar as ideias pitagóricas para a ciência medieval e moderna. Por fim, destaca-se a ideia aristotélica de que a natureza é o princípio interno de movimento e repouso inerente a todas as coisas, amplamente aceita pelos filósofos medievais, à qual se acrescenta: é Deus quem atribui a physis de cada ser (KESSELRING, 2000KESSELRING, Thomas. O conceito de natureza na história do pensamento ocidental. Episteme, n.º 11, p. 153-172, 2000., p. 156). Como observa Kesselring, nessa interpretação cristã da sabedoria grega altera-se a imagem da natureza fora e dentro do homem. Fora do homem, pois a natureza inteira foi igualada ao âmbito da criação, nela se manifestam a bondade e a sabedoria divinas. Dentro do homem, pois a capacidade do homem para aperfeiçoar-se mediante a submissão de seus impulsos e paixões à razão foi colocado em um fundamento cristão. Contudo, a criação divina poderia ser compreendida pois, conforme explica Gossouin de Metz: “daquelas [coisas] que, por natureza, São feitas no céu e na terra, Bem pode o homem procurar saber” (GOSSOUIN DE METZ, [2010]GOSSOUIN DE METZ. Imagem do mundo. Apresentação, edição e tradução de Margarida Santos Alpalhão. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais/Universidade Nova de Lisboa, [2010]., p. 87). Da mesma forma, no capítulo acerca “das virtudes das coisas naturais”, em que se lê:
Muitas cosias parecem acessíveis
Ainda que suas razões sejam muito escondidas.
Por isto se maravilham as pessoas
Que as não vêm com frequência.
Molt de choses samblant apartes
Dont les raison sont molt covertes.
Por ce s’enmerveillement las gens
Que pas ne les voint sovent.
(GOSSOUIN DE METZ, 1245/[2010], p. 230-31)
Assim, a obra de Gossouin de Metz demonstra o grande interesse dos intelectuais da época nos estudos do homem, do mundo e do universo. Em um processo construtivo que se assemelha a uma rede na qual se entrelaçam as mais diversas fontes e os mais diversos temas (ALPALHÃO, [2010]ALPALHÃO, Margarida. Introdução. In: GOSSOUIN DE METZ. Imagem do mundo. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais/Universidade Nova de Lisboa, [2010]., p. 13), estes estudos revelam, para a compreensão do homem, do mundo e do universo, o interesse pela astronomia e pela cosmografia, mas também pela geografia, botânica, mineralogia, filosofia... (CASTRO HERNÁNDEZ, 2015CASTRO HERNÁNDEZ, Pablo. La naturaleza y el mundo en la Edad Media: perspectivas teológicas, cosmológicas y maravillosas. Una revisión conceptual e historiográfica. Revista Historias del Orbis Terrarum, Anejos de Estudios Clásicos, Medievales y Renacentistas, Santiago, v. 10, p. 1-35, 2015.; WEILL-PAROT, 2017, 2013).
A esse interesse pela natureza, na sua vertente cosmológica, como investigação e comentário da narrativa da criação no Gênesis, soma-se a busca por explicar a natureza pela natureza. Como bem observava Benoît Beyer de Ryke, muitas obras de caráter enciclopédico escritas entre os séculos XII-XIII, com conteúdo diversos, eram assim intituladas: De natura rerum, De rerum naturis, De proprietatibus rerum, Speculum maius, Imago mundi. Essas obras têm, naturalmente, alguns elementos em comum. São obras de compilação, que se esforçam por colocar à disposição dos círculos educados todo o conhecimento do mundo, e em particular, o conhecimento científico das coisas da natureza. A referência a autores anteriores, antigos e medievais, reconhecidos como autoridades é uma constante deste tipo de obra que, em geral, busca nas criaturas, uma pista do Criador.
Através da ciência pode o homem, com efeito,
Conhecer a razão de muitas coisas,
Ouvir a natureza de algumas
A que pela razão não sabe responder
Tanto quanto um homem possa procurá-la
Pela natureza que opera na Terra,
Mas da totalidade não pode saber
Porque ou como seja.
Isto ninguém sabe, certamente,
Exceto Deus, que está para lá da razão.
Par clergier puet bien lis hons
De mainte chose avoir raison,
D’aucune le nature entendre
Que raisons n’il seit que respandre
Tant com nus home n puisse enquerre
Par nature qui huevre en terre,
Mais del tot savoir ne poroit
Por quoi ne comment ele soit.
Se ne seit nuns, certainnement,
Fors Deu qu’oltre raison s’estent.
(GOSSOUIN DE METZ, 1245/[2010], p. 232-33)
Explicitamente, a natureza se vincula ao sagrado e ao divino. Ela está associada à noção de nascer, criar e engendrar, como uma capacidade de forjar vida. Consoante Adeline Rucquoi, “si la naturaleza tiene la capacidad de engendrar y dar vida, si es por lo tanto creadora, tiene que confundirse con Dios: Natura Deus est, es decir, la naturaleza es Dios” (RUCQUOI, 2007RUCQUOI, Adeline. La percepción de la naturaleza en la Alta Edad Media. In: SABATÉ, Flocél. (ed.) Natura i desenvolupament a l’Edat Mitjana. Lleida: Pagès Editors, 2007, p. 73-98., p. 97). A relação que existe entre o homem medieval e a natureza baseia-se fundamentalmente por sua sensível religiosidade, e, consequentemente, a natureza se convertia em um caminho que levaria o homem ao conhecimento de Deus (ROJAS DONAT, 2009ROJAS DONAT, Luis. El hombre frente a la naturaleza. Para una meditación de la Edad Media. Hualpén: Ediciones Universidad del Bío-Bío, 2009., p. 169).
Busca-se a natureza das coisas, a imagem do mundo, como no espelho. Esta é outra das características do enciclopedismo medieval fortemente marcada desde o século XII. A imago está estritamente relacionada ao especulum, e mais amplamente à chamada teoria especular, o conhecimento indireto da refração. Javier Vergara Ciordia demonstra como os filósofos antigos como Platão, Séneca, Plutarco, entre outros, haviam considerado a natureza como um grande espelho em cujo reflexo podiam ser encontradas as respostas às grandes perguntas sobre Deus, o mundo e o homem (VERGARA CIORDIA, 2009VERGARA CIORDIA, Javier. Enciclopedismo especular en la Baja Edade Media. AHIg, n.º 18, p. 295-309, 2009., p. 295). O mesmo caminho foi trilhado por filósofos cristãos e Pais da Igreja, que retomaram a teoria especular “com força renovada”, a partir de uma nova concepção da natureza como criação divina e do entendimento de que o homem ocupa um lugar único na criação, pois foi feito a imagem e semelhança de Deus. Javier Vergara Ciordia também destacou, em sua obra, que no mundo alto medieval, a refração pedagógica foi utilizada de forma isolada e ocasional, mas que, no contexto de mudanças dos séculos XII e XIII,
la multiplicidad formal de la naturaleza cobra entidad própia y sus formas particulares posibiliten la aparición de un enciclopedismo especular de nuevo cuño y de un nuevo género literário que hará de la refracción indirecta y de la voz especulum el camino óptimo para la restauración de la imágen divina en el hombre. (VERGARA CIORDIA, 2009VERGARA CIORDIA, Javier. Enciclopedismo especular en la Baja Edade Media. AHIg, n.º 18, p. 295-309, 2009., p. 295).
Um bom exemplo seria representado pela obra de Alan de Lille, que expressou, em começos do século XII, que o conhecimento humano deveria voltar os olhos a três espelhos que situam o sentido da realidade humana: o espelho da Escritura, o da natureza e o da alma. No espelho da Escritura “tú les teu estado”, no da natureza “te verás que és miserável”, e no da alma “verás que és culpado” (VERGARA CIORDIA, 2009VERGARA CIORDIA, Javier. Enciclopedismo especular en la Baja Edade Media. AHIg, n.º 18, p. 295-309, 2009., p. 301-2).
A partir do século XII, embora mantivessem o interesse pelos espelhos da Escritura e da alma, os autores cristãos passaram a dar ao especulum naturae um peso extraordinário. As mudanças são sensíveis: na antiguidade, a natureza era uma enteléquia sem causa e ordenadora do universo, como expressa Platão no Timeo, ou um conceito difuso e de difícil compreensão, de acordo com Cícero em De inventione. Nos primórdios do cristianismo, a natureza se tornaria clara e precisa, uma criação divina capaz de refletir de forma indireta a vontade e o ser de Deus, servindo de instrumento para melhor compreender as Sagradas Escrituras. Já a cultura altomedieval manteve a perspectiva paleocristã limitando o espelho natural ao corpo dos ensinamentos teológicos. Há variações com o alvorecer da escolástica, dizia Javier Vergara Ciordia com razão:
los escolásticos convertieron el espejo de la naturaleza en un ícono gnoseológico y pedagógico que daba sentido a la existencia. Para ellos la naturaleza tenía una doble virtualidad: por un lado, la entendieron como una categoría com entidad própia, con sentido por si misma e com una notable finalidad didáctica: sus formas particulares se presentaban como realidades entitativas y singulares capaces de explicar y dar sentido a la existencia secular; por otro, su diversidad formal, en tanto que reflejo indirecto y parcial de la voluntad, del sentimiento e del ser de Dios, se presentaba como contenido óptimo y necesário para el perfeccionamiento y restauración de la naturaleza humana. (VERGARA CIORDIA, 2009VERGARA CIORDIA, Javier. Enciclopedismo especular en la Baja Edade Media. AHIg, n.º 18, p. 295-309, 2009., p. 303).
Essa ideia fazia evidente que a multiplicidade formal da natureza se apresentava como objeto de conhecimento e como conteúdo ótimo de aprendizagem. Os escolásticos buscaram conhecer o reflexo da natureza, para aprendê-lo, dominá-lo e armazená-lo, e assim publicaram numerosas enciclopédias que cada vez mais exigiam a consideração da multiplicidade e da diversidade da natureza em si mesma e por si mesma, enquanto espelho e coadjuvante da vontade divina. Segundo Javier Vergara, o denominador comum nos escolásticos era seu acusado historicismo providencialista (VERGARA CIORDIA, 2009VERGARA CIORDIA, Javier. Enciclopedismo especular en la Baja Edade Media. AHIg, n.º 18, p. 295-309, 2009., p. 295).
Tal concepção da natureza se revela com intensidade em Image du Monde. A obra expressa claramente que Gossouin de Metz comungava da concepção dos escolásticos de que o acesso à felicidade, à sabedoria, se apresentava como um processo eminentemente intelectual, de progressão contínua. Ainda que exigisse o auxílio da fé e da consideração da multiplicidade formal da natureza, esse processo intelectual se achava ligado inexoravelmente à memória do passado. A poesia científica de Gossouin de Metz se apresenta perfeitamente de acordo com o pensamento dos escolásticos, revelando que o conhecimento da natureza, do homem e de sua obra, em realidade, se confundia com a história da salvação humana caminhando para o encontro com o Criador.
Sobreleva-se aqui a ideia central do presente artigo, de que as transferências e o sincretismo com os mundos grego e islâmico contribuíram para as estruturas de pensamento na Europa Ocidental e favoreceram o crescente interesse no estudo racional da natureza, como uma parte essencial dentro do cosmos, o que reflete o mundo ou universo de um sistema ordenado e harmonioso. Mas, a natureza se encontra em uma ordem cósmica superior, que é a obra de Deus.
Assim, no último capítulo de Image du monde, Gossouin de Metz retoma:
Depois quero voltar
A Jesus Cristo, Nosso Senhor,
Para refinar o meu romance.
Quero falar Dele no final
Porque se diz no final o melhor.
Noite e dia deve, cada um,
Amá-Lo e servi-Lo com o coração leal
Porque Ele merece toda a dedicação.
Ele é princípio e fim
De todos os bens. [E] nem todos os pergaminhos
Que existem seriam suficientes
Para descrever a Sua eminência.
Apres voil faire mon retor
A Jhesu Crist, nostre signor,
Por mon romans asavorer.
Voil en la fin de lui parler,
C’on dista u darrien le millor.
Lui doit chascuns et nuit et jor,
De fin cruer amer et servir,
Qu’il puet toz cérvices merrir.
Il est commencemmens et fins
De tos biens. Tos li parchemins
Qui soit ne poroit pas soffire
A as grant hautesce descrire.
(GOSSOUIN DE METZ,1245/[2010], p. 400-01)
Considerações finais
Adotando a História Global como método, buscou-se situar a poesia científica de Gossouin de Metz, escrita no reino de França, por volta de 1245, em um contexto marcado pelas articulações entre as formas de pensamento e os conhecimentos produzidos em distintas temporalidades e espacialidades históricas. A Image du monde permite estabelecer a conexão do ambiente intelectual francês aos espaços de circulação dos conhecimentos grego antigo e árabe medieval. Procurou-se perceber a dinâmica que conecta a expansão intelectual europeia a um movimento mais amplo, iniciado no mundo árabe, no século VIII, que, por sua vez, retomava as obras dos filósofos gregos antigos. Nessa reflexão, os fenômenos que ocasionaram profundas mudanças na percepção da natureza e nas relações do homem com o meio ambiente ocupam um lugar central. Nesse sentido, destacam-se os fenômenos europeus de expansão demográfica, agrícola e comercial e os intercâmbios culturais com o mundo árabe-muçulmano. Entende-se que esses fenômenos afetaram a percepção de mundo do homem medieval e favoreceram a busca por explicações científicas do mundo e de tudo o que nele existe.
A Image du monde de Gossouin de Metz recolhe e revela os conhecimentos do mundo e a percepção que os homens do círculo letrado, do século XIII, tinham da natureza. Sem afastar definitivamente as influências herdadas dos primeiros séculos do cristianismo, esses homens, contudo, desenvolveram uma filosofia natural na qual a natureza começava a adquirir existência própria. Pensadores como Gossouin de Metz submetiam a natureza às leis cognoscíveis e matematicamente demonstráveis. Essas mudanças na percepção do mundo estavam intimamente relacionadas a uma nova perspectiva da intervenção humana na natureza, num ambiente de mudanças culturais, mas, também, de mudanças econômicas, políticas e sociais. Analisando o vínculo mais cotidiano do homem com seu entorno e sua natureza, Robert Fossier destaca que a natureza domina o ser humano; o homem pode destruir os bosques, contaminar o ambiente ou acabar com as espécies animais, mas é incapaz de evitar os diversos fenômenos naturais como terremotos, ciclones e tempestades (FOSSIER, 2007FOSSIER, Robert. Gente de la Edad Media. Madrid: Taurus, 2007.).
Gossouin de Metz escreveu sua obra no momento em que a Europa, de forma geral, passava por um processo de forte expansão demográfica, o que ocasionou uma ampliação considerável das áreas cultiváveis - por meio da derrubada de florestas, drenagem de pântanos, substituição de áreas de pastagem por áreas de plantio, entre outras medidas. Verificou-se também o surgimento de novas técnicas e ferramentas para a produção agrícola. As relações de trabalho e as formas de dominação também sofreriam mudanças, como era de se esperar. Nesse contexto, percebia-se que a natureza era, por um lado, favorável ao homem, já que dela provinha seu sustento, e, por outro lado, era também hostil a ele, pois os eventos incontroláveis tornavam-na uma ameaça. Mas, os homens da Idade Média, de acordo com Carlos Barros, transformaram a natureza hostil em amiga - num processo considerado por esse historiador de “humanização da natureza” - sem romper o equilíbrio ecológico. Eis a originalidade da Idade Média: a dessacralização ou humanização da natureza não chegou até o extremo de colocar o homem em situação de enfrentamento com seu meio ambiente (BARROS, 1999BARROS, Carlos. La humanización de la naturaleza en la Edad Media. Edad Media: Revista de Historia, n.º 2, p. 169-194, 1999., p. 169-94). Chega-se, enfim, ao contexto em que a Image du monde foi construída: um ambiente cosmopolita, marcado pela circulação de mercadorias, pessoas, ideias e saberes, onde as dinâmicas econômicas, sociais e culturais promoveram mudanças nas relações do homem com o meio ambiente e provocaram a curiosidade científica e o desejo de explicar as coisas da natureza.
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Coordenação do Dossiê “Uma História Global antes da Globalização? Circulação e espaços conectados na Idade Média” Marcelo Cândido da Silva
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O artigo não foi previamente publicado em plataforma de preprint. Todas as fontes e toda a bibliografia empregadas são referidas no artigo. O texto é produto do projeto de pesquisa “Concepções e representações da Natureza nas sociedades medievais”, desenvolvido pela autora na Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás.
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A história global surgiu no contexto do mundo globalizado e tem gerado intenso debate entre os historiadores, incluindo-se os medievalistas. Diante das vivas discussões que se apresentam em uma extensa bibliografia e dos limites próprios do presente artigo, serão apresentadas apenas algumas observações fundamentais nessa nota. Antes de tudo, é necessário esclarecer que atentou-se ao problema que se apresenta na própria definição de “global”. Jérôme Baschet (2017, p. 20) questiona: “Histoire globale, certes, mais de quelle globalité parle-t-on?”, remetendo à questão de mesmo sentido realizada anteriormente por Roger Chartier (2001, p. 119-23): “‘Penser le monde’. Mais qui le pense? Les hommes du passé ou les historiens du présent?”. Essa é uma questão fundamental e ajuda a afastar a ideia da existência, no período medieval, de uma percepção de “mundo” aos moldes atuais, ou ainda a recusar qualquer perspectiva de existência de algo que se aproxime da ideia contemporânea de “aldeia global”. A proposta, portanto, é a de, a partir de uma história global e conectada da Idade Média, refletir sobre uma das possíveis modalidades das conexões existentes, qual seja, a que se dá por meio da circulação de saberes. Sobre a história global e a globalidade histórica contemporânea, pode-se consultar o artigo de Fazio Vengoa e Fazio Vengoa, publicado em 2018.
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Na apresentação da obra, Margarida Alpalhão destaca que entre as traduções da Image du Monde “se contam uma em inglês, feita por Caxton em 1480 (...), uma em hebreu, da qual existem duas versões diferentes, e uma, abreviada, em judaico-alemão (...) Além das traduções são também conhecidos vários exemplares impressos: ingleses, editados (...) pelo próprio tradutor em 1481 (1ª ed.) e 1490 (2ª ed.); franceses, editados em Paris, por editores diferentes, em 1501 e 1520 (...); um outro, plagiado, editado em Genève em 1517 ... e um hebraico, editado em Amsterdão em 1733. (...) Finaliza-se acrescentando que a Image du Monde foi bastante glosada, copiada e até resumida ...” (ALPALHÃO, [2010], p. 29).
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Acerca dos conceitos de enciclopédia e enciclopedismo, Gilbert Dahan faz a seguinte observação: “le concept d’encyclopédie est évidemment anachronique au XIIe et au XIIIe siècle, mais l’on peut tout aussi évidemment parler d’encyclopédisme, démarche intellectuelle repérable en mainte occasion durant cette époque, notamment à travers tous les systèmes de division de la science qui sont alors proposés. Je continuerai néanmoins à parler d’encyclopédies, en entendant par là un nombre finalement restreint d’ouvrages qui s’efforcent de regrouper un maximum de connaissances dans plusieurs champs du savoir” (DAHAN, 2007, p. 2).
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Os mutazilitas defendiam o aristotelismo e o racionalismo e se opunham aos asbaritas, chamados de ortodoxos, que haviam fixado os cânones do islamismo no século X (BITTAR, 2009, p. 67).
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A respeito da obra de Averróis esclarece Bittar: “A datação de desenvolvimento da obra de Averróis em torno de Aristóteles segue o seguinte desenvolvimento: 1167 - Tópicos - Médio Comentário; 1170 - Física - Médio Comentário; 1170 - Segundos Analíticos - Médio Comentário; 1174 - Refutações Sofísticas - Médio Comentário; 1174 - De anima - Médio Comentário; 1175-6 - Retórica - Médio Comentário; 1176 - Poética - Médio Comentário; 1177 - Ética a Nicômaco - Médio Comentário; 1183 - Segundos Analíticos - Grande Comentário; 1188 - De Caelo - Grande Comentário; 1190 - De Caelo - Grande Comentário; 1192-94 - Metafísica - Médio Comentário.” (BITTAR, 2009, p. 78, nota 41).
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Koyré (1977) destaca o amplo domínio que a autoridade de Aristóteles exerce sobre a filosofia ocidental a partir do século XIII. Para Koyré, essa profunda influência se explicaria pela impressionante capacidade de Aristóteles em abranger praticamente todos os campos do saber.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Out 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
19 Ago 2019 -
Aceito
18 Fev 2020